Fomentar a diversidade de saberes ancestrais dos povos indígenas é um dos objetivos da Editora Saberes da Mata. Criada pela educadora Martha de Lima, a editora surgiu do desejo de romper com a lógica dominante que reduz intelectualidade aos padrões ocidentais.
A iniciativa, que surgiu em 2018, também tem como propósito descolonizar o conhecimento, é o que conta a educadora. “Precisamos regenerar a história e trazer uma nova forma de entender os padrões linguísticos, porque ignorar os conhecimentos dos povos indígenas também é uma forma de depreciação da nossa cultura.”
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Escritora, pedagoga, pesquisadora e radialista, Martha, fundadora da Saberes da Mata é nascida e criada em Manaus, no Estado do Amazonas, mas migrou para o sul do país, onde vive atualmente, em Florianópolis, Santa Catarina. Martha, que aponta estar em retomada, conta que seu pai é de Rondônia e a mãe do Rio Grande do Norte, ambos têm raízes indígenas.
“Estamos em um momento de retomada, pois até então todo mundo dizia que povos indígenas tinham só oralidade, mas não, tudo é linguagem: signos, grafismos, pintura corporal. O mundo branco entende que literatura são apenas letras.” Martha de Lima, fundadora da editora Saberes da Mata.
A editora já publicou quatro livros, são eles: “Contos da Vovó Marta”, escrito pela educadora; “Imuê’en: Por um estar no mundo originário”, escrito por Porakê Munduruku; a coletânea “O Ressoar das Vozes”, de Ariane Landa, Elias de Lima, Escaley Alves Gisely, Moura Argôlo, Jade Bustos, Julia Schardong Veiga, Letícia Couto, Maria Eduarda Corrêa, Martha de Lima, Thayssa Rodrigues e Saile Moura, que reúne contos e retomadas de memórias ancestrais. E também “Oboré: Quando a terra fala”, assinado por Martha Batista de Lima, Célia Xacriabá, Hugo Fulni-ô, Kaká Werá, Daiara Tukano, Walderes Cocta Priprá, Joziléia Kaingang e Kerexu Yxapyry.
A partir da editora, Martha circula por espaços educacionais, feiras e eventos culturais, onde leva as obras e promove contação de histórias, aproximando adultos e crianças da história indígena.
Os livros podem ser adquiridos em contato direto com Martha nas redes sociais da editora.
Para a educadora, a maneira de ver o mundo, de aprender com ele e com a vida passa por muitos caminhos e não pode se limitar às formas tradicionalmente estabelecidas. Ela reforça que os povos indígenas possuem conhecimentos que possibilitam a construção de imaginários de emancipação, através, principalmente, da valorização dos territórios e das relações humanas.
Martha ressalta que a literatura vai além de escrever livros, que trata-se de construir um pensamento contracolonial de existência. Ela também pontua que as dificuldades que editoras independentes enfrentam diariamente para sobreviver já escancara as contradições e limitações do academismo, que frequentemente invisibiliza os saberes e vozes indígenas. Confira o bate-papo na íntegra.
Desenrola e Não Me Enrola: Como nasceu a Editora Saberes da Mata?
Martha de Lima: Nasceu da necessidade. Eu não sabia nada, fui aprendendo fazendo, errando, acertando. Começou quando participei como mediadora do 3º Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, em 2020-2021. Daí nasceu o livro Oboré. Fiz mil cópias, saí vendendo pelo mundo. Foi nesse caminho que me reconheci como mulher indígena, originária do bioma amazônico.
O selo Saberes da Mata nasceu de um grupo de leitura do Oboré. Depois veio a obra “O Ressoar das Vozes”. Quando procuramos editoras para publicar, elas queriam mudar tudo: capa, revisor, até autor. Aí eu disse não. Foi aí que nasceu a editora.
Eu nem sabia o que era ter um selo independente, mas fui lá, criei nome, fiz logo, abri MEI e coloquei como editora, depois de três pessoas me incentivarem a começar.
No trabalho, opto por selecionar revisores que conhecem da cultura indígena, senão acabam por corrigir o que não é erro. Tenho alguém que trabalha com aquarela digital e já me entrega a capa diagramada. Agora busco alguém que traduza para o Guarani.
