Em defesa da vida… será mesmo?

Mandando mulheres para a prisão, que vidas estão defendendo aqueles que se opõem ao direito ao aborto?
Por:
Shisleni de Oliveira
Edição:
Aline Macedo

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Vira e mexe surge um projeto de lei, ou até uma reforma do Código Civil, para dar direitos de pessoa a embriões e fetos. Por isso, queria apresentar alguns argumentos sobre o impacto que essa reforma pode ter sobre os direitos reprodutivos de todas as pessoas com útero. Como o dia 28 de maio é o Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, vou começar falando sobre vida e morte.

Uma das grandes discussões em torno da legalização do aborto é sobre a vida desde a concepção. Esse é um debate delicado, porque o início da vida não tem uma definição única. Ele varia de acordo com as diferentes crenças religiosas e até dentro de uma mesma doutrina religiosa, em diferentes momentos históricos.

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Além disso, impor uma “verdade” baseada em uma crença religiosa em particular sobre todas as pessoas, de todas as religiões, fere o princípio básico da liberdade religiosa, que é um direito constitucional. No entanto, como uma pessoa não religiosa, vou entrar nessa discussão, por outro lado.

Se um embrião ou feto forem atribuídos os mesmos direitos de pessoa de uma menina, ou mulher grávida, o aborto pode ser considerado homicídio, mesmo que a vida da gestante esteja em risco.

Neste caso, por exemplo, se uma criança for estuprada e fizer um aborto, ela e as pessoas que a ajudarem nesse aborto poderiam ter penas mais severas do que quem a estuprou — como bem disse a campanha “Criança não é mãe”, que você deve ter visto por aí.

Manifestação no Rio de Janeiro sobre o direito ao aborto Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)


Em países onde esse tipo de legislação já existe, como El Salvador e alguns estados dos Estados Unidos, um acidente de carro, seguido de aborto espontâneo, mesmo no caso de uma gestação de poucas semanas, pode levar à prisão.

Você pode ser responsabilizada por colocar o embrião em risco. Sem falar que se o aborto for proibido em qualquer circunstância, inclusive quando a vida da gestante está em risco, essa visão considera mulheres grávidas como incubadoras, em vez de pessoas com direitos básicos, desejos e projetos de vida próprios. E a gente sabe sobre quem o braço da justiça é mais pesado.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal promoveu uma audiência pública para discutir a descriminalização do aborto até 12 semanas.

Durante dois dias, 50 pessoas e entidades apresentaram seus pontos de vista sobre o tema: 33 a favor — entre as quais representantes de organizações de direitos humanos, centros de pesquisa, o próprio Ministério da Saúde e movimentos sociais —, e 17 contra — 8 delas, entidades religiosas, das quais 5 foram representadas por homens. Apenas um profissional de saúde estava do lado contrário.

Embora o tema ainda não tenha sido votado no STF, esse evento marcou a história do debate público sobre aborto no Brasil.

Entre as falas que defendiam a descriminalização, o principal argumento foi a defesa da vida das mulheres, fundamentado por uma enxurrada de dados nacionais e internacionais. O aborto inseguro está entre as 5 principais causas de mortalidade materna; as outras quatro são: hemorragia, hipertensão, infecções e doenças agravadas pela gravidez — como a doença cardíaca da personagem Joy, no filme “Disque Jane”.


Segundo o próprio Ministério da Saúde, mais de 90% das mortes maternas são evitáveis e em torno de 66% das mulheres que morrem por causas ligadas à gestação, parto e aborto são negras.

Oferecer acesso a cuidados de pré-natal, parto e puerpério adequados são maneiras eficazes de reduzir a mortalidade materna, mas é igualmente importante e impactante prevenir gestações indesejadas. E, segundo a Organização Mundial da Saúde, isso se faz com educação sexual integral, ampliação do acesso a métodos contraceptivos de longa duração e aborto seguro.

Mas, durante aquela mesma audiência pública do STF, entre quem se opunha à descriminalização do aborto — se autointitulando “em favor da vida” —, havia até quem questionasse e menosprezasse o número de mortes de mulheres. Com fetos de borracha nas mãos, chamavam de mentirosos e exagerados os dados apresentados.

Embriões e fetos eram personalizados e sua existência destacada do corpo da gestante: nas imagens de slides, são sempre rosados, brancos, flutuando no nada, sem relação com a pessoa grávida de quem sua existência depende.

A luta em defesa do aborto caminha de braço dado com a defesa da maternidade desejada. Justiça Reprodutiva, como já disse aqui antes, é demandar políticas que protejam todas as fases da reprodução e que permitam que as pessoas tomem decisões informadas sobre ter ou não crianças, quantas e quando ter.

Que tenham apoio na prevenção de gestações indesejadas, mas que também tenham teto, comida de verdade e escola de qualidade para suas gestações desejadas, sem medo de que uma bala perdida encontre o peito de nenhuma delas. É sobre vida digna.

Contudo, tratar embriões e fetos como separados da pessoa grávida, desconsiderando os impactos físicos, psicológicos, econômicos e sociais sobre a vida e o corpo dessa pessoa, é um malabarismo retórico que nega às mulheres seu estatuto de pessoa e o transfere para a gravidez que está dentro do seu corpo.

Se você quer saber mais sobre a audiência pública ou sobre esse debate de vida e morte, recomendo a tese da Larissa Rybka. Os vídeos da audiência completa estão disponíveis na internet; aqui tem uma playlist com algumas falas fundamentais, mas recomendo particularmente esse vídeo da Lívia Casseres, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

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