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Oyá (Iansã) e Xangô: Orixás da transformação e força

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Nesta sessão, trago reflexões a partir do olhar ancestral que temos cultivado por aqui. Seguimos sendo surpreendidos por mudanças de rota, por caminhos que se desfazem e se refazem diante de nós. Tenho compartilhado minha visão sobre as forças que nos atravessam e nos convocam a novos desafios.

Como as águas, precisamos aprender a fluir, entregando-nos ao movimento, para então compreender o poder do fogo, que queima, transforma e nos empurra para grandes mudanças.

Hoje, convido à reflexão sobre o poder das divindades Oyá (Iansã) e Xangô.

Quem nunca se angustiou diante de um relâmpago cortando o céu, anunciando uma tempestade por meio de estrondosos trovões?

Diante de tamanha força, só nos resta reconhecer a grandiosidade do que nos transcende. Essas manifestações anunciam que algo será transformado, a vida como a conhecemos pode ser desfeita num sopro, e não temos controle sobre isso. Resta-nos apenas a consciência de nossa pequenez diante da força sagrada.

Quando criança, eu temia as tempestades. Queria me esconder, e o fazia: fechava os olhos e me cobria com o que acreditava ser proteção. Na inocência, pensava estar segura, quando, na verdade, apenas me refugiava no imaginário de uma segurança que não existia.

Na vida adulta, já sabemos que não há como se esconder das tempestades que a existência nos impõe. Somos chamados a encarar os ventos, os raios, a destruição e a transformação.

Não somos mais crianças, e fingir que tudo está sob controle é ilusão. Precisamos entender que não dominamos tudo. A vida exige entrega, fé, coragem e confiança na força dessas energias ancestrais que nos guiam.

As grandes mudanças, muitas vezes, vêm com dor. Quando a justiça não é ouvida, quando o entendimento nos escapa, quando tudo parece ruir, talvez não caiba buscar respostas imediatas, mas sim cultivar coragem para recomeçar, resiliência para reconstruir e sabedoria para seguir.

As tempestades, físicas ou simbólicas, sempre trazem um chamado: olhar para os erros, aprender com eles e seguir com mais equilíbrio e consciência.

Os ensinamentos que vêm da destruição e da reconstrução são regidos por forças que assustam, mas que também amam profundamente. O amor e a justiça de Oyá e Xangô, que regem o mês de julho, nos ensinam que há proteção, mesmo no caos. Que há amor, mesmo na dor. Que há justiça, mesmo quando tudo parece injusto.

Eparrey, Oyá! Kaô Kabecilê, Xangô!

Que nunca nos esqueçamos de que temos com quem contar, mesmo nos momentos mais difíceis. Sigo confiando no amor e na sabedoria de adulta, com o coração de uma criança.

Essa mesma força que parece destruir também é a que media as ações humanas e fortalece nossos passos. A analogia da tempestade nos ajuda a compreender os sinais da Terra, ventos, trovões e enchentes revelam não apenas as mudanças em nossas vidas, mas também as consequências de como tratamos o planeta. E sabemos: são sempre os mais vulneráveis que sofrem primeiro.

Na infância, escondíamo-nos sob os lençóis; na vida adulta, aprendemos ser preciso coragem. Coragem para olhar para dentro, descobrir a própria força e mudar de rota quando o caminho já não nos serve mais. Muitas vezes, somos perseguidos não pelos nossos erros, mas por nossa verdade, por aquilo que não está à venda, que resiste.

Xangô e Oyá cuidam dos seus. Protegem, mas também ensinam. Nos chamam à escuta, ao planejamento, à consciência espiritual e material. Nos convidam a desenvolver autoconfiança e a lutar por justiça, a nossa e a do mundo. Mas tudo isso só é possível quando nos abrimos para sentir, compreender e agir em alinhamento com essas forças.

Por fim, deixo mais uma imagem: a da tempestade que nos dilacera, mas também nos cura. Quando sentimos que tudo está desmoronando, é preciso lembrar que os trovões anunciam movimento. Que os relâmpagos revelam o que estava oculto. E que, após a tempestade, há sempre a possibilidade da bonança. Que venha o novo. Que venha a paz. Que venha a transformação.

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Duplicação da M’Boi Mirim: uma promessa política que atravessou uma década

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Recentemente, a duplicação da M’Boi Mirim tem sido alvo de novos debates, angústias e promessas. Na última eleição, em 2024, tanto o atual prefeito Ricardo Nunes quanto os demais candidatos falaram sobre essa pauta, especialmente Guilherme Boulos, que ocupava um lugar acirrado nas pesquisas de intenção de voto em relação a Ricardo.

Contudo, esse é um pedido recente da população?

Na verdade, a promessa de realização da duplicação já atravessou diferentes governos, sendo anterior às lutas da população com o Movimento Passe Livre, por exemplo. Quando tivemos as mobilizações pelo Hospital do M’Boi Mirim (que inicialmente seria construído no Guarapiranga, mas, com a pressão popular, foi possível alterar essa decisão), a duplicação já estava em pauta.

Em 2012, no governo de Kassab, tivemos mobilizações ativas da população pela duplicação da M’Boi Mirim e, apesar da pressão ativa e popular, não conseguimos enxergar uma luz no fim desse túnel de promessas.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul. Essa foto é do dia que alguns integrantes do movimento foram dormir na Associação que meu pai preside. Nesse dia estávamos organizando um ato. Foto de arquivo pessoal.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul. Irei deixar uma foto do dia em que alguns integrantes do movimento vieram dormir na associação que meu pai preside. Essa foto é de um dia em que estávamos organizando um ato. Foto de arquivo pessoal.

Em 2013, Haddad assumiu a Prefeitura do Estado de São Paulo. Tínhamos nele uma enorme esperança em relação a diversos encaminhamentos para a Zona Sul de São Paulo e, apesar dos registros no Plano de Metas de 2013 a 2016, nas reuniões não obtivemos respostas concretas em relação a essa reivindicação.

A “duplicação” realizada por ele foi somente a referente à ponte do Jardim Capela, uma obra pequena e que deveria ter tido continuidade por toda a extensão da avenida.

Estamos, então, realizando o aniversário de debutante dessa obra que nunca começa e que parece ser uma forma infinita de conseguir votos. Hoje, com meu pouco conhecimento na área de mobilidade urbana, sei que realizar uma duplicação não sanaria o problema que temos, pelo menos não por completo. O debate de mobilidade precisa ser realizado com profundidade, mas esse não é o foco do texto.

Todavia, o debate desse texto não é esse, e sim o uso constante de uma reivindicação popular para conseguir votos. Na última eleição, Ricardo Nunes citou a duplicação diversas vezes, porém, precisa ser uma informação de cunho público que ele não a incluiu no Plano de Metas de seu governo. Era uma promessa eleitoreira!

A promessa fez aniversário 

Assim, a duplicação do M’Boi Mirim já completou diversos aniversários. Poderíamos até realizar uma festa de debutante para ela. Uma reivindicação popular que tem um papel importante na mobilidade do território, que é utilizada para alcançar votação na região, porém jamais realizada.

Todas as semanas, em algum dos dias, muitos de nós temos que descer dos ônibus e caminhar para chegarmos em casa. Essa é uma realidade vigente desde a minha infância. Eu me lembro de caminhar do Jardim Ângela até em casa em diferentes fases da minha vida. Recordo das diversas vezes que cheguei atrasada em compromissos importantes ou no trabalho por passar 40 minutos parada somente no trajeto do Jardim Vera Cruz até a ponte.

Em uma cidade como São Paulo, beira ao absurdo pensar na população sendo exposta a esse tipo de realidade. Apesar das constantes propagandas que o governo faz, a São Paulo verdadeira para, não é rápida e não tem um planejamento efetivo para a população.

A juventude da região, que precisa trabalhar e estudar na região central da cidade, vive com a esperança de sair da região, não pelo ódio ao território, e sim pela exposição a condições precárias de mobilidade e transporte público. Não estamos falando de uma região pequena da cidade. O distrito do Jardim Ângela tem 311.432 habitantes (2022). Já a Zona Sul possui a maior concentração populacional da cidade: são 2,7 milhões de habitantes.

Se a obra já não será mais realizada, onde estão os recursos que foram destinados a ela? Além disso, quais outras alternativas a prefeitura tem pensado para a mobilidade na região?

Ricardo Nunes sempre se orgulha das suas economias, mas economizar sem investir na cidade e deixá-la sucumbir não é economia, é uma política que não pensa no trabalhador.

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Memórias periféricas na história da cidade

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Dia 13 de maio de 2017, data em que relembrávamos exatos 127 anos da falsa abolição da escravidão. Escrita na lei, mas até hoje vivida de forma relativa pelas populações negras brasileiras. Nesse dia, fui até o bairro Jardim Vila Carrão, o nosso Carrãozinho, distrito do São Rafael, Subprefeitura de São Mateus.


Havia combinado uma conversa com Maria Aparecida Trajano, Cida Preta, também conhecida como Tia Cida. Sento-me no sofá, ligo o celular para iniciar a gravação e ouço atentamente as histórias de uma mulher preta que chegou a São Mateus no fim dos anos de 1940, ainda com 7 anos.


Em um loteamento comercializado pela família italiana dos Beis (que dá nome à principal avenida do território), viu sua primeira casa, construída em mutirão por sua família e vizinhos, ser derrubada pelas chuvas e ventos.


Seu longo caminho de ônibus nas estradas de barro de São Mateus até os bondes na Celso Garcia e centro da cidade para chegar ao Jardins, para trabalhar como doméstica — trabalho que depois vira sua “casa”, por conta das longas distâncias, mas também da cultura racista dos patrões — é mais uma herança da falsa abolição que Tia Cida nos traz.


A fala é pausada, o olhar para o alto, expressão facial de quem saboreia o ato de rememorar. Entre o cigarro que acendia na boca do fogão e o café que preparava, contava da infância de seus filhos, as dificuldades nos estudos que só foram superadas pela filha. Os dois meninos sofriam racismo na escola, sua educação formal seria abreviada pela falsa abolição.


Desafios de uma mãe solo que teve seus filhos com um pintor de alegorias e espaços da escola Camisa Verde e Branco. Que foi embora e voltou ao final da vida para receber os últimos cuidados.


As andanças entre São Mateus, centro da cidade e Barra Funda, para comprar discos e instrumentos musicais, frequentar sambas e se formar enquanto cidadãos que rabiscavam a cidade ao ritmo do samba foram fundamentais para enfrentar as barreiras da falsa abolição. Marcelo Tocão se tornou exímio tocador de banjo.

Os sambas animaram o quintal de Tia Cida, a partir dos anos de 1970, sendo espaço de formação de uma turma que se espalhou por São Mateus como Berço do Samba de São Mateus, Bar do Timaia, Instituto do Samba de São Mateus, Samba da Maria Cursi, Escola de Samba Amizade Zona Leste. Quintal e sambas de resistência contra a violência do lado de fora, em plena Ditadura Civil-Militar, e na construção do viver na década de 1990 marcada pelo desemprego.

A sina do trabalho do cuidado, que a sociedade da falsa abolição destina às mulheres negras, fez com que Tia Cida estudasse serviço social, fosse designada pelo padre Franco, pároco da Igreja São Mateus Apóstolo, para mapear famílias que precisavam de cesta básica, crianças que precisavam de cuidado e espaços educacionais para que suas mães pudessem trabalhar.


Veio, então, a luta pelas creches, pelos postos de saúde, hospitais, com a participação no Movimento de Saúde da zona leste, do qual o Hospital São Mateus e postos de saúde conquistados com a volta da democracia ainda são testemunhas em São Mateus. A sina virou luta, formulação política, saberes de organização do povo e de direção de creches.


A essa altura, o impacto de ver a história da cidade que eu vivo, da periferia leste, de São Mateus sendo escrita oralmente, com todo o seu conteúdo de abolição real — em construção — já havia me colocado outra questão: que história é essa, que vem das leis, dos documentos de governo, que não respira, não se empolga, não luta e não vive a construção da nossa cidade?

Essas memórias periféricas, de nossas casas autoconstruídas, do básico arrancado do Estado com muita luta e articulação política e da criação artística, conseguimos captar aqui e agora, como movimento em constante transformação. É aquela que documentamos, narramos e vivemos mobilizando nossos sentidos: o escutar, o ver, tatear-caminhar.


