Ao nos receber em sua casa, logo de início, Chirley Pankará faz questão de apresentar o ambiente em que estamos chegando, a ‘Sala da Memória’, espaço que abriga peças e obras que dialogam sobre território e memória. “[Aqui] tem peças de barro do meu núcleo familiar, peças de vários povos indígenas, e aí a gente vai se conectando com essas ancestralidades também. Isso me mantém no processo de territorialidade, que é a conexão que eu faço na cidade em situação de contexto urbano [com] o território indígena”, explica.
Chirley Pankará, 50, é pedagoga, doutoranda em antropologia, e conta que sua família é do território reconhecido como Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, em Pernambuco. “Nós fomos trabalhar em fazendas [na] zona rural [do município] de Floresta, que não é a mesma [região] das aldeias Pankará”. Ela menciona que essa migração foi a alternativa encontrada pela família para conseguir trabalho e subsistência.
Em 1998, Chirley migrou para São Paulo pelo mesmo motivo, “vim para trabalhar como empregada doméstica”, conta. Atualmente, ela mora no bairro Jardim São Francisco, localizado no distrito de São Rafael, na zona leste de São Paulo.
“Muitos indígenas que vivem em situação de contexto urbano, vivem nas periferias. Quando eu falo periferia também estou falando de povos indígenas. É que há um pensamento distorcido de achar que o indígena está só dentro da aldeia.”
Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.
Elaidentifica sua ligação com a militância e a liderança desde a infância, quando sua avó Maria Divina, conhecida como Mãe Bó, que era parteira e benzedeira, pedia ajuda na busca de ervas, e Chirley prontamente ia procurar na mata para auxiliar.
Chirley traz que sua atuação nos movimentos sociais antecede sua participação na política partidária. “Eu era ligada à política pública da luta dos movimentos sociais”, comenta. Ela conta que sua trajetória política é permeada pela escuta, oralidade e pela construção de redes.
A partir dessa perspectiva de construção conjunta, Chirley fala sobre um tipo de liderança, que se estabelece por um querer coletivo. Segundo ela, é por esse direcionamento que está como pré-candidata a vereadora de São Paulo. “Algumas pessoas, que não estão dentro do contexto indígena de coletividade, de escutas, [não entendem] quando eu digo que foram os povos indígenas que escolheram”, compartilha.
Reunião com lideranças políticas e indígenas, na Terra Indígena Jaraguá, em 2022 (foto: Rafael Vilela)
“Em São Paulo capital, por exemplo, nós temos 19.777 indígenas, apontou o IBGE. Com 19.777 [votos] não elege uma vereadora. E estamos contando que nesses 19.777 temos as crianças”, expõe Chirley ao explicar que por causa dessa quantidade de votos não seria uma boa estratégia lançar duas candidaturas ao mesmo tempo, e que é desse modo que os indígenas geralmente se organizam politicamente,sem competir entre si.
Trajetória
Em 2007, Chirley começou a cursar pedagogia como bolsista por renda. No ano seguinte, após ingressar na faculdade, passou a se conectar com outras atuações. “Eu me encontrei com os parentes indígenas [e] comecei a participar de movimentos indígenas”, diz. E de lá para cá não parou mais. “Em 2009, fui para a minha primeira viagem fora de São Paulo no sentido da militância, representando a questão indígena”, conta.
Desde então Chirley já integrou o Conselho Nacional de Mulheres Indígenas representando a educação, participou da 2° Conferência Nacional da Igualdade Racial, foi para a Rio+20, para a Conferência Global de Mulheres Indígenas em 2013, realizada no Peru, participa do ‘Acampamento Terra Livre’, entre outras movimentações.
Chirley no Congresso Nacional reivindicando a demarcação de terras indígenas, durante o Acampamento Terra Livre (foto: arquivo pessoal).
Através dessas articulações, Chirley conheceu Edson Kayapó, que é escritor, ativista indígena e historiador. Ela a indicou para o Observatório da Educação Escolar Indígena, na PUC, onde iniciou como estudante e após o primeiro ano passou a atuar como professora, de 2009 a 2012, período que também começou o mestrado.
Em 2010, também a convite de Edson Kayapó, foi Coordenadora Geral das escolas de primeira infância do Povo Guarani, em três Centros de Educação e Cultura Indígena (CECIs), na Tenonde Porã e Krukutu, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, e no CECI Jaraguá, no Pico do Jaraguá.
Chirley como doutoranda em Antropologia Social da USP, no Seminário internacional de antropologia. (foto: arquivo pessoal).
“Eu fui aprovada [como] a primeira mulher indígena a entrar no doutorado em antropologia social na USP, como cotas”, aponta Chirley, que reivindica ter professores e autores indígenas como referências no curso.
Identitarismo
Chirley conta que foi apenas em 2018, que filiou-se a um partido político. Através do Emerson Guarani Nhandeva, que é professor e pesquisador, ela foi chamada para conhecer e participar da campanha da Bancada Ativista. A Pankará comenta que na ocasião ainda não conhecia como funcionavam os mandatos coletivos.
Na última reunião para definir as co-candidatas do mandato, a pedagoga foi para entender mais sobre, e ao final do encontro passou a compor a Bancada Ativista, que ganhou as eleições de 2018. “Eu fui para a reunião e senti que dava pra dialogar, porque eu vi pessoas que se aproximavam da minha pessoa. Eu pensava que eu ia ver só aquele povo metido, nas gravatas, no salto”, comenta.
Sobre as dificuldades de atuar na política enquanto mulher indígena, nordestina e periférica, Chirley diz que há várias formas de preconceito. “Você tem que ser 10.000 vezes mais forte, pra poder se manter de pé, fazer políticas públicas e combater isso”, coloca.
“Eu [já] vi muitas pessoas falarem assim: ‘ela traz uma pauta identitária’. Como se quisesse me xingar, sabe?”
Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.
A pedagoga afirma que as pautas que contemplam os povos indígenas também podem ser necessárias para a cidade. “Quando estou falando de privatização da água, da Sabesp, estou falando de um braço que se conecta com meio ambiente. A especulação imobiliária, as ecovias verdes, tantas coisas que vão servir para a cidade e para a aldeia”, exemplifica.
Chirley também aponta que a visão estereotipada e de tutelagem sobre os indígenas ainda existe, tanto na sociedade como nos espaços políticos, e que esse imaginário precisa ser descolonizado.
Chirley como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas (foto: arquivo pessoal).
Em 2023, a Pankará atuou como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas, e se desvinculou para concorrer às eleições de 2024. “Estou a serviço do movimento indígena, uma liderança é a serviço da coletividade. A gente tem que honrar a memória dos nossos ancestrais”, finaliza.
Agatha Benks, 38, é uma mulher negra, travesti, de matriz africana e periférica, que está como pré-candidata a vereadora do município de Cachoeiro de Itapemirim, do Espírito Santo, cidade onde mora, no bairro Bela Vista. Agatha conta que construiu uma trajetória de vivência política que antecede essa primeira candidatura que disputa nas eleições de 2024.
“Eu sou ativista de direitos humanos e trabalho com educação social, com coletivos e ONGs de empoderamento e fortalecimento da população preta e periférica”, diz. Agatha é vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo, assessora parlamentar da deputada estadual Camila Valadão, pelo PSOL, partido no qual é filiada desde 2019, e também atua na área da cultura.
Agatha Benks em um evento do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). (foto: arquivo pessoal).
“Enquanto mulher trans e periférica, eu sou uma sobrevivente por não aceitar nada que a sociedade historicamente colocou para o meu corpo. Eu não aceitei a prostituição como a minha única opção de vida. Eu relutei contra isso por vários anos, desde quando eu me entendi travesti”, coloca.
Aos 16 anos, Agatha abandonou os estudos por causa dos preconceitos e hostilidades que sofreu quando cursava o ensino médio em uma escola pública. Foi nesse período que ela vivenciou a prostituição.
Agatha na composição do conselho estadual lgbtqipn+ do Espírito Santo (foto: arquivo pessoal)
“[Eu tinha] medo desse submundo de marginalização das mulheres trans, deste lugar que é extremamente inseguro, incerto e violento. Então eu procurei outros caminhos”. A partir daí, Agatha começou a trabalhar como cabeleireira. “Quando se é uma travesti [ou] trans, você é manicure, cabeleireira e maquiadora ou você vai fazer programa, porque você não acha outro emprego”, afirma.
Após se estabelecer como cabeleireira e voltar a estudar, ela optou por trabalhar em áreas que se relacionam com a militância sobre negritude e a comunidade LGBTQIAPN+. “Por mais que eu não esteja [mais] naquele ambiente [de prostituição], eu também não quero que as minhas amigas estejam lá”, menciona a assessora, que concluiu o ensino médio atraves do EJA (Educação de Jovens e Adultos), e por meio do ENEM, cursou Gestão Pública com bolsa de estudos pelo PROUNI.
“É só na educação e no estudo que a gente consegue romper [os preconceitos], se você quer combater o racismo, o preconceito, estude, é a única forma de você enfrentar o que está imposto frente a todos esses recortes de violações de direitos humanos.”
Agatha Benks, vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo e pré-candidata a vereadora de Cachoeiro de Itapemirim.
Garantir o direito ao uso do nome social foi uma das dificuldades da graduação na universidade em que conta ter sido a primeira travesti a estudar. Nesse período, a assessora relata que outras mulheres trans e travestis da região passaram a acreditar que estudar e se formar era um caminho possível. “Foi muito simbólico, outras meninas se viram representadas”, diz.
Embora já tivesse conexão com as pautas que aborda, a universidade também fortaleceu sua militância, e de lá surgiram os direcionamentos da área que passou a trabalhar. Foi nesse espaço que conheceu coletivos, grupos de diversidade, negritude e que desenvolveu um lado politizado com o respaldo na palavra.
Atuação política no território
“A periferia está sempre formando homens e mulheres, jovens, negros, lgbts, ou não lgbts, a periferia está sempre formando o povo preto, porque é o lugar de todas as [nossas] vivências”, menciona Agatha.
Desde 2016 ela atua no instituto FEPNES (Instituto de Fortalecimento e Empoderamento da População Negra + Diversidade), no qual atualmente é coordenadora da pasta de diversidade. O instituto realiza ações que promovem os direitos humanos das pessoas lgbtqiapn+, mulheres e jovens negros. Entre essas ações está a oferta de cursos nas áreas de empreendedorismo em comunidades do Espírito Santo.
Suas vivências enquanto travesti, negra e periférica interferiram na decisão de entrar na disputa da política institucional e buscar combater o racismo. “A partir do momento que a gente desce um morro e vai para o centro a gente entende o preconceito territorial. O preconceito de você ser periférico, porque as pessoas vão te olhar e julgar”, coloca.
Agatha no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado do Espírito Santo. (foto: arquivo pessoal).
“O menino [negro] de 17 [ou] 18 anos se desce para a rua de sandália, boné e cordão, automaticamente uma viatura vai parar ele. Quando ele entrar numa loja um segurança vai acompanhar ele”, exemplifica Agatha. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 83% dos mortos pela polícia em 2022, no Brasil, eram negros, pobres e residentes das periferias, sendo que 76% tinham entre 12 e 29 anos.
São todos esses recortes e demarcadores que estão presentes na trajetória da assessora. “Minhas frentes de atuação [são] a negritude e a diversidade da população LGBTQIAPN+. Minhas bandeiras são homens, mulheres e jovens negros e negres. E dentro dessa militância da negritude tem os povos de terreiro e de matrizes africanas que também é um povo muito violentado”, coloca Agatha.
Desafios e motivações
Agatha diz que foi nas eleições de 2022, que começou a considerar a possibilidade de se candidatar, e a ideia veio a partir da sua atuação como assessora parlamentar. Foi através dessa experiência que começou a entender de fato como a política institucional é feita, e incentivada por pessoas parceiras, decidiu pela candidatura.
“Pessoas de terreiros, de matrizes [africana], lgbtqiapn+, pretas, periféricas, essas pessoas começaram a comentar em posts meus [nas redes sociais]: ‘você me representa’, ‘eu tenho orgulho’. Foi que eu entendi que posso realmente representá-los de fato, com garantias de lei”, coloca Agatha. Ela comenta que essa motivação foi fundamental, já que, segundo a pré-candidata, o Espírito Santo é um estado conservador.
Para Agatha, ser uma mulher, negra, travesti, de terreiro e periférica dentro da política partidária é um posto que reúne diferentes tipos de representatividades e que isso também torna o meio político um local cheio de desafios para pessoas como ela.
“Aqui na minha cidade não precisa literalmente ser eu. Eu estou aqui pela primeira vez [me pré-candidatando], mas que tenha uma pessoa igual a mim, porque a gente entende a importância desse corpo político”, comenta. Agatha ainda menciona que mulheres trans na política, como Erika Hilton, Deputada Federal, é algo que a motiva e inspira nessa empreitada por um cargo político e por dias melhores.
Enquanto os bancos tradicionais dificultam o acesso ao crédito para pequenos empreendedores e pessoas de baixa renda no Brasil, os bancos comunitários Palmas, localizado na periferia de Fortaleza, e Paulo Freire, localizado na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, estão reduzindo taxas, criando moedas digitais, facilitando acesso ao crédito e fortalecendo empreendedores locais.
Uma das pessoas impactadas por essas instituições financeiras comunitárias é Márcia Rodrigues, 52, moradora do bairro Jangurussu, em Fortaleza, que se tornou empreendedora do ramo de alimentos com o apoio do banco Palmas, instituição financeira comunitária, após conseguir acesso ao crédito necessário para iniciar e expandir o empreendimento “Bolo Bolo”.
Ela conhece o banco Palmas desde os anos 2000, quando trabalhava como coordenadora em uma creche comunitária, que também era um centro de nutrição. Nessa época, Márcia não recebia nem um salário-mínimo e para complementar a renda ela começou a aprender a cozinhar.
Com o apoio de cursos oferecidos gratuitamente pelo Banco Palmas, ela conseguiu estruturar um novo ramo de atuação profissional, passando a fazer tortas de frango, bolos e salgados para vender na porta de casa.
“O dinheiro para fazer isso era tão pouco. O que entrava a gente tinha que comprar [os ingredientes] novamente, e essas coisas não têm um retorno a curto prazo, porque você tem que investir. Aí eu pensei: ‘vou procurar o banco Palmas para ver se consigo fazer um empréstimo’.” relembra a empreendedora.
Ela conseguiu esse empréstimo para investir no empreendimento. “Eu cheguei a fazer [empréstimo de] até R$ 5.000. Então, [o negócio] deu uma guinada, porque eu pude fazer bastante coisa com esse valor. Eu fui comprando os equipamentos”, aponta a empreendedora.
Emanuel Kayro de Souza Costa, funcionário da Bolo Bolo. (foto: arquivo pessoal)
Márcia menciona que ela solicitava o crédito, empregava o dinheiro arrecadado, e o que ela conseguia de retorno era usado para pagar o empréstimo, o lucro servia para continuar os trabalhos. Com o tempo, ela abriu uma lanchonete e contratou três funcionários, gerando renda e trabalho na região.
Moeda própria e tarifas mais baixas
Segundo Joaquim Melo, criador do Banco Palmas, a instituição financeira comunitária é a primeira no Brasil. A iniciativa tem uma atuação inovadora por lançar o E-dinheiro, primeira moeda digital brasileira criada com o objetivo de promover inclusão econômica de pessoas de baixa renda, como a dona Márcia, criando uma plataforma digital para operar a moeda com juros mais baixos no acesso ao crédito e outros serviços bancários, em relação aos bancos tradicionais.
Ao criar essa estratégia, o banco foi desenvolvendo uma série de processos que vão na contramão da cultura de instituições financeiras tradicionais, que se baseiam em taxar praticamente todos os serviços utilizados pelos consumidores.
“As taxas de juros são menores, a análise do crédito é mais rápida, não é obrigado ter cadastro limpo, tem acompanhamento e tu vai ter estratégia de comercialização [no caso dos empreendedores]. No banco tradicional o crédito serve para ele [o banqueiro] ganhar dinheiro. No banco comunitário o crédito é uma estratégia de desenvolvimento do território, ou seja, a gente empresta dinheiro para o bairro crescer”
Joaquim Melo, fundador do Banco Palmas e criador da E-dinheiro.
O fundador do Banco Palmas explica que embora cada banco comunitário tenha autonomia para decidir uma taxa de juros, há um protocolo que estabelece que seja cobrado “uma taxa de no máximo até 1%, para poder ficar abaixo do que é praticado no mercado”. Ele explica que essa taxa de juros está estabelecida com base na Lei da Usura 22.626, de 7 de abril de 1933.
Enquanto os bancos comunitários adotam a taxa de juros de 1% ao mês para fornecimento de crédito pessoal, os principais bancos comerciais brasileiros têm uma taxa média de 7,94% ao mês, segundo estudo mensal do Procon- SP, divulgado no mês de fevereiro de 2024.
Neste contexto, Márcia, a empreendedora de Fortaleza, ressalta: “não tenho mais conta em banco comercial”. Ela justifica essa mudança de cultura com o exemplo de sua mãe. “Todo mês na conta da minha mãe vem R$ 60 descontado só da taxa de manutenção, mesmo recebendo um benefício pelo INSS. Isso é um absurdo para um trabalhador.”
Ela conta que na plataforma E-dinheiro esse tipo de taxa não existe e menciona as diferenças nas cobranças de taxas entre os diferentes tipos de bancos.
“Eles não me cobram nenhum tostão. A única coisa que eles cobram é R$ 1 pelo pagamento de boleto de até R$1.000, e acima [desse valor] é R$ 2.”,
Márcia Rodrigues é empreendedora e cliente do banco comunitário Palmas.
Atualmente, a dona do “Bolo Bolo” não precisa mais pegar crédito para investir em seu negócio, mas continua utilizando o banco comunitário para fazer as demais operações bancárias. “Eu recebo o E-dinheiro no meu negócio e eu também pago as minhas contas com eles no banco Palmas, compro em outros comércios do bairro também, porque é uma mão lavando a outra”, comenta a empreendedora.
Márcia em seu empreendimento “Bolo bolo” localizado no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. (foto: arquivo pessoal)
No Brasil, a E-dinheiro é a primeira e por enquanto a única moeda social digital. Dos 152 bancos comunitários que existem no país, 98 são cadastrados na plataforma. Para aderir ao uso dessa moeda é necessário que o banco comunitário esteja localizado no mesmo bairro ou município da pessoa interessada em abrir uma conta, pois o uso da moeda social é destinado ao território.
Segundo o criador do banco Palmas, todo lucro gerado no banco comunitário é investido no próprio território. Essa é outra regra que tem que ser cumprida por todos os bancos dessa rede. Um exemplo desse investimento é o curso de culinária que a Márcia fez, e é desse jeito que o desenvolvimento social ocorre.
Banco Paulo Freire
Na Cidade Tiradentes, distrito da zona leste de São Paulo, o banco Paulo Freire também usa o E-dinheiro, como uma ferramenta para viabilizar a inclusão econômica de moradores da região, proporcionando que mesmo as pessoas endividadas, desempregadas, com o nome listado no serviço de proteção ao crédito (SPC), de baixa renda consigam acessar o crédito, para empreender ou consumir em comércios locais.
“Elas conseguem pegar o crédito sim. Mesmo aquela família que a gente sabe que tem mais dificuldade de pagar, a gente parcela [a devolução] em mais vezes, e procura ser bem acessível”, conta Maria das Dores Ferreira, 52, que é mais conhecida como Dora no território, e que além de pedagoga, é gerente do banco Paulo Freire.
Dora enfatiza que diferente das demais instituições financeiras, nos bancos comunitários é possível obter crédito, mesmo quando a pessoa não está com a condição financeira ideal.
De modo geral, os pré-requisitos e os benefícios de acesso ao crédito se igualam tanto para o empreendedor como para o morador que procura o banco comunitário, conforme diz Joaquim. “O acompanhamento, o aconselhamento, o controle de inadimplência, prazo maior para você poder pagar, tanto serve para um como para o outro”, pontua.
No banco Paulo Freire, a avaliação para liberação de crédito é feita pelos associados que estão na gestão do banco. “A gente vê o quanto a pessoa recebe, o quanto que ela gasta e tenta ajudar ela a ter o controle da própria renda. Tem vezes que a pessoa nem precisa pegar um empréstimo, porque ela só não está sabendo usar direito o dinheiro que tem. Em outros momentos, a gente empresta e acompanha”, comenta Dora sobre o processo de empréstimo.
A gerente do banco menciona que a confiança e a relação de proximidade com as pessoas é um ponto crucial para que a concessão e a devolução do crédito ocorram. “Quando a família não consegue pagar no prazo estipulado, a gente vai conversar com ela e estende, por exemplo, se tem que pagar em três meses, ela paga em seis o empréstimo. Assim a pessoa consegue ter o dinheirinho dela e consegue devolver pra gente.”
Os bancos comunitários têm uma renegociação de dívida mais flexível, que leva em consideração as condições sociais e financeiras das pessoas. “No Brasil, no começo de 2023 estava em 45% a inadimplência, ou seja, quase cinco de cada 10 pessoas não conseguiam pagar suas dívidas [no banco comercial]. No banco comunitário, a gente fala de 2%, ou seja, menos de uma pessoa por cada 10.”, aponta Hamilton Rocha, coordenador e articulador da Rede Paulista de Bancos Comunitários.
Segundo dados da pesquisa Viver em São Paulo: Mobilidade, realizada pela Rede Nossa São Paulo junto com o Instituto Cidades Sustentáveis e o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), em 2023, o tempo médio gasto diariamente para fazer todos os deslocamentos na cidade, através do transporte público, era de 2h26.
Esse é um dado vivenciado por muitas pessoas, principalmente em territórios periféricos, como é o caso da Josivete Pereira, conhecida como Jô, que passou a considerar o uso da bicicleta para se locomover, a princípio por uma questão financeira, mas também pelo tempo de locomoção na cidade.
Jô Pereira, moradora do Rio Pequeno, é presidenta da União de Ciclistas do Brasil e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada. (foto: Yuri Vasquez)
“A gente precisa ter tempo pra gente, só [temos] tempo para o trabalho. A gente se desloca, trabalha e volta. Não pode ser só isso”, coloca Jô Pereira, que é educadora física, moradora do bairro Jardim Ester, no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, presidenta da União de Ciclistas do Brasil, atuante na Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, e uma das fundadoras do coletivo Pedal na Quebrada.