De modo geral, a editora sou eu. Crio, vendo, envio, carrego as caixas no carro, levo nos eventos, etc. Meu marketing é artesanal. Agora, quero investir um pouco mais na divulgação, estou entendendo o melhor caminho.
Além da Editora, como a literatura chegou na sua vida?
A literatura sempre esteve comigo. Cresci em Manaus, criada como mulher parda. Depois vim para o sul e estudei pedagogia. A poesia me chamou nas escolas. Sempre li para os meus filhos, mas foi em 2018, com o Congresso, que entendi que queria escrever com sentido coletivo, para partilhar.
A minha formação em pedagogia já foi toda voltada para projetos. A gente estudou Paulo Freire, fez trabalhos junto a aldeias indígenas, então meu caminho já foi sendo direcionado para isso.
Além disso, o meu pai era contador de histórias. Ele teve 6 filhos, costumava se deitar no chão depois do almoço, sábado e domingo, e contava para a gente histórias do Boitata, espíritos defensores da Floresta, histórias de Iara, espíritos das águas, etc. Essas histórias ficaram marcadas em mim. Quando o congresso aconteceu, isso me atravessou com uma força que não consegui conter. Foi ali que aflorou algo em mim e comecei a escrever organicamente, até então não estudei para isso. Depois que o livro estava pronto é que fui me aperfeiçoando.
De 2018 pra cá, quis escrever, publicar pelo ímpeto. Preparei um livreto com três histórias. Assim, quando eu fosse contar, poderia também vender. Mandei revisar e assim a obra aconteceu. Ou seja, não sou aquela pesquisadora acadêmica. Pesquiso para mim. Só agora entendi que aquilo que eu estava fazendo para mim, também serviria para outras pessoas.
Quando tentei apresentar minha ideia para as editoras tradicionais, foi bem difícil. Não sabiam onde me encaixar. Então, durante o congresso, nasceu o Aboré – o livro pai de todas as coisas. Um dos responsáveis me disse: “Faz você, eu te apoio.” Achei que era a hora. Um congresso mundial, transmitido na internet, com todo mês uma palestra, eu eu pensei: é o momento de começar a falar sobre isso para o mundo.
As falas durante o Congresso não seriam registradas. Resolvi fazer por conta própria um livreto, como um presente. Algo que quem participou pudesse guardar como referência. Entendi que o que era dito no congresso precisava ficar registrado em algum lugar.
Você acredita que esse desconhecimento sobre os povos indígenas e a dificuldade de fomentar a literatura indígena diz muito sobre uma visão colonizada que o Brasil ainda tem?
Com certeza. Não quero carregar sozinha toda a responsabilidade, mas penso que estamos em um momento que as pessoas estão vendo uma furada de bolha, inclusive na literatura, então é uma retomada de território, de fala e de poder que ainda não está organizado, pois ninguém sabe quem foi o primeiro escritor indígena. Quem define isso? Não há uma Academia Brasileira Indígena.
É um caminho solidário e que dá medo, claro, de entrar por um terreno que eu sozinha não dê conta. No modelo colonizado, quem escolhe é um editor. Uma pessoa só. Aqui eu sou essa pessoa. Tentei montar uma banca, mas só encontrei gente branca: antropólogos, historiadores, e eu não quero necessariamente só isso.
Não tenho ainda escritores indígenas para formar essa banca comigo. Mas quem chancela isso? Quem diz que a autodeclaração é válida? Estamos num momento de transição. Me sinto insegura por muitas vezes, tentando saber o que é coerente com o que mundo, com aquilo que os brancos aceitam, pois o problema não são os indígenas. O problema é com os brancos.
Considerando que, estatisticamente, a população brasileira não tem o hábito de leitura, você percebe que esse cenário se agrava quando falamos da leitura de obras de povos tradicionais? E como essa realidade se entrelaça na região onde você atua, o sul do Brasil?
Aqui no sul, ao mesmo tempo que tem mais acesso à cultura, em razão de maior poder aquisitivo, há mais facilidade na compra de livros, também cresce o academicismo e a retomada indígena dentro das universidades. Isso cria uma necessidade de publicações que citem os povos indígenas e não apenas que citem as pessoas brancas.