Que o diga o grupo Opni, referência do graffiti na cidade nos últimos 20 anos, que, em 2021, colocou Tocão para tocar banjo para Tia Cida ao lado do grupo Berço do Samba de São Mateus, em uma linha do tempo de nosso samba, com todos os grupos e comunidades de samba que Tia Cida inspirou, incentivou e articulou e com quem gravou e divulgou seu álbum Tia Cida dos Terreiros em 2013.

Estão todos ali, nas paredes da galeria de graffiti a céu aberto da Vila Flávia, história monumentalizada por um dos elementos da cultura hip hop.
As memórias periféricas na história da cidade transbordam nas paredes, nas falas, no chão e no nosso olhar para o alto e ao redor. A história não é só escrita nos livros e não fala só de heróis ou heroínas.

Tia Cida é mulher, negritude, coletivo e movimento. Uma e, ao mesmo tempo, várias e vários, como são os movimentos, criadores, grupos, vielas, ladeiras, ocupações, conquistas, resistências e reexistências nas nossas periferias.

É dessas histórias, memórias e patrimônios (nossos monumentos e heranças) que tratarei nesta coluna que inicio hoje no Desenrola e Não Me Enrola.

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De quem é a escola? 10 anos da luta secundarista

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Em 2015, estudantes ocuparam escolas e ruas para dizer não a “reorganização” proposta por Geraldo Alckmin em São Paulo. A reorganização resultaria no fechamento de 94 escolas, o que mudaria a vida escolar de mais de 300 mil estudantes e cerca de 74 mil professores.

À nível nacional tínhamos duas políticas de cortes que afetariam a educação naquele momento. A primeira era a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que visava limitar gastos em diferentes áreas, incluindo a educação. Já a segunda era a PEC do Teto (PEC 55) que alteraria a Constituição Federal (1988) e congelaria por 20 anos recursos públicos.

A partir dessas movimentações aconteceram duas mobilizações estudantis consecutivas, sendo a primeira em 2015 e a segunda em 2016. Dessa forma, o movimento político dos estudantes protagonizou uma luta importante, ganhando até músicas como “O trono do estudar” produzida em união de diversos cantores. O movimento de 2016, intitulado como “Primavera Secundarista”, se tornou um marco e teve “vitória” naquele ano. 

Em 2013, as jornadas de junho já haviam sido um marco político e social, a organização “livre” e com uma descentralização em relação a partidos políticos já chamava atenção. Além disso, a luta do Movimento Passe Livre tomou não somente as ruas do centro da cidade de São Paulo, como também as periferias com o pedido de que os trabalhadores fossem para rua. 

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul, irei deixar uma foto do dia que alguns integrantes do movimento vieram dormir na Associação que meu pai preside.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul, irei deixar uma foto do dia que alguns integrantes do movimento vieram dormir na Associação que meu pai preside. Fotos, arquivo pessoal

Em 2015 os estudantes se posicionaram para afirmar que a escola era deles, um lugar diferente da narrativa receptiva, o clamor era pelo coletivo. A Prof. Dra. Flavia Ginzel em sua tese de doutorado intitulada A insurgência da crítica e a crítica da insurgência:

resistência, autonomia e desafios pós-ocupações secundaristas (2024), a pesquisa realizada com jovens “ocupas” após as ocupações em Sorocaba traz importantes contribuições a partir das experiências narradas por esses jovens, não só reafirma questões trazidas por outros estudos como o olhar para a escola como um lugar de reconhecimento, pertencimento, de trocas, saberes e diversidades, mas também da construção de olhar desses jovens para a política e a decisão de se organizarem contra essas políticas incisivas do Estado.

Partindo desses olhares e da minha experiência pessoal nas lutas é que decidi construir este texto para perguntar: de quem é a escola? 

 Ao observamos os movimentos após a Primavera Secundarista, a  nível nacional e estadual as políticas que nos assustaram foram reformuladas, ampliadas e aprovadas. Pensando nisso, decidi retomar esse recorte temporal, pois estamos vivendo em um momento desafiador para a educação, especialmente à nível estadual.

A partir de 2017 as políticas voltadas a educação focaram em fomentar a ideia de que o novo modelo seria mais compatível com o “mercado” ou com formar o estudante dentro da área de interesse, o NEM (Novo Ensino Médio), não somente ampliou as cargas horárias, como flexibilizou o currículo e propôs os itinerários formativos.

O projeto é interessante, a discussão sobre ele precisa de um aprofundamento que uma coluna não dará conta de realizar, mas é fato que entre o projeto e a prática existe um vão, um vão que também é composto pelo o que é oferecido de recursos a escola e comunidade escolar como um todo.

Para além dos debates sobre recursos, essas políticas excluem a realidade do estudante periférico que precisa trabalhar, por exemplo. Também não pensam melhores condições de trabalho docente.

Uma complementa a outra, mas não parecem contínuas, à medida que não pensamos que um estudante que trabalha não vai optar por estar na escola somente por receber 200$ do Pé de Meia, e se temos que implementar esse tipo de política é porque algo não está compatível com o ideal colocado primordialmente. 

A escola vira um objeto, perde a sua essencialidade, aprender se torna algo pautado não no conhecimento, mas no marketing desse conhecimento. A escola é de quem? Se em 2015, os estudantes gritavam nas ruas que a escola precisava se manter, melhorar e pediam por melhores ambientes para toda a comunidade escolar, o que nos restou?

Qual estudante permanece nessa escola? Para é essa escola?

Não digo aqui que tenhamos que realizar a crítica de maneira extrema, mas no mínimo precisaríamos revisar, à nível nacional, quais caminhos estamos direcionando para a educação em nível médio no Brasil. Já à nível estadual, não é preciso uma lupa para enxergar que todas as políticas caminham para a iniciativa privada, e não possuem tempo e nem espaço para debate. 

À qual interesse serve uma escola cívico-militar? De quem e para quem é essa escola? Não digo que não tenham estudantes que gostem da ideia, mas qual projeto de escola é esse? O que muda e melhora no currículo? S e o foco é o aluno e as trajetórias desses estudantes, quais conhecimentos e recursos essa escola oferece?

Como disse, esse texto não dá conta de responder, mas relembrei a lutar para que possamos refletir o que ficou para nós após esses 10 anos? O que podemos observar nas políticas de educação agora? De quem é essa escola?

Se em 2015 e 2016, lotamos as ruas para afirmar que as escolas eram nossas e que não aceitaríamos políticas de destruição, quais realidades temos agora? O projeto de escola que está vigente pertence a quais interesses? E quais alunos são contemplados por esse projeto? 

Segundo dados publicados em uma nota técnica em 2023 pela Rede Escola Pública e Universidade (REPU):

Os dados analisados permitem afirmar que a expansão do tempo integral no ensino médio não ampliou as matrículas nesta etapa de ensino nas redes estaduais em todo o país. Ao contrário, o que vimos, desde 2008, é uma perda de quase 830 mil matrículas, sendo a redução das matrículas noturnas uma das principais variáveis que impactaram esta redução. Vale ressaltar que tal perda de matrículas tem sido contínua desde 2008, indicando que a aprovação das legislações, programas e políticas com foco no ensino médio e na expansão do tempo integral no referido período não produziram os efeitos de expansão da oferta e, muito menos, de universalização desta etapa da educação básica”.

A partir da perspectiva que segui nesse texto, essa é uma escola para marketing, é um projeto de escola que não pensa no conhecimento e nem nas trajetórias reais dos alunos e tampouco se interessa pelos territórios onde serão desenvolvidos os projetos. Há uma padronização da educação e uma política excludente em relação à jovens periféricos e suas trajetórias. 

Após 10 anos, qual escola temos?

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Liderança indígena pauta trajetórias coletivas na busca por políticas públicas

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Ao nos receber em sua casa, logo de início, Chirley Pankará faz questão de apresentar o ambiente em que estamos chegando, a ‘Sala da Memória’, espaço que abriga peças e obras que dialogam sobre território e memória. “[Aqui] tem peças de barro do meu núcleo familiar, peças de vários povos indígenas, e aí a gente vai se conectando com essas ancestralidades também. Isso me mantém no processo de territorialidade, que é a conexão que eu faço na cidade em situação de contexto urbano [com] o território indígena”, explica.

Chirley Pankará, 50, é pedagoga, doutoranda em antropologia, e conta que sua família é do território reconhecido como Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, em Pernambuco. “Nós fomos trabalhar em fazendas [na] zona rural [do município] de Floresta, que não é a mesma [região] das aldeias Pankará”. Ela menciona que essa migração foi a alternativa encontrada pela família para conseguir trabalho e subsistência.

Em 1998, Chirley migrou para São Paulo pelo mesmo motivo, “vim para trabalhar como empregada doméstica”, conta. Atualmente, ela mora no bairro Jardim São Francisco, localizado no distrito de São Rafael, na zona leste de São Paulo. 

“Muitos indígenas que vivem em situação de contexto urbano, vivem nas periferias. Quando eu falo periferia também estou falando de povos indígenas. É que há um pensamento distorcido de achar que o indígena está só dentro da aldeia.”

Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.

Ela identifica sua ligação com a militância e a liderança desde a infância, quando sua avó Maria Divina, conhecida como Mãe Bó, que era parteira e benzedeira, pedia ajuda na busca de ervas, e Chirley prontamente ia procurar na mata para auxiliar. 

Chirley traz que sua atuação nos movimentos sociais antecede sua participação na política partidária. “Eu era ligada à política pública da luta dos movimentos sociais”, comenta. Ela conta que sua trajetória política é permeada pela escuta, oralidade e pela construção de redes. 

A partir dessa perspectiva de construção conjunta, Chirley fala sobre um tipo de liderança, que se estabelece por um querer coletivo. Segundo ela, é por esse direcionamento que está como pré-candidata a vereadora de São Paulo. “Algumas pessoas, que não estão dentro do contexto indígena de coletividade, de escutas, [não entendem] quando eu digo que foram os povos indígenas que escolheram”, compartilha.

Reunião com lideranças políticas e indígenas, na Terra Indígena Jaraguá, em 2022 (foto: Rafael Vilela)

“Em São Paulo capital, por exemplo, nós temos 19.777 indígenas, apontou o IBGE. Com 19.777 [votos] não elege uma vereadora. E estamos contando que nesses 19.777 temos as crianças”, expõe Chirley ao explicar que por causa dessa quantidade de votos não seria uma boa estratégia lançar duas candidaturas ao mesmo tempo, e que é desse modo que os indígenas geralmente se organizam politicamente, sem competir entre si.

Trajetória

Em 2007, Chirley começou a cursar pedagogia como bolsista por renda. No ano seguinte, após ingressar na faculdade, passou a se conectar com outras atuações. “Eu me encontrei com os parentes indígenas [e] comecei a participar de movimentos indígenas”, diz. E de lá para cá não parou mais. “Em 2009, fui para a minha primeira viagem fora de São Paulo no sentido da militância, representando a questão indígena”, conta. 

Desde então Chirley já integrou o Conselho Nacional de Mulheres Indígenas representando a educação, participou da 2° Conferência Nacional da Igualdade Racial, foi para a Rio+20, para a Conferência Global de Mulheres Indígenas em 2013, realizada no Peru, participa do ‘Acampamento Terra Livre’, entre outras movimentações. 

Chirley no Congresso Nacional reivindicando a demarcação de terras indígenas, durante o Acampamento Terra Livre (foto: arquivo pessoal).

Através dessas articulações, Chirley conheceu Edson Kayapó, que é escritor, ativista indígena e historiador. Ela a indicou para o Observatório da Educação Escolar Indígena, na PUC, onde iniciou como estudante e após o primeiro ano passou a atuar como professora, de 2009 a 2012, período que também começou o mestrado.

Em 2010, também a convite de Edson Kayapó, foi Coordenadora Geral das escolas de primeira infância do Povo Guarani, em três Centros de Educação e Cultura Indígena (CECIs), na Tenonde Porã e Krukutu, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, e no CECI Jaraguá, no Pico do Jaraguá.

Chirley como doutoranda em Antropologia Social da USP, no Seminário internacional de antropologia. (foto: arquivo pessoal).

“Eu fui aprovada [como] a primeira mulher indígena a entrar no doutorado em antropologia social na USP, como cotas”, aponta Chirley, que reivindica ter professores e autores indígenas como referências no curso. 