A ciclista aponta que qualidade de vida e lazer se relacionam com as questões de mobilidade urbana. Ela coloca que o uso da bicicleta nas periferias não se dá apenas no aspecto da obrigação ou escassez, que pode ser usada para brincar e em exercícios físicos.
“A mobilidade ativa, tanto a pé quanto de bicicleta, e o transporte público dependendo dos horários, são maneiras com as quais a gente pode estar somando ganhos nessa mobilidade. Isso é importante para repensar as cidades”, diz Jô.
Pedal na Quebrada
O Pedal na Quebrada é uma iniciativa criada em 2018, pela Jô Pereira, junto da Jezz Rodrigues e Angela Maris, que moram em Itaquera, e pela Tati Souza, que é de Guaianazes, ambos territórios localizados na zona leste de São Paulo.
Angela Maris, Jô Pereira, Tati Souza e Jezz Rodrigues formam o coletivo Pedal na Quebrada. (foto: arquivo pessoal).
Formado por três educadoras físicas e uma educadora infantil, as ações do coletivo circulam por diferentes regiões. A principal atividade tem sido retomar as reais histórias dos territórios, a partir do conhecimento de quem veio antes e de quem o habita no momento, isso se dá através da poesia e do ciclismo na atividade que Jô se refere como Pedalada Política, proposta pelo coletivo. Ela explica que o objetivo é “falar da nossa historicidade, dos corpos negros e indígenas na cidade, só que no olhar do pedal”.
“Não é um passeio ciclístico, é uma pedalada política, artística e principalmente afetiva, porque é para a gente se colocar na história e se colocar no presente”. A ciclista conta que essas pedaladas são realizadas com alguém do território, e previamente é feito um mapeamento do percurso que tem entre 10 e 20 km.
Pedalada noturna no município de Mogi das Cruzes, em São Paulo. (foto: Jezz Rodrigues)Pedal no distrito de Belém, com o projeto ‘Poesia urbana sobre rodas’. (foto: Yuri Vasquez)
O coletivo também promove oficinas de mecânica e de pedal, que além do aprendizado prático estimulam o desenvolvimento da autonomia, da construção coletiva e provocam questões de identidade e subjetividade das pessoas que participam.
Como exemplo, Jô cita um grupo de pedal formado por incentivo das ações do coletivo, após uma oficina que realizaram na Casa Anastácia, um Centro de Defesa e Convivência da Mulher que atende mulheres vítimas de violência doméstica.
Participar de discussões acadêmicas é mais uma das movimentações da iniciativa. “Entrar dentro das estruturas de educação para decolonizar esse assunto [da mobilidade urbana], porque ele é bem colonizado”. Classe, raça e gênero são temas presentes quando se trata da viabilidade do uso de bicicletas e o Pedal na Quebrada também desenvolve suas atividades a partir dessas abordagens ao abrir espaço para rodas de conversas antes das oficinas práticas.
Políticas públicas
A regulamentação do uso das bicicletas e dos demais veículos, como bicicletas elétricas, ciclomotores, entre outros, para que eles utilizem as vias ao invés das calçadas, por exemplo, é apontada por Jô como uma forma para evitar acidentes.
“A gente está lutando por mais espaço dentro das vias, da ‘carrocracia’ e para isso a gente tem que ganhar mais espaço também para o pedestre”.
Jô Pereira, Presidenta da União de Ciclistas do Brasil, integrante da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada.
Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, a bicicleta é considerada um veículo de propulsão humana, e por isso pode ser usada na via, tendo direitos e deveres resguardados pela lei.
Jô afirma que a diminuição da velocidade dos veículos motorizados é uma das providências a serem tomadas para viabilizar não só a locomoção com bicicleta nas cidades, mas para diminuir os sinistros com veículos de modo geral. Ampliar a malha cicloviária na cidade, tendo como foco as periferias, também é uma das prioridades reivindicadas.
“Pensar a cidade e as políticas públicas também nessa visibilidade de como respeitar a pluralidade das pessoas estarem nos mesmos espaços com seus direitos garantidos. [Precisamos] de olhares [na] construção política para periferias e falar: ‘Opa, precisamos aumentar a malha cicloviária nas periferias’. Tem aumentado? Tem. Com tanta pressão tem funcionado, mas ainda está muito lento”, coloca a cofundadora do Pedal na Quebrada.
Vivência Bike Trial, projeto do Dia do Desafio pelo Sesc 14 Bis. (foto: arquivo pessoal).
As necessidades para viabilizar a locomoção com bicicleta nas periferias ainda são muitas, e Jô coloca que a organização em coletivos para elaborar projetos políticos tem sido a estratégia adotada para alcançar melhorias.
“Quem mais pedala é a periferia, isso é muito bom e positivo, só que a gente precisa de segurança para todo mundo [com] qualidade, não é só pintar [uma faixa]”, compartilha Jô, que também afirma sobre a facilidade do uso de bicicletas em bairros centralizados ocorrer por conta do investimento destinado para esses locais.
A educadora coloca que as discussões sobre políticas públicas de mobilidade urbana precisam acontecer também nas periferias para que moradores desses territórios possam ter a possibilidade de participar.
“[Precisamos de] mais de nós falando, não pode ter tão poucas representações assim, porque somos muitos, tem que ampliar mais essa discussão, porque não é uma discussão só da bicicleta, é uma discussão da cidade”, menciona Jô, que ressalta sobre o voto nas eleições interferir diretamente nesse planejamento urbano.
Dignidade menstrual e pobreza menstrual são conceitos que tratam das condições de higiene e saúde de pessoas que menstruam, levando em conta as particularidades e necessidades que o período menstrual requer. Contudo, medidas de cuidado e saúde muitas vezes não são disponibilizadas para pessoas em situações de vulnerabilidade social.
“A dignidade menstrual é o acesso a cuidados de saúde em geral, para poder cuidar do próprio corpo e [isso inclui ter acesso aos] produtos ligados à menstruação”, explica Shisleni Macedo. Ela é especialista em estudos de gênero e teoria feminista, atua como pesquisadora no Centro de Estudos Periféricos (CEP) da Unifesp e trabalha em projetos ligados a justiça reprodutiva.
“A gente tem relatos de mulheres que durante a menstruação inserem miolo de pão no canal vaginal ou pedaços de colchão, que usam tecidos e nem sempre têm água o suficiente [ou] saneamento básico em suas casas para higienizar”, relata a pesquisadora, que também trabalha em uma organização de direitos sexuais reprodutivos.
“Pobreza menstrual é toda a dificuldade de pessoas que menstruam têm para acessar itens de higiene necessários para esse período, que não são apenas mulheres, adolescentes, meninas, mas também pessoas trans, não-binárias, intersexo, que tenham útero e menstruam. Uma pessoa que não consiga, por exemplo, ter absorventes suficientes para todo o seu período, está numa situação de pobreza menstrual”.
Shisleni, especialista em estudos de gênero e teoria feminista.
Situação pela qual a Taciana Lopes, 21, já passou. “Quando eu era adolescente deixei de ir pra escola por não ter absorvente ou [tinha que] racionar. Eu deixava de usar em casa e quando eu ia para a rua, ia com um pouco que eu tinha. Eu já tive que pedir para uma amiga. Na necessidade, em uma emergência, [são] outras mulheres que me ajudam a ter esse absorvente”, comenta a jovem bolsista do curso de Gestão Financeira, moradora do bairro Jardim Vera Cruz, em São Mateus, zona leste de São Paulo.
Taciana Lopes, antes do Pograma Dignidade Menstrual, tinha dificuldade de ter acesso suficiente aos absorventes. (Foto: Viviane Lima)
Segundo o relatório “Pobreza menstrual e a educação de meninas”, de 2021, realizado pelo movimento Livre para Menstruar, no Brasil, em torno de 60 milhões de mulheres menstruam, sendo que 15 milhões não têm acesso à água tratada e 1,5 milhão moram em casas sem banheiro. Ou seja, pode-se considerar que essas mulheres estão em situação de vulnerabilidade menstrual.
Políticas públicas
Atualmente, Taciana participa do Programa Dignidade Menstrual, uma política pública lançada em 2023, para viabilizar o acesso gratuito à absorventes para pessoas que menstruam, que tenham baixa renda ou estejam em vulnerabilidade social.
Para participar do programa é necessário ter entre 10 a 49 anos, estar inscrito no CadÚnico, emitir uma autorização pelo aplicativo Meu SUS Digital, ter renda mensal de até R$ 280, ou ser estudante da rede pública e ter baixa renda. Pessoas em situação de rua também têm direito a esse benefício. Os absorventes podem ser retirados em qualquer Farmácia Popular credenciada, mediante a apresentação de um documento de identidade com foto, CPF e a autorização do aplicativo.
“Eu não tenho renda, então ajuda bastante porque o valor de cada [pacote de] absorvente é muito gasto, e eu não tenho esse dinheiro todo mês. [Agora] eu não tenho essa questão de ficar contando os absorventes que eu vou usar para conseguir render para o próximo dia ou para o próximo ciclo”, conta Taciana. A jovem diz que conseguiu cumprir todas as etapas do programa e retirar os absorventes sem dificuldade.
Absorventes distribuídos pelo Programa Dignidade Menstrual. (Foto: Taciana Lopes)
No entanto, Shisleni aponta que essa não é a realidade da maioria das pessoas que precisam do auxílio. “É importante que existam políticas públicas, mas da maneira como está hoje, pela mediação de um aplicativo, elas não atingem as populações extremamente precárias”. A pesquisadora comenta que pessoas em extrema vulnerabilidade não têm acesso à internet ou até mesmo ao celular para realizar os passos necessários que viabilizam a distribuição gratuita pelo programa.
Giselda de Oliveira, 51, é agente comunitária de saúde e aponta que no caso de pessoas em situação de rua, falta até a documentação. Ela mora no bairro de Santo Onofre, e trabalha na UBS (Unidade Básica de Saúde) que tem o mesmo nome do bairro, localizado em Taboão da Serra, São Paulo.
Giselda de Oliveira é agente de saúde na Unidade Básica de Saúde Santo Onofre, no município de Taboão da Serra. (Foto: Viviane Lima)
“Quando você educa a população eles entendem. A gente tem que ir pra rua, ensinar, ter palestras”, comenta a agente de saúde. Para além de campanhas de informação e conscientização, ela aponta que é necessário realizar ações conjuntas envolvendo diferentes instituições e secretarias para auxiliar na questão da documentação, no acompanhamento e na implementação do programa para torná-lo efetivo e acessível para quem precisa. “A população não está informada sobre isso [o Programa Dignidade Menstrual]”, afirma Giselda.
A agente de saúde menciona que nenhuma informação ou instrução sobre o programa chegou para a UBS Santo Onofre. O fornecimento dos absorventes está acontecendo, mas segundo Giselda, não houve mobilização local para informar as pessoas e auxiliá-las na obtenção desses itens.
Taciana, Giselda e Shisleni mencionam a importância do programa, mas ressaltam que precisa de ajustes. Shisleni aponta que a situação das pessoas que menstruam que estão em cárcere também deveria ser considerada, para que elas pudessem ter acesso aos direitos básicos de higiene e saúde. A pesquisadora comenta que há muito a ser feito para as pessoas passarem pelo período menstrual de forma adequada.
“Que a gente consiga pensar políticas públicas de direitos trabalhistas [e] tenha mais licenças de saúde ligadas às questões de menstruação [para] pessoas que têm problemas que fazem com que a menstruação seja incapacitante”, coloca a pesquisadora.
Tabus discutidos por gerações
Sarah Lutosa, 15, é moradora do bairro Jardim Iracema, em Taboão da Serra, e afirma que a menstruação segue sendo um tabu mesmo para a sua geração, e que o acesso à higiene básica nos lugares públicos, como na escola, também é precário. Ela está no primeiro ano do ensino médio e estuda em escola pública.
“Tem papel higiênico, mas é muito raro ter sabonete e absorvente. Se você quiser um absorvente tem que ir na secretaria pedir e não é sempre que tem”, menciona Sarah.
Ainda segundo o relatório “Pobreza menstrual e a educação de meninas”, o Brasil tem cerca de 7,5 milhões de meninas que menstruam na escola, sendo que 90% delas frequentam a rede pública de ensino. A partir dos dados da Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PENSE) do IBGE de 2015, o relatório aponta que cerca de 3% das alunas estudam em escolas que não têm banheiro em condições de uso. Essa porcentagem equivale a 213 mil meninas, sendo dessas 65% negras.
A adolescente conta que já passou por uma emergência e teve que pedir absorvente na escola. “Foi horrível. Antes tinham disponibilizado os absorventes no banheiro, só que o pessoal que não tinha condição ia lá e pegava todos. Eles pararam de colocar por conta disso”, comenta.
Sarah Lutosa é estudante do ensino médio e faz uso de fitocosméticos para amenizar os incômodos menstruais. (Foto: Viviane Lima)
“Por ser um tabu, o pessoal tenta esconder que existe, então não tem muito suporte para isso”, aponta Sarah. “Acho que a menstruação tem que ser tratada da forma mais natural possível”, diz a adolescente sobre naturalizar a menstruação como caminho para que a população comece aprender a lidar melhor com o assunto.
Shislene coloca a educação sexual como outro ponto que poderia auxiliar na quebra dos tabus relacionados ao tema.
“Se a gente pudesse conversar nas escolas sobre educação sexual, uma das coisas que a gente iria discutir é sobre o ciclo menstrual. Como funciona, o que significa esse sangramento. Inclusive, para que jovens possam identificar quando tem alguma coisa que não está funcionando bem”.
Shisleni, especialista em estudos de gênero e teoria feminista.
A pesquisadora menciona que esse tipo de abordagem ajuda a ensinar sobre autocuidado, contribui com a identificação e prevenção de doenças, além de ser uma forma de detectar casos de vulnerabilidade social, e assim, auxiliar no combate à pobreza menstrual.
“[A educação sexual ajudaria a identificar] quando está tendo algum sintoma que não é esperado para aquela idade, para aquela fase do ciclo, e [para que] a gente possa identificar inclusive mais cedo problemas de saúde, por exemplo, ou acessar questões de precariedade mesmo, ligadas a isso”, finaliza a especialista sobre o papel também das escolas nesse processo.
Segundo Wanessa Yano, pesquisadora de história, artes, estéticas africanas e afrodiaspóricas, o mulherismo africana busca referências plurais do continente africano, e é uma prática que está presente dentro da periferia. “O mulherismo africana vai dizer que a nossa história pode ser diferente [enquanto mulheres negras], mas a nossa luta pela raça, ela é igual independente da condição em que você esteja”, coloca.
Wanessa Yano na exposição Brasis, que ocorreu no Sesc Belenzinho. (foto: arquivo pessoal)
A pesquisadora, que também é co-fundadora da editora Ananse, conta que é dentro de uma perspectiva familiar, matriarcal e de comunidade que o movimento se apresenta nos territórios. “Hoje a mulher negra é a sustentação da casa, principalmente na quebrada. No mulherismo africana, uma mulher preta dentro de uma periferia sabe que se ela mudar a própria realidade, vai mudar a realidade de toda a família dela”, coloca Wanessa.
“Qualquer associação de mulheres dentro de uma quebrada já tem vínculo com o mulherismo africana. Onde as mais velhas trocam e se fortalecem entre elas é uma comunidade de mulherismo africana”
Wanessa Yano, pesquisadora de história, artes, estéticas africanas e afrodiaspórica.
Wanessa afirma que nessa prática a comunidade é um elemento tão fundamental quanto raça. Esse é um ponto central na busca do bem viver e na resolução de conflitos. Dentro desse contexto de comunidade, a prática também engloba questões que envolvem homens negros.
“Por exemplo, se [uma mulherista africana] está dentro de um relacionamento e o cara é machista, ela vai fazer a correção devida desse homem, mas ele também vai precisar entender o que é ser um homem preto, africana, [para ele modificar] as reproduções que ele está tendo do machismo”, exemplifica a pesquisadora, que ressalta a importância de homens africana debaterem sobre suas masculinidades.
Wanessa aponta que Africana é um termo em latim atribuído para várias pessoas pretas no mundo e que organiza essas pessoas não só do continente africano, mas das diásporas. Dentro desse contexto, por exemplo, um homem negro também seria um homem africana. O termo Mulherismo é a junção da grafia ‘mulher’ com o ‘ismo’ que vai classificar uma série de conceitos, segundo a pesquisadora.
“O mulherismo africana já existe dentro da quebrada, ele é a quebrada. Ele é a mãe de vários meninos em situação de cárcere. Ele é a situação das grandes cozinheiras dentro da quebrada. Ele é as mulheres que estão como agentes de saúde que andam o dia inteiro para cuidar de outras pessoas. É sobre o agir e o fazer todos [os] dias por uma comunidade.”
Wanessa Yano, pesquisadora de história, artes, estéticas africanas e afrodiaspórica.
Feminismo e Mulherismo Africana
O termo mulherismo africana, foi criado em 1987, pela autora e acadêmica afro-estadunidense, Clenora Hudson-Weems. No Brasil, o termo chega através da tradução do livro “Mulherisma Africana: uma teoria afrocêntrica”, da escritora afro-estadunidense, Nah Dove. “Clenora fala que não inventou nada, ela deu um nome a algo que já existia, [que é] a insatisfação das mulheres que não se identificavam com o feminismo e que precisavam dar nome àquilo [que viviam]”, comenta Wanessa.
Clenora Hudson-Weems criou o termo mulherismo africana, em 1987. (foto: arquivo pessoal)
Ao citar Clenora como referência, Wanessa coloca que mesmo as vertentes do feminismo que abordam questões raciais, como o feminismo negro e o interseccional, surgiram de um não pertencimento ao feminismo tradicional, e não dão conta das experiências de mulheres negras, pois apresentam uma origem eurocêntrica e ocidental, que por anos desconsiderou até a humanidade de pessoas negras.
“Olhando para a história do feminismo, que surgiu da luta sufragista das mulheres brancas, em que as mulheres pretas passaram por muitas violências e que [tem] situações de racismo desde a sua formação, não há como [o feminismo] se tornar algo das mulheres pretas. A agenda dessas movimentações vão ser pensadas para mulheres brancas”, pontua Wanessa Yano.
Segundo Wanessa, o movimento também contempla, desde a sua origem, a comunidade LGBTQIAPN+, por entender que ‘mulher’ é uma categoria social, não uma questão biológica. “Dentro do mulherismo africana a forma com que a gente se identifica como mulher tem muitas camadas, é por isso que essa lógica de [ser] mulher [vem] dessa formação e entendimento social”, comenta a pesquisadora.
Wanessa chama atenção para os contextos de violência ao citar o feminicídio e a violência policial que encarcera e mata homens, adolescentes e jovens negros. Dentro do mulherismo africana, essas demandas também são apontadas.
“Quando um homem ou jovem preto é preso, a mãe não abandona esse filho. A questão é: o feminismo dá conta de justificar que essa mulher está passando por diversas violências e apontar que ela está lutando pelo filho dela, pela comunidade, pela humanidade e recuperação dele?”, questiona.
A pesquisadora coloca que o movimento pode ser um mecanismo de mudança social, pois ao mesmo tempo que aponta as problemáticas e violências que atravessam pessoas negras, também amplia as perspectivas de mundo, fortalece o potencial das pessoas, o cuidado e a busca do bem viver em comunidade.
Da esquerda para a direita, Alice Hudson (educadora, artista e pesquisadora de ciências sociais), Noxolo Kiviet Ministra da África do Sul, Wanessa Yano. (foto: arquivo pessoal)
“Não é mais a gente sobre o olho do ocidente. É sobre nós e as nossas próprias escrevevivências, as nossas experiências. É poder falar e documentar aquilo que a gente é como ser humano, não mais [como] objeto de estudo”, finaliza a pesquisadora.
O projeto acontece em Mogi das Cruzes, São Paulo, entre 13 de abril a 18 de maio e conta com atividades gratuitas em cinco espaços culturais da região.
A mostra “Ivone & Nise: um reencontro” é idealizada pela artista visual Mariana da Matta e a multiartista Pâmella Carmo, com o objetivo de eternizar o legado da cantora e compositora Dona Ivone Lara em sua atuação como enfermeira, assistente social e terapeuta ocupacional, especialmente quando trabalhou na equipe da médica Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, nos anos 1940. A Mostra está aberta para visitação entre os dias 13 de abril e 18 de maio, na Pinacoteca de Mogi das Cruzes, em São Paulo, com entrada gratuita.
As datas de abertura e encerramento da Mostra foram escolhidas a partir de dois marcos: em 13 de abril, abertura do evento, Dona Ivone Lara completaria 102 anos. Já o encerramento, em 18 de maio, marca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
“Seguimos ocupando outros territórios e levando o legado de ‘Ivone & Nise’ através do samba, oficinas e vivências. O projeto continuará abordando a história delas, mas também de outras referências importantes para luta antimanicomial e para a arte, como Juliano Moreira, psiquiatra negro que enxergava o sofrimento psíquico de forma social e como consequência do racismo, Osório César, psiquiatra que instalou ateliês no hospital do Juquery, em Franco da Rocha – SP, além das artistas Stella do Patrocínio, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Arthur Bispo do Rosário” Pâmella Carmo, cocuradora
Pela valorização da obra humanitária de Dona Ivone Lara
A ideia da mostra é dar visibilidade para outras facetas da sambista que foram fundamentais para a história do Brasil. O objetivo também é resgatar memórias que se perderam no tempo e que apontam uma das faces do racismo: a invisibilidade de personagens negras em diversas áreas do conhecimento.
“Nossa intenção era apresentar a atuação de Dona Ivone Lara na saúde mental e imaginar sua relação com Nise da Silveira, visando contribuir com o resgate que vem sendo feito nos últimos anos a respeito de seu trabalho para além da música. Ivone e Nise foram fundamentais para a Reforma Psiquiátrica brasileira e para importantes movimentos sociais, como a Luta Antimanicomial” Mariana da Matta, cocuradora
Antes de ser a primeira mulher a fazer parte de uma ala de compositores de escolas de samba e passar a dedicar-se somente à música, a sambista trabalhou por 37 anos no Hospital Engenho de Dentro. Sob a supervisão da psiquiatra Nise da Silveira, a jovem Ivone utilizava a música como estratégia de tratamento na seção de terapia ocupacional.