A verdade é que não há grande oferta de autores indígenas nas universidades que sejam, de fato, reconhecidos como autores pelas universidades. No entanto, cataloguei mais de 200 escritores e 390 publicações feitas por pessoas pertencentes a organizações internacionais, estatais ou ONGs, mas que não têm indígenas como protagonistas da produção.
Muitos livros tem como autor somente um branco, falando sobre vivências indígenas e lucrando com isso.
Andando pelos territórios, como você tem percebido o impacto do trabalho da Saberes da Mata?
Nas aldeias os professores comentam que querem produzir um livro, mas ninguém vai às aldeias para conversar. A ideia de publicar sempre passa pela ideia de ir para São Paulo, mas não é assim. Muitos livros não dialogam com a cosmovisão dos povos indígenas e apresentam só a opção de um livro branco, sem considerar as diversas características culturais.
Reforço que estamos em um momento de retomada, pois até então todo mundo dizia que povos indígenas tinham só oralidade, mas não, tudo é linguagem: signos, grafismos, pintura corporal. O mundo branco entende que literatura são apenas letras.
Precisamos regenerar a história e trazer uma nova forma de entender os padrões linguísticos, porque ignorar os conhecimentos dos povos indígenas também é uma forma de depreciação da nossa cultura. Pensam que a arte é apenas europeia, que língua apenas é inglês, desconsiderando, por exemplo, as 305 etnias que falam 179 idiomas, mas não são valorizadas como uma policonstrução trans-humana, pois o idioma eleito como mais importante é a língua do colonizador.
O que pesa mais: a falta de financiamento para publicar ou a visão estereotipada acerca dos povos tradicionais? E qual o papel do leitor não indígena nessa luta?
Recentemente fiz essa mesma pergunta. Subi em um palco e comecei a falar um pouco sobre o que é o movimento indígena. No final da fala, fiquei pensando: “O que será que eles vão fazer com isso?”. Então devolvi a pergunta para quem estava ali: “Quero saber qual o papel de vocês nesse processo. Como vocês observam tudo isso que estou dizendo? Os povos indígenas já conhecem os temas que abordo. Mas e a população de modo geral? Isso fica no ar: como é que a gente vai construir uma conversa sobre isso?”
Uma pessoa me respondeu que estamos diante de um impasse. Um encontro entre algo muito novo — a literatura indígena — e algo muito antigo — o academicismo. Então digo que o papel é criar um caminho para seguir daqui em diante, a partir de alguns questionamentos: A cultura indígena existe só pela oralidade ou existem outras formas de comunicação que ainda não foram reconhecidas? Quem modifica isso? Somos nós, os povos indígenas, ou são os pesquisadores e acadêmicos não indígenas? Quando a gente finalmente se encontrar nesse ponto de entendimento mútuo, como vamos chamar isso? Que pedagogia é essa? Que argumento novo será esse?
Digo que, na minha visão, estamos vivendo uma crise de paradigma de modelo educacional. Tem pedagogia do encontro, da presença, da escuta, mas e essa, de agora, não há nome. E para que esse encontro aconteça de verdade, precisamos nos reconhecer como sujeitos, vocês – não indígenas, reconhecendo os indígenas como comunicadores, e nós, voltando a confiar em vocês depois de tudo o que nos foi feito historicamente.
O que você espera para o futuro da literatura, da população indígena no Brasil e como se blinda, considerando os ataques em massa à diversidade, aos direitos indígenas, aos direitos humanos e à democracia?
Pensando numa literatura onde possam falar por si mesmas, com autonomia. Fora das aldeias, fico pensando como eu, uma única mulher, posso criar redes, plataformas de comunicação.
Quando o mundo, o conhecimento, a comunicação e os saberes seguem essa lógica do lucro, é porque a engrenagem ainda é a do mercantilismo.
Esse é o desafio: não cair no mercantilismo, não produzir apenas por dinheiro. Minha ideia é manter a reciprocidade com as aldeias. Quando publico um livro, por exemplo, levo a obra para dentro das comunidades e tentamos criar algo juntos, para que também participem, falem, contem suas histórias e escrevam essas histórias.