Identitarismo

Chirley conta que foi apenas em 2018, que filiou-se a um partido político. Através do Emerson Guarani Nhandeva, que é professor e pesquisador, ela foi chamada para conhecer e participar da campanha da Bancada Ativista. A Pankará comenta que na ocasião ainda não conhecia como funcionavam os mandatos coletivos. 

Na última reunião para definir as co-candidatas do mandato, a pedagoga foi para entender mais sobre, e ao final do encontro passou a compor a Bancada Ativista, que ganhou as eleições de 2018. “Eu fui para a reunião e senti que dava pra dialogar, porque eu vi pessoas que se aproximavam da minha pessoa. Eu pensava que eu ia ver só aquele povo metido, nas gravatas, no salto”, comenta.

Sobre as dificuldades de atuar na política enquanto mulher indígena, nordestina e periférica, Chirley diz que há várias formas de preconceito. “Você tem que ser 10.000 vezes mais forte, pra poder se manter de pé, fazer políticas públicas e combater isso”, coloca. 

“Eu [já] vi muitas pessoas falarem assim: ‘ela traz uma pauta identitária’. Como se quisesse me xingar, sabe?”

Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.

A pedagoga afirma que as pautas que contemplam os povos indígenas também podem ser necessárias para a cidade. “Quando estou falando de privatização da água, da Sabesp, estou falando de um braço que se conecta com meio ambiente. A especulação imobiliária, as ecovias verdes, tantas coisas que vão servir para a cidade e para a aldeia”, exemplifica. 

Chirley também aponta que a visão estereotipada e de tutelagem sobre os indígenas ainda existe, tanto na sociedade como nos espaços políticos, e que esse imaginário precisa ser descolonizado.

Chirley Pankará, pré-candidata a vereadora de São Paulo, fala sobre militância e representatividade indígena na política paulistana.
Chirley como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas (foto: arquivo pessoal).

Em 2023, a Pankará atuou como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas, e se desvinculou para concorrer às eleições de 2024. “Estou a serviço do movimento indígena, uma liderança é a serviço da coletividade. A gente tem que honrar a memória dos nossos ancestrais”, finaliza.

Trajetória política: Agatha Benks fala sobre a busca por representação na política institucional

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Agatha Benks, 38, é uma mulher negra, travesti, de matriz africana e periférica, que está como pré-candidata a vereadora do município de Cachoeiro de Itapemirim, do Espírito Santo, cidade onde mora, no bairro Bela Vista. Agatha conta que construiu uma trajetória de vivência política que antecede essa primeira candidatura que disputa nas eleições de 2024.

“Eu sou ativista de direitos humanos e trabalho com educação social, com coletivos e ONGs de empoderamento e fortalecimento da população preta e periférica”, diz. Agatha é vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo, assessora parlamentar da deputada estadual Camila Valadão, pelo PSOL, partido no qual é filiada desde 2019, e também atua na área da cultura.

Trajetória política: Agatha Benks fala sobre a busca por representação na política institucional
Agatha Benks em um evento do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). (foto: arquivo pessoal).

“Enquanto mulher trans e periférica, eu sou uma sobrevivente por não aceitar nada que a sociedade historicamente colocou para o meu corpo. Eu não aceitei a prostituição como a minha única opção de vida. Eu relutei contra isso por vários anos, desde quando eu me entendi travesti”, coloca.

Aos 16 anos, Agatha abandonou os estudos por causa dos preconceitos e hostilidades que sofreu quando cursava o ensino médio em uma escola pública. Foi nesse período que ela vivenciou a prostituição.

Agatha na composição do conselho estadual lgbtqipn+ do Espírito Santo (foto: arquivo pessoal)

“[Eu tinha] medo desse submundo de marginalização das mulheres trans, deste lugar que é extremamente inseguro, incerto e violento. Então eu procurei outros caminhos”. A partir daí, Agatha começou a trabalhar como cabeleireira. “Quando se é uma travesti [ou] trans, você é manicure, cabeleireira e maquiadora ou você vai fazer programa, porque você não acha outro emprego”, afirma.

Após se estabelecer como cabeleireira e voltar a estudar, ela optou por trabalhar em áreas que se relacionam com a militância sobre negritude e a comunidade LGBTQIAPN+. “Por mais que eu não esteja [mais] naquele ambiente [de prostituição], eu também não quero que as minhas amigas estejam lá”, menciona a assessora, que concluiu o ensino médio atraves do EJA (Educação de Jovens e Adultos), e por meio do ENEM, cursou Gestão Pública com bolsa de estudos pelo PROUNI.

“É só na educação e no estudo que a gente consegue romper [os preconceitos], se você quer combater o racismo, o preconceito, estude, é a única forma de você enfrentar o que está imposto frente a todos esses recortes de violações de direitos humanos.”

Agatha Benks, vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo e pré-candidata a vereadora de Cachoeiro de Itapemirim.

Garantir o direito ao uso do nome social foi uma das dificuldades da graduação na universidade em que conta ter sido a primeira travesti a estudar. Nesse período, a assessora relata que outras mulheres trans e travestis da região passaram a acreditar que estudar e se formar era um caminho possível. “Foi muito simbólico, outras meninas se viram representadas”, diz.

Embora já tivesse conexão com as pautas que aborda, a universidade também fortaleceu sua militância, e de lá surgiram os direcionamentos da área que passou a trabalhar. Foi nesse espaço que conheceu coletivos, grupos de diversidade, negritude e que desenvolveu um lado politizado com o respaldo na palavra.

Atuação política no território

“A periferia está sempre formando homens e mulheres, jovens, negros, lgbts, ou não lgbts, a periferia está sempre formando o povo preto, porque é o lugar de todas as [nossas] vivências”,  menciona Agatha.

Desde 2016 ela atua no instituto FEPNES (Instituto de Fortalecimento e Empoderamento da População Negra + Diversidade), no qual atualmente é coordenadora da pasta de diversidade. O instituto realiza ações que promovem os direitos humanos das pessoas lgbtqiapn+, mulheres e jovens negros. Entre essas ações está a oferta de cursos nas áreas de empreendedorismo em comunidades do Espírito Santo.  

Suas vivências enquanto travesti, negra e periférica interferiram na decisão de entrar na disputa da política institucional e buscar combater o racismo. “A partir do momento que a gente desce um morro e vai para o centro a gente entende o preconceito territorial. O preconceito de você ser periférico, porque as pessoas vão te olhar e julgar”, coloca.

Agatha no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado do Espírito Santo. (foto: arquivo pessoal).

“O menino [negro] de 17 [ou] 18 anos se desce para a rua de sandália, boné e cordão, automaticamente uma viatura vai parar ele. Quando ele entrar numa loja um segurança vai acompanhar ele”, exemplifica Agatha. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 83% dos mortos pela polícia em 2022, no Brasil, eram negros, pobres e residentes das periferias, sendo que 76% tinham entre 12 e 29 anos. 

São todos esses recortes e demarcadores que estão presentes na trajetória da assessora. “Minhas frentes de atuação [são] a negritude e a diversidade da população LGBTQIAPN+. Minhas bandeiras são homens, mulheres e jovens negros e negres. E dentro dessa militância da negritude tem os povos de terreiro e de matrizes africanas que também é um povo muito violentado”, coloca Agatha.

Desafios e motivações

Agatha diz que foi nas eleições de 2022, que começou a considerar a possibilidade de se candidatar, e a ideia veio a partir da sua atuação como assessora parlamentar. Foi através dessa experiência que começou a entender de fato como a política institucional é feita, e incentivada por pessoas parceiras, decidiu pela candidatura.

“Pessoas de terreiros, de matrizes [africana], lgbtqiapn+, pretas, periféricas, essas pessoas começaram a comentar em posts meus [nas redes sociais]: ‘você me representa’, ‘eu tenho orgulho’. Foi que eu entendi que posso realmente representá-los de fato, com garantias de lei”, coloca Agatha. Ela comenta que essa motivação foi fundamental, já que, segundo a pré-candidata, o Espírito Santo é um estado conservador. 

Em 2023, pelo 15º ano consecutivo, o Brasil seguiu sendo o país que mais assassina pessoas trans, conforme mostra o “Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras”, realizado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

Para Agatha, ser uma mulher, negra, travesti, de terreiro e periférica dentro da política partidária é um posto que reúne diferentes tipos de representatividades e que isso também torna o meio político um local cheio de desafios para pessoas como ela.

“Aqui na minha cidade não precisa literalmente ser eu. Eu estou aqui pela primeira vez [me pré-candidatando], mas que tenha uma pessoa igual a mim, porque a gente entende a importância desse corpo político”, comenta. Agatha ainda menciona que mulheres trans na política, como Erika Hilton, Deputada Federal, é algo que a motiva e inspira nessa empreitada por um cargo político e por dias melhores.

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias

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Enquanto os bancos tradicionais dificultam o acesso ao crédito para pequenos empreendedores e pessoas de baixa renda no Brasil, os bancos comunitários Palmas, localizado na periferia de Fortaleza, e Paulo Freire, localizado na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, estão reduzindo taxas, criando moedas digitais, facilitando acesso ao crédito e fortalecendo empreendedores locais.

Uma das pessoas impactadas por essas instituições financeiras comunitárias é Márcia Rodrigues, 52, moradora do bairro Jangurussu, em Fortaleza, que se tornou empreendedora do ramo de alimentos com o apoio do banco Palmas, instituição financeira comunitária, após conseguir acesso ao crédito necessário para iniciar e expandir o empreendimento “Bolo Bolo”.

Ela conhece o banco Palmas desde os anos 2000, quando trabalhava como coordenadora em uma creche comunitária, que também era um centro de nutrição. Nessa época, Márcia não recebia nem um salário-mínimo e para complementar a renda ela começou a aprender a cozinhar.

Com o apoio de cursos oferecidos gratuitamente pelo Banco Palmas, ela conseguiu estruturar um novo ramo de atuação profissional, passando a fazer tortas de frango, bolos e salgados para vender na porta de casa.

“O dinheiro para fazer isso era tão pouco. O que entrava a gente tinha que comprar [os ingredientes] novamente, e essas coisas não têm um retorno a curto prazo, porque você tem que investir. Aí eu pensei: ‘vou procurar o banco Palmas para ver se consigo fazer um empréstimo’.” relembra a empreendedora.

Ela conseguiu esse empréstimo para investir no empreendimento. “Eu cheguei a fazer [empréstimo de] até R$ 5.000. Então, [o negócio] deu uma guinada, porque eu pude fazer bastante coisa com esse valor. Eu fui comprando os equipamentos”, aponta a empreendedora.

Emanuel Kayro de Souza Costa, funcionário da Bolo Bolo. (foto: arquivo pessoal)

Márcia menciona que ela solicitava o crédito, empregava o dinheiro arrecadado, e o que ela conseguia de retorno era usado para pagar o empréstimo, o lucro servia para continuar os trabalhos. Com o tempo, ela abriu uma lanchonete e contratou três funcionários, gerando renda e trabalho na região.

Moeda própria e tarifas mais baixas

Segundo Joaquim Melo, criador do Banco Palmas, a instituição financeira comunitária é a primeira no Brasil. A iniciativa tem uma atuação inovadora por lançar o E-dinheiro, primeira moeda digital brasileira criada com o objetivo de promover inclusão econômica de pessoas de baixa renda, como a dona Márcia, criando uma plataforma digital para operar a moeda com juros mais baixos no acesso ao crédito e outros serviços bancários, em relação aos bancos tradicionais.

Ao criar essa estratégia, o banco foi desenvolvendo uma série de processos que vão na contramão da cultura de instituições financeiras tradicionais, que se baseiam em taxar praticamente todos os serviços utilizados pelos consumidores.

“As taxas de juros são menores, a análise do crédito é mais rápida, não é obrigado ter cadastro limpo, tem acompanhamento e tu vai ter estratégia de comercialização [no caso dos empreendedores]. No banco tradicional o crédito serve para ele [o banqueiro] ganhar dinheiro. No banco comunitário o crédito é uma estratégia de desenvolvimento do território, ou seja, a gente empresta dinheiro para o bairro crescer”

Joaquim Melo, fundador do Banco Palmas e criador da E-dinheiro.

O fundador do Banco Palmas explica que embora cada banco comunitário tenha autonomia para decidir uma taxa de juros, há um protocolo que estabelece que seja cobrado “uma taxa de no máximo até 1%, para poder ficar abaixo do que é praticado no mercado”. Ele explica que essa taxa de juros está estabelecida com base na Lei da Usura 22.626, de 7 de abril de 1933.