Além de falar sobre o seu trabalho terapêutico com música no hospital, a proposta da mostra busca contribuir com ações de reparação para reconhecer o importante papel da grande dama do samba na construção de metodologias e práticas de cuidados humanizados pioneiros em sua época e local, como a ressocialização e desinstitucionalização de internos.
Serviço
Mostra “Ivone & Nise: um reencontro” | Instagram @ivone.e.nise De 13 de abril a 18 de maio de 2024 Local da exposição: Pinacoteca de Mogi das Cruzes – R. Cel. Souza Franco, 993, Centro, Mogi das Cruzes – SP
Programação
Exposição Pinacoteca de Mogi das Cruzes Abertura: 13/4, das 16h às 20h, com roda de samba às 18h Visitação: 16/4 a 18/5/24. Terças a sextas, das 9h às 17h. Sábados, das 9h às 12h.
A exposição conta a história de Dona Ivone Lara e Nise da Silveira na saúde mental brasileira por meio de trabalhos de artes visuais e poesia, além de cenografia temática.É incentivada a participação do público na ação, de forma que possam desenhar ou escrever cartas que interagem com a proposta, em um ateliê integrado à exposição.
Atrações musicais
Pinacoteca (abertura): 13/4, sábado, às 18h Ateliê Sementeira: 20/4, sábado, às 17h30 Congada Santa Efigênia: 27/7, sábado, às 18h30 Cursinho Popular Maio de 68: 4/5, sábado, às 18h
Rodas de samba e poesia com intervenção artística simultânea. Com participação de Pâmella Carmo, Mariana da Matta, Marlene Santana e Angelina Reis (Pretas Bás),Felipe Nogueira, Henrique Nogueira, Silas Xavier e Fernando Sd.
Pescar no Inconsciente o Estado do Sonho Com Mariana da Matta Dia 18/4, quinta, das 18h às 21h, na Pinacoteca.
O Tambu e o Tempo no espiral Com Pâmella Carmo Dia 27/4, sábado, das 14h30 às 17h30, na Congada Santa Efigênia.
Laboratório de Escuta de Imagens Com Elidayana Alexandrino Dia 25/4, quinta, das 19h às 21h, na Pinacoteca.
Quem são as mulheres invisíveis? Uma escavação ao passado Com Larissa da Matta Dia 8/5, quarta, das 19h às 21h, no Galpão Arthur Netto.
RODA DE CONVERSA Sankofa e as tecnologias ancestrais para produção de saúde integral Dia 4/5, sábado, das 15h às 17h30, no Cursinho Popular Maio de 68 Bate-papo sobre a atuação de Dona Ivone Lara na saúde mental e sua parceria com Nise da Silveira, a partir do conceito de Sankofa. Serão discutidas também tecnologias ancestrais e práticas culturais e artísticas como recursos terapêuticos. Com Ana Paula Soares, psicóloga e Domenica Almeida, terapeuta ocupacional.
CORTEJO Ruas do centro da cidade Dia 18/5, sábado, das 9h às 13h (concentração às 9h, saída às 10h) Encerramento da mostra com um cortejo pelas ruas centrais da cidade, composto por artistas e público participante das atividades ocorridas nos espaços parceiros. Aberta à população, a ação afirmativa ocorre no Dia Nacional da Luta Antimanicomial e visa difundir a pesquisa sobre Dona Ivone Lara e Nise da Silveira com arte, cultura e saúde mental, por meio de um coro musical e trabalhos artísticos resultantes das ações formativas da mostra. O cortejo é concluído com chegada à instalação, na Pinacoteca, onde é prevista apresentação de canto dos usuários do CAPS e fala de encerramento.
Locais
Pinacoteca – R. Cel. Souza Franco, 993, Mogi das Cruzes – SPAteliê Sementeira – R. Manoel Inácio Silva Alvarenga, 206, Mogi das Cruzes – SP Galpão Arthur Netto – R. Rui Barbosa, 248, Mogi das Cruzes – SP Cursinho Popular Maio de 68 – R. Dr. Paulo Frontin, 365, Mogi das Cruzes – SP
Em plena correria da realização da 14ª Mostra Cultural da Cooperifa, Rosilene da Costa Dorea, 50, mais conhecida como Rose Dorea, entre uma ligação e outra, em uma manhã de sexta-feira, nos recebe na sua casa, no bairro Jardim Panorama, que fica na cidade de Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo.
Além de articuladora e integrante do Sarau da Cooperifa, Rose trabalha como assistente administrativa da Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Santo Onofre, em Taboão da Serra, e cursa graduação em Serviço Social. A articuladora também é mãe solo do Joshua Zali, de 13 anos.
Rose e seu filho Joshua Zali no aniversário de 22 anos do Sarau da Cooperifa (foto: Ricardo Vaz)
Rose é integrante do Sarau da Cooperifa desde 2001, e já vivenciou várias transformações e conquistas no sarau. “A Cooperifa é um lugar que muda a vida, tem vários depoimentos das pessoas falando de coisas que elas não imaginavam que poderiam fazer e estão fazendo [inspiradas pela Cooperifa]”, conta Rose.
A Cooperifa é um movimento cultural e literário que acontece desde 2001, e semanalmente viabiliza um espaço de trocas literárias, além de promover encontros entre pessoas de várias quebradas na zona sul de São Paulo.
A atuação enquanto articuladora e produtora cultural conecta Rose com muitas pessoas dos territórios. Ela conta que muitas delas acham que ela é uma mulher brava, no entanto, o que define a sua personalidade é a lealdade, como conta. “As pessoas me vêem como uma mulher brabona, que eu não sou, eu sou uma pessoa chorona, entendeu!? Acho que eu tenho muito axé, [e] sou muito protegida pelos Deuses”, comenta Rose.
Trajetória
“Eu sempre tive um lado de liderança, tanto que eu fui chefe de formatura do colegial. Sempre tive esse lado do querer fazer, querer ajudar as pessoas”. Rose comenta que além desse senso de liderança, que ela tem desde a infância, a proatividade também é uma de suas características que está presente nas diferentes funções que ela desempenha.
Foi com o intuito de ajudar diretamente as pessoas que ela decidiu estudar Serviço Social, e também por ser uma área com a qual tem contato através do seu ambiente de trabalho na UBS. “Sou do administrativo, mas eu saio da minha mesa várias vezes para resolver problemas. Vamos supor, [para] ajudar um idoso, ajudar uma mãe que chega lá para resolver alguma coisa”, menciona. Antes de atuar como assistente administrativa, Rose trabalhava como vendedora, e conta que uma das suas características é ser desenrolada.
O trabalho como produtora não é algo recente. Nos anos 90, Rose fez a produção de uma equipe de som, e durante quatro anos trabalhou como produtora geral, na coordenação dessa equipe. Anos depois, se conectou com a Cooperifa.
Aniversário de 22 anos do Sarau da Cooperifa, Sérgio Vaz ao microfone (foto: Viviane Lima)
A conexão de Rose com a Cooperifa aconteceu de forma natural. A produtora tinha um amigo em comum com Sérgio Vaz, um dos fundadores do sarau, que os apresentou. Tempos depois, Rose e Vaz também trabalharam juntos na Câmara Municipal de Taboão, e a partir disso a amizade se concretizou. Ela também conta que estava na primeira conversa informal sobre a Cooperifa, junto com Marco Pezão e Sérgio Vaz, fundadores do sarau, em 2001, no bar do Português, no centro de Taboão da Serra.
“Quando ele [Sérgio Vaz] deu a ideia de que ia fazer um sarau, eu não sabia o que era, [mas] eu sou curiosa, então eu queria saber. E aí eu comecei a frequentar desde o primeiro sarau, [que] foi na estrada do São Francisco, no [bar] Garajão, aqui em Taboão da Serra”, compartilha Rose. Por ser boa em comunicação, ela recepcionava quem chegava, algo que faz até hoje, e assim conquistou o título de musa da Cooperifa.
Com a venda do bar Garajão, em 2002, o sarau migrou para o Bar do Zé Batidão, na Chácara Santana, na zona sul de São Paulo, onde acontece até hoje, toda terça-feira, a partir das 20h30. Rose afirma que todo mundo é bem vindo e tratado de igual para igual, a única regra para participar é saber chegar com respeito.
13ª Mostra Cultural da Cooperifa (foto: Ricardo Vaz)
A conexão com o movimento literário foi um marco importante na trajetória da articuladora. “Eu volto a estudar [em 2005] realmente por conta da Cooperifa, para tentar entender o que era falado”, conta. Antes disso, Rose tinha estudado até a 8° série, pois havia perdido o interesse pela escola devido às dificuldades que tem de leitura, por conta da dislexia.
“Para uma pessoa disléxica é muito difícil, porque você é tratado como burro. Virou um trauma, porque eu repeti por três anos a 1° série”. Rose se emociona ao falar dos enfrentamentos que passou devido a descoberta tardia de dislexia, que veio aos 44 anos.
Atualmente, além de assistente administrativa, durante a Mostra Cultural da Cooperifa, Rose atua como produtora cultural. Nessa função, ela recebe os grupos convidados para se apresentarem na Mostra, participa da elaboração da programação e faz parte do grupo que pensa o evento como um todo, além de cuidar da alimentação da equipe e dos repasses de como está o andamento dos eventos.
“Eu me considero uma produtora cultural da rua, porque eu aprendi na raça, eu aprendi dentro da Cooperifa”
Rose Dorea, graduanda em Serviço Social e articuladora no Sarau da Cooperifa.
A articuladora cultural menciona que embora tenha admiração pela literatura, não tem a intenção de ser uma escritora, que gosta mesmo é de fazer as coisas acontecerem nos bastidores. “Eu gosto, faço parte e acredito muito na literatura, na poesia e na cultura, mas não me vejo como poeta”, pontua.
Musa da Cooperifa
Rose comenta que no início, no sarau, tinham mais homens do que mulheres, por conta das multitarefas que a elas socialmente são encarregadas, e pelo tabu que existe de mulheres frequentarem bares. No entanto, ela considera que isso esteja mudando. “O sarau deu visibilidade para nós mulheres. De mostrar que é um bar, mas você tem direito de estar onde você quiser”, menciona.
Ela aponta que os feitos mais importantes da Cooperifa foi apontar que a poesia está sim ao alcance das periferias e auxiliar no combate a estigmas que desvinculam a cultura, arte e educação desses territórios. “Começamos a ver a nossa quebrada falando de nós para nós. Essa é a grande importância da Cooperifa e ter esse olhar pelos professores, pela escola”, diz Rose.
Rose no Bar do Zé Batidão, onde acontece o sarau da Cooperifa, toda terça-feira. (foto: arquivo da Cooperifa)
Desde 2001, Rose foi titulada como a musa da Cooperifa, durante a primeira edição do prêmio da Cooperifa. Na ocasião, ela fez a entrega das medalhas, recepcionou quem chegava e com o tempo esse título foi se firmando junto com a admiração das pessoas que frequentam o sarau. “Eu falo que eu sou uma colaboradora e sou a musa da Cooperifa, eu tenho muito orgulho desse título”, comenta.
Rose também participa de palestras, rodas de conversas e considera que seja uma referência no território. Ela conta que desde 2021, tem ocupado esses lugares de fala.
“É uma trajetória de muita luta, porque tem 22 anos que eu estou na Cooperifa e agora que sou chamada para um monte de coisas. Acho que é porque me permiti mais a ver que eu tenho um lugar de fala, mas estou dizendo um lugar de fala como uma mulher preta, entende? [E enfrentar] os medos, porque a gente sabe que o que você fala não tem volta, tem que ter muita responsabilidade do que você fala”
Rose Dorea
“Eu estou vivendo um ano de reconhecimento, mas também de muito aprendizado e acho que uma coisa está muito ligada a outra”, finaliza Rose, que cita sobre sua trajetória ser de luta e construção.
“Agir sempre foi preciso e a cada dia a minha, a nossa inteligência, nos garante que não é sobre topos e sim novos horizontes”, foi assim, com poesia e música, que Danuza Novaes abriu o último encontro de 2023 da Jornada das Pretas. De forma virtual, 30 mulheres se reuniram para uma troca sobre o enfrentamento à violência política de raça e gênero, no último encontro do ano que aconteceu na manhã do dia 28 de outubro.
A Jornada das Pretas é um projeto que promove capacitação, formação e acolhimento para mulheres negras cis, trans e travestis, que são lideranças políticas em diferentes partes do Brasil. Essa iniciativa é realizada desde 2021, pela Oxfam Brasil, em conjunto com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco.
O encontro de encerramento proporcionou trocas de informações sobre a Lei de Violência Política de Gênero, a fim de identificar os avanços e desafios para o enfrentamento e a prevenção das várias situações de violência política que vem atingindo parlamentares, candidatas e ex-candidatas, negras cis e trans.
A lei 14.192, que foi aprovada em 2021, trata de Violência Política de Gênero no Brasil. Ela tipifica, cria penalidades e mecanismos de responsabilização que muda o código eleitoral e passa a considerar crime passível de pena, prisão e multa condutas de assédios, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça por qualquer meio, inclusive praticadas no ambiente virtual, com a finalidade de impedir ou dificultar a campanha eleitoral ou um mandato eletivo, e criminaliza a conduta que discrimina ou menospreza a condição de mulher, cor, raça ou etnia, conforme explicou Fabiana Pinto.
Para debater sobre o assunto, foram convidadas: Fabiana Pinto, coordenadora de pesquisa e de incidência política do Instituto Marielle Franco, e a Doutora Raquel Branquinho, que é Procuradora Regional da República, coordenadora do núcleo de ações criminais originárias e do grupo de trabalho de prevenção e combate a violência política de gênero.
A facilitadora do encontro foi Mônica Oliveira, que é assessora parlamentar e integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, e que abriu o dia com um breve resgate dos dois encontros anteriores, que abordaram respectivamente sobre Fundo Eleitoral e Estratégias de comunicação para campanhas eleitorais.
CONTEXTO
Fabiana Pinto ressaltou que esse é um tema difícil de ser tratado, considerando que, provavelmente, muitas das mulheres presentes no encontro já haviam vivenciado experiências de violência política de gênero e raça, mas apresentou ações e estratégias criadas através do Instituto Marielle Franco, a fim de auxiliar no combate dessas violências.
“Em 2020, foi a primeira eleição municipal onde o Instituto Marielle Franco existia, foi a primeira eleição municipal desde o assassinato da Marielle. Num primeiro momento a gente queria poder fomentar o debate e entender o que é defender o legado da Marielle e dar instrumentos para a candidatura de mulheres negras”, trouxe Fabiana sobre o contexto em que a Agenda Marielle Franco foi criada.
“A violência política é algo quase inerente dos processos eleitorais brasileiros há anos, só que a forma que a violência política vai operar contra corpos de mulheres negras, trans, travestis e mais do que isso, as possibilidades de proteção e de acolhimento são distintas para esse grupo de mulheres”
Fabiana Pinto, coordenadora de pesquisa e de incidência política do Instituto Marielle Franco.
Raquel Branquinho apontou alguns tipos de violência que afetam as mulheres no âmbito da política. “A violência política se reproduz por várias formas. Subliminar, verbal e não verbal, patrimonial, econômico, na parte do financiamento, discriminação das mulheres nos seus espaços de trabalho, nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e isso é um contexto social. Muitas vezes as próprias vítimas não identificam essas situações”, alertou a Procuradora Regional da República.
Dados apresentados pela Fabiana, produzidos pelo Instituto Marielle Franco, apontam que apenas 32% do total de candidatas negras já fez algum tipo de denúncia, considerando como denúncia, além do ato de ir à delegacia, o fato de tornar público o episódio ocorrido. Segundo os dados, 46% das candidatas negras justificaram que não se sentem seguras para poder denunciar, por entenderem que isso poderia vulnerabilizar a campanha delas.
Foi a partir de 2021, com a aprovação da lei 14.192, que a violência política de gênero passou a ser classificada como crime.
Antes, essas denúncias ficavam sob a responsabilidade da Polícia Civil, e, por vezes, acabavam se perdendo no volume de situações para serem investigadas, o que não gerava resultados, conforme a fala da Raquel.
“Quando for assédio, perseguição, humilhação, constrangimento, qualquer um daqueles verbos que estão descritos no artigo 326-B do código eleitoral, que tem como alvo candidatas ou detentoras de mandato eletivo, é um crime eleitoral que deve ser apurado pela polícia federal e pelo Ministério Público eleitoral brasileiro”, traz Raquel.
ESTRATÉGIAS E DIREITOS POLÍTICOS ELEITORAIS PARA AS MULHERES
Em 2020, a partir de denúncias e da busca frequente de ajuda das candidatas, Fabiana relata que o Instituto passou a mapear quais tipos de violência política eram cometidos contra as mulheres e como esses casos estavam sendo encaminhados. Verificando também os problemas que há no sistema político e nas instituições que poderiam acolher essas mulheres.
Desse mapeamento, foram feitos os seguintes levantamentos: 8 a cada 10 candidatas negras sofreram violência virtual, em 2020. 6 a cada 10 candidatas naquela eleição sofreram violência moral e psicológica.
Com base no mapeamento, Fabiana relatou também que 5 a cada 10 candidatas sofreram violência institucional. Ela destaca que as violências institucionais, geralmente, ocorrem no interior dos partidos políticos, no próprio sistema eleitoral e também em outras instâncias.
A coordenadora de pesquisa e de incidência política do Instituto Marielle Franco, apontou que, diante dessas informações, o Instituto Marielle Franco identificou que as ações de combate a violência política de gênero teriam que ocorrer em diversas frentes, já que os agentes agressores também operam em diferentes áreas.
Uma das estratégias apontadas por Raquel Branquinho para lidar com as violências políticas que as mulheres negras enfrentam, passa pelo conhecimento. “Temos tentado reforçar o conhecimento pelas próprias vítimas, o reconhecimento pelo sistema, pela advocacia e pelos grupos de apoio dos direitos para que a gente possa cobrar do sistema jurídico respostas mais eficazes”, comenta.
A Procuradora Regional da República também menciona que esse sistema, por vezes, reproduz as práticas de exclusão da sociedade e que desse modo não têm a capacidade necessária para fazer as análises na perspectiva de gênero.
“Muitas vezes há uma revitimização dentro do próprio sistema. Quando nós temos o maior conhecimento possível das situações envolvendo os nossos direitos é mais fácil cobrar que se aplique a legislação”, reforça Raquel Branquinho.
Como forma de viabilizar a obtenção desses conhecimentos, a Procuradora Regional da República indica o site do Ministério Público Federal como fonte de acesso à informação.
Fabiana comenta que ao identificar que mulheres negras, principalmente mulheres trans e travestis, mesmo após serem eleitas, seguiam sendo alvo de ameaças e que a institucionalidade não representava mais proteção para esse grupo de mulheres, o Instituto Marielle Franco, nessa dimensão de proteção, lançou a campanha Não Seremos Interrompidas.
“[Essa campanha] atua, sobretudo, no processo eleitoral, no acompanhamento de candidatas e de parlamentares negras já eleitas, adotando estratégias para alcançar proteção [através do] reconhecimento das parlamentares negras como defensoras de direitos humanos”, comenta Fabiana. Ela explica que o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos é o mecanismo que tem viabilizado essa tática.
Outra ferramenta que o Instituto tem utilizado para viabilizar a proteção de mulheres negras atuantes na política é o acesso ao Fundo de Ação Urgente e ao Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Fabiana cita que a mobilização para a criação de legislações específicas que contemplem mulheres negras atuantes na política, é mais uma das estratégias do Instituto. Ela comenta também que, conforme a lei 14.192, é previsto que todos os partidos alterem o próprio estatuto indicando mecanismos para o enfrentamento a violência política, e o Instituto Marielle Franco atua para que os partidos políticos cumpram essas determinações da lei.
Durante o encontro, Fabiana e Raquel mencionaram a importância da criação e do uso de canais de denúncia como ferramentas para acompanhar e encaminhar os crimes notificados. A Sala de Atendimento ao Cidadão, do Ministério Público Federal, assim como a Ouvidoria da Mulher, do Tribunal Superior Eleitoral, foram alguns dos canais citados.
O canal Fale Conosco da Câmara dos Deputados; a Procuradoria Regional Eleitoral; a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo; a Secretaria da Mulher, da Câmara dos Deputados e o próprio Ministério da Mulher são canais indicados para recebimento de denúncias.
Além disso, as profissionais ressaltaram a importância de acompanhar e cobrar o resultado dos casos.
REDE DE APOIO
Em determinado momento as 30 participantes foram divididas em quatro grupos, para que todas pudessem falar de suas vivências e impressões sobre o tema. Em seguida, se reuniram e uma porta-voz de cada grupo apresentou os principais pontos abordados nessas conversas.
Conhecer bem como o partido funciona, ocupar cargos de liderança no partido, participar de movimentos sociais, buscar adesão popular, colocar afetividade no centro das candidaturas, fortalecer as redes de cuidado e de apoio, buscar capacitações e formação política, se articular com outras mulheres e cuidar da saúde mental foram algumas das estratégias citadas pelas participantes.
“Uma candidatura de mulheres negras não é um projeto individual, porque nós nem temos força individual, nem familiar para segurar uma campanha. Ou as nossas campanhas são coletivas ou elas não acontecem”, afirma em entrevista Zuleide Queiroz, 56, sobre estratégias que têm utilizado para se manter atuante na política partidária desde 2003.
Zuleide Queiroz participa da política partidária desde 2003 (foto: Eline Luz)
Zuleide é professora de pós-graduação, pesquisadora, militante, integra a diretoria e a coordenação Estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) no Ceará, é do Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC) e ocupa a presidência do Sindicato dos Docentes da Universidade Regional do Cariri (Urca), região localizada no Ceará, onde Zuleide mora.
Buscar ocupar vários espaços é um movimento que a professora tem feito para se articular politicamente, assim como se organizar em redes e participar dos movimentos sociais.
Zuleide Queiroz mora no Ceará, é professora de pós-graduação, pesquisadora e militante (foto: Eline Luz)
“A experiência na Rede Mulheres Negras para mim foi fundamental, para [eu] me reconhecer negra, ter estrutura, ter condições para disputar um cargo na política e discutir em audiências públicas as políticas públicas para a população negra”, conta Zuleide.
