Memórias do Passado – 13 de Maio

O medo que ela sentia de que algo me acontecesse era enorme, e daí vinham as proibições

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Na sessão de hoje, gostaria de falar sobre conexões e reconexões que acontecem e acolho como algo simbólico e profundo — algo que nos afeta e, ao mesmo tempo, nos aproxima do passado.

Quando escrevi o livro Obará – Escrevivências Coletivas de Autocuidado, iniciei a narrativa contando sobre uma fase muito importante da minha vida: a pré-adolescência. Foi nesse período que meu desenvolvimento físico me apresentou ao mundo como uma jovem adulta.

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Essa fase me levou a tecer fortes amizades no bairro. Integrei o primeiro coletivo, que nomearam CECA. Organizavam bailes black, havia um time de vôlei do qual eu fazia parte, um time de futebol, festas juninas e tantos outros eventos. Me sentia feliz e pertencente àquela coletividade.

Foi ali que aprendi a arte de dançar samba, black music… e tudo era muito maravilhoso para o meu coração juvenil. Meus sentimentos eram precoces e, consequentemente, os relacionamentos também foram intensos — ainda que nem todos tenham se desenvolvido plenamente.

No livro, também relato como esse período foi conturbado e violento na minha relação com minha mãe, que era muito exigente com regras e condutas. O que mais me deixava enraivecida eram os ataques e os apontamentos sobre meus amigos e um namorado que tive — todos eles negros.

O medo que ela sentia de que algo me acontecesse era enorme, e daí vinham as proibições: ela não permitia certas companhias, baseando-se no perfil dessas pessoas, vistas como “maus elementos”.

Durante muito tempo, questionei minha mãe: como ela via os homens negros? O que a fazia agir e pensar daquela maneira? Hoje entendo que ela teve uma história trágica, que marcou profundamente nossas vidas: o assassinato do meu pai.

Mas sei também que essa visão dela é reflexo de como nos enxergamos. Somos uma população majoritariamente afrodescendente, mas muitas vezes nos olhamos com dureza, preconceito, medo… Isso tem sido assim desde a escravidão. O racismo nos afeta até hoje, a nós, seus descendentes.

Imagino que, naquela época, tudo era ainda mais difícil para ela: uma mulher negra, viúva, jovem, com quatro filhos pequenos para sustentar. Entendo que ela agia assim comigo para me proteger.

Escrevo este artigo justamente hoje, 13 de Maio, data que é oficialmente comemorada como o dia da Abolição da Escravatura — mas que, para nós, é símbolo de uma falsa abolição, pois os comportamentos sociais seguem permeados de violências e preconceitos.

Tenho minha mãe como referência no culto à Umbanda e aos Pretos Velhos, que também recebem, neste dia, homenagens. Essa falange tão sábia, que acolhe, cuida e cura através das rezas, das ervas e dos seus mistérios. Para nós, que escolhemos essa religião e esse culto tão bonito, esse dia é repleto de significados.

Apesar de me lembrar das duras surras que levei por desacatar as ordens rígidas dessa mãe que me queria longe daquele coletivo e dessas pessoas, ela me levava ao Congar, nas noites de sexta-feira, no terreiro, para tomar um passe e tirar o mau-olhado com esses velhos sábios.

Quantos deixamos para trás… Quantos amigos, quantas histórias foram distorcidas… Quanto desamor e violência vivemos… Quanto adoecimento psíquico e psicológico fomos obrigados a suportar, por conta dessa visão tão incongruente sobre nossos ancestrais!

Por que temos que deixar tudo isso para trás, nos calar e não honrar essa história?
Posso ter memórias dolorosas, mas me recuso a deixá-las. Quero reverenciar e resgatar essas memórias, com o cheiro do café e do bolo de fubá que servimos nesses rituais.

A música e a dança que aprendi naquela época são heranças do nosso povo. Precisamos dessa energia, dessa cura psíquica, dos sonhos e das esperanças para seguir vivendo — com magia, com vida pulsando em nossos corpos, mentes e almas, nos conectando com a história dos nossos antepassados.

Nos aquilombar para trocar afetos, energia, dançar juntos e coletivamente. Ir ao terreiro, rezar, sermos benzidos.

Tudo tem um fundamento na religião, mas a vida tem seus próprios mistérios. Quando, no presente, nos reencontramos com pessoas que deixaram memórias, percebemos que nós também deixamos a nossa. Isso é continuar a história. É deixar a vida nos religar para dançar, para trocar.

Mas, principalmente, para nos conectar àquela energia afetiva que nos fazia sonhar com um futuro feliz. Hoje, vejo que posso ser feliz de várias formas, e ainda levar a mensagem de que podemos ser mais e melhores do que já fomos — com a história de uma vida de mulher negra.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

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