Enquanto os bancos comunitários adotam a taxa de juros de 1% ao mês para fornecimento de crédito pessoal, os principais bancos comerciais brasileiros têm uma taxa média de 7,94% ao mês, segundo estudo mensal do Procon- SP, divulgado no mês de fevereiro de 2024.

Neste contexto, Márcia, a empreendedora de Fortaleza, ressalta: “não tenho mais conta em banco comercial”. Ela justifica essa mudança de cultura com o exemplo de sua mãe. “Todo mês na conta da minha mãe vem R$ 60 descontado só da taxa de manutenção, mesmo recebendo um benefício pelo INSS. Isso é um absurdo para um trabalhador.”

Ela conta que na plataforma E-dinheiro esse tipo de taxa não existe e menciona as diferenças nas cobranças de taxas entre os diferentes tipos de bancos.

“Eles não me cobram nenhum tostão. A única coisa que eles cobram é R$ 1 pelo pagamento de boleto de até R$1.000, e acima [desse valor] é R$ 2.”,

Márcia Rodrigues é empreendedora e cliente do banco comunitário Palmas.

Atualmente, a dona do “Bolo Bolo” não precisa mais pegar crédito para investir em seu negócio, mas continua utilizando o banco comunitário para fazer as demais operações bancárias. “Eu recebo o E-dinheiro no meu negócio e eu também pago as minhas contas com eles no banco Palmas, compro em outros comércios do bairro também, porque é uma mão lavando a outra”, comenta a empreendedora.

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias
Márcia em seu empreendimento “Bolo bolo” localizado no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. (foto: arquivo pessoal)

No Brasil, a E-dinheiro é a primeira e por enquanto a única moeda social digital. Dos 152 bancos comunitários que existem no país, 98 são cadastrados na plataforma. Para aderir ao uso dessa moeda é necessário que o banco comunitário esteja localizado no mesmo bairro ou município da pessoa interessada em abrir uma conta, pois o uso da moeda social é destinado ao território.

Segundo o criador do banco Palmas, todo lucro gerado no banco comunitário é investido no próprio território. Essa é outra regra que tem que ser cumprida por todos os bancos dessa rede. Um exemplo desse investimento é o curso de culinária que a Márcia fez, e é desse jeito que o desenvolvimento social ocorre.

Banco Paulo Freire

Na Cidade Tiradentes, distrito da zona leste de São Paulo, o banco Paulo Freire também usa o E-dinheiro, como uma ferramenta para viabilizar a inclusão econômica de moradores da região, proporcionando que mesmo as pessoas endividadas, desempregadas, com o nome listado no serviço de proteção ao crédito (SPC), de baixa renda consigam acessar o crédito, para empreender ou consumir em comércios locais. 

“Elas conseguem pegar o crédito sim. Mesmo aquela família que a gente sabe que tem mais dificuldade de pagar, a gente parcela [a devolução] em mais vezes, e procura ser bem acessível”, conta Maria das Dores Ferreira, 52, que é mais conhecida como Dora no território, e que além de pedagoga, é gerente do banco Paulo Freire. 

Dora enfatiza que diferente das demais instituições financeiras, nos bancos comunitários é possível obter crédito, mesmo quando a pessoa não está com a condição financeira ideal.

De modo geral, os pré-requisitos e os benefícios de acesso ao crédito se igualam tanto para o empreendedor como para o morador que procura o banco comunitário, conforme diz Joaquim. “O acompanhamento, o aconselhamento, o controle de inadimplência, prazo maior para você poder pagar, tanto serve para um como para o outro”, pontua.

No banco Paulo Freire, a avaliação para liberação de crédito é feita pelos associados que estão na gestão do banco. “A gente vê o quanto a pessoa recebe, o quanto que ela gasta e tenta ajudar ela a ter o controle da própria renda. Tem vezes que a pessoa nem precisa pegar um empréstimo, porque ela só não está sabendo usar direito o dinheiro que tem. Em outros momentos, a gente empresta e acompanha”, comenta Dora sobre o processo de empréstimo.

A gerente do banco menciona que a confiança e a relação de proximidade com as pessoas é um ponto crucial para que a concessão e a devolução do crédito ocorram. “Quando a família não consegue pagar no prazo estipulado, a gente vai conversar com ela e estende, por exemplo, se tem que pagar em três meses, ela paga em seis o empréstimo. Assim a pessoa consegue ter o dinheirinho dela e consegue devolver pra gente.”

Os bancos comunitários têm uma renegociação de dívida mais flexível, que leva em consideração as condições sociais e financeiras das pessoas. “No Brasil, no começo de 2023 estava em 45% a inadimplência, ou seja, quase cinco de cada 10 pessoas não conseguiam pagar suas dívidas [no banco comercial]. No banco comunitário, a gente fala de 2%, ou seja, menos de uma pessoa por cada 10.”, aponta Hamilton Rocha, coordenador e articulador da Rede Paulista de Bancos Comunitários.

Coletivo incentiva uso da bicicleta como opção de mobilidade e lazer nas periferias

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Segundo dados da pesquisa Viver em São Paulo: Mobilidade, realizada pela Rede Nossa São Paulo junto com o Instituto Cidades Sustentáveis e o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), em 2023, o tempo médio gasto diariamente para fazer todos os deslocamentos na cidade, através do transporte público, era de 2h26.

Esse é um dado vivenciado por muitas pessoas, principalmente em territórios periféricos, como é o caso da Josivete Pereira, conhecida como Jô, que passou a considerar o uso da bicicleta para se locomover, a princípio por uma questão financeira, mas também pelo tempo de locomoção na cidade.

Jô Pereira, moradora do Rio Pequeno, é presidenta da União de Ciclistas do Brasil e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada. (foto: Yuri Vasquez)

“A gente precisa ter tempo pra gente, só [temos] tempo para o trabalho. A gente se desloca, trabalha e volta. Não pode ser só isso”, coloca Jô Pereira, que é educadora física, moradora do bairro Jardim Ester, no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, presidenta da União de Ciclistas do Brasil, atuante na Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, e uma das fundadoras do coletivo Pedal na Quebrada. 

A ciclista aponta que qualidade de vida e lazer se relacionam com as questões de mobilidade urbana. Ela coloca que o uso da bicicleta nas periferias não se dá apenas no aspecto da obrigação ou escassez, que pode ser usada para brincar e em exercícios físicos.

“A mobilidade ativa, tanto a pé quanto de bicicleta, e o transporte público dependendo dos horários, são maneiras com as quais a gente pode estar somando ganhos nessa mobilidade. Isso é importante para repensar as cidades”, diz Jô. 

Pedal na Quebrada

O Pedal na Quebrada é uma iniciativa criada em 2018, pela Jô Pereira, junto da Jezz Rodrigues e Angela Maris, que moram em Itaquera, e pela Tati Souza, que é de Guaianazes, ambos territórios localizados na zona leste de São Paulo. 

Coletivo incentiva uso da bicicleta como opção de mobilidade e lazer nas periferias
Angela Maris, Jô Pereira, Tati Souza e Jezz Rodrigues formam o coletivo Pedal na Quebrada. (foto: arquivo pessoal).

Formado por três educadoras físicas e uma educadora infantil, as ações do coletivo circulam por diferentes regiões. A principal atividade tem sido retomar as reais histórias dos territórios, a partir do conhecimento de quem veio antes e de quem o habita no momento, isso se dá através da poesia e do ciclismo na atividade que Jô se refere como Pedalada Política, proposta pelo coletivo. Ela explica que o objetivo é “falar da nossa historicidade, dos corpos negros e indígenas na cidade, só que no olhar do pedal”.

“Não é um passeio ciclístico, é uma pedalada política, artística e principalmente afetiva, porque é para a gente se colocar na história e se colocar no presente”. A ciclista conta que essas pedaladas são realizadas com alguém do território, e previamente é feito um mapeamento do percurso que tem entre 10 e 20 km. 

Pedalada noturna no município de Mogi das Cruzes, em São Paulo. (foto: Jezz Rodrigues)
Pedal no distrito de Belém, com o projeto ‘Poesia urbana sobre rodas’. (foto: Yuri Vasquez)

O coletivo também promove oficinas de mecânica e de pedal, que além do aprendizado prático estimulam o desenvolvimento da autonomia, da construção coletiva e provocam questões de identidade e subjetividade das pessoas que participam.

Como exemplo, Jô cita um grupo de pedal formado por incentivo das ações do coletivo, após uma oficina que realizaram na Casa Anastácia, um Centro de Defesa e Convivência da Mulher que atende mulheres vítimas de violência doméstica. 

Participar de discussões acadêmicas é mais uma das movimentações da iniciativa. “Entrar dentro das estruturas de educação para decolonizar esse assunto [da mobilidade urbana], porque ele é bem colonizado”. Classe, raça e gênero são temas presentes quando se trata da viabilidade do uso de bicicletas e o Pedal na Quebrada também desenvolve suas atividades a partir dessas abordagens ao abrir espaço para rodas de conversas antes das oficinas práticas.

Políticas públicas

A regulamentação do uso das bicicletas e dos demais veículos, como bicicletas elétricas, ciclomotores, entre outros, para que eles utilizem as vias ao invés das calçadas, por exemplo, é apontada por Jô como uma forma para evitar acidentes.

“A gente está lutando por mais espaço dentro das vias, da ‘carrocracia’ e para isso a gente tem que ganhar mais espaço também para o pedestre”.

Jô Pereira, Presidenta da União de Ciclistas do Brasil, integrante da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada.

Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, a bicicleta é considerada um veículo de propulsão humana, e por isso pode ser usada na via, tendo direitos e deveres resguardados pela lei.

Jô afirma que a diminuição da velocidade dos veículos motorizados é uma das providências a serem tomadas para viabilizar não só a locomoção com bicicleta nas cidades, mas para diminuir os sinistros com veículos de modo geral. Ampliar a malha cicloviária na cidade, tendo como foco as periferias, também é uma das prioridades reivindicadas.

“Pensar a cidade e as políticas públicas também nessa visibilidade de como respeitar a pluralidade das pessoas estarem nos mesmos espaços com seus direitos garantidos. [Precisamos] de olhares [na] construção política para periferias e falar: ‘Opa, precisamos aumentar a malha cicloviária nas periferias’. Tem aumentado? Tem. Com tanta pressão tem funcionado, mas ainda está muito lento”, coloca a cofundadora do Pedal na Quebrada. 

Vivência Bike Trial, projeto do Dia do Desafio pelo Sesc 14 Bis. (foto: arquivo pessoal).

As necessidades para viabilizar a locomoção com bicicleta nas periferias ainda são muitas, e Jô coloca que a organização em coletivos para elaborar projetos políticos tem sido a estratégia adotada para alcançar melhorias. 

“Quem mais pedala é a periferia, isso é muito bom e positivo, só que a gente precisa de segurança para todo mundo [com] qualidade, não é só pintar [uma faixa]”, compartilha Jô, que também afirma sobre a facilidade do uso de bicicletas em bairros centralizados ocorrer por conta do investimento destinado para esses locais.

A educadora coloca que as discussões sobre políticas públicas de mobilidade urbana precisam acontecer também nas periferias para que moradores desses territórios possam ter a possibilidade de participar.

“[Precisamos de] mais de nós falando, não pode ter tão poucas representações assim, porque somos muitos, tem que ampliar mais essa discussão, porque não é uma discussão só da bicicleta, é uma discussão da cidade”, menciona Jô, que ressalta sobre o voto nas eleições interferir diretamente nesse planejamento urbano.

Direito à saúde: o acesso à políticas públicas de dignidade menstrual nas periferias

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Dignidade menstrual e pobreza menstrual são conceitos que tratam das condições de higiene e saúde de pessoas que menstruam, levando em conta as particularidades e necessidades que o período menstrual requer. Contudo, medidas de cuidado e saúde muitas vezes não são disponibilizadas para pessoas em situações de vulnerabilidade social. 

“A dignidade menstrual é o acesso a cuidados de saúde em geral, para poder cuidar do próprio corpo e [isso inclui ter acesso aos] produtos ligados à menstruação”, explica Shisleni Macedo. Ela é especialista em estudos de gênero e teoria feminista, atua como pesquisadora no Centro de Estudos Periféricos (CEP) da Unifesp e trabalha em projetos ligados a justiça reprodutiva.