Essa também tem sido a movimentação de Nazaré Cruz, 43, que atua na política partidária desde 2007. “Uma das [minhas] estratégias é ter redes de apoio e me relacionar com outras mulheres negras e com outros companheiros negros. Tendo essa articulação mais interna, como também fora do partido. Dentro dos movimentos sociais tem muito esse apoio”, relata em entrevista.
Nazaré, é de Belém do Pará, militante do movimento negro, mãe, trancista e historiadora de formação. Atualmente, trabalha como diretora de assistência social na Secretaria de Estado, do Governo do Pará.
Nazaré Cruz atua na política partidária desde 2007 (foto: Jhonny Russel)
Embora conheça a lei 14.192, tenha feito e participado de pesquisas sobre violência de gênero, Nazaré diz que desconhecia os mecanismos e os canais de denúncia apresentados no encontro, e que também não sabia das informações que pode obter no site do Ministério Público Federal.
Assim como Nazaré, antes do encontro, Zuleide não sabia da possibilidade de fazer as denúncias. “Agora com essa legislação a gente sabe que a Justiça Eleitoral está atenta a essas questões [de gênero]”, pontua Zuleide, que será candidata em 2024. O ponto principal do encontro, para ela, foi aprender a reconhecer o que é a violência política.
Nazaré comenta que não sabe se vai concorrer às eleições de 2024, mas menciona que as candidaturas de mulheres negras são construídas aos poucos, ao longo das gerações, e que é preciso ocupar os espaços na política mesmo tendo que enfrentar as violências que existem. Para ela, entender os processos burocráticos, assim como buscar conhecimentos em diversas áreas, é algo necessário para as campanhas de mulheres negras que, geralmente, possuem pouco recurso e precisam cumprir várias demandas.
“É imprescindível que, principalmente nas eleições de 2024, se tenha um olhar mais atento para as campanhas femininas, para que nos municípios a gente possa ocupar espaço nas Câmaras de Vereadores [e] nas Prefeituras, porque [a quantidade de mulheres negras que há] é muito aquém da realidade da sociedade brasileira, que tem mais da metade de mulheres e mais da metade nesse segmento de pessoas pretas”, trouxe Raquel Branquinho em suas considerações finais na Jornada das Pretas 2023.
O segundo encontro da Jornada das Pretas 2023, que aconteceu em formato virtual no dia 21 de outubro, iniciou no ritmo do Cacuriá, dança típica maranhense, apresentada pelo coletivo Cacuriá de Dona Teté. A dança abriu os caminhos para as trocas de ideias que se estenderam pela manhã de sábado, e que teve como tema principal as estratégias de comunicação para campanhas eleitorais.
Desde 2021, a Oxfam Brasil, em parceria com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco, reúnem organizações, especialistas e mulheres negras atuantes na política partidária, com o objetivo de promover espaços de formação e fortalecimento de agendas políticas lideradas por mulheres negras cis, trans e travestis de várias regiões do Brasil.
O segundo encontro da Jornada contou com a mediação de Mônica Oliveira, assessora parlamentar e integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, que em sua fala inicial apresentou um resumo de como foi o encontro anterior.
As convidadas que trocaram sobre o tema foram Mariana Nogueira, profissional da área de marketing, que pesquisa sobre política e já atuou em campanhas, e Jheniffer Ribeiro, coordenadora de comunicação do Mulheres Negras Decidem.
Ao longo do encontro, as convidadas apontaram estratégias, exemplos teóricos e práticos sobre como fazer o planejamento de comunicação para campanhas. Nesse processo, ressaltaram as particularidades e as possibilidades das candidaturas de mulheres que possuem limitações de recursos e de tempo.
Mariana Nogueira apontou que o período de pré-campanha – que vai até o dia 16 de agosto de 2024 – já começou, e com isso, vários homens, especialmente homens brancos, já estão fazendo campanha desde a última eleição. “[Eles] não param porque têm toda uma rede de apoio, de recursos, que faz com que possam se dedicar exclusivamente à política”, coloca a especialista em marketing.
Definição de estratégias
Em sua fala, Mariana menciona que para começar uma pré-campanha é importante que as pré-candidatas e a equipe de comunicação estejam cientes e atualizadas sobre a lei de comunicação eleitoral que muda com frequência.
A profissional explica que é proibido pedir voto no período de pré-campanha, assim como transmissão ao vivo por emissoras de rádio das prévias partidárias. Outro ponto que é vetado, é a realização de publicidade por meio de outdoor, seja físico ou eletrônico, tanto na pré-campanha, como no período eleitoral, que acarreta em multa no caso de descumprimento das regras.
Mariana também apresentou o que é permitido e recomendado: fazer menção à candidatura e exaltar as próprias qualidades como alguém que vai se colocar como candidata, não configura como campanha antecipada.
“Participar de entrevistas, programas e de encontros para debater o que essa candidata defende, quais são as suas ideias, participar de debates em rádio, televisão e internet também é permitido. Discutir políticas públicas, planos de governo e alianças partidárias, essas coisas também podem ser divulgadas”, exemplificou Mariana.
A construção de imagem também é uma das etapas da comunicação. Essa é uma fase que antecede a divulgação da pré-campanha, segundo Mariana: “É preciso traçar estrategicamente a imagem dessa pessoa que vai concorrer à eleição, que não necessariamente deve ser a mesma imagem que você propaga em alguns ambientes da sua vida pessoal”. A profissional do marketing também destaca que essa imagem precisa ter permanência e coerência.
Segundo Mariana, a permanência tem a ver com símbolos adquiridos ao longo da trajetória e que as pessoas associam à imagem da candidata, como alguma pauta social. “É importante construir essa permanência porque as pessoas vão saber que, de fato, você é uma pessoa que faz política mesmo antes da eleição”, coloca.
No aspecto da coerência, a especialista em marketing explica: “Ainda que a sua imagem enquanto candidata não seja a mesma que você propague em determinados ambientes do âmbito familiar ou da sua militância, essa imagem precisa ter uma coerência com aquilo que você é, com aquilo que você representa, com o que você acredita e as suas atitudes”, pontua.
Jheniffer Ribeiro salienta a importância de traçar um planejamento de comunicação com foco na construção de uma narrativa.
“Ter esse controle da narrativa de nós mesmas, [é importante para definir] o que a gente quer colocar na rua e como a gente quer conversar com o nosso eleitorado”
Jheniffer Ribeiro é coordenadora de comunicação do Mulheres Negras Decidem
A coordenadora ressalta que o planejamento traz a liberdade de ter, a partir da narrativa, o controle do que se deseja transmitir. Para ela, um diferencial potente que há nas campanhas de mulheres negras são as narrativas. “É como as nossas histórias, em alguma medida, se aproximam do nosso eleitorado”, menciona.
Mariana afirma que toda campanha precisa ter pelo menos um público-alvo e uma pauta principal bem direcionada. “Para [saber] como a gente atinge o eleitorado que a gente quer trazer para perto”.
Jheniffer aponta que é preciso ter um foco na comunicação. “Se você falar de tudo não consegue focalizar e ser explícita e objetiva [sobre] onde a sua campanha vai levar as pessoas, porque as pessoas têm que votar em você”, pontua.
“É importante que você defina com quem quer falar e a partir disso [desenvolva] estratégias para poder conversar com essas pessoas, porque essas estratégias não são uma coisa uníssona”
Jheniffer Ribeiro
Ambas as convidadas apontaram sobre a necessidade de traçar um projeto político que demonstre como se pretende melhorar a vida das pessoas. Definir o eleitorado também foi um ponto destacado pelas comunicadoras.
Possibilidades na comunicação online
Mudar o nome da rede wi-fi pelo o nome e número da candidata, pois isso pode se espalhar entre os vizinhos. Estar em eventos, não necessariamente políticos, ajuda a furar a bolha de contatos. Criar núcleos de apoiadores locais que fortaleçam e ampliem o alcance das propostas de campanha. Essas foram algumas das dicas para a comunicação tanto online, como nas ruas.
Jheniffer trouxe táticas voltadas para a comunicação online, além do planejamento amplo de campanha. Segundo ela, é preciso ter um planejamento das redes sociais com cronograma e postagens regulares. Ela aponta que nas redes, as informações essenciais sobre o projeto político e sobre a trajetória da candidata precisam estar em destaque, assim como o número da candidatura.
“As pessoas passam a associar a sua campanha a determinadas cores, a um jeito de falar e isso também vai criando mais conexão com o seu eleitorado”, comenta a comunicadora, que também colocou sobre dar preferência aos vídeos na produção de conteúdo, sendo a comunicação visual um elemento que dialoga com o eleitor.
“A chave para uma campanha eleitoral eficaz é a autenticidade e a conexão com o eleitorado. É importante manter uma comunicação clara, ética e focada nos valores e propostas das candidatas, demonstrando comprometimento com a melhoria da vida das pessoas e a defesa dos direitos humanos”, ressalta Jheniffer.
Comunicação associada às vivências
Após as falas das convidadas, as 37 participantes foram divididas em quatro salas para que pudessem compartilhar suas experiências e percepções sobre o tema. Após essas trocas em grupos, todas voltaram a se reunir, e uma representante de cada grupo listou os principais pontos que surgiram dessas interações.
A dificuldade de falar sobre si foi uma questão que surgiu em todos os grupos e também na fala de Gabriella Borges, que em entrevista, comentou que no início de sua candidatura tinha muita dificuldade para falar em público.
Gabriella Borges, mulher preta, travesti e moradora da periferia de Porto Seguro. (foto: Lorena Nubia)
“Foi um desafio enorme para mim fazer campanha, pedir voto, falar, porque eu tenho uma disforia da minha voz, mas hoje eu estou conseguindo me libertar dela e me superar”, comenta Gabriella, 43, mulher preta, travesti, moradora da periferia de Porto Seguro, cidade da Bahia, estudante universitária de química e que foi a primeira travesti eleita a presidenta de um partido político no Brasil.
Gabriella iniciou sua trajetória política em 2020, e no mesmo ano saiu como cabeça de chapa em uma campanha coletiva concorrendo ao cargo de vereança. Em 2022, concorreu às eleições como deputada estadual, e pretende se candidatar para as eleições de 2024.
Durante o encontro, Mariana citou como essa dificuldade de falar de si é uma questão estrutural, fruto dos processos de racismo e da misoginia, e indicou o que pode ser feito diante dessa dificuldade. “Sempre tem um público que vai se conectar com aquilo que a gente tem de vivência e isso é muito importante para vocês que são candidatas, porque isso cria laços afetivos”, afirma.
Jheniffer trás que as vivências e história das mulheres são diferenciais nessa comunicação. “O que tem de diferencial nas nossas campanhas é a nossa própria trajetória. Como nós chegamos até aqui, o que fez com que a gente chegasse até aqui, como isso se aproxima de um projeto de país, que de fato mude a vida das pessoas. Então é muito importante que você se apresente. Não tenha vergonha de contar sua história”.
Estratégias de comunicação offline
Mariana trouxe indicações que podem ser colocadas em prática presencialmente, como o lançamento de campanha com panfletos e em lugares estratégicos. “Fazer um panfletaço é você se colocar enquanto um candidato presente que está próximo dos problemas daquela localidade em que você vai concorrer”, comenta.
Esse foi um ponto em comum apresentado entre os grupos, a importância de realizar ações de campanhas presenciais e estar perto do eleitorado. Em entrevista, Gabriella comenta que conseguiu expandir o alcance de suas propostas de candidatura através do apoio e do seu envolvimento com os movimentos sociais. Ela aponta que com o apoio da Coalizão Negra por Direitos, pode circular em diferentes regiões da Bahia, na pré-campanha, acompanhando os comitês antirracistas.
Através de sugestões das participantes, Mariana trouxe uma estratégia que foge da lógica das redes sociais, que é a possibilidade do uso da mala direta, considerando que nem todo mundo de fato tem acesso à internet. Ela também aponta sobre a relevância da TV nas campanhas. “O meio de informação mais utilizado pelo brasileiro é a televisão, a televisão ainda não foi superada por nenhum outro veículo de comunicação”, pontuou Mariana.
Ludimilla Teixeira, em 2020, concorreu a uma vaga na câmara municipal, e em 2022, disputou uma eleição para deputada estadual. (foto: Renan Peixe)
Em entrevista, Ludimilla Teixeira, coloca que, para ela, as campanhas presenciais são essenciais nas periferias. “Eu acredito que as rodas de conversa dentro das comunidades, o boca a boca, o disse me disse e o WhatsApp hoje consegue atingir melhor as pessoas que estão nas periferias, nos bairros mais empobrecidos e mais precarizados do que a gente ficar focado em rede social e internet”. Ela complementa: “Se possível brigar no partido pelo horário eleitoral também, porque engana-se quem acha que as pessoas não assistem”.
Mulher negra, de origem periférica, Ludimilla, 41, é natural de Salvador, na Bahia, graduada em publicidade e propaganda, e atua como servidora pública federal do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ludimilla é fundadora do grupo Mulheres Unidas Contra o Bolsonaro, que deu origem ao movimento Ele Não, em 2018.
Ludimilla Teixeira criou o grupo Mulheres Unidas Contra o Bolsonaro, que deu origem ao movimento Ele Não. (foto: arquivo pessoal)
Em suas ações políticas, Ludimilla, que foi candidata à vereança em 2020, e em 2022, ao cargo de deputada estadual, destaca sua preocupação em falar de modo acessível com mulheres.
“Eu quero falar com aquela parte da população feminina que está perdida aí na alienação do patriarcado. E a gente vai falar sobre Simone de Beauvoir e Angela Davis? Não, eu vou falar da minha mãe com ela, eu vou falar das mais velhas da comunidade”
Ludimilla Teixeira
Ludimilla comenta, com exemplo próximo a estratégia apresentada pela Mariana e Jheniffer sobre a adaptação da comunicação de acordo com o público-alvo.
Formar redes de apoio foi mais uma das estratégias citadas pelas convidadas e pelas participantes. Nesse sentido, Ludimilla diz que caso não concorra à eleição em 2024, irá ajudar na campanha de outra mulher. “Não sendo candidata, pretendo estar trabalhando ativamente na campanha de alguma companheira, porque não adianta só ter uma de nós lá”, comenta.
“Não é de hoje e não vai acabar agora, vamos invadir teus discursos, recriar nossas memórias”. Foi com versos como esse, da canção “Contrato Assinado”, que Jaísa Caldas, artista piauiense, abriu a Jornada das Pretas 2023. A iniciativa, que está na 3ª edição, é uma realização da Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco.
O primeiro encontro da iniciativa ocorreu na manhã do dia 07 de outubro, online, e reuniu 37 mulheres de vários estados do Brasil envolvidas e atuantes na política nacional, para trocarem experiências e dialogarem sobre o Fundo Eleitoral, tema central do primeiro encontro. A Jornada continua nos dias 21 e 28 de outubro.
“São mulheres negras de todo o Brasil, trans, cis e travestis, que desejam fortalecer as suas agendas políticas, que desejam um espaço seguro e fortalecedor para falar sobre participação política de mulheres negras”, menciona Bárbara Barboza, coordenadora da área de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil.
Iasmin Barros, representante do Mulheres Negras Decidem, fala como o movimento se relaciona enquanto parceiro da Jornada, e menciona o objetivo geral da iniciativa. “Tentamos qualificar e promover agendas lideradas por mulheres negras buscando fortalecer a democracia e acreditamos que esses espaços de formação são fundamentais para que isso aconteça”, coloca.
“A gente sabe o quanto é difícil mulheres negras chegarem na política e aqui a gente vai tentar desmontar essas barreiras, tanto com a formação política, mas também com acolhimento”
Iasmin Barros, representante do Mulheres Negras Decidem.
O encontro, que teve como temática central o Fundo Eleitoral e como garantir o cumprimento da lei eleitoral no que se refere às cotas para as mulheres negras, contou com a participação de diversas mulheres que atuam no tema, como Mônica Oliveira, integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e facilitadora da Jornada das Pretas, além das convidadas Carmela Zigoni, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Tauá Pires, diretora do Instituto Alziras, e Estela Bezerra, assessora especial de articulação interministerial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que também foi deputada estadual com mandatos entre 2015 a 2022.
LINHA DO TEMPO
Antonieta de Barros, Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Benedita da Silva, Creuza Oliveira, Marielle Franco e outras mulheres negras, atuantes na política, foram lembradas e tiveram suas falas citadas no vídeo intitulado Mulheres Negras – Consciência Negra, apresentado por Carmela Zigoni, antes do início de sua fala, referenciando mulheres que lutaram e abriram caminhos na política para outras mulheres negras.
Assim como outras convidadas, Carmela traçou uma linha do tempo para apresentar a trajetória com os principais pontos sobre o Fundo Eleitoral. “Foi em 2014 que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a pedir a declaração de raça, cor, segundo as categorias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para as candidaturas, e isso é um marco importante, porque é a partir dessa estatística que a gente começa a dar conta de pedir mais direitos nos processos eleitorais, maior democratização e institucionalidade”, menciona Carmela.
Tauá Pires, relembrou que em 2015, aconteceu uma reforma política que proibiu o financiamento de campanhas por empresas. “E aí vem esse debate sobre ter um fundo público que permita o financiamento de campanhas e a gente vai ver o quanto isso é importante para o aprofundamento da democracia e para a participação de mulheres negras”.
O que é o Fundo Eleitoral? Exclusivo para o financiamento de campanhas, é um recurso distribuído para os partidos apenas no ano de eleição. A definição do fundo eleitoral é feita pela LOA (Lei Orçamentária Anual) e ele é transferido pelo Tesouro Nacional para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conforme explicou Tauá durante o encontro.
Na eleição de 2016, para cargos de vereança e Prefeituras, Carmela menciona que foi fixada a regra dos 30% de cotas para as mulheres. “Mas ainda não tinha uma regra específica para o financiamento de campanhas. Menos de 1% das candidaturas de mulheres negras nesse pleito, e menos de 0,1% de declaradas pretas”, conta.
Em 2018, uma nova regra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) definiu que os partidos deveriam repassar 30% dos recursos do fundo especial de financiamento de campanha para as candidaturas de mulheres.
Tauá, Carmela e Estela relembraram a importância de Benedita da Silva, que atualmente é deputada federal e referência no que diz respeito às conquistas de espaços e direitos de mulheres negras na política. Junto aos movimentos negros, em 2020, Benedita fez com que fosse direcionada uma parte do fundo eleitoral para as candidaturas de mulheres e pessoas negras, conforme a proporcionalidade total dessas candidaturas no partido.
“Benedita realizou uma consulta ao TSE em 2019 e o TSE acatou a aplicação, mas para eleição de 2022. E aí o STF interferiu e determinou que [a decisão] já seria para eleição de 2020”, relata Carmela. Segundo a assessora política do Inesc, os partidos, por sua vez, alegavam não saber como aplicar a sobreposição de cotas de mulheres e de pessoas negras, o que gerou uma desigualdade ainda mais acentuada nas candidaturas.
Carmela aponta que enquanto o recurso para as pessoas brancas foi liberado no primeiro dia de candidatura, o de mulheres e pessoas negras demorou cerca de 15 dias para ser repassado, o que é um prejuízo significativo, considerando o tempo de campanha de 45 dias para o primeiro turno.
“Mesmo com essa identificação do problema que se deu internamente nos partidos para fazer o repasse, os partidos entraram com uma PEC, um Projeto de Emenda Constitucional, para anistiar os partidos, ou seja, para perdoar os partidos que não tinham feito repasse corretamente e foi aprovado”, conta Carmela sobre os desdobramentos que ocorreram após as eleições de 2020.
Em sua fala, Carmela menciona também que houve a tentativa de implementar uma minirreforma eleitoral, que não foi aprovada, e portanto, não vale para a próxima eleição. Mas ela pontua o que estava em jogo nessa proposta.
“A cota seria por coligação e não por partido, teria uma redução de 20% dos recursos para mulheres e pessoas negras. Os recursos para mulheres poderiam ser utilizados por candidaturas de homens. Essa minirreforma favoreceria partidos maiores”, conta Carmela, demonstrando que direitos conquistados ainda não são garantias e seguem em disputa.
Com falas complementares que apresentavam perspectivas e acontecimentos relacionados ao fundo eleitoral, as convidadas mencionaram que ter acesso aos dados, conhecimento sobre como os partidos políticos funcionam, se articular em coletivo para os enfrentamentos de disputas, construções dentro e fora dos partidos e manter-se informadas são estratégias fundamentais para as mulheres que querem ser eleitas. “A gente tem que ter conhecimento para poder viabilizar as nossas candidaturas”, aponta Estela.
COTA DO FUNDO ELEITORAL PARA MULHERES NEGRAS
Ao longo do encontro, as participantes puderam expor suas questões e experiências a partir de algumas perguntas orientadoras acerca dos desafios para acessar o Fundo Eleitoral. Algumas participantes compartilham os mesmos desafios em sua atuação, como a insatisfação de se sentirem usadas apenas para a garantia de um coeficiente da legenda do partido na obtenção de recursos.
“Há uma falta de responsabilidade com a candidatura das mulheres. Porque os partidos políticos nos querem candidatas, mas eles não nos querem eleitas. Eles precisam da cota de mulheres para poder garantir a [campanha] de homens, mas eles não dão condições para que a gente vá para uma disputa de igualdade, para que a gente minimamente consiga ter uma votação expressiva”, aponta Ana Cleia Kika, liderança da região Norte e que vem refletindo sobre a sua experiência como mulher negras acessando os recursos do fundo eleitoral.
Foi em 2020, quando se candidatou pela primeira vez, concorrendo ao cargo de vereadora e passou a participar da Jornada das Pretas, que Kika pôde entender melhor como tudo isso funcionava na prática.
“Não temos as mesmas condições que os homens brancos têm dentro dos partidos, de ter apoio político, mas foi através dos movimentos sociais, através da Jornada das Pretas, do Estamos Prontas que está ligado ao Instituto Marielle Franco e outras organizações, que eu vim entender como que os partidos políticos funcionam”
Ana Cleia Kika
Ainda durante o encontro, Tauá apresentou dados sobre as desigualdades entre os financiamentos de campanhas. “Segue sendo muito determinante a questão do autofinanciamento. Ou seja, pessoas ricas, que já estão na política tradicionalmente, muitas vezes são filhos, netos, pessoas que se perpetuam na política e conseguem fazer o autofinanciamento da campanha”.
Tauá aponta que existe um limite de 10% do teto previsto para cada cargo em disputa. Mas, segundo ela, os candidatos investem em média 36,3 milhões em dinheiro do próprio bolso para campanha. “Quais mulheres negras têm recursos próprios para poder fazer um auto financiamento?”, questiona a diretora do Instituto Alziras.
Durante o encontro, com base na pesquisa realizada pelo Inesc, Carmela comentou sobre a diferenciação de financiamentos conforme classe social, gênero e raça. “2020 foi o ano principal da pandemia, e identificamos, cruzando os dados da Receita Federal com [os dados do] auxílio emergencial, que muitas candidatas negras estavam acessando o auxílio emergencial porque precisavam, [sendo que] 30% das candidatas negras recorreram a esse auxílio. Elas realmente precisavam desse benefício”, aponta Carmela.
Com relação a necessidade de auxílio financeiro, em entrevista, Kika conta sobre uma situação semelhante que passou em 2022, quando se candidatou a deputada estadual. “Era bolsista do mestrado e quando registrei a minha candidatura perdi a bolsa, aí fiquei em um desespero só e tomando de conta da campanha”, conta.
Ana Cleia Kika no Encontro Nacional do Estamos Prontas Rio de Janeiro 2022 (foto: Ludmila Almeida)
Ela relata que o que ajudou nesse momento foi a seleção que participou através do Instituto Marielle Franco e do movimento Mulheres Negras Decidem, para ser uma liderança do projeto Estamos Prontas. “Cada estado tinha uma liderança, que era apoiada pelo Instituto e a gente tinha uma bolsa de auxílio financeiro. Inclusive, para ajudar a gente nesse período de pré-campanha, porque muitas de nós às vezes acaba passando dificuldades, sendo que às vezes não tem nem o que comer”, pontua.
Kika foi uma das mulheres negras prejudicadas por não receber o fundo eleitoral de forma adequada. “Eu participei de várias reuniões e eles [integrantes da secretaria de finanças do partido] falavam assim: ‘vai ser depositado inclusive adicional das candidaturas negras’. E esse adicional não foi depositado. Só foi depositado a primeira distribuição que foi da cota de gênero, eles depositaram uns 15 dias depois que tinham começado as eleições, então eu saí em desvantagem em relação a outros candidatos”, aponta.
Andreia Deloizi, liderança pernambucana, mulher negra trans, quilombola, sacerdotisa, se candidatou em 2022 à deputada estadual, sendo cabeça de chapa em uma candidatura coletiva. Andreia também faz parte da Jornada das Pretas desde 2022 e enfrenta desafios semelhantes para acessar o fundo eleitoral.
Andreia Deloizi, liderança pernambucana, mulher negra trans, quilombola, sacerdotisa, candidata em 2022 à deputada estadual (foto: Bira Fotógrafo Caruaru).
Ela conta que ainda não sabe se vai se candidatar para as eleições de 2024, e relata que a experiência não é tão boa. “Fazer política sendo uma pessoa periférica, quilombola, em uma cidade que para política é muito violenta e para vereadora é mais violenta ainda, isso requer cuidado”, finaliza Andreia, que também confirma a participação nos próximos encontro da Jornada das Pretas.
O Corre Coletivo, grupo localizado no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo, está transformando processos pedagógicos para educar jovens nas periferias, por meio da introdução de história em quadrinhos para promover letramento crítico e social. A iniciativa também aposta na criação de uma comunidade voltada para o acolhimento e troca de artistas iniciantes na área de arte educação.
“Nós temos uma enorme possibilidade de utilizar quadrinhos como uma linguagem pedagógica, porque ela é acessível para a juventude”, explica Wesley Silva, coordenador pedagógico do O Corre Coletivo.
Segundo Silva, quadrinhos como a Turma da Mônica ajudaram a alfabetizar muita gente, fora os clássicos, como Ziraldo, mas o universo digital possibilita outras abordagens de impacto nos leitores. “Além deles, têm os quadrinhos digitais que chegaram com muita força, principalmente as webtiras”, afirma.
Wesley Silva, o Lelo, como é conhecido nas periferias do Grajaú, é formado em artes visuais, pós-graduando em Arte educação: Teoria e Prática na ECA-USP e atua em rede com outros coletivos de arte educação nas periferias do Grajaú, um território com grande diversidade de saberes territoriais.
Cofundador do Corre Coletivo, Lelo foi o idealizador do projeto que deu vida à HQ Inimigo Invisível. Foto: Ana Pra Rua
Combate à desinformação
Em 2020, no auge da segunda onda de Covid-19, O Corre Coletivo, em parceria com o SESC Interlagos, criou o projeto ‘Inimigo Invisível’, iniciativa no começou como uma reunião de artistas para criação de desenhos para colorir, distribuídos para crianças, mas durante o avanço da pandemia de Covid-19, tornou-se uma HQ com super heróis que explica os riscos, traz dados e apresenta métodos de segurança para prevenção de contágio com o vírus.
“Para além de ser um quadrinho, ele ainda é muito educativo. Eu trago a política nas coisas que eu faço, para fazer com que as pessoas reflitam. Só que ao mesmo tempo, eu to ligado que a galera gosta de consumir comédia, besteirol. Eu quero criar coisas assim, que as pessoas achem da hora, só que ao mesmo tempo elas se vejam, porque no geral a gente não se vê, não são feitas por nós, nem para nós”, conta Ciano Buzz, educador e artista visual que participou da criação do Inimigo Invisível.
Ilustrador desde a infância, Ciano atua como educador de desenho e quadrinhos desde os 16 anos. Foto: Corre Coletivo
O artista visual Ciano, morador da Cidade Líder, zona leste de São Paulo, se define como um “griô do futuro” e busca trazer para dentro de processos educativos em escolas públicas uma visão multisciplinar em relação a arte e ao contexto de ancestralidade da população negra e periférica.
A HQ teve tanto sucesso que recebeu o chamado Oscar dos Quadrinhos, o troféu HQ Mix, na categoria Projeto Especial na Pandemia. Com isso, abriu espaço para o coletivo incentivar novas ações que não somente educassem crianças e jovens por meio dos quadrinhos, mas também abrisse um espaço de diálogo para que eles também pudessem contar suas histórias por meio das HQs, ampliando a representatividade nesta mídia.
Selo Lajota
A Base Nacional Comum Curricular, o BNCC, documento que define os direitos de aprendizagem de todos os alunos das escolas brasileiras, aponta que as HQs podem ser utilizadas, do 1º ao 5º ano do ensino fundamental para “Construir o sentido de histórias em quadrinhos e tirinhas, relacionando imagens e palavras e interpretando recursos gráficos (tipos de balões, de letras, onomatopeias)”.
Foi assim que nasceu, em 2023, o selo Lajota, espaço dedicado a ser uma comunidade de acolhimento para jovens que produzem histórias em quadrinhos nas periferias e que possuem o desejo de contar suas próprias histórias por meio dessas revistinhas. Além disso, é uma iniciativa editorial que democratiza o acesso por meio das webcomics, HQs online acessadas gratuitamente por meio do aplicativo Funktoon.
“O momento que eu juntei ciência na arte foi no quadrinho que eu estou produzindo agora [no selo Lajota], uma webcomic chamada ‘Mizu’, que é sobre uma menina gamer que retrata que a sua quebrada está passando por uma grande seca”, conta o biólogo e ilustrador, Lucas Andrade, o Lukera, um dos criadores da HQ Inimigo Invisível.
“Eu tento fazer isso no sentido da periferia se apropriar da pauta ambiental, porque eu acredito que é para ontem isso. Quando acontecem secas, somos os mais afetados por rajadas de vento, alagamentos”, contextualiza Andrade.
De forma pedagógica, cuidadosa e sensível, o Corre Coletivo busca construir diálogos com jovens estudantes de escolas públicas nas periferias, partindo de elementos culturais presente na construção da identidade cultural dos jovens.
“A gente procura chegar em uma zona próxima para falar de coisas importantes. Quando a gente fala do Miles Morales, um homem aranha negro caribenho, a gente consegue falar sobre esse recorte de ser uma criança preta na adolescência que gosta de grafiti e hip hop e está em descoberta, se sente abandonado e sozinho, e dialoga muito com o que a juventude vive”, explica Lelo.
A premissa de abordar um contexto cultural e social vivenciado pelos jovens moradores das periferias também é apontada pela a quadrinista Marília Marz, criadora da HQ curta “Zebra”, que fez parte da 8ᵃ edição da revista Ragu, vencedora do prêmio HQ MIX 2022 na categoria “Projeto Editorial”.
Para ela “pessoas negras, periféricas, indígenas e lgbtqiap+ , estão acostumadas a se verem representadas nas mídias pelo olhar, muitas vezes enviesado. A história em quadrinhos é um recurso muito importante para que as pessoas possam se enxergar, possam enxergar as próprias histórias e as próprias vidas”, conclui.
Para além dos resultados obtidos com a bola em campo, a Copa do Mundo Feminina, 2023, explicitou as diferentes e acentuadas dificuldades e desigualdades que os times femininos, ainda hoje, enfrentam. “O futebol feminino profissional quanto a investimento, não está nem 1% comparado com o masculino”, afirma Maria Amorim, 38.
Apaixonada por futebol, Maria é uma mulher preta, cearense, periférica, mãe do Lucas, de 18 anos, da Ana, de 13, e companheira do Beto. Ela é moradora de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, joga futebol desde criança e como educadora social viabiliza que meninas e mulheres da periferia pratiquem esse esporte, que frequentemente é dito como masculino.
Moradora de Parelheiros, além de jogadora, Maria também é ativista em defesa do futebol feminino (foto: arquivo pessoal)
“Eu diria que [sou] ativista da modalidade feminina, sempre buscando ocupar lugares majoritariamente masculinizados, que nunca sonhou em ser jogadora profissional, mas que sempre teve dentro de si a luta pela modalidade, que decidiu brigar por esses espaços, que não é só meu, mas de todas as mulheres que querem jogar e praticar futebol independente de se profissionalizar ou não”.
Maria Amorim. educadora social de Parelheiros.
O futebol de várzea, predominante nas periferias, é a principal área de atuação de Maria. Ela é fundadora, junto com seu companheiro Beto, do time Apache Feminino e da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros, que reúne 110 equipes. Maria também é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos. Em 2019, ela criou e hoje conduz o projeto FutVida, que insere crianças de 6 a 15 anos no esporte.
As treinadoras, Maria Amorim e Cecília Bringel, e as crianças do projeto FutVida (foto: arquivo pessoal)
Futebol de base: peneira e investimento
No entanto, Maria também contribui com perspectivas sobre o futebol feminino profissional, somando com as visões e as realidades que há nas periferias. “O futebol feminino hoje, falando desde o profissional, que respinga no amador, eu acho que tem muito uma [questão de] reparação [histórica], né? A gente ficou 40 anos sem jogar futebol, 40 anos proibidas de jogar.” a educadora traz um contexto histórico e desdobramentos atuais sobre o assunto.
“A Federação [Paulista de Futebol], recentemente, criou a peneira sub 17. Isso é muito bom, porque na minha época não tinha peneira. Uma peneira sub 17 da Federação oportuniza as meninas a participarem e [serem visibilizadas e analisadas pelos] responsáveis de clubes. Só que tinha uma questão muito forte, que era o atestado médico”, menciona a treinadora.
Maria também relata sobre uma constatação que ela expôs em uma reunião, que ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), solicitada pela Deputada Leci Brandão, em defesa do futebol feminino, que reuniu integrantes do futebol de várzea, do profissional e a ex-coordenadora da Federação Paulista de Futebol, Thais Picarte, em 2022.
“Na minha fala, eu trouxe que entendo totalmente que o atestado médico seja necessário, mas a forma como ele é pedido é muito burocrático. Uma mãe de Parelheiros não vai faltar um dia de trabalho, para levar a menina ao médico, para conseguir um atestado.”
Maria Amorim, fundadora da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.
Ela ressalta que a demora para ter atendimento é outro problema que surge ao levar meninas ao médico, no SUS, para conseguir o atestado médico. “Para ter esse atestado, o médico vai pedir exames. Então, estava tendo menos meninas pretas nas peneiras. E aí, eu trouxe essa reflexão: onde é que estão as meninas pretas? Na periferia, esse caminho para a menina chegar até à peneira é muito longo.” complementa.
Maria acrescentou também, nesta reunião, que uma realidade recorrente nas periferias é a situação das mães solos, que não podem arriscar a fonte de renda da família, faltando ao trabalho, para acompanhar as filhas nesses processos. Ela destacou e reivindicou que, “as instituições, a confederação têm que achar um caminho”.
Reunião na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) realizada em 2022, em defesa do futebol feminino. (foto: arquivo pessoal)
As colocações da educadora social trouxeram resultados. “Esse ano de 2023, na própria peneira, eles colocaram um médico à disposição, então a menina podia ir sem um atestado médico, lá passava pelo médico da Federação e fazia o atestado na hora. Então, já foi uma possibilidade que encurtou muito o caminho das meninas”, conta Maria.
Apesar da conquista, iniciativas e dos demais feitos realizados, a educadora social diz que se preocupa muito com o cenário do futebol feminino devido à falta de valorização. “Na periferia tem muita menina boa de bola. Então, qual seria o futuro ideal para o futebol feminino? Clubes grandes, instituições como a Federação, olhar para o futebol feminino e implantar projetos, fazer parcerias com projetos já existentes”, sugere Maria. Ela menciona que o ideal é ter investimento e suporte para que no futuro essas meninas sejam selecionadas para jogar profissionalmente.
“Hoje, cada clube profissional só tem um time feminino, porque é obrigatório, ou seja, se vai participar de uma Libertadores, se o clube tá dentro da Conmebol, ele precisa ter um time feminino. Por isso que os grandes clubes têm, porque senão, não tinha”
Maria Amorim é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos.
Em contrapartida, a educadora social, através do projeto FutVida, busca aproximar e tornar possível o acesso de meninas e adolescentes, dos bairros Jd. São Norberto e Nova América, na zona sul de São Paulo, ao futebol. “A gente que é de periferia, quando decide montar um projeto e trazer as meninas para o esporte, a gente tem que buscar estratégias para que ela continue praticando, juntamente com a família”, argumenta a educadora, mencionando que é preciso fortalecer os vínculos com os pais como um caminho para tornar esses processos colaborativos, a fim de criar redes de apoio para as meninas que sonham em jogar futebol.
“Tem um ditado africano que a gente leva muito pra vida [que diz], ‘que é necessário toda uma aldeia para cuidar e educar uma criança’. E é isso que a gente faz com os nossos movimentos. A gente precisa estar junto. A gente precisa fazer essa construção coletiva”, conclui Maria.
Técnica, jogadora e pesquisadora atuam a partir do futebol de várzea femino nas periferias e ressaltam a importância desse esporte para além das quatro linhas do campo.
“A gente sabe que o esporte transforma e cura muitas coisas”. Esse é um dos motivos que fazem com que a técnica Cecília Bringel, atue com o futebol. Técnica do projeto FutVida e jogadora do time Chelsea Feminino, Cecília acredita na importância do futebol feminino de várzea para além dos jogos, por ser um espaço de socialização, acolhimento e humanização do esporte e de quem o pratica.
Cecília é mãe, educadora social e moradora do bairro Nova América, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, território onde fundou, em 2022, o time de futebol Chelsea Feminino. Na região, ela também atua como diretora e treinadora do projeto FutVida.
“Eu entendo que o futebol me tirou da depressão. E no rachão eu já ouvi meninas falar, ‘eu não sei jogar bola, não sei nem chutar’, mas só do tempo que elas estão com a gente jogando, dando risada, correndo um pouco, elas já falaram, ‘isso aqui tá me fazendo tão bem’. A gente sabe que o esporte transforma e cura muitas coisas.”
Cecília Bringel técnica do projeto FutVida, fundadora e jogadora do time Chelsea Feminino.
Cecília Bringel com os filhos Isaac, 6, e Ana Clara, 10. (Foto: arquivo pessoal)
A técnica aponta que o futebol feminino de várzea opera para além do campo de futebol, com reflexos que são notados ao longo do tempo. Ela conta que, assim como muitas meninas, sua ligação com o futebol aconteceu jogando bola com meninos.
“Desde quando era criança eu já jogava bola na rua com os moleques. Eu sempre joguei com os meninos. A maioria das meninas começam assim. A minha filha acabou de chegar e foi jogar bola com os meninos, [por exemplo]”, conta Cecília Bringel.
Jogadoras do Chelsea Feminino em momento de descontração (Foto: arquivo pessoal)
Atualmente, ela divide as responsabilidades do time Chelsea Feminino com o companheiro, Ricardo, e os jogos do time acontecem toda sexta à noite.
“Tinham muitas meninas que jogavam bola antigamente e pararam por causa da correria do dia a dia de nós, mulheres, trabalhar, cuidar de filho, de casa, essas coisas”, conta Cecília sobre como surgiu a ideia de criar o time, que hoje é formado por 28 mulheres.
Cecília também é diretora e técnica do projeto FutVida, iniciativa criada em 2019, pela Maria Amorim, também moradora de Parelheiros e uma das lideranças socioculturais do território.
Maria Amorim é fundadora e jogadora do time Apache Feminino. (Foto: arquivo pessoal)
Educadora social e pedagoga, Maria, junto com o seu companheiro, o Beto, fundou o time Apache Feminino e a Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.
Nascida no Ceará, Maria sempre jogou futebol, desde a infância. Ao se mudar para São Paulo, com 8 anos, passou a ter maior contato com o esporte dentro da escola. “Não por vontade dos professores, mas por insistência minha, porque eu lembro de diversas vezes em que o professor me colocava para sentar ou me dava outra opção esportiva enquanto os meninos jogavam futebol”, compartilha Maria.
Maria sempre gostou de futebol e hoje entende que pode trabalhar de diversas formas a partir do esporte. Ela aponta que a importância e resistência da presença de mulheres no futebol vai além de estar em campo jogando.
“Na várzea eu posso jogar, eu posso gerir um time, ser técnica, ser responsável de um campo. Posso vender meu churrasquinho para tirar a minha renda. Posso estar inserida ali independente dos olhares, das críticas e do preconceito. Eu consigo e eu posso ocupar esse lugar de alguma forma”
Maria Amorim é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos, criadora do time Apache Feminino e da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.
Equipe do Apache Feminino. (Foto: arquivo pessoal)
Além de criadora do time Apache Feminino e da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros, a profissional também é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos.
Além das quatro linhas
Os desdobramentos do futebol de várzea feminino vão além do jogo. Alguns times, por exemplo, organizam rodas de conversas para auxiliar na saúde física e mental de mulheres. Por vezes, competir e vencer não é o mais importante na várzea feminina.
Crianças do projeto FutVida. (foto: arquivo pessoal)
Juntas, Cecília e Maria tocam o projeto FutVida que busca inserir crianças no esporte. “Hoje, a gente atende mais de 100 crianças em duas comunidades aqui no Jd. São Norberto e Nova América”, conta Maria. A iniciativa é gratuita e atende crianças de 6 a 15 anos.
Atualmente, 15 dessas crianças são meninas, sendo que as entrevistadas apontaram vários motivos para a baixa participação de meninas, como a falta de apoio ou a proibição dos pais, por vezes essas meninas são responsabilizadas pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos irmãos desde cedo.
Todas as jogadoras que participaram da 3ª edição do “Maior Festival Feminino de Várzea do Mundo” receberam medalhas.
Outra iniciativa que também tem uma mulher à frente, é a Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros, criada pela Maria e o Beto, seu companheiro, que reúne mais de 100 equipes. “A Liga surge para entender onde estão essas equipes, como a gente faz para se unir, para se organizar e competir também”, conta Maria sobre a criação da Liga em 2016.
A partir da atuação da Liga, em 2022, junto com a historiadora Aira Bonfim, em um projeto de extensão da universidade PUC, várias equipes femininas de futebol de várzea foram mapeadas. “O mapeamento surge a partir da pergunta que muitas pessoas faziam, ‘mas tem futebol feminino?’. Foi a partir dessa pergunta também que eu decidi fazer o festival”, coloca Maria.
“A gente quer ver meninas de 13 anos jogando, mas a gente quer ver mulheres de 50 anos jogando também. Então, a liga surge para essa organização do futebol de várzea”, afirma.
A 3ª edição do festival foi realizada em julho de 2023, no Parque Sete Campos, em São Paulo. O evento foi totalmente gratuito, reuniu 80 times de futebol feminino e mais de 1.000 jogadoras.
Apoio e articulação
A historiadora Aira Bonfim, lembra que, no Brasil, o futebol feminino foi proibido por lei durante quase 40 anos, entre 1941 até 1979. “O futebol ajuda a entender muitas realidades desse período. As mulheres já estavam fazendo as mesmas coisas que a gente faz hoje, de tensionar essas questões na sociedade”, coloca a historiadora.
Aira ressalta a necessidade de olhar essa atuação para além do ato de jogar. “É importante essas meninas terem sim o sonho de se tornarem profissionais, mas por vezes, o sonho é apenas jogar futebol, que nem isso às vezes é acessível”, coloca.
Mesmo com as diversas ações realizadas dentro e fora de campo, Maria aponta a falta de investimento ainda como uma das dificuldades na prática do futebol feminino, seja ele na várzea ou profissional. Ela também ressalta que os comércios locais que apoiam financeiramente os times de várzea masculino, não dão valor quando se trata do futebol feminino.
“Ninguém quer investir e a gente está falando de política pública também, porque hoje o futebol masculino tem investimento de políticas públicas e a várzea feminina não tem”, reforça Maria.
Sem regulamentação, o trabalho de Doulas ainda se caracteriza como uma atividade informal e com poucas garantias, principalmente para profissionais de regiões periféricas.
A doulagem é um trabalho de cuidado com a pessoa gestante antes, durante e depois do parto, oferecendo suporte e acompanhamento nesse processo de gestar. Em 2022, aconteceu a audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados sobre a aprovação do Projeto de Lei 3946/21, que busca regulamentar a profissão de doula no país.
Doula é uma assistente de parto, que não necessariamente possui formação em ciências da saúde. Seu trabalho é realizar um acompanhamento para o cuidado e bem estar da pessoa gestante durante o período da gestação, ao longo do parto e até os primeiros meses pós parto.