“A gente tem relatos de mulheres que durante a menstruação inserem miolo de pão no canal vaginal ou pedaços de colchão, que usam tecidos e nem sempre têm água o suficiente [ou] saneamento básico em suas casas para higienizar”, relata a pesquisadora, que também trabalha em uma organização de direitos sexuais reprodutivos.

“Pobreza menstrual é toda a dificuldade de pessoas que menstruam têm para acessar itens de higiene necessários para esse período, que não são apenas mulheres, adolescentes, meninas, mas também pessoas trans, não-binárias, intersexo, que tenham útero e menstruam. Uma pessoa que não consiga, por exemplo, ter absorventes suficientes para todo o seu período, está numa situação de pobreza menstrual”.

Shisleni, especialista em estudos de gênero e teoria feminista.

Situação pela qual a Taciana Lopes, 21, já passou. “Quando eu era adolescente deixei de ir pra escola por não ter absorvente ou [tinha que] racionar. Eu deixava de usar em casa e quando eu ia para a rua, ia com um pouco que eu tinha. Eu já tive que pedir para uma amiga. Na necessidade, em uma emergência, [são] outras mulheres que me ajudam a ter esse absorvente”, comenta a jovem bolsista do curso de Gestão Financeira, moradora do bairro Jardim Vera Cruz, em São Mateus, zona leste de São Paulo.

Direito à saúde: o acesso à políticas públicas de dignidade menstrual nas periferias
Taciana Lopes, antes do Pograma Dignidade Menstrual, tinha dificuldade de ter acesso suficiente aos absorventes. (Foto: Viviane Lima)
Segundo o relatório “Pobreza menstrual e a educação de meninas”, de 2021, realizado pelo movimento Livre para Menstruar, no Brasil, em torno de 60 milhões de mulheres menstruam, sendo que 15 milhões não têm acesso à água tratada e 1,5 milhão moram em casas sem banheiro. Ou seja, pode-se considerar que essas mulheres estão em situação de vulnerabilidade menstrual.

Políticas públicas

Atualmente, Taciana participa do Programa Dignidade Menstrual, uma política pública lançada em 2023, para viabilizar o acesso gratuito à absorventes para pessoas que menstruam, que tenham baixa renda ou estejam em vulnerabilidade social.

Para participar do programa é necessário ter entre 10 a 49 anos, estar inscrito no CadÚnico, emitir uma autorização pelo aplicativo Meu SUS Digital, ter renda mensal de até R$ 280, ou ser estudante da rede pública e ter baixa renda. Pessoas em situação de rua também têm direito a esse benefício. Os absorventes podem ser retirados em qualquer Farmácia Popular credenciada, mediante a apresentação de um documento de identidade com foto, CPF e a autorização do aplicativo.

“Eu não tenho renda, então ajuda bastante porque o valor de cada [pacote de] absorvente é muito gasto, e eu não tenho esse dinheiro todo mês. [Agora] eu não tenho essa questão de ficar contando os absorventes que eu vou usar para conseguir render para o próximo dia ou para o próximo ciclo”, conta Taciana. A jovem diz que conseguiu cumprir todas as etapas do programa e retirar os absorventes sem dificuldade.

Absorventes distribuídos pelo Programa Dignidade Menstrual. (Foto: Taciana Lopes)

No entanto, Shisleni aponta que essa não é a realidade da maioria das pessoas que precisam do auxílio. “É importante que existam políticas públicas, mas da maneira como está hoje, pela mediação de um aplicativo, elas não atingem as populações extremamente precárias”. A pesquisadora comenta que pessoas em extrema vulnerabilidade não têm acesso à internet ou até mesmo ao celular para realizar os passos necessários que viabilizam a distribuição gratuita pelo programa.

Giselda de Oliveira, 51, é agente comunitária de saúde e aponta que no caso de pessoas em situação de rua, falta até a documentação. Ela mora no bairro de Santo Onofre, e trabalha na UBS (Unidade Básica de Saúde) que tem o mesmo nome do bairro, localizado em Taboão da Serra, São Paulo. 

Giselda de Oliveira é agente de saúde na Unidade Básica de Saúde Santo Onofre, no município de Taboão da Serra. (Foto: Viviane Lima)

“Quando você educa a população eles entendem. A gente tem que ir pra rua, ensinar, ter palestras”, comenta a agente de saúde. Para além de campanhas de informação e conscientização, ela aponta que é necessário realizar ações conjuntas envolvendo diferentes instituições e secretarias para auxiliar na questão da documentação, no acompanhamento e na implementação do programa para torná-lo efetivo e acessível para quem precisa. “A população não está informada sobre isso [o Programa Dignidade Menstrual]”, afirma Giselda.

A agente de saúde menciona que nenhuma informação ou instrução sobre o programa chegou para a UBS Santo Onofre. O fornecimento dos absorventes está acontecendo, mas segundo Giselda, não houve mobilização local para informar as pessoas e auxiliá-las na obtenção desses itens. 

Taciana, Giselda e Shisleni mencionam a importância do programa, mas ressaltam que precisa de ajustes. Shisleni aponta que a situação das pessoas que menstruam que estão em cárcere também deveria ser considerada, para que elas pudessem ter acesso aos direitos básicos de higiene e saúde. A pesquisadora comenta que há muito a ser feito para as pessoas passarem pelo período menstrual de forma adequada. 

“Que a gente consiga pensar políticas públicas de direitos trabalhistas [e] tenha mais licenças de saúde ligadas às questões de menstruação [para] pessoas que têm problemas que fazem com que a menstruação seja incapacitante”, coloca a pesquisadora.

Tabus discutidos por gerações

Sarah Lutosa, 15, é moradora do bairro Jardim Iracema, em Taboão da Serra, e afirma que a menstruação segue sendo um tabu mesmo para a sua geração, e que o acesso à higiene básica nos lugares públicos, como na escola, também é precário. Ela está no primeiro ano do ensino médio e estuda em escola pública. 

“Tem papel higiênico, mas é muito raro ter sabonete e absorvente. Se você quiser um absorvente tem que ir na secretaria pedir e não é sempre que tem”, menciona Sarah.

Ainda segundo o relatório “Pobreza menstrual e a educação de meninas”, o Brasil tem cerca de 7,5 milhões de meninas que menstruam na escola, sendo que 90% delas frequentam a rede pública de ensino. A partir dos dados da Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PENSE) do IBGE de 2015, o relatório aponta que cerca de 3% das alunas estudam em escolas que não têm banheiro em condições de uso. Essa porcentagem equivale a 213 mil meninas, sendo dessas 65% negras.

A adolescente conta que já passou por uma emergência e teve que pedir absorvente na escola. “Foi horrível. Antes tinham disponibilizado os absorventes no banheiro, só que o pessoal que não tinha condição ia lá e pegava todos. Eles pararam de colocar por conta disso”, comenta.

Sarah Lutosa é estudante do ensino médio e faz uso de fitocosméticos para amenizar os incômodos menstruais. (Foto: Viviane Lima)

“Por ser um tabu, o pessoal tenta esconder que existe, então não tem muito suporte para isso”, aponta Sarah. “Acho que a menstruação tem que ser tratada da forma mais natural possível”, diz a adolescente sobre naturalizar a menstruação como caminho para que a população comece aprender a lidar melhor com o assunto.

Shislene coloca a educação sexual como outro ponto que poderia auxiliar na quebra dos tabus relacionados ao tema.

“Se a gente pudesse conversar nas escolas sobre educação sexual, uma das coisas que a gente iria discutir é sobre o ciclo menstrual. Como funciona, o que significa esse sangramento. Inclusive, para que jovens possam identificar quando tem alguma coisa que não está funcionando bem”.

Shisleni, especialista em estudos de gênero e teoria feminista.

A pesquisadora menciona que esse tipo de abordagem ajuda a ensinar sobre autocuidado, contribui com a identificação e prevenção de doenças, além de ser uma forma de detectar casos de vulnerabilidade social, e assim, auxiliar no combate à pobreza menstrual. 

“[A educação sexual ajudaria a identificar] quando está tendo algum sintoma que não é esperado para aquela idade, para aquela fase do ciclo, e [para que] a gente possa identificar inclusive mais cedo problemas de saúde, por exemplo, ou acessar questões de precariedade mesmo, ligadas a isso”, finaliza a especialista sobre o papel também das escolas nesse processo.

“O mulherismo africana é a quebrada”, afirma pesquisadora sobre a presença do movimento nas periferias

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Segundo Wanessa Yano, pesquisadora de história, artes, estéticas africanas e afrodiaspóricas, o mulherismo africana busca referências plurais do continente africano, e é uma prática que está presente dentro da periferia. “O mulherismo africana vai dizer que a nossa história pode ser diferente [enquanto mulheres negras], mas a nossa luta pela raça, ela é igual independente da condição em que você esteja”, coloca.

Wanessa Yano diz que o mulherismo africana é prática nas periferias.
Wanessa Yano na exposição Brasis, que ocorreu no Sesc Belenzinho. (foto: arquivo pessoal)

A pesquisadora, que também é co-fundadora da editora Ananse, conta que é dentro de uma perspectiva familiar, matriarcal e de comunidade que o movimento se apresenta nos territórios. “Hoje a mulher negra é a sustentação da casa, principalmente na quebrada. No mulherismo africana, uma mulher preta dentro de uma periferia sabe que se ela mudar a própria realidade, vai mudar a realidade de toda a família dela”, coloca Wanessa. 

“Qualquer associação de mulheres dentro de uma quebrada já tem vínculo com o mulherismo africana. Onde as mais velhas trocam e se fortalecem entre elas é uma comunidade de mulherismo africana”

Wanessa Yano, pesquisadora de história, artes, estéticas africanas e afrodiaspórica.

Wanessa afirma que nessa prática a comunidade é um elemento tão fundamental quanto raça. Esse é um ponto central na busca do bem viver e na resolução de conflitos. Dentro desse contexto de comunidade, a prática também engloba questões que envolvem homens negros.

“Por exemplo, se [uma mulherista africana] está dentro de um relacionamento e o cara é machista, ela vai fazer a correção devida desse homem, mas ele também vai precisar entender o que é ser um homem preto, africana, [para ele modificar] as reproduções que ele está tendo do machismo”, exemplifica a pesquisadora, que ressalta a importância de homens africana debaterem sobre suas masculinidades.

“O mulherismo africana já existe dentro da quebrada, ele é a quebrada. Ele é a mãe de vários meninos em situação de cárcere. Ele é a situação das grandes cozinheiras dentro da quebrada. Ele é as mulheres que estão como agentes de saúde que andam o dia inteiro para cuidar de outras pessoas. É sobre o agir e o fazer todos [os] dias por uma comunidade.”

Wanessa Yano, pesquisadora de história, artes, estéticas africanas e afrodiaspórica.

Feminismo e Mulherismo Africana

O termo mulherismo africana, foi criado em 1987, pela autora e acadêmica afro-estadunidense, Clenora Hudson-Weems. No Brasil, o termo chega através da tradução do livro “Mulherisma Africana: uma teoria afrocêntrica”, da escritora afro-estadunidense, Nah Dove. “Clenora fala que não inventou nada, ela deu um nome a algo que já existia, [que é] a insatisfação das mulheres que não se identificavam com o feminismo e que precisavam dar nome àquilo [que viviam]”, comenta Wanessa.

Clenora Hudson-Weems criou o termo mulherismo africana, em 1987. (foto: arquivo pessoal)

Ao citar Clenora como referência, Wanessa coloca que mesmo as vertentes do feminismo que abordam questões raciais, como o feminismo negro e o interseccional, surgiram de um não pertencimento ao feminismo tradicional, e não dão conta das experiências de mulheres negras, pois apresentam uma origem eurocêntrica e ocidental, que por anos desconsiderou até a humanidade de pessoas negras. 

“Olhando para a história do feminismo, que surgiu da luta sufragista das mulheres brancas, em que as mulheres pretas passaram por muitas violências e que [tem] situações de racismo desde a sua formação, não há como [o feminismo] se tornar algo das mulheres pretas. A agenda dessas movimentações vão ser pensadas para mulheres brancas”, pontua Wanessa Yano.

Segundo Wanessa, o movimento também contempla, desde a sua origem, a comunidade LGBTQIAPN+, por entender que ‘mulher’ é uma categoria social, não uma questão biológica. “Dentro do mulherismo africana a forma com que a gente se identifica como mulher tem muitas camadas, é por isso que essa lógica de [ser] mulher [vem] dessa formação e entendimento social”, comenta a pesquisadora. 

Wanessa chama atenção para os contextos de violência ao citar o feminicídio e a violência policial que encarcera e mata homens, adolescentes e jovens negros. Dentro do mulherismo africana, essas demandas também são apontadas.

“Quando um homem ou jovem preto é preso, a mãe não abandona esse filho. A questão é: o feminismo dá conta de justificar que essa mulher está passando por diversas violências e apontar que ela está lutando pelo filho dela, pela comunidade, pela humanidade e recuperação dele?”, questiona. 

A pesquisadora coloca que o movimento pode ser um mecanismo de mudança social, pois ao mesmo tempo que aponta as problemáticas e violências que atravessam pessoas negras, também amplia as perspectivas de mundo, fortalece o potencial das pessoas, o cuidado e a busca do bem viver em comunidade.

Da esquerda para a direita, Alice Hudson (educadora, artista e pesquisadora de ciências sociais), Noxolo Kiviet Ministra da África do Sul, Wanessa Yano. (foto: arquivo pessoal)

“Não é mais a gente sobre o olho do ocidente. É sobre nós e as nossas próprias escrevevivências, as nossas experiências. É poder falar e documentar aquilo que a gente é como ser humano, não mais [como] objeto de estudo”, finaliza a pesquisadora.

Mostra celebra a parceria de Dona Ivone Lara e Nise da Silveira pela saúde mental brasileira

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O projeto acontece em Mogi das Cruzes, São Paulo, entre 13 de abril a 18 de maio e conta com atividades gratuitas em cinco espaços culturais da região.

A mostra “Ivone & Nise: um reencontro” é idealizada pela artista visual Mariana da Matta e a multiartista Pâmella Carmo, com o objetivo de eternizar o legado da cantora e compositora Dona Ivone Lara em sua atuação como enfermeira, assistente social e terapeuta ocupacional, especialmente quando trabalhou na equipe da médica Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, nos anos 1940. A Mostra está aberta para visitação entre os dias 13 de abril e 18 de maio, na Pinacoteca de Mogi das Cruzes, em São Paulo, com entrada gratuita. 

As datas de abertura e encerramento da Mostra foram escolhidas a partir de dois marcos: em 13 de abril, abertura do evento, Dona Ivone Lara completaria 102 anos. Já o encerramento, em 18 de maio, marca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

Pela valorização da obra humanitária de Dona Ivone Lara

A ideia da mostra é dar visibilidade para outras facetas da sambista que foram fundamentais para a história do Brasil. O objetivo também é resgatar memórias que se perderam no tempo e que apontam uma das faces do racismo: a invisibilidade de personagens negras em diversas áreas do conhecimento.

Antes de ser a primeira mulher a fazer parte de uma ala de compositores de escolas de samba e passar a dedicar-se somente à música, a sambista trabalhou por 37 anos no Hospital Engenho de Dentro. Sob a supervisão da psiquiatra Nise da Silveira, a jovem Ivone utilizava a música como estratégia de tratamento na seção de terapia ocupacional.

Além de falar sobre o seu trabalho terapêutico com música no hospital, a proposta da mostra busca contribuir com ações de reparação para reconhecer o importante papel da grande dama do samba na construção de metodologias e práticas de cuidados humanizados pioneiros em sua época e local, como a ressocialização e desinstitucionalização de internos.

Serviço

Mostra “Ivone & Nise: um reencontro” | Instagram @ivone.e.nise
De 13 de abril a 18 de maio de 2024
Local da exposição: Pinacoteca de Mogi das Cruzes – R. Cel. Souza Franco, 993, Centro, Mogi das Cruzes – SP 

Programação 

Exposição 
Pinacoteca de Mogi das Cruzes
Abertura: 13/4, das 16h às 20h, com roda de samba às 18h
Visitação: 16/4 a 18/5/24. Terças a sextas, das 9h às 17h. Sábados, das 9h às 12h.

A exposição conta a história de Dona Ivone Lara e Nise da Silveira na saúde mental brasileira por meio de trabalhos de artes visuais e poesia, além de cenografia temática. É incentivada a participação do público na ação, de forma que possam desenhar ou escrever cartas que interagem com a proposta, em um ateliê integrado à exposição.

Atrações musicais

Pinacoteca (abertura): 13/4, sábado, às 18h
Ateliê Sementeira: 20/4, sábado, às 17h30
Congada Santa Efigênia: 27/7, sábado, às 18h30
Cursinho Popular Maio de 68: 4/5, sábado, às 18h

Rodas de samba e poesia com intervenção artística simultânea. Com participação de Pâmella Carmo, Mariana da Matta, Marlene Santana e Angelina Reis (Pretas Bás),Felipe Nogueira, Henrique Nogueira, Silas Xavier e Fernando Sd.

Oficinas – Inscrições neste link

Tenho Estima
Com Midori Camelo
Dia 9/5, quinta, das 18h às 21h, na Pinacoteca.

Tiê: brinquedo e ilusão
Com Vanessa Oliveira
Dia 20/4, sábado, das 14h30 às 16h30, no Ateliê Sementeira.

Tecendo Travessias
Com Mariana da Matta
Dia 16/5, quinta, das 18h às 21h, na Pinacoteca.

VIVÊNCIAS – Inscrições neste link

Pescar no Inconsciente o Estado do Sonho
Com Mariana da Matta
Dia 18/4, quinta, das 18h às 21h, na Pinacoteca.

O Tambu e o Tempo no espiral
Com Pâmella Carmo
Dia 27/4, sábado, das 14h30 às 17h30, na Congada Santa Efigênia.

Laboratório de Escuta de Imagens
Com Elidayana Alexandrino
Dia 25/4, quinta, das 19h às 21h, na Pinacoteca.

Quem são as mulheres invisíveis? Uma escavação ao passado
Com Larissa da Matta
Dia 8/5, quarta, das 19h às 21h, no Galpão Arthur Netto.

RODA DE CONVERSA
Sankofa e as tecnologias ancestrais para produção de saúde integral
Dia 4/5, sábado, das 15h às 17h30, no Cursinho Popular Maio de 68
Bate-papo sobre a atuação de Dona Ivone Lara na saúde mental e sua parceria com Nise da Silveira, a partir do conceito de Sankofa. Serão discutidas também tecnologias ancestrais e práticas culturais e artísticas como recursos terapêuticos. Com Ana Paula Soares, psicóloga e Domenica Almeida, terapeuta ocupacional.

CORTEJO
Ruas do centro da cidade
Dia 18/5, sábado, das 9h às 13h (concentração às 9h, saída às 10h)
Encerramento da mostra com um cortejo pelas ruas centrais da cidade, composto por artistas e público participante das atividades ocorridas nos espaços parceiros. Aberta à população, a ação afirmativa ocorre no Dia Nacional da Luta Antimanicomial e visa difundir a pesquisa sobre Dona Ivone Lara e Nise da Silveira com arte, cultura e saúde mental, por meio de um coro musical e trabalhos artísticos resultantes das ações formativas da mostra. O cortejo é concluído com chegada à instalação, na Pinacoteca, onde é prevista apresentação de canto dos usuários do CAPS e fala de encerramento.

Locais

Pinacoteca – R. Cel. Souza Franco, 993, Mogi das Cruzes – SPAteliê Sementeira – R. Manoel Inácio Silva Alvarenga, 206, Mogi das Cruzes – SP
Galpão Arthur Netto – R. Rui Barbosa, 248, Mogi das Cruzes – SP
Cursinho Popular Maio de 68 – R. Dr. Paulo Frontin, 365, Mogi das Cruzes – SP

Rose Dorea, articuladora da Cooperifa, conta como a sua trajetória se vincula à história do sarau

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Em plena correria da realização da 14ª Mostra Cultural da Cooperifa, Rosilene da Costa Dorea, 50, mais conhecida como Rose Dorea, entre uma ligação e outra, em uma manhã de sexta-feira, nos recebe na sua casa, no bairro Jardim Panorama, que fica na cidade de Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo.

Além de articuladora e integrante do Sarau da Cooperifa, Rose trabalha como assistente administrativa da Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Santo Onofre, em Taboão da Serra, e cursa graduação em Serviço Social. A articuladora também é mãe solo do Joshua Zali, de 13 anos.

Rose e seu filho Joshua Zali no aniversário de 22 anos do Sarau da Cooperifa (foto: Ricardo Vaz)

Rose é integrante do Sarau da Cooperifa desde 2001, e já vivenciou várias transformações e conquistas no sarau. “A Cooperifa é um lugar que muda a vida, tem vários depoimentos das pessoas falando de coisas que elas não imaginavam que poderiam fazer e estão fazendo [inspiradas pela Cooperifa]”, conta Rose.

A Cooperifa é um movimento cultural e literário que acontece desde 2001, e semanalmente viabiliza um espaço de trocas literárias, além de promover encontros entre pessoas de várias quebradas na zona sul de São Paulo. 

A atuação enquanto articuladora e produtora cultural conecta Rose com muitas pessoas dos territórios. Ela conta que muitas delas acham que ela é uma mulher brava, no entanto, o que define a sua personalidade é a lealdade, como conta. “As pessoas me vêem como uma mulher brabona, que eu não sou, eu sou uma pessoa chorona, entendeu!? Acho que eu tenho muito axé, [e] sou muito protegida pelos Deuses”, comenta Rose.

Trajetória

“Eu sempre tive um lado de liderança, tanto que eu fui chefe de formatura do colegial. Sempre tive esse lado do querer fazer, querer ajudar as pessoas”. Rose comenta que além desse senso de liderança, que ela tem desde a infância, a proatividade também é uma de suas características que está presente nas diferentes funções que ela desempenha. 

Foi com o intuito de ajudar diretamente as pessoas que ela decidiu estudar Serviço Social, e também por ser uma área com a qual tem contato através do seu ambiente de trabalho na UBS. “Sou do administrativo, mas eu saio da minha mesa várias vezes para resolver problemas. Vamos supor, [para] ajudar um idoso, ajudar uma mãe que chega lá para resolver alguma coisa”, menciona. Antes de atuar como assistente administrativa, Rose trabalhava como vendedora, e conta que uma das suas características é ser desenrolada. 

O trabalho como produtora não é algo recente. Nos anos 90, Rose fez a produção de uma equipe de som, e durante quatro anos trabalhou como produtora geral, na coordenação dessa equipe. Anos depois, se conectou com a Cooperifa.

Aniversário de 22 anos do Sarau da Cooperifa, Sérgio Vaz ao microfone (foto: Viviane Lima)

A conexão de Rose com a Cooperifa aconteceu de forma natural. A produtora tinha um amigo em comum com Sérgio Vaz, um dos fundadores do sarau, que os apresentou. Tempos depois, Rose e Vaz também trabalharam juntos na Câmara Municipal de Taboão, e a partir disso a amizade se concretizou. Ela também conta que estava na primeira conversa informal sobre a Cooperifa, junto com Marco Pezão e Sérgio Vaz, fundadores do sarau, em 2001, no bar do Português, no centro de Taboão da Serra. 

“Quando ele [Sérgio Vaz] deu a ideia de que ia fazer um sarau, eu não sabia o que era, [mas] eu sou curiosa, então eu queria saber. E aí eu comecei a frequentar desde o primeiro sarau, [que] foi na estrada do São Francisco, no [bar] Garajão, aqui em Taboão da Serra”, compartilha Rose. Por ser boa em comunicação, ela recepcionava quem chegava, algo que faz até hoje, e assim conquistou o título de musa da Cooperifa.

Com a venda do bar Garajão, em 2002, o sarau migrou para o Bar do Zé Batidão, na Chácara Santana, na zona sul de São Paulo, onde acontece até hoje, toda terça-feira, a partir das 20h30. Rose afirma que todo mundo é bem vindo e tratado de igual para igual, a única regra para participar é saber chegar com respeito. 

13ª Mostra Cultural da Cooperifa (foto: Ricardo Vaz)

A conexão com o movimento literário foi um marco importante na trajetória da articuladora. “Eu volto a estudar [em 2005] realmente por conta da Cooperifa, para tentar entender o que era falado”, conta. Antes disso, Rose tinha estudado até a 8° série, pois havia perdido o interesse pela escola devido às dificuldades que tem de leitura, por conta da dislexia.

“Para uma pessoa disléxica é muito difícil, porque você é tratado como burro. Virou um trauma, porque eu repeti por três anos a 1° série”. Rose se emociona ao falar dos enfrentamentos que passou devido a descoberta tardia de dislexia, que veio aos 44 anos.