Isabela Lima, 31, atua como benzedeira, artesã e doula. Nascida em São Vicente, baixada santista, atualmente mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo. Ela conta como, por ainda não ser regulamentado, o trabalho de doula apresenta dificuldades, como falta de piso salarial e remuneração fixa.
“A doula que administra essa parte financeira de quanto cobrar, como e se vai. Tem muitas doulas que fazem esse trabalho de forma social para pessoas em vulnerabilidade, assim como eu. Acredito que esse projeto sendo aprovado vamos realizar nosso trabalho de forma mais segura e efetiva, sem que precise bater de frente com as instituições de saúde”, afirma a doula Isabela Lima, que também é mãe do Gabriel de 6 anos e do Bento de 3 anos.
A profissional aponta que além da discriminação por ser uma profissão considerada informal e não existir uma regulamentação, também enfrenta discriminação racial dentro das unidades de saúde.
“[Estamos] ali para auxiliar, não para atrapalhar como muitas vezes escutamos [da] assistência médica. Nós não somos vistas com bons olhos, temos que lidar com discriminação, principalmente se for uma doula preta. Além de lidar com a rejeição do corpo médico, ainda precisei lidar com a discriminação racial.”
Isabela Lima, mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo, é benzedeira, artesã e doula.
A doula conta que antes mesmo de estudar e iniciar a sua atuação profissional na doulagem, já fazia um trabalho de apoio emocional com pessoas gestantes a sua volta e buscou esses estudos a partir da sua primeira gestação, período que tinha medo de sofrer violência obstétrica ou passar por alguma negligência médica. “Hoje eu me encontro como parteria tradicional, tentando fazer um resgaste de saberes ancestrais que foram tirados do nosso imaginário”, afirma.
Isabela pontua que a doulagem é uma das funções que compõem uma equipe de assistência para pessoas gestantes. “Trabalhando justamente nesse lugar de bem estar. [Doula] traz esses saberes em relação aos cuidados com a saúde do responsável do bebê e do bebê, mas é diferente da parte técnica da assistência médica, da assistência de enfermagem. [Doula] não faz nenhum procedimento técnico de enfermagem como ausculta, exame de toque, não realizamos nada disso”, coloca.
“Enquanto pessoa preta [e] periférica atuo na quebrada, como forma de enfrentamento do medo que senti na minha gestação de sofrer alguma violência ou ser negligenciada, já que sabemos que os corpos pretos são os mais violentados. Também proporcionar a ideia de uma qualidade de vida e bem viver para as pessoas da quebrada que não tem acesso ao sistema de saúde que ferramentalize o bem viver.”
Isabela Lima, é benzedeira, artesã e doula.
Isabela atua de forma autônoma, mas também faz parte da Associação Doula Solidária, uma iniciativa que facilita o contato da pessoa gestante com doulas de vários locais, como uma forma de democratizar e entender esse trabalho como um direito de saúde e assistência.
Regulamentação para garantia de direitos
“Desde que houve flexibilização da pandemia, os únicos hospitais do SUS que têm permitido entrada de doula é o hospital de Parelheiros e o Amparo Maternal que recentemente recebeu uma pressão da ADOSP – Associação de Doulas do Estado de São Paulo, para que pudéssemos voltar a atuar, pois também vínhamos enfrentando dificuldades”, coloca Hanny Rodrigues, 29, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo. Para a profissional, a regulamentação afeta diretamente as doulas que são moradoras e atuam nas periferias.
“A galera que pode pagar por um hospital ou tem convênio, seja ele particular ou pela empresa, já consegue acessar nosso serviço sem maiores problemas, porque a maioria dos hospitais particulares permite o nosso acesso sem grandes dificuldades. É uma escolha política barrar a gente nos hospitais públicos.
Hanny Rodrigues, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo.
A doula conta que iniciou o trabalho de doulagem por influência da irmã, logo depois foi estudar e em 2018 começou a atender na área. Ela é membro da ADOSP (Associação de Doulas SP) e aponta que atualmente existe um acordo informal de uma contribuição de R$ 1.900 para um acompanhamento de encontros pré-natal, partos e pós-partos. A doula enfatiza que é apenas um acordo ético e que na prática as doulas recebem muito menos.
“Não basta realizar um curso preparatório de doulas, embora hoje existam muitas formações disponíveis no mercado, tanto de forma presencial, quanto online. Não só sobre o parto em si, mas sobre a importância real da doula. Avaliar qual é a sua disponibilidade de tempo para dedicar à sua gestante e também a sua saúde mental”, compartilha Hanny.
Articulação em rede
A busca pela regulamentação do trabalho das doulas tem sido articulada por diversos movimentos, entre eles a Fenadoulas Brasil, organização que reúne associações de doulas do Brasil e busca articular o campo de defesa da atenção multidisciplinar com inserção de doulas nesse cuidado, além de apoiar entidades filiadas que atuam para fortalecer o protagonismo da pessoa no ciclo gravídico puerperal, a partir do acesso a informações de qualidade e atendimento humanizado, respeitoso e digno.
Morgana Eneile é doula, pesquisadora, presidenta da Fenadoulas Brasil, e pontua que não existe uma restrição para se tornar doula, mas uma orientação para pessoas que tenham o ensino médio completo e seja maior de idade. Além de uma formação de doula que atualmente é feita através de cursos livres, privados ou públicos, coordenados por profissionais que atuam com doulagem.
“A prática da profissão já está organizada formalmente na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), mas ainda há diferentes leituras que tendem a ser mais uniformizadas a partir da aprovação de uma legislação nacional que possibilite a compreensão geral do universo de trabalho”, pontua a pesquisadora em referência a importância de regulamentar a profissão.
Para Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo), é extremamente importante que aconteça a regulamentação para que possam ser reconhecidas como profissionais. “Doula é profissão há muitos anos. [É] importante esse reconhecimento como profissional até mesmo no campo financeiro. Outro ponto importante é ter coerência e coesão principalmente na base das formações”, afirma.
“Através da regulamentação, além de equalizar minimamente as formações, considerando os critérios necessários para formação de qualidade [e] reconhecimento das profissionais, nos permite acesso aos locais onde as pessoas gestantes estão parindo seus filhos. Com a regulamentação, as Doulas têm livre acesso aos hospitais – sejam eles públicos e/ou privados rede suplementar.”
Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo)
“A presença da doula no cenário de parto é uma ferramenta extremamente importante para o cuidado das parturientes, inclusive em relação à proteção contra a violência obstétrica”, pontua Kau Marua.
Temos experiências que são frutos de sua luta pelo direito à vida da juventude, com o relato de alguns jovens que foram atendidos por seus projetos e seguem seu legado.
“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”
Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré
São Paulo, Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Ali dos lados que Mano Brown se refere quando canta “dá ponte pra cá”. Casas demais, gente demais, talentos demais, jovens demais e oportunidades e direitos de menos. Nas nossas quebradas, sempre foi assim. Mas não sem a voz do nosso povo reivindicando pela garantia mínima de condições de vida.
E dentre essas vozes teve uma que se levantou, mas não era das mulheres que enterravam seus filhos jovens vítimas da violência, era uma diferente: de um senhor padre, branco, estrangeiro, que chegara à região.
Levando a sério a passagem bíblica de que “a fé sem obras é morta”, Jaime foi agente de várias e várias obras, algumas lembradas pelo Rafael Cícero neste artigo:
Quando os distritos Jd. Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís passaram a ser conhecidos como Triângulo da Morte por ser a região mais violenta do mundo inteiro, o Padre rezava missas e missas de 7º dia pelos corpos das diversas vítimas de violência, em sua maioria jovens e negros da periferia. Mas não achava isso normal: sentia um incômodo e a partir daí percebeu a necessidade de lutar para reverter este quadro de homicídios na região.
Jaime nos deixou em fevereiro de 2023 e felizmente podemos dizer que sua luta em vida não foi em vão: hoje temos experiências que são frutos de sua luta pelo direito à vida da juventude com o relato de alguns jovens que foram atendidos por seus projetos e hoje seguem seu legado.
Ingryd Boyek, Sociedade Santos Mártires.
Ingryd Boyek tem 25 anos, é psicóloga e atua como assistente técnica no SCFV – Centro para Criança e Adolescente Riviera da instituição Sociedade Santos Mártires. Também é coordenadora da Rede Ubuntu de Educação Popular e psicóloga do coletivo Ubuntu de Saúde e Cidadania. Segundo ela:
“Falar do Padre Jaime e do seu trabalho é falar sobre esperança, principalmente para a nossa juventude. A sua obra tem um impacto enorme na minha vida, porque desde quando tinha 8 anos fui acolhida pelo Centro de Formação e Recreação São José, participando ativamente das atividades do ozen, que com a mudança de nomenclatura passou a ser Centro para Criança e Adolescente (CCA), e dos cursos e oficinas do Centro para Juventude Riviera (CJ)”.
E completa: “O espaço que ocupo como indivíduo e como profissional existe porque pessoas como o Padre Jaime acreditaram que eu conseguiria e impulsionaram-me a conquistar. Orgulho-me de ser agente de transformação positiva, de poder retribuir nos lugares que percorro tudo que aprendi com esse grande homem e com tantas outras pessoas que lutam para não termos nenhum direito a menos. Agradeço por ele ter insistido no nosso território e na nossa juventude.”
Saulo Vilanova, Sarau Apoema.
Saulo Vilanova tem 24 anos, é morador do Jardim Ângela, estudante de Letras na USP e membro do Sarau Apoema. Desde 2018, é coordenador e professor da Rede Ubuntu de Educação Popular. Em suas palavras:
“Num terreno de vulnerabilidades, não há forma de se progredir sem cultivar sonhos e de lutar coletivamente. Apesar disso, são poucas as pessoas que conseguem juntar o povo oprimido e elevar nele a sua autoestima, que historicamente é esmagada. Padre Jaime, ao lutar incansavelmente por essa auto-estima, é um marco na história de muitos periféricos, sabendo eles ou não disso. Nesse bonde, é preciso incluir a juventude favelada do Jardim Ângela, a quem ele foi um incansável defensor por gerações e gerações.”
Ele continua: “É preciso dizer, porém, e é claro, que o Sarau Apoema, tão recente na história da arte periférica do Jardim Ângela, não foi o primeiro movimento a ser acolhido e incentivado dessa forma. Era também através de Jaime que batalhas de rima, apresentações de teatro, lançamento de livros e outros movimentos artísticos ganharam fôlego. Jaime acreditava na arte como forma de valorização e resgate da vida, e nisso passamos a acreditar também”.
Saulo ressalta que nessa guerra que Jaime escolheu combater com sua sobrevivência e vitalidade, a juventude do Jardim Ângela, seja qual geração permanecer, terá sempre um espírito de gratidão.
Juntos num só lema! Saudações, Jaime!
Isabella Souza, Rede Ubuntu de Educação Popular.
Isabella Souza tem 21 anos, é estudante de Psicologia, moradora do Jardim Ângela, ex-aluna e atualmente coordenadora na Rede Ubuntu de Educação Popular. Para ela:
“Não tem como lembrar do Padre Jaime sem lembrar dos sábados em que ele visitava o cursinho e nos cumprimentava com ‘saudações corinthianas’ e um sorriso no rosto. Lembrar do Padre Jaime é lembrar do significado de Ubuntu: eu sou porque nós somos.”
Ela completa: “Sem a ajuda e presença do Padre Jaime eu não estaria na faculdade, com bolsa 100%, no 4º ano do curso da minha vida e podendo retribuir (mesmo que minimamente) todo o esforço e trabalho que os voluntários do cursinho tiveram para que eu pudesse sonhar. A Rede Ubuntu carregará sempre a chama de esperança que o Padre Jaime acendeu em nós e essa chama ficará cada vez mais forte. Obrigada por tudo, Padre!”
No país em que um jovem é assassinado a cada 17 minutos (Atlas da Violência 2021), a continuidade de toda a mobilização segue sendo necessária.
Nós, jovens periféricos, merecemos o direito à vida e a uma vida com oportunidades.
Por ter levantado sua voz em nossa defesa, deixamos aqui ao padre Jaime Crowe o nosso muito obrigada.
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.
O movimento Elas Transformam é uma iniciativa do projeto MUDE com Elas que mobiliza ações e campanhas de combate ao racismo e ao sexismo no processo de inserção juvenil no mundo do trabalho.
Antes de tudo peço licença aos leitores de minhas colunas, meus temas são gerais e desde 2020 busquei trazer reflexões para possíveis debates, contudo, resolvi também falar sobre ações que implementam importantes mudanças e podem ser nossa nova forma de criar diálogos com as juventudes.
Sendo assim, vim apresentar o Mude com Elas, um projeto que nasceu em 2020 e é implementado pela Ação Educativa, tem colaboração com a Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em São Paulo (AHK São Paulo) e possui apoio da Terre des Hommes Alemanha (TDH), responsável pela coordenação geral do projeto e co-financiadora junto com o Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha.
O projeto foi planejado pensando a entrada desigual dos jovens no mundo do trabalho e junto a isso os marcadores de gênero e raça, dentro do cenário da falta de políticas públicas, inserção desigual, sobrecarga, racismo entre outros, seria necessário criar estratégias para garantia dos direitos dos jovens e principalmente das jovens mulheres negras que são extremamente afetadas negativamente por essa dinâmica.
Assim o Mude se estruturou em algumas frentes envolvendo: incidência com a criação de uma parceria multiatores, envolvendo a sociedade civil, poder público e setor privado, e também uma iniciativa piloto de inserção de jovens mulheres negras nas empresas parceiras da AHK, prevendo formação técnica e cidadã e sensibilização de colaboradores de empresas alemãs.
Desde o lançamento, o projeto vem se unindo a diferentes atores sociais e políticos, além de refletir sobre a formação das jovens que fizeram parte desse aprendizado e suas entradas no mercado de trabalho.
Em 2021, o projeto conseguiu atuar para a criação de uma Subcomissão de Juventude dentro da Comissão de Finanças e Orçamento e desde então a Comissão instalada tem sido uma maneira de levar até o poder público as problemáticas enfrentadas pelos jovens de periferia, em especial as jovens mulheres negras.
Pensando em toda essa trajetória, o projeto construiu a maravilhosa Campanha Elas Transformam que foi lançada em 1 de Maio, o dia do trabalhador.
O movimento Elas Transformam é uma iniciativa do projeto MUDE com Elas que mobiliza ações e campanhas de combate ao racismo e ao sexismo no processo de inserção juvenil no mundo do trabalho. O projeto MUDE com Elas tem como realizador a Ação Educativa, Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em São Paulo (AHK São Paulo) e o escritório de Terre des hommes Alemanha (Tdh).
A Campanha busca um diálogo com as empresas e seus pares para que sejam realizadas mudanças efetivas dentro do mercado de trabalho como um todo, não somente no RH.
Falar sobre jovens mulheres negras e mercado de trabalho também é tocar na trajetória das nossas jovens de periferia que estão agora iniciando a sua jornada. Então convido aos leitores interessados a procurarem e apoiarem essa luta!
Por fim, deixo o convite para o evento “Encontro de Juventudes “Orçamento e Políticas Públicas” que acontecerá no dia 24 de Junho de 2023, das 13h30 às 17h, no Auditório 1º de Maio, no 1º andar da Câmara Municipal de São Paulo: Viaduto Jacareí, 100 – Bela Vista, São Paulo – SP, Palácio Anchieta.
Manifestação reúne lideranças indígenas guarani para protestar contra o Marco Temporal. (Foto: Dan Agostini)
Na última terça-feira (30/05), a Câmara dos Deputados, em Brasília, aprovou o projeto de lei 490, que estabelece o Marco Temporal, um conjunto de regras jurídicas que dificulta a demarcação de terras indígenas. No mesmo dia, em reação a esta decisão, inúmeros protestos dos povos indígenas se espalharam pelo Brasil.
Em São Paulo, lideranças indígenas guaranis do território Jaraguá, localizado na região noroeste da cidade, ocuparam a Rodovia dos Bandeirantes e foram brutalmente repreendidos pela polícia militar.
“A demarcação de terra é baseada no modo de vida do não indígena, na sua crença geográfica, porque nós se entendemos como um povo livre e não proprietário de terra, nos entendemos como parte da terra, parte de toda vida que se encontra aqui”
Thiago Djekupe, liderança guarani do território indígena Jaraguá
O texto do projeto de lei do Marco Temporal só reconhece as terras indígenas legalmente ocupadas ou que estavam em disputa para serem demarcadas quando a Constituição Federal foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, momento reconhecido na história do país como período de redemocratização após o fim da ditadura militar.
Com 283 votos a favor do Marco Temporal, os parlamentares do PL, PSD, PP, PSDB, PODE, MDB, AVANTE, PV, PSC, PDT, União Brasil, Republicanos, Cidadania, Patriota e Solidariedade, partidos que representam o centrão e a extrema direita, contribuíram para o PL 490 avançar para o Senado Federal. Agora, o projeto de lei tramita com a numeração 2.903/2023.
A terra indígena Jaraguá possui 1,7 hectares, ou seja, mais de 10 mil metros quadrados. Essa região é cercada pelo Rodoanel, Rodovia dos Bandeirantes e Anhanguera. Atualmente, os povos indígenas desta região seguem na disputa política para demarcação dos 534 hectares, uma luta coletiva e histórica que pode ser completamente inviabilizada pela aprovação em definitivo do Marco Temporal.
“O pico do Jaraguá é sagrado para nós. Chamamos de Itawera, porque o ‘Ita’ é das pedras e o ‘wera’ é a força dos raios. O pico do Jaraguá no mundo é o lugar que mais tem ascendência do raios, que diverge né, ao invés de ele descer, ele sobe, e para nós, isso é o natural, e nós caminhamos sempre em busca da Yvy marã e’ỹ, que significa ‘Terra Sem Males’. Então esse é o caminho que fazemos seguindo a espiritualidade, seguindo a nossa fé”, contextualiza o líder indígena do povo Guarani.
O líder indígena Thiago Jekupe lembra que a sobrevivência faz parte da sua infância, momento em que uma família de empresários imobiliários tentou se apropriar de forma criminosa das terras sagradas do Jaraguá.
“Quando eu era criança, a família Pereira Leite veio aqui para tentar comprar a terra com uma mala de dinheiro. Colocou aqui um monte de homens armados com fuzil, metralhadora, calibre 12, cercaram nossa comunidade para nos ameaçar, e eu era só uma criança, e mesmo no tempos de agora com a gente provando que a nossa existência que garante as demais vidas, a gente teve o governo do estado, governador do palácio dos bandeirantes, um bandeirante chamado Geraldo Alckmin, entrou com um mandado de segurança contra o processo de demarcação da terra indígena Jaraguá”, revela.
“Lutar por demarcação é lutar pelo pouco que sobrou para que sobrevivamos. Quando estamos falando de demarcação, não é só demarcação de terra indígena, tem que se lembrar que as terras quilombolas mal são faladas. Não se fala sobre demarcação de terra quilombola, terra caiçara, vários movimentos têm a visão e movimento de querer aquilombar a periferia, mas não querem garantir os quilombos”
Thiago Djekupe, liderança guarani
A demarcação da terra indígena Jaraguá foi conquistada em 2015, reconhecendo os 532 hectares como área pertencente ao povo guarani, mas logo em seguida aconteceu o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, um fato que mudou totalmente a vida dos mais de 1 mil indígenas que viviam no território naquela época.
Neste contexto, o Ministro da Justiça, Torquato Jardim, do governo do presidente sucessor Michel Temer, revogou a Portaria Declaratória n°581, de 2015, que reconhecia os 532 hectares de ocupação guarani na região metropolitana de São Paulo. Desta forma, o território passou a ter somente 1,7 hectares.
Periferias, favelas e territórios indígenas juntos pelo direito à terra
Luisa Silva Rafacho, 24 anos, agente cultural e ambiental, moradora do Jaraguá, afirma que as periferias têm uma forte relação na luta pelo direito com os territórios indígenas. “Eu acredito que as lutas por terra na quebrada e na aldeia se relacionem ao ponto que são formas de pensar em futuros coletivos, em soluções de reflorestamento, de bioconstruções, e principalmente a forma que você constrói sua casa, capta água e luz, poderia ser uma luta muito mais compartilhada, principalmente no campo das políticas públicas”, argumenta.
Para a agente ambiental, essa seria uma forma coletiva de promover um desenvolvimento cultural e ambiental que poderia evitar a separação destas lutas dentro da cidade. “Ser uma pessoa preta e periférica vivendo em um território de preservação dos últimos remanescentes da mata atlântica do Brasil, e ainda ter a cidade como parte disso, é compreender essa relação que a cidade está inserida dentro da mata, e foi crescendo assim, e só de pensar nisso, eu me adapto nessa condição, acredito que a floresta pode ser o futuro”, ressalta a moradora do Jaraguá.
Jekupe também acredita nessa correlação de luta e diz que a quebrada se unir à demarcação também é uma forma de independência das periferias. “Imagina a periferia aproveitando seus espaços para trazer saneamento ecológico, saneamento barato, prático, se você tem agrofloresta na quebrada, entende que pode se investir em placas solares e parar de pagar energia, você sai da mão dos bandeirantes, da mão do palácio dos bandeirantes, eles não querem que a periferia entenda que a quebrada forte, que uma memória pode despertar a independência do seu território”, analisa.
Ao parar por alguns momentos e refletir sobre tudo o que tem acontecido no contexto do Marco Temporal, o líder indígena faz uma comparação sobre o impacto da criminalização da vida nas periferias, favelas e nos territórios indígenas.
“Nós estamos em situação precária que nem nas favelas e nas quebradas, sem saneamento básico, abandono de animais, por isso temos que lutar juntos e não dividir nossas lutas, as pessoas nos criminalizam pra dividir, a gente só tá buscando uma terra sem mal, e porque o não indígena não pode também buscar uma terra sem mal?”, questiona o líder guarani.
Vira e mexe surge um projeto de lei, ou até uma reforma do Código Civil, para dar direitos de pessoa a embriões e fetos. Por isso, queria apresentar alguns argumentos sobre o impacto que essa reforma pode ter sobre os direitos reprodutivos de todas as pessoas com útero. Como o dia 28 de maio é o Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, vou começar falando sobre vida e morte.