Atualmente, além de assistente administrativa, durante a Mostra Cultural da Cooperifa, Rose atua como produtora cultural. Nessa função, ela recebe os grupos convidados para se apresentarem na Mostra, participa da elaboração da programação e faz parte do grupo que pensa o evento como um todo, além de cuidar da alimentação da equipe e dos repasses de como está o andamento dos eventos. 

“Eu me considero uma produtora cultural da rua, porque eu aprendi na raça, eu aprendi dentro da Cooperifa”

Rose Dorea, graduanda em Serviço Social e articuladora no Sarau da Cooperifa.

A articuladora cultural menciona que embora tenha admiração pela literatura, não tem a intenção de ser uma escritora, que gosta mesmo é de fazer as coisas acontecerem nos bastidores. “Eu gosto, faço parte e acredito muito na literatura, na poesia e na cultura, mas não me vejo como poeta”, pontua.

Musa da Cooperifa

Rose comenta que no início, no sarau, tinham mais homens do que mulheres, por conta das multitarefas que a elas socialmente são encarregadas, e pelo tabu que existe de mulheres frequentarem bares. No entanto, ela considera que isso esteja mudando. “O sarau deu visibilidade para nós mulheres. De mostrar que é um bar, mas você tem direito de estar onde você quiser”, menciona.

Ela aponta que os feitos mais importantes da Cooperifa foi apontar que a poesia está sim ao alcance das periferias e auxiliar no combate a estigmas que desvinculam a cultura, arte e educação desses territórios. “Começamos a ver a nossa quebrada falando de nós para nós. Essa é a grande importância da Cooperifa e ter esse olhar pelos professores, pela escola”, diz Rose.

Rose no Bar do Zé Batidão, onde acontece o sarau da Cooperifa, toda terça-feira. (foto: arquivo da Cooperifa)

Desde 2001, Rose foi titulada como a musa da Cooperifa, durante a primeira edição do prêmio da Cooperifa. Na ocasião, ela fez a entrega das medalhas, recepcionou quem chegava e com o tempo esse título foi se firmando junto com a admiração das pessoas que frequentam o sarau. “Eu falo que eu sou uma colaboradora e sou a musa da Cooperifa, eu tenho muito orgulho desse título”, comenta.

Rose também participa de palestras, rodas de conversas e considera que seja uma referência no território. Ela conta que desde 2021, tem ocupado esses lugares de fala.

“É uma trajetória de muita luta, porque tem 22 anos que eu estou na Cooperifa e agora que sou chamada para um monte de coisas. Acho que é porque me permiti mais a ver que eu tenho um lugar de fala, mas estou dizendo um lugar de fala como uma mulher preta, entende? [E enfrentar] os medos, porque a gente sabe que o que você fala não tem volta, tem que ter muita responsabilidade do que você fala”

Rose Dorea

“Eu estou vivendo um ano de reconhecimento, mas também de muito aprendizado e acho que uma coisa está muito ligada a outra”, finaliza Rose, que cita sobre sua trajetória ser de luta e construção.

Jornada das Pretas: encontro final debate estratégias de enfrentamento à violência política de raça e gênero

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“Agir sempre foi preciso e a cada dia a minha, a nossa inteligência, nos garante que não é sobre topos e sim novos horizontes”, foi assim, com poesia e música, que Danuza Novaes abriu o último encontro de 2023 da Jornada das Pretas. De forma virtual, 30 mulheres se reuniram para uma troca sobre o enfrentamento à violência política de raça e gênero, no último encontro do ano que aconteceu na manhã do dia 28 de outubro.

A Jornada das Pretas é um projeto que promove capacitação, formação e acolhimento para mulheres negras cis, trans e travestis, que são lideranças políticas em diferentes partes do Brasil. Essa iniciativa é realizada desde 2021, pela Oxfam Brasil, em conjunto com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco.

O encontro de encerramento proporcionou trocas de informações sobre a Lei de Violência Política de Gênero, a fim de identificar os avanços e desafios para o enfrentamento e a prevenção das várias situações de violência política que vem atingindo parlamentares, candidatas e ex-candidatas, negras cis e trans.

Para debater sobre o assunto, foram convidadas: Fabiana Pinto, coordenadora de pesquisa e de incidência política do Instituto Marielle Franco, e a Doutora Raquel Branquinho, que é Procuradora Regional da República, coordenadora do núcleo de ações criminais originárias e do grupo de trabalho de prevenção e combate a violência política de gênero.

A facilitadora do encontro foi Mônica Oliveira, que é assessora parlamentar e integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, e que abriu o dia com um breve resgate dos dois encontros anteriores, que abordaram respectivamente sobre Fundo Eleitoral e Estratégias de comunicação para campanhas eleitorais.

CONTEXTO

Fabiana Pinto ressaltou que esse é um tema difícil de ser tratado, considerando que, provavelmente, muitas das mulheres presentes no encontro já haviam vivenciado experiências de violência política de gênero e raça, mas apresentou ações e estratégias criadas através do Instituto Marielle Franco, a fim de auxiliar no combate dessas violências.

“Em 2020, foi a primeira eleição municipal onde o Instituto Marielle Franco existia, foi a primeira eleição municipal desde o assassinato da Marielle. Num primeiro momento a gente queria poder fomentar o debate e entender o que é defender o legado da Marielle e dar instrumentos para a candidatura de mulheres negras”, trouxe Fabiana sobre o contexto em que a Agenda Marielle Franco foi criada.

“A violência política é algo quase inerente dos processos eleitorais brasileiros há anos, só que a forma que a violência política vai operar contra corpos de mulheres negras, trans, travestis e mais do que isso, as possibilidades de proteção e de acolhimento são distintas para esse grupo de mulheres”

Fabiana Pinto, coordenadora de pesquisa e de incidência política do Instituto Marielle Franco.

Raquel Branquinho apontou alguns tipos de violência que afetam as mulheres no âmbito da política. “A violência política se reproduz por várias formas. Subliminar, verbal e não verbal, patrimonial, econômico, na parte do financiamento, discriminação das mulheres nos seus espaços de trabalho, nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e isso é um contexto social. Muitas vezes as próprias vítimas não identificam essas situações”, alertou a Procuradora Regional da República.

Dados apresentados pela Fabiana, produzidos pelo Instituto Marielle Franco, apontam que apenas 32% do total de candidatas negras já fez algum tipo de denúncia, considerando como denúncia, além do ato de ir à delegacia, o fato de tornar público o episódio ocorrido. Segundo os dados, 46% das candidatas negras justificaram que não se sentem seguras para poder denunciar, por entenderem que isso poderia vulnerabilizar a campanha delas.

Foi a partir de 2021, com a aprovação da lei 14.192, que a violência política de gênero passou a ser classificada como crime.

Antes, essas denúncias ficavam sob a responsabilidade da Polícia Civil, e, por vezes, acabavam se perdendo no volume de situações para serem investigadas, o que não gerava resultados, conforme a fala da Raquel.

“Quando for assédio, perseguição, humilhação, constrangimento, qualquer um daqueles verbos que estão descritos no artigo 326-B do código eleitoral, que tem como alvo candidatas ou detentoras de mandato eletivo, é um crime eleitoral que deve ser apurado pela polícia federal e pelo Ministério Público eleitoral brasileiro”, traz Raquel.

ESTRATÉGIAS E DIREITOS POLÍTICOS ELEITORAIS PARA AS MULHERES

Em 2020, a partir de denúncias e da busca frequente de ajuda das candidatas, Fabiana relata que o Instituto passou a mapear quais tipos de violência política eram cometidos contra as mulheres e como esses casos estavam sendo encaminhados. Verificando também os problemas que há no sistema político e nas instituições que poderiam acolher essas mulheres.

Desse mapeamento, foram feitos os seguintes levantamentos: 8 a cada 10 candidatas negras sofreram violência virtual, em 2020. 6 a cada 10 candidatas naquela eleição sofreram violência moral e psicológica.

Com base no mapeamento, Fabiana relatou também que 5 a cada 10 candidatas sofreram violência institucional. Ela destaca que as violências institucionais, geralmente, ocorrem no interior dos partidos políticos, no próprio sistema eleitoral e também em outras instâncias.

A coordenadora de pesquisa e de incidência política do Instituto Marielle Franco, apontou que, diante dessas informações, o Instituto Marielle Franco identificou que as ações de combate a violência política de gênero teriam que ocorrer em diversas frentes, já que os agentes agressores também operam em diferentes áreas.

Uma das estratégias apontadas por Raquel Branquinho para lidar com as violências políticas que as mulheres negras enfrentam, passa pelo conhecimento. “Temos tentado reforçar o conhecimento pelas próprias vítimas, o reconhecimento pelo sistema, pela advocacia e pelos grupos de apoio dos direitos para que a gente possa cobrar do sistema jurídico respostas mais eficazes”, comenta.

A Procuradora Regional da República também menciona que esse sistema, por vezes, reproduz as práticas de exclusão da sociedade e que desse modo não têm a capacidade necessária para fazer as análises na perspectiva de gênero.

“Muitas vezes há uma revitimização dentro do próprio sistema. Quando nós temos o maior conhecimento possível das situações envolvendo os nossos direitos é mais fácil cobrar que se aplique a legislação”, reforça Raquel Branquinho.

Como forma de viabilizar a obtenção desses conhecimentos, a Procuradora Regional da República indica o site do Ministério Público Federal como fonte de acesso à informação.

Fabiana comenta que ao identificar que mulheres negras, principalmente mulheres trans e travestis, mesmo após serem eleitas, seguiam sendo alvo de ameaças e que a institucionalidade não representava mais proteção para esse grupo de mulheres, o Instituto Marielle Franco, nessa dimensão de proteção, lançou a campanha Não Seremos Interrompidas.

“[Essa campanha] atua, sobretudo, no processo eleitoral, no acompanhamento de candidatas e de parlamentares negras já eleitas, adotando estratégias para alcançar proteção [através do] reconhecimento das parlamentares negras como defensoras de direitos humanos”, comenta Fabiana. Ela explica que o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos é o mecanismo que tem viabilizado essa tática.

Outra ferramenta que o Instituto tem utilizado para viabilizar a proteção de mulheres negras atuantes na política é o acesso ao Fundo de Ação Urgente e ao Fundo Brasil de Direitos Humanos.

Fabiana cita que a mobilização para a criação de legislações específicas que contemplem mulheres negras atuantes na política, é mais uma das estratégias do Instituto. Ela comenta também que, conforme a lei 14.192, é previsto que todos os partidos alterem o próprio estatuto indicando mecanismos para o enfrentamento a violência política, e o Instituto Marielle Franco atua para que os partidos políticos cumpram essas determinações da lei.

Durante o encontro, Fabiana e Raquel mencionaram a importância da criação e do uso de canais de denúncia como ferramentas para acompanhar e encaminhar os crimes notificados. A Sala de Atendimento ao Cidadão, do Ministério Público Federal, assim como a Ouvidoria da Mulher, do Tribunal Superior Eleitoral, foram alguns dos canais citados.

O canal Fale Conosco da Câmara dos Deputados; a Procuradoria Regional Eleitoral; a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo; a Secretaria da Mulher, da Câmara dos Deputados e o próprio Ministério da Mulher são canais indicados para recebimento de denúncias. 

Além disso, as profissionais ressaltaram a importância de acompanhar e cobrar o resultado dos casos.

REDE DE APOIO

Em determinado momento as 30 participantes foram divididas em quatro grupos, para que todas pudessem falar de suas vivências e impressões sobre o tema. Em seguida, se reuniram e uma porta-voz de cada grupo apresentou os principais pontos abordados nessas conversas.

Conhecer bem como o partido funciona, ocupar cargos de liderança no partido, participar de movimentos sociais, buscar adesão popular, colocar afetividade no centro das candidaturas, fortalecer as redes de cuidado e de apoio, buscar capacitações e formação política, se articular com outras mulheres e cuidar da saúde mental foram algumas das estratégias citadas pelas participantes.

“Uma candidatura de mulheres negras não é um projeto individual, porque nós nem temos força individual, nem familiar para segurar uma campanha. Ou as nossas campanhas são coletivas ou elas não acontecem” , afirma em entrevista Zuleide Queiroz, 56, sobre estratégias que têm utilizado para se manter atuante na política partidária desde 2003.