Uma das grandes discussões em torno da legalização do aborto é sobre a vida desde a concepção. Esse é um debate delicado, porque o início da vida não tem uma definição única. Ele varia de acordo com as diferentes crenças religiosas e até dentro de uma mesma doutrina religiosa, em diferentes momentos históricos.
Além disso, impor uma “verdade” baseada em uma crença religiosa em particular sobre todas as pessoas, de todas as religiões, fere o princípio básico da liberdade religiosa, que é um direito constitucional. No entanto, como uma pessoa não religiosa, vou entrar nessa discussão, por outro lado.
Se um embrião ou feto forem atribuídos os mesmos direitos de pessoa de uma menina, ou mulher grávida, o aborto pode ser considerado homicídio, mesmo que a vida da gestante esteja em risco.
Neste caso, por exemplo, se uma criança for estuprada e fizer um aborto, ela e as pessoas que a ajudarem nesse aborto poderiam ter penas mais severas do que quem a estuprou — como bem disse a campanha “Criança não é mãe”, que você deve ter visto por aí.
Manifestação no Rio de Janeiro sobre o direito ao aborto
Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)
Em países onde esse tipo de legislação já existe, como El Salvador e alguns estados dos Estados Unidos, um acidente de carro, seguido de aborto espontâneo, mesmo no caso de uma gestação de poucas semanas, pode levar à prisão.
Você pode ser responsabilizada por colocar o embrião em risco. Sem falar que se o aborto for proibido em qualquer circunstância, inclusive quando a vida da gestante está em risco, essa visão considera mulheres grávidas como incubadoras, em vez de pessoas com direitos básicos, desejos e projetos de vida próprios. E a gente sabe sobre quem o braço da justiça é mais pesado.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal promoveu uma audiência pública para discutir a descriminalização do aborto até 12 semanas.
Durante dois dias, 50 pessoas e entidades apresentaram seus pontos de vista sobre o tema: 33 a favor — entre as quais representantes de organizações de direitos humanos, centros de pesquisa, o próprio Ministério da Saúde e movimentos sociais —, e 17 contra — 8 delas, entidades religiosas, das quais 5 foram representadas por homens. Apenas um profissional de saúde estava do lado contrário.
Embora o tema ainda não tenha sido votado no STF, esse evento marcou a história do debate público sobre aborto no Brasil.
Entre as falas que defendiam a descriminalização, o principal argumento foi a defesa da vida das mulheres, fundamentado por uma enxurrada de dados nacionais e internacionais. O aborto inseguro está entre as 5 principais causas de mortalidade materna; as outras quatro são: hemorragia, hipertensão, infecções e doenças agravadas pela gravidez — como a doença cardíaca da personagem Joy, no filme “Disque Jane”.
Oferecer acesso a cuidados de pré-natal, parto e puerpério adequados são maneiras eficazes de reduzir a mortalidade materna, mas é igualmente importante e impactante prevenir gestações indesejadas. E, segundo a Organização Mundial da Saúde, isso se faz com educação sexual integral, ampliação do acesso a métodos contraceptivos de longa duração e aborto seguro.
Mas, durante aquela mesma audiência pública do STF, entre quem se opunha à descriminalização do aborto — se autointitulando “em favor da vida” —, havia até quem questionasse e menosprezasse o número de mortes de mulheres. Com fetos de borracha nas mãos, chamavam de mentirosos e exagerados os dados apresentados.
Embriões e fetos eram personalizados e sua existência destacada do corpo da gestante: nas imagens de slides, são sempre rosados, brancos, flutuando no nada, sem relação com a pessoa grávida de quem sua existência depende.
A luta em defesa do aborto caminha de braço dado com a defesa da maternidade desejada. Justiça Reprodutiva, como já disse aqui antes, é demandar políticas que protejam todas as fases da reprodução e que permitam que as pessoas tomem decisões informadas sobre ter ou não crianças, quantas e quando ter.
Que tenham apoio na prevenção de gestações indesejadas, mas que também tenham teto, comida de verdade e escola de qualidade para suas gestações desejadas, sem medo de que uma bala perdida encontre o peito de nenhuma delas. É sobre vida digna.
Contudo, tratar embriões e fetos como separados da pessoa grávida, desconsiderando os impactos físicos, psicológicos, econômicos e sociais sobre a vida e o corpo dessa pessoa, é um malabarismo retórico que nega às mulheres seu estatuto de pessoa e o transfere para a gravidez que está dentro do seu corpo.
Se você quer saber mais sobre a audiência pública ou sobre esse debate de vida e morte, recomendo a tese da Larissa Rybka. Os vídeos da audiência completa estão disponíveis na internet; aqui tem uma playlist com algumas falas fundamentais, mas recomendo particularmente esse vídeo da Lívia Casseres, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.
O lançamento da série britânica, Adolescência, reacendeu discussões importantes sobre os desafios e os perigos dessa fase da vida. Desde então, o tema ganhou destaque nas redes sociais, impulsionando uma série de vídeos que analisam os motivos que levaram o personagem principal, Jamie Miller, de 13 anos, a cometer um crime contra uma colega da mesma idade.
Confira o resultado dessa conversa no quinto episódio da quarta temporada do Desenrola Aí
Apesar de se passar no Reino Unido, o enredo retrata dilemas que também fazem parte da rotina de muitos jovens nas periferias brasileiras.
Enquanto Jamie vive cercado por uma rede de suporte composta por casa, família e escola estruturada, aqui, no Brasil, a adolescência é frequentemente atravessada pela falta de oportunidades, pelo abandono institucional e por uma rotina exaustiva, que empurra meninos e meninas para responsabilidades muito antes da hora.
Esse cenário é ainda mais alarmante quando se observa que, em 2023, o trabalho infantil fazia parte do cotidiano de 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos — sendo 65,2% delas pretas ou pardas, segundo dados da Pnad. Esses números revelam como a infância e a adolescência seguem marcadas por profundas desigualdades.
Leandro Rodrigues, psicanalista com mais de 20 anos de experiência em assistência social e atual coordenador do Centro da Criança e Adolescente da Fundação Julita, foi o quinto entrevistado da quarta temporada do programa Desenrola Aí.
Ele destaca que muitos adolescentes não encontram um espaço seguro com os adultos com quem convivem para a escuta e o acolhimento.
Para ele, a rotina exaustiva e a falta de tempo de qualidade com a família levam esses jovens a buscar apoio, orientação e afeto em colegas da mesma idade.
A ausência de vínculos com figuras adultas abre portas para as redes sociais, onde o machismo, o racismo e os diversos preconceitos se manifestam e transbordam para a realidade.
“Casos como a Baleia Azul, o desafio do desodorante e situações em que adultos se passam por crianças ou adolescentes para chantagear ou influenciar negativamente são exemplos reais que afetam os adolescentes” afirma Leandro.
Leandro Rodrigues é psicólogo e trabalha na área da educação com crianças e adolescentes há 20 anos. Foto: Geovanna Santana.
Desde 2024, o Governo de São Paulo estabeleceu o programa das Escolas Cívico-Militares, definido como um modelo de gestão escolar que prevê a participação de policiais militares em atividades educacionais, administrativas e disciplinares.
Leandro questiona a eficácia desse modelo: “Entender os contextos que levam a alguns comportamentos é difícil. É mais fácil punir e transformar o ambiente escolar em um lugar de medo”, diz.
Desenrola Aí
O programa Desenrola Aí é uma iniciativa quinzenal que promove diálogos com especialistas da quebrada, abordando temas relevantes que impactam o cotidiano da população negra e periférica, além dos direitos humanos, que são fundamentais para a convivência em sociedade. O programa é uma realização do Desenrola e Não Me Enrola, Fluxo Imagens e Portal Kintê Notícias, com apoio da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, da cidade de São Paulo.
No distrito da Brasilândia, zona norte de São Paulo, o Coletivo Prevenção para Todxs tem pautado a necessidade de dialogar com a população periférica sobre prevenção às ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e o acesso à saúde. A iniciativa, que surgiu durante a pandemia da Covid-19, começou com a distribuição de autotestes e de preservativos para os moradores dos bairros Jardim Guarani, Taipas, Parque Tietê, Jardim Elisa Maria, Parque Itaberaba, entre outros. Atualmente o grupo também circula por escolas para falar sobre prevenção.
Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs, conta que o cenário epidemiológico sobre as infecções foi um dos motivos para a criação do projeto.
Segundo o Boletim Epidemiológico de 2024, do Ministério da Saúde, até junho de 2024, o Brasil registrou quase 20 mil novos casos de infecção por HIV e cerca de 18 mil diagnósticos de aids. A maior parte dos casos (37,1%) está entre jovens de 20 a 29 anos. A região Sudeste teve o maior número de mortes por aids (55,5%), seguida pela região Sul (18%). Mesmo com os números altos, a mortalidade por aids caiu 32,9% entre 2013 e 2023.
A sífilis é ponto de atenção entre jovens de 15 a 29 anos. Dados da OMS e da OPAS mostram que, entre 2020 e 2022, os casos entre pessoas de 15 a 49 anos aumentaram 30% nas Américas. No Brasil, o Ministério da Saúde aponta que o crescimento tem sido mais forte entre homens jovens.
Entre as hepatites virais, 13% das pessoas infectadas no mundo haviam sido diagnosticadas com hepatite B até o fim de 2022, e apenas 3% estavam em tratamento. Para a hepatite C, 36% foram diagnosticadas e 20% em tratamento, o que representa 12,5 milhões de pessoas.
Outra motivação importante para o surgimento do coletivo veio de uma vivência pessoal de Thiago. Após uma relação sexual desprotegida, ele precisou acessar a PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV), medicamento de uso emergencial que pode evitar a infecção pelo HIV, vírus causador da aids, se iniciado em até 72 horas após a exposição. Mas ao procurar atendimento na região, foi informado de que a profilaxia não estava disponível e precisou se deslocar até outra zona da cidade. A situação, além de angustiante, segundo ele, escancara as múltiplas desigualdades no acesso à saúde nas periferias.
‘‘Quando a gente olha e fala para a Brasilândia, estamos falando de diversos bairros, onde o SAE (Serviço de Atendimento Especializado) e o CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) são muito distantes. [O mais] próximo aqui de onde a gente está é pelo menos uns 15 minutos. Mas, por exemplo, se você vai para Taipas, o mais próximo fica a uma hora de distância [de transporte público]”, diz o ativista.
“Pensando nesse contexto, temos noção, através dos dados do boletim epidemiológico, que os moradores daqui [da Zona Norte] só chegam no sistema de saúde quando já estão adoecidos, apresentando algum sintoma, pois o sistema não alcança essas pessoas ainda durante o período de testagem”.
Constatações como essas impulsionaram ações diretas e territorializadas do grupo, que atualmente realiza não só palestras, mas também rodas de conversa, oficinas e debates sobre prevenção, tratamento e combate ao estigma contra pessoas vivendo com HIV/Aids. A iniciativa também realiza a distribuição e facilitação no acesso a insumos de prevenção, como camisinhas internas e externas, gel lubrificante, auto testes de HIV, PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV) e PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV).
‘‘O que mais nos preocupou foi perceber, durante as distribuições dos insumos, que muitas pessoas sequer sabiam o que era um preservativo interno ou o autoteste de HIV. Começamos a cobrar a Secretaria Municipal de Saúde para entender qual era o plano para esse público, pois o s dados só aumentam a cada ano” Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs.
O grupo realiza atividades principalmente em espaços educativos, como escolas e cursinhos populares, mas buscam levar informações a outros espaços que tenham interesse em dialogar sobre o tema. Em 2024, por exemplo, o projeto foi convidado para falar sobre prevenção sexual em uma igreja evangélica para um grupo de mulheres de 30 a 60 anos.
A iniciativa já alcançou diretamente mais de 1.500 pessoas por meio das palestras ministradas em cerca de 15 escolas. Indiretamente, o impacto já ultrapassa 3 mil pessoas, considerando a distribuição dos kits de prevenção, em parceria com o SAE Nossa Senhora do Ó. Além disso, participam de eventos públicos, feiras livres e campanhas nas ruas.
Estigmas e esteriótipos
Outra ferramenta importante que tem amplificado as ações é o podcast produzido pelo grupo que fala sobre prevenção, tratamento, cuidado humanizado e luta contra a sorofobia.
Jéssica Oliveira, co-fundadora e educadora no projeto, menciona a evolução dos encontros ao longo do tempo. “Eu acho que o saldo que a gente tem tirado de positivo é ver essas informações sendo levadas à frente. O nosso diferencial é usar uma linguagem mais simples [e] direta que as pessoas entendem melhor. A gente evita termos técnicos, aqueles que assustam e costumam aparecer nas escolas. Assim, prestam mais atenção e entendem com mais clareza [questões] que já [vivenciam no dia a dia]’’.
‘‘As pessoas não sabem onde buscar informações. O tema não é discutido em casa, a escola evita abordar, e a internet nem sempre é uma fonte confiável. Por isso, o coletivo cria um espaço aberto para perguntas sem julgamentos’’ – Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs.
O combate aos estigmas e estereótipos é parte crucial do trabalho realizado. “Sempre buscamos desassociar as ISTs [a algum grupo de pessoas], para que eles entendam que não é um bicho de sete cabeças, que há como se prevenir, que tem como se testar e se tratar. Queremos mostrar que é possível manter [a saúde] em dia, não só com a camisinha, como geralmente só é falado”, afirma Thiago.
Jéssica diz que sobrevivência é a palavra que resume a atuação do projeto. “A nossa região está sendo extremamente atacada pelas polícias, esquecida pelas políticas públicas. Nós não temos acesso à saúde, ao saneamento básico, à alimentação, a meio de transporte adequado. A gente tem buscado o mínimo de [direitos] que o governo deveria garantir para nós. Então, para a gente conseguir ter esperança, [mas] antes a gente tem que sobreviver”, diz.
Thiago aponta que existem avanços na pauta, mas que a periferia continua à margem. Nesse sentido, ele reforça a necessidade do funcionamento dos três pilares do SUS: integralidade, universalidade e equidade. Além do acesso a insumos e a informações, o educador coloca que para a prevenção às ISTs, a rede de saúde precisa estar pronta para receber as pessoas.
“Não adianta apenas chegar a máquina [de dispensação de PrEP e PEP na cidade], uma máquina parada ali não vai fazer diferença para a pessoa que não tem informação. Que chegue sim a máquina, mas com a informação e com acessibilidade para o acesso”, ressalta Thiago.
Na sessão de hoje, gostaria de falar sobre conexões e reconexões que acontecem e acolho como algo simbólico e profundo — algo que nos afeta e, ao mesmo tempo, nos aproxima do passado.
Quando escrevi o livro Obará – Escrevivências Coletivas de Autocuidado, iniciei a narrativa contando sobre uma fase muito importante da minha vida: a pré-adolescência. Foi nesse período que meu desenvolvimento físico me apresentou ao mundo como uma jovem adulta.
Essa fase me levou a tecer fortes amizades no bairro. Integrei o primeiro coletivo, que nomearam CECA. Organizavam bailes black, havia um time de vôlei do qual eu fazia parte, um time de futebol, festas juninas e tantos outros eventos. Me sentia feliz e pertencente àquela coletividade.
Foi ali que aprendi a arte de dançar samba, black music… e tudo era muito maravilhoso para o meu coração juvenil. Meus sentimentos eram precoces e, consequentemente, os relacionamentos também foram intensos — ainda que nem todos tenham se desenvolvido plenamente.
No livro, também relato como esse período foi conturbado e violento na minha relação com minha mãe, que era muito exigente com regras e condutas. O que mais me deixava enraivecida eram os ataques e os apontamentos sobre meus amigos e um namorado que tive — todos eles negros.
O medo que ela sentia de que algo me acontecesse era enorme, e daí vinham as proibições: ela não permitia certas companhias, baseando-se no perfil dessas pessoas, vistas como “maus elementos”.
Durante muito tempo, questionei minha mãe: como ela via os homens negros? O que a fazia agir e pensar daquela maneira? Hoje entendo que ela teve uma história trágica, que marcou profundamente nossas vidas: o assassinato do meu pai.
Mas sei também que essa visão dela é reflexo de como nos enxergamos. Somos uma população majoritariamente afrodescendente, mas muitas vezes nos olhamos com dureza, preconceito, medo… Isso tem sido assim desde a escravidão. O racismo nos afeta até hoje, a nós, seus descendentes.
Imagino que, naquela época, tudo era ainda mais difícil para ela: uma mulher negra, viúva, jovem, com quatro filhos pequenos para sustentar. Entendo que ela agia assim comigo para me proteger.
Escrevo este artigo justamente hoje, 13 de Maio, data que é oficialmente comemorada como o dia da Abolição da Escravatura — mas que, para nós, é símbolo de uma falsa abolição, pois os comportamentos sociais seguem permeados de violências e preconceitos.
Tenho minha mãe como referência no culto à Umbanda e aos Pretos Velhos, que também recebem, neste dia, homenagens. Essa falange tão sábia, que acolhe, cuida e cura através das rezas, das ervas e dos seus mistérios. Para nós, que escolhemos essa religião e esse culto tão bonito, esse dia é repleto de significados.
Apesar de me lembrar das duras surras que levei por desacatar as ordens rígidas dessa mãe que me queria longe daquele coletivo e dessas pessoas, ela me levava ao Congar, nas noites de sexta-feira, no terreiro, para tomar um passe e tirar o mau-olhado com esses velhos sábios.
Quantos deixamos para trás… Quantos amigos, quantas histórias foram distorcidas… Quanto desamor e violência vivemos… Quanto adoecimento psíquico e psicológico fomos obrigados a suportar, por conta dessa visão tão incongruente sobre nossos ancestrais!
Por que temos que deixar tudo isso para trás, nos calar e não honrar essa história? Posso ter memórias dolorosas, mas me recuso a deixá-las. Quero reverenciar e resgatar essas memórias, com o cheiro do café e do bolo de fubá que servimos nesses rituais.
A música e a dança que aprendi naquela época são heranças do nosso povo. Precisamos dessa energia, dessa cura psíquica, dos sonhos e das esperanças para seguir vivendo — com magia, com vida pulsando em nossos corpos, mentes e almas, nos conectando com a história dos nossos antepassados.
Nos aquilombar para trocar afetos, energia, dançar juntos e coletivamente. Ir ao terreiro, rezar, sermos benzidos.
Tudo tem um fundamento na religião, mas a vida tem seus próprios mistérios. Quando, no presente, nos reencontramos com pessoas que deixaram memórias, percebemos que nós também deixamos a nossa. Isso é continuar a história. É deixar a vida nos religar para dançar, para trocar.
Mas, principalmente, para nos conectar àquela energia afetiva que nos fazia sonhar com um futuro feliz. Hoje, vejo que posso ser feliz de várias formas, e ainda levar a mensagem de que podemos ser mais e melhores do que já fomos — com a história de uma vida de mulher negra.
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.
Segundo dados da Pnad Contínua divulgados em abril de 2025, o Brasil encerrou o primeiro trimestre do ano com a taxa de desocupação em 7%. Mesmo acima do trimestre anterior, representa uma diminuição em comparação ao mesmo trimestre de 2024, que era de 7,9%.
Mas como isso reflete na vida de quem está nos territórios? Será que a queda na desocupação significa melhora nas condições de trabalho?
Levantamento do IBGE, divulgado em 2025, mostra que 31,7% dos trabalhadores brasileiros, o que representa 32,5 milhões de pessoas, atuam como autônomos de modo informal, sem CNPJ, ou são empregados sem carteira assinada no setor privado.
É a partir do questionamento do que significa essa variação na taxa de desocupação ao longo do tempo e o aumento de pessoas no trabalho autônomo que discutimos a ideia de flexibilidade e autonomia nas relações trabalhistas.
Ser mãe e continuar sonhando, mesmo com as demandas da maternidade, é uma resistência diária. Na quebrada, onde as políticas públicas muitas vezes não chegam, há pouquíssima rede de apoio, mulheres enfrentam batalhas que vão muito além de alimentar, educar e proteger seus filhos.
Elas lutam também para não desaparecer dentro do papel da maternidade. São mulheres que sonham em estudar, empreender, dançar, cantar, fazer atividades físicas, escrever, criar e ocupar espaços. Isso é uma sobrevivência emocional, porque ninguém deveria abrir mão de si mesma para ser uma boa mãe.
Quantas mulheres você conhece que superaram fases tão difíceis na maternidade?
Aposto que ao menos dois nomes surgiram na sua cabeça. De fato, depois da maternidade muita coisa muda, e a pergunta que fica não é quem você era antes do seu filho, mas sim, quem você pode ser agora, também sendo mãe.
Faço dessas minhas palavras uma forma de abraçá-las. Lembrar de que ser mãe é parte da identidade de muitas mulheres, mas não o todo. Que elas tenham o direito de ter vontades, metas e descanso.
A Lei de Cotas 12.711/12 é uma política pública fundamental para a equidade social de segmentos minoritários da sociedade. Criada e implementada em 2012, a legislação define a reserva de um percentual de vagas em universidades públicas e institutos federais de educação para estudantes de escolas públicas, negros, indígenas e pessoas com deficiência. A fim de reparar os danos causados por anos de escravidão no Brasil, como a desigualdade racial e social e o racismo estrutural que atinge diretamente pessoas negras e indígenas.
Confira o resultado dessa conversa no quarto episódio da quarta temporada do Desenrola Aí
O impacto positivo da Lei de Cotas vai além da reserva de vagas. Ela representa um reconhecimento do Estado de que a sociedade brasileira é marcada pela falta da garantia de direitos para esses grupos. Além de promover a diversidade em contribuição acadêmica como na pesquisa, na tecnologia e nas mais variadas profissões antes elitizadas e embranquecidas. Desde a criação, mais de 1 milhão e 100 mil estudantes ingressaram no ensino superior por meio da Lei de Cotas.
Especialista em Direitos Humanos, Alessandra Garcia já participou de bancas de heteroidentificação na USP. Foto: Geovanna Santana.
Alessandra Garcia Nogueira Lúcio é advogada, especialista em Direitos Humanos, relações raciais e práticas antidiscriminatórias e é a entrevistada do 4 episódio do Desenrola Aí. Para ela, a Lei de Cotas ajuda a romper o ciclo de pobreza e exclusão que afeta essas comunidades. Garcia elenca algumas mudanças que ainda são necessárias para que essa Política seja mais abrangente, como, por exemplo, a criação de políticas de permanência e a inclusão de pessoas trans como público-alvo da legislação.
Em 2023, a Lei de Cotas passou por atualizações, os cotistas passam a ter prioridade no recebimento do auxílio-estudantil, estudantes de famílias que recebem um salário mínimo podem ingressar via cotas, que passam a valer também para a pós-graduação.
O primeiro país do mundo a adotar um sistema de cotas foi a Índia, na década de 1950, para promover ações afirmativas que integrassem a população, tradicionalmente pertencente às castas excluídas nos sistemas educativos, na administração pública e nos cargos políticos.
No Brasil, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira instituição pública de ensino a adotar um sistema de ações afirmativas, em 2003. A primeira instituição pública federal a adotar um sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), em 2004.
Lei de Cotas tem sido um divisor de águas para muitos jovens negros e periféricos que antes não tinham acesso à educação superior – a taxa de permanência e de conclusão do curso entre cotistas chega a ser 10% superior à taxa de estudantes que ingressam pela ampla concorrência, assim como têm desempenho acadêmico igual ou superior ao mesmo grupo, o que contrapõe a máxima de que quem ingressa pelo sistema de Cotas retira a vaga de outro estudante da chamada regular.
Fomentar a diversidade de saberes ancestrais dos povos indígenas é um dos objetivos da Editora Saberes da Mata. Criada pela educadora Martha de Lima, a editora surgiu do desejo de romper com a lógica dominante que reduz intelectualidade aos padrões ocidentais.
A iniciativa, que surgiu em 2018, também tem como propósito descolonizar o conhecimento, é o que conta a educadora. “Precisamos regenerar a história e trazer uma nova forma de entender os padrões linguísticos, porque ignorar os conhecimentos dos povos indígenas também é uma forma de depreciação da nossa cultura.”
Escritora, pedagoga, pesquisadora e radialista, Martha, fundadora da Saberes da Mata é nascida e criada em Manaus, no Estado do Amazonas, mas migrou para o sul do país, onde vive atualmente, em Florianópolis, Santa Catarina. Martha, que aponta estar em retomada, conta que seu pai é de Rondônia e a mãe do Rio Grande do Norte, ambos têm raízes indígenas.
“Estamos em um momento de retomada, pois até então todo mundo dizia que povos indígenas tinham só oralidade, mas não, tudo é linguagem: signos, grafismos, pintura corporal. O mundo branco entende que literatura são apenas letras.” Martha de Lima, fundadora da editora Saberes da Mata.
A editora já publicou quatro livros, são eles: “Contos da Vovó Marta”, escrito pela educadora; “Imuê’en: Por um estar no mundo originário”, escrito por Porakê Munduruku; a coletânea “O Ressoar das Vozes”, de Ariane Landa, Elias de Lima, Escaley Alves Gisely, Moura Argôlo, Jade Bustos, Julia Schardong Veiga, Letícia Couto, Maria Eduarda Corrêa, Martha de Lima, Thayssa Rodrigues e Saile Moura, que reúne contos e retomadas de memórias ancestrais. E também “Oboré: Quando a terra fala”, assinado por Martha Batista de Lima, Célia Xacriabá, Hugo Fulni-ô, Kaká Werá, Daiara Tukano, Walderes Cocta Priprá, Joziléia Kaingang e Kerexu Yxapyry.
A partir da editora, Martha circula por espaços educacionais, feiras e eventos culturais, onde leva as obras e promove contação de histórias, aproximando adultos e crianças da história indígena.
Para a educadora, a maneira de ver o mundo, de aprender com ele e com a vida passa por muitos caminhos e não pode se limitar às formas tradicionalmente estabelecidas. Ela reforça que os povos indígenas possuem conhecimentos que possibilitam a construção de imaginários de emancipação, através, principalmente, da valorização dos territórios e das relações humanas.
Martha ressalta que a literatura vai além de escrever livros, que trata-se de construir um pensamento contracolonial de existência. Ela também pontua que as dificuldades que editoras independentes enfrentam diariamente para sobreviver já escancara as contradições e limitações do academismo, que frequentemente invisibiliza os saberes e vozes indígenas. Confira o bate-papo na íntegra.
Desenrola e Não Me Enrola: Como nasceu a Editora Saberes da Mata?
Martha de Lima: Nasceu da necessidade. Eu não sabia nada, fui aprendendo fazendo, errando, acertando. Começou quando participei como mediadora do 3º Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, em 2020-2021. Daí nasceu o livro Oboré. Fiz mil cópias, saí vendendo pelo mundo. Foi nesse caminho que me reconheci como mulher indígena, originária do bioma amazônico.
O selo Saberes da Mata nasceu de um grupo de leitura do Oboré. Depois veio a obra “O Ressoar das Vozes”. Quando procuramos editoras para publicar, elas queriam mudar tudo: capa, revisor, até autor. Aí eu disse não. Foi aí que nasceu a editora.
Eu nem sabia o que era ter um selo independente, mas fui lá, criei nome, fiz logo, abri MEI e coloquei como editora, depois de três pessoas me incentivarem a começar.
No trabalho, opto por selecionar revisores que conhecem da cultura indígena, senão acabam por corrigir o que não é erro. Tenho alguém que trabalha com aquarela digital e já me entrega a capa diagramada. Agora busco alguém que traduza para o Guarani.
De modo geral, a editora sou eu. Crio, vendo, envio, carrego as caixas no carro, levo nos eventos, etc. Meu marketing é artesanal. Agora, quero investir um pouco mais na divulgação, estou entendendo o melhor caminho.
Além da Editora, como a literatura chegou na sua vida?
A literatura sempre esteve comigo. Cresci em Manaus, criada como mulher parda. Depois vim para o sul e estudei pedagogia. A poesia me chamou nas escolas. Sempre li para os meus filhos, mas foi em 2018, com o Congresso, que entendi que queria escrever com sentido coletivo, para partilhar.
A minha formação em pedagogia já foi toda voltada para projetos. A gente estudou Paulo Freire, fez trabalhos junto a aldeias indígenas, então meu caminho já foi sendo direcionado para isso.
Além disso, o meu pai era contador de histórias. Ele teve 6 filhos, costumava se deitar no chão depois do almoço, sábado e domingo, e contava para a gente histórias do Boitata, espíritos defensores da Floresta, histórias de Iara, espíritos das águas, etc. Essas histórias ficaram marcadas em mim. Quando o congresso aconteceu, isso me atravessou com uma força que não consegui conter. Foi ali que aflorou algo em mim e comecei a escrever organicamente, até então não estudei para isso. Depois que o livro estava pronto é que fui me aperfeiçoando.
De 2018 pra cá, quis escrever, publicar pelo ímpeto. Preparei um livreto com três histórias. Assim, quando eu fosse contar, poderia também vender. Mandei revisar e assim a obra aconteceu. Ou seja, não sou aquela pesquisadora acadêmica. Pesquiso para mim. Só agora entendi que aquilo que eu estava fazendo para mim, também serviria para outras pessoas.
Quando tentei apresentar minha ideia para as editoras tradicionais, foi bem difícil. Não sabiam onde me encaixar. Então, durante o congresso, nasceu o Aboré – o livro pai de todas as coisas. Um dos responsáveis me disse: “Faz você, eu te apoio.” Achei que era a hora. Um congresso mundial, transmitido na internet, com todo mês uma palestra, eu eu pensei: é o momento de começar a falar sobre isso para o mundo.
As falas durante o Congresso não seriam registradas. Resolvi fazer por conta própria um livreto, como um presente. Algo que quem participou pudesse guardar como referência. Entendi que o que era dito no congresso precisava ficar registrado em algum lugar.
Você acredita que esse desconhecimento sobre os povos indígenas e a dificuldade de fomentar a literatura indígena diz muito sobre uma visão colonizada que o Brasil ainda tem?
Com certeza. Não quero carregar sozinha toda a responsabilidade, mas penso que estamos em um momento que as pessoas estão vendo uma furada de bolha, inclusive na literatura, então é uma retomada de território, de fala e de poder que ainda não está organizado, pois ninguém sabe quem foi o primeiro escritor indígena. Quem define isso? Não há uma Academia Brasileira Indígena.
É um caminho solidário e que dá medo, claro, de entrar por um terreno que eu sozinha não dê conta. No modelo colonizado, quem escolhe é um editor. Uma pessoa só. Aqui eu sou essa pessoa. Tentei montar uma banca, mas só encontrei gente branca: antropólogos, historiadores, e eu não quero necessariamente só isso.
Não tenho ainda escritores indígenas para formar essa banca comigo. Mas quem chancela isso? Quem diz que a autodeclaração é válida? Estamos num momento de transição. Me sinto insegura por muitas vezes, tentando saber o que é coerente com o que mundo, com aquilo que os brancos aceitam, pois o problema não são os indígenas. O problema é com os brancos.
Considerando que, estatisticamente, a população brasileira não tem o hábito de leitura, você percebe que esse cenário se agrava quando falamos da leitura de obras de povos tradicionais? E como essa realidade se entrelaça na região onde você atua, o sul do Brasil?
Aqui no sul, ao mesmo tempo que tem mais acesso à cultura, em razão de maior poder aquisitivo, há mais facilidade na compra de livros, também cresce o academicismo e a retomada indígena dentro das universidades. Isso cria uma necessidade de publicações que citem os povos indígenas e não apenas que citem as pessoas brancas.
A verdade é que não há grande oferta de autores indígenas nas universidades que sejam, de fato, reconhecidos como autores pelas universidades. No entanto, cataloguei mais de 200 escritores e 390 publicações feitas por pessoas pertencentes a organizações internacionais, estatais ou ONGs, mas que não têm indígenas como protagonistas da produção.
Muitos livros tem como autor somente um branco, falando sobre vivências indígenas e lucrando com isso.
Andando pelos territórios, como você tem percebido o impacto do trabalho da Saberes da Mata?
Nas aldeias os professores comentam que querem produzir um livro, mas ninguém vai às aldeias para conversar. A ideia de publicar sempre passa pela ideia de ir para São Paulo, mas não é assim. Muitos livros não dialogam com a cosmovisão dos povos indígenas e apresentam só a opção de um livro branco, sem considerar as diversas características culturais.
Reforço que estamos em um momento de retomada, pois até então todo mundo dizia que povos indígenas tinham só oralidade, mas não, tudo é linguagem: signos, grafismos, pintura corporal. O mundo branco entende que literatura são apenas letras.
Precisamos regenerar a história e trazer uma nova forma de entender os padrões linguísticos, porque ignorar os conhecimentos dos povos indígenas também é uma forma de depreciação da nossa cultura. Pensam que a arte é apenas europeia, que língua apenas é inglês, desconsiderando, por exemplo, as 305 etnias que falam 179 idiomas, mas não são valorizadas como uma policonstrução trans-humana, pois o idioma eleito como mais importante é a língua do colonizador.
O que pesa mais: a falta de financiamento para publicar ou a visão estereotipada acerca dos povos tradicionais? E qual o papel do leitor não indígena nessa luta?
Recentemente fiz essa mesma pergunta. Subi em um palco e comecei a falar um pouco sobre o que é o movimento indígena. No final da fala, fiquei pensando: “O que será que eles vão fazer com isso?”. Então devolvi a pergunta para quem estava ali: “Quero saber qual o papel de vocês nesse processo. Como vocês observam tudo isso que estou dizendo? Os povos indígenas já conhecem os temas que abordo. Mas e a população de modo geral? Isso fica no ar: como é que a gente vai construir uma conversa sobre isso?”
Uma pessoa me respondeu que estamos diante de um impasse. Um encontro entre algo muito novo — a literatura indígena — e algo muito antigo — o academicismo. Então digo que o papel é criar um caminho para seguir daqui em diante, a partir de alguns questionamentos: A cultura indígena existe só pela oralidade ou existem outras formas de comunicação que ainda não foram reconhecidas? Quem modifica isso? Somos nós, os povos indígenas, ou são os pesquisadores e acadêmicos não indígenas? Quando a gente finalmente se encontrar nesse ponto de entendimento mútuo, como vamos chamar isso? Que pedagogia é essa? Que argumento novo será esse?
Digo que, na minha visão, estamos vivendo uma crise de paradigma de modelo educacional. Tem pedagogia do encontro, da presença, da escuta, mas e essa, de agora, não há nome. E para que esse encontro aconteça de verdade, precisamos nos reconhecer como sujeitos, vocês – não indígenas, reconhecendo os indígenas como comunicadores, e nós, voltando a confiar em vocês depois de tudo o que nos foi feito historicamente.
O que você espera para o futuro da literatura, da população indígena no Brasil e como se blinda, considerando os ataques em massa à diversidade, aos direitos indígenas, aos direitos humanos e à democracia?
Pensando numa literatura onde possam falar por si mesmas, com autonomia. Fora das aldeias, fico pensando como eu, uma única mulher, posso criar redes, plataformas de comunicação.
Quando o mundo, o conhecimento, a comunicação e os saberes seguem essa lógica do lucro, é porque a engrenagem ainda é a do mercantilismo.
Esse é o desafio: não cair no mercantilismo, não produzir apenas por dinheiro. Minha ideia é manter a reciprocidade com as aldeias. Quando publico um livro, por exemplo, levo a obra para dentro das comunidades e tentamos criar algo juntos, para que também participem, falem, contem suas histórias e escrevam essas histórias.
Eu, que gosto muito de metáforas, resolvi fazer uma comparação entre panelas de pressão e adolescência nesse texto. Justamente porque muitas pessoas gostam de dizer que a adolescência é uma panela de pressão prestes a explodir, mas o que não dizem é como cuidar para que a panela não exploda.
Então, pensei em dar algumas possibilidades de cuidado com adolescentes que se baseiam nos cuidados com a panela de pressão.
Só para contextualizar: Quando eu era criança (lá pelos 10 ou 11 anos de idade), a panela de pressão da minha casa explodiu, literalmente!
A telha brasilit que cobria o único cômodo em que minha família e eu morávamos, se estilhaçou em vários pedaços e fez um buracão no teto. Ninguém se machucou, por sorte estávamos perto da porta que dava para o quintal, mas voou comida e telha para todos os lados.
Desde esse dia, eu passei a ter cuidado e respeito pela potência da panela de pressão. Fui aprendendo a me aproximar dela com respeito e sem duvidar de uma possível explosão.
Eu não deixei de conviver com a panela de pressão em casa, afinal adoro um feijãozinho fresco e uma carne cozida com legumes.
Ah pois… Assim como panelas de pressão que para se abrir precisam de tempo para chiar e esfriar, adolescentes precisam de espaços para o desabafo. Adolescentes precisam de espaço para reclamar.
Re-clamar.
Clamar por escuta, clamar por acolhimento, clamar, clamar e re-clamar… quantas vezes for preciso. É importante termos paciência para dar suporte ao chiado da panela-de-pressão-adolescência. E mesmo com medo da possível explosão, você precisa estar por perto até que a panela esfrie.
Não precisa ficar em cima do adolescente ou da panela, você pode dar um espacinho, mas não saia e a deixe sozinha (nem a panela, nem a adolescência).
Atenção! Não se pode jogar água no chiado da panela, nem da adolescência, porque o perigo de explosão é alto. É fundamental ficar perto, mas fique perto escutando. Fique ali e escute!
É importante perceber que o chiado diminui com o tempo e se transforma em possibilidades de abertura. A panela se abre quando não há mais pressão interna e externa. A adolescência também é assim: sem pressão e com paciência, é possível se abrir.
Não deixe que o medo da explosão te afaste da convivência com adolescentes. Não deixe que o medo da panela te afaste da possibilidade de uma alimentação saudável.
Tente usar o medo como um parceiro e não um limitador. É difícil fazer feijão quando o medo da panela é maior que o desejo do alimento. É difícil construir uma relação quando o medo da adolescência é maior que o desejo de uma boa convivência.
Sou educadora em sexualidade e uma das coisas que faço é escutar os chiados da adolescência por dias, semanas, meses. E só depois, bem depois, é que adolescentes se abrem para acrescentar novos temperos à vida.
Como diz a canção de Luli e João Ricardo: “Se eu não entender, não vou responder, então escuto… Fala!”.
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Nascida e criada no Jardim Novo Santo Amaro, bairro localizado no distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, Amanda Porto, 28, busca construir novos imaginários sobre o que é ser uma mãe preta desenrolada, ao lidar com a maternidade não apenas pelo lado das dores, desafios e sacrifícios, mas também através das alegrias, descobertas e reinvenções. Mãe da pequena Niara, de 4 anos, Amanda é profissional da área de relações públicas, e é uma das fundadoras do Coletivo Siriricas.
A comunicadora conta que a descoberta da gestação influenciou diretamente na forma que passou a enxergar o mundo. “Eu era uma pessoa extremamente egocêntrica dentro dos meus relacionamentos. Somente a minha opinião importava. Sempre fui uma pessoa crítica, que pensou muito nos direitos, e isso é até conflitante, pois me importava com a minha vida sempre em primeiro lugar, o que pode ser autoestima para algumas pessoas, mas acho que às vezes ultrapassa para algo doentio, dependendo do quanto você foca em si mesma e para de olhar ao seu redor”, coloca.
Essa mudança de percepção, fez com que a maternidade se tornasse um divisor de águas em sua vida. “Fui jogada ali nos primeiros meses para esquecer completamente quem eu era e passar a me dedicar 100% a uma pessoa que dependia totalmente de mim. Não arrumava mais o cabelo, não tomava banho direito, não fazia mais nada. Era assim: bebê chorando, e peito, peito, peito. Eu nem me reconhecia mais. Daí então vem meu processo de paciência. Tudo era para ontem, se não fosse do meu jeito, não era de jeito nenhum, mas Niara veio me mostrar que a vida não é assim”, afirma Amanda sobre os aprendizados.
“Educar uma criança é um ensinamento diário. Você educa uma criança educando [a si mesmo]”.
Amanda Porto, uma das fundadoras do Coletivo Siriricas e mãe da Niara de 4 anos.
Quatro anos após a chegada da sua filha, ela relembra os primeiros meses com mais tranquilidade. “Educar a Niara é me reeducar ou me educar pela primeira vez, dependendo da situação que estou vivendo com ela naquele determinado momento. E isso eu tenho feito todos os dias, afinal todo dia é uma novidade para ela e para mim também.”
Criar Niara também expandiu seu olhar sobre o cuidado enquanto mulher e mãe de uma menina negra. “Isso me fez e ainda me faz rever várias coisas do meu passado e não querer replicar. Me faz construir uma relação em que eu e ela estejamos de acordo e, se a gente não tiver, está tudo bem também. Que ela aponte [o que pensa] e que [a gente chegue] a um consenso. Inclusive, é um trabalho que se faz agora, mas é ela quem vai dizer lá na frente se aquilo, de fato, fez sentido ou não. E aí você como mãe também vai ter que aprender a lidar com a frustração”, pontua Amanda.
Com uma personalidade forte, Niara já demonstra seu lugar no mundo. “Ela é geniosíssima, é doce, muito afetuosa, mas cheia de opinião. Argumenta muito e é muito ligada ao próprio cabelo. Nós conversamos muito sobre negritude, sobre beleza, cabelo, sobre música, etc. Ela contou que já ouviu de outras crianças que o cabelo dela não é bonito, o que me preocupa, mas ao ver como ela já lida com isso de uma forma bem diferente de como eu lidava [nessa idade], me sinto aliviada”, compartilha a comunicadora.
Reflexos coletivos da maternidade
Antes mesmo da maternidade, Amanda conta que já era movida por muitos sonhos e desejo de transformação.Dessa vontade de mudar o mundo coletivamente, surgiu, em 2018, o Coletivo Siriricas, iniciativa formada por sete mulheres negras que dialogam sobre autoestima e negritude.
“É um espaço que construí, junto com minhas amigas, para ampliar as nossas discussões de bar. Pensamos que se algo acontecia entre sete mulheres negras, com certeza acontecia com muitas outras pelo Brasil afora. E foi aí que demos vida ao coletivo, que é essa agência de notícias que trata de vários assuntos. De dores, sim, mas de muitas alegrias também”, conta.
O coletivo promove debates através de podcast, lives, rodas de conversa, dentre outras ações. Em 2021, integrou o projeto Adidas Runners, criando uma comunidade de corrida voltada a estimular o autocuidado e a prática de atividades físicas entre mulheres negras.
Para Amanda, a criação do Sirricas reflete uma de suas buscas, que é pensar um mundo melhor para mulheres negras, para pessoas periféricas e criar estratégias para alcançar isso. “Tenho muitas felicidades, uma delas é o coletivo.. O que já conseguimos construir, juntas, para a população de mulheres negras no Brasil. Tudo isso me devolveu [a mim mesma] até no meu processo de maternidade”, compartilha.
Amanda coloca que durante os primeiros meses da maternidade, estar entre mulheres fazia ela se reencontrar consigo. “No começo da maternidade, minhas primeiras saídas eram para a casa de algumas amigas do coletivo. Elas chegavam com pizza, vinho. Já não dava mais para ir a um bar na rua com uma criança pequena. Elas passaram a ser essa rede de apoio, não para cuidar da Niara, mas para me lembrar de quem eu sou além da maternidade”, relembra.
“Ter minhas amigas nesse processo foi essencial, porque a maternidade pode ser solitária para muitas mulheres.”
Amanda Porto, uma das fundadoras do Coletivo Siriricas e mãe da Niara de 4 anos.
Ela ainda reforça que teve uma rede de apoio, fato que contribuiu para que se sentisse mais preparada, mas ainda assim ressalta que não deixa de ser desgastante.
‘‘Ninguém vai dar para a gente o caminho. Quando pensar o que vai fazer [tem que] levar [a criança]; quando pensar que precisa ir em algum lugar e não tem com quem deixar, não deixe de ir. Leva [a criança junto]. Vai ser desafiador ficar com a criança aí do lado, ter ela puxando, chamando, chorando, mas não deixa de ir. Pode ser que ali você encontre espaço e conheça alguém que vai gerar essa oportunidade que você tanto espera”, compartilha.
Com o crescimento da Niara, o Dia das Mães ganhou um novo significado para Amanda. “Quero olhar para ela com orgulho do que a gente está construindo juntas e me sentir grata, porque até aqui tem dado certo”, finaliza.