Zuleide Queiroz participa da política partidária desde 2003 (foto: Eline Luz)

Zuleide é professora de pós-graduação, pesquisadora, militante, integra a diretoria e a coordenação Estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) no Ceará, é do Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC) e ocupa a presidência do Sindicato dos Docentes da Universidade Regional do Cariri (Urca), região localizada no Ceará, onde Zuleide mora.

Buscar ocupar vários espaços é um movimento que a professora tem feito para se articular politicamente, assim como se organizar em redes e participar dos movimentos sociais.

Zuleide Queiroz mora no Ceará, é professora de pós-graduação, pesquisadora e militante (foto: Eline Luz)

“A experiência na Rede Mulheres Negras para mim foi fundamental, para [eu] me reconhecer negra, ter estrutura, ter condições para disputar um cargo na política e discutir em audiências públicas as políticas públicas para a população negra”, conta Zuleide.

Essa também tem sido a movimentação de Nazaré Cruz, 43, que atua na política partidária desde 2007. “Uma das [minhas] estratégias é ter redes de apoio e me relacionar com outras mulheres negras e com outros companheiros negros. Tendo essa articulação mais interna, como também fora do partido. Dentro dos movimentos sociais tem muito esse apoio”, relata em entrevista.

Nazaré, é de Belém do Pará, militante do movimento negro, mãe, trancista e historiadora de formação. Atualmente, trabalha como diretora de assistência social na Secretaria de Estado, do Governo do Pará.

Nazaré Cruz atua na política partidária desde 2007 (foto: Jhonny Russel)

Embora conheça a lei 14.192, tenha feito e participado de pesquisas sobre violência de gênero, Nazaré diz que desconhecia os mecanismos e os canais de denúncia apresentados no encontro, e que também não sabia das informações que pode obter no site do Ministério Público Federal.

Assim como Nazaré, antes do encontro, Zuleide não sabia da possibilidade de fazer as denúncias. “Agora com essa legislação a gente sabe que a Justiça Eleitoral está atenta a essas questões [de gênero]”, pontua Zuleide, que será candidata em 2024. O ponto principal do encontro, para ela, foi aprender a reconhecer o que é a violência política.

Nazaré comenta que não sabe se vai concorrer às eleições de 2024, mas menciona que as candidaturas de mulheres negras são construídas aos poucos, ao longo das gerações, e que é preciso ocupar os espaços na política mesmo tendo que enfrentar as violências que existem. Para ela, entender os processos burocráticos, assim como buscar conhecimentos em diversas áreas, é algo necessário para as campanhas de mulheres negras que, geralmente, possuem pouco recurso e precisam cumprir várias demandas.

“É imprescindível que, principalmente nas eleições de 2024, se tenha um olhar mais atento para as campanhas femininas, para que nos municípios a gente possa ocupar espaço nas Câmaras de Vereadores [e] nas Prefeituras, porque [a quantidade de mulheres negras que há] é muito aquém da realidade da sociedade brasileira, que tem mais da metade de mulheres e mais da metade nesse segmento de pessoas pretas”, trouxe Raquel Branquinho em suas considerações finais na Jornada das Pretas 2023.

Jornada das pretas: encontro promove trocas sobre comunicação para campanhas eleitorais de mulheres negras

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O segundo encontro da Jornada das Pretas 2023, que aconteceu em formato virtual no dia 21 de outubro, iniciou no ritmo do Cacuriá, dança típica maranhense, apresentada pelo coletivo Cacuriá de Dona Teté. A dança abriu os caminhos para as trocas de ideias que se estenderam pela manhã de sábado, e que teve como tema principal as estratégias de comunicação para campanhas eleitorais.

Desde 2021, a Oxfam Brasil, em parceria com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco, reúnem organizações, especialistas e mulheres negras atuantes na política partidária, com o objetivo de promover espaços de formação e fortalecimento de agendas políticas lideradas por mulheres negras cis, trans e travestis de várias regiões do Brasil.

O segundo encontro da Jornada contou com a mediação de Mônica Oliveira, assessora parlamentar e integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, que em sua fala inicial apresentou um resumo de como foi o encontro anterior.

As convidadas que trocaram sobre o tema foram Mariana Nogueira, profissional da área de marketing, que pesquisa sobre política e já atuou em campanhas, e Jheniffer Ribeiro, coordenadora de comunicação do Mulheres Negras Decidem.

Ao longo do encontro, as convidadas apontaram estratégias, exemplos teóricos e práticos sobre como fazer o planejamento de comunicação para campanhas. Nesse processo, ressaltaram as particularidades e as possibilidades das candidaturas de mulheres que possuem limitações de recursos e de tempo.

Mariana Nogueira apontou que o período de pré-campanha – que vai até o dia 16 de agosto de 2024 – já começou, e com isso, vários homens, especialmente homens brancos, já estão fazendo campanha desde a última eleição. “[Eles] não param porque têm toda uma rede de apoio, de recursos, que faz com que possam se dedicar exclusivamente à política”, coloca a especialista em marketing.

Definição de estratégias

Em sua fala, Mariana menciona que para começar uma pré-campanha é importante que as pré-candidatas e a equipe de comunicação estejam cientes e atualizadas sobre a lei de comunicação eleitoral que muda com frequência.

A profissional explica que é proibido pedir voto no período de pré-campanha, assim como transmissão ao vivo por emissoras de rádio das prévias partidárias. Outro ponto que é vetado, é a realização de publicidade por meio de outdoor, seja físico ou eletrônico, tanto na pré-campanha, como no período eleitoral, que acarreta em multa no caso de descumprimento das regras. 

Mariana também apresentou o que é permitido e recomendado: fazer menção à candidatura e exaltar as próprias qualidades como alguém que vai se colocar como candidata, não configura como campanha antecipada. 

“Participar de entrevistas, programas e de encontros para debater o que essa candidata defende, quais são as suas ideias, participar de debates em rádio, televisão e internet também é permitido. Discutir políticas públicas, planos de governo e alianças partidárias, essas coisas também podem ser divulgadas”, exemplificou Mariana.

A construção de imagem também é uma das etapas da comunicação. Essa é uma fase que antecede a divulgação da pré-campanha, segundo Mariana: “É preciso traçar estrategicamente a imagem dessa pessoa que vai concorrer à eleição, que não necessariamente deve ser a mesma imagem que você propaga em alguns ambientes da sua vida pessoal”. A profissional do marketing também destaca que essa imagem precisa ter permanência e coerência.

Segundo Mariana, a permanência tem a ver com símbolos adquiridos ao longo da trajetória e que as pessoas associam à imagem da candidata, como alguma pauta social. “É importante construir essa permanência porque as pessoas vão saber que, de fato, você é uma pessoa que faz política mesmo antes da eleição”, coloca. 

No aspecto da coerência, a especialista em marketing explica: “Ainda que a sua imagem enquanto candidata não seja a mesma que você propague em determinados ambientes do âmbito familiar ou da sua militância, essa imagem precisa ter uma coerência com aquilo que você é, com aquilo que você representa, com o que você acredita e as suas atitudes”, pontua.

Jheniffer Ribeiro salienta a importância de traçar um planejamento de comunicação com foco na construção de uma narrativa. 

“Ter esse controle da narrativa de nós mesmas, [é importante para definir] o que a gente quer colocar na rua e como a gente quer conversar com o nosso eleitorado”

Jheniffer Ribeiro é coordenadora de comunicação do Mulheres Negras Decidem

A coordenadora ressalta que o planejamento traz a liberdade de ter, a partir da narrativa, o controle do que se deseja transmitir. Para ela, um diferencial potente que há nas campanhas de mulheres negras são as narrativas. “É como as nossas histórias, em alguma medida, se aproximam do nosso eleitorado”, menciona.

Mariana afirma que toda campanha precisa ter pelo menos um público-alvo e uma pauta principal bem direcionada. “Para [saber] como a gente atinge o eleitorado que a gente quer trazer para perto”. 

Jheniffer aponta que é preciso ter um foco na comunicação. “Se você falar de tudo não consegue focalizar e ser explícita e objetiva [sobre] onde a sua campanha vai levar as pessoas, porque as pessoas têm que votar em você”, pontua.

“É importante que você defina com quem quer falar e a partir disso [desenvolva] estratégias para poder conversar com essas pessoas, porque essas estratégias não são uma coisa uníssona”

Jheniffer Ribeiro

Ambas as convidadas apontaram sobre a necessidade de traçar um projeto político que demonstre como se pretende melhorar a vida das pessoas. Definir o eleitorado também foi um ponto destacado pelas comunicadoras.

Possibilidades na comunicação online

Mudar o nome da rede wi-fi pelo o nome e número da candidata, pois isso pode se espalhar entre os vizinhos. Estar em eventos, não necessariamente políticos, ajuda a furar a bolha de contatos. Criar núcleos de apoiadores locais que fortaleçam e ampliem o alcance das propostas de campanha. Essas foram algumas das dicas para a comunicação tanto online, como nas ruas.

Jheniffer trouxe táticas voltadas para a comunicação online, além do planejamento amplo de campanha. Segundo ela, é preciso ter um planejamento das redes sociais com cronograma e postagens regulares. Ela aponta que nas redes, as informações essenciais sobre o projeto político e sobre a trajetória da candidata precisam estar em destaque, assim como o número da candidatura. 

“As pessoas passam a associar a sua campanha a determinadas cores, a um jeito de falar e isso também vai criando mais conexão com o seu eleitorado”, comenta a comunicadora, que também colocou sobre dar preferência aos vídeos na produção de conteúdo, sendo a comunicação visual um elemento que dialoga com o eleitor.  

“A chave para uma campanha eleitoral eficaz é a autenticidade e a conexão com o eleitorado. É importante manter uma comunicação clara, ética e focada nos valores e propostas das candidatas, demonstrando comprometimento com a melhoria da vida das pessoas e a defesa dos direitos humanos”, ressalta Jheniffer.

Comunicação associada às vivências

Após as falas das convidadas, as 37 participantes foram divididas em quatro salas para que pudessem compartilhar suas experiências e percepções sobre o tema. Após essas trocas em grupos, todas voltaram a se reunir, e uma representante de cada grupo listou os principais pontos que surgiram dessas interações. 

A dificuldade de falar sobre si foi uma questão que surgiu em todos os grupos e também na fala de Gabriella Borges, que em entrevista, comentou que no início de sua candidatura tinha muita dificuldade para falar em público.

Gabriella Borges, mulher preta, travesti e moradora da periferia de Porto Seguro. (foto: Lorena Nubia)

“Foi um desafio enorme para mim fazer campanha, pedir voto, falar, porque eu tenho uma disforia da minha voz, mas hoje eu estou conseguindo me libertar dela e me superar”, comenta Gabriella, 43, mulher preta, travesti, moradora da periferia de Porto Seguro, cidade da Bahia, estudante universitária de química e que foi a primeira travesti eleita a presidenta de um partido político no Brasil.

Gabriella iniciou sua trajetória política em 2020, e no mesmo ano saiu como cabeça de chapa em uma campanha coletiva concorrendo ao cargo de vereança. Em 2022, concorreu às eleições como deputada estadual, e pretende se candidatar para as eleições de 2024. 

Durante o encontro, Mariana citou como essa dificuldade de falar de si é uma questão estrutural, fruto dos processos de racismo e da misoginia, e indicou o que pode ser feito diante dessa dificuldade. “Sempre tem um público que vai se conectar com aquilo que a gente tem de vivência e isso é muito importante para vocês que são candidatas, porque isso cria laços afetivos”, afirma. 

Jheniffer trás que as vivências e história das mulheres são diferenciais nessa comunicação. “O que tem de diferencial nas nossas campanhas é a nossa própria trajetória. Como nós chegamos até aqui, o que fez com que a gente chegasse até aqui, como isso se aproxima de um projeto de país, que de fato mude a vida das pessoas. Então é muito importante que você se apresente. Não tenha vergonha de contar sua história”. 

Estratégias de comunicação offline

Mariana trouxe indicações que podem ser colocadas em prática presencialmente, como o lançamento de campanha com panfletos e em lugares estratégicos. “Fazer um panfletaço é você se colocar enquanto um candidato presente que está próximo dos problemas daquela localidade em que você vai concorrer”, comenta.

Esse foi um ponto em comum apresentado entre os grupos, a importância de realizar ações de campanhas presenciais e estar perto do eleitorado. Em entrevista, Gabriella comenta que conseguiu expandir o alcance de suas propostas de candidatura através do apoio e do seu envolvimento com os movimentos sociais. Ela aponta que com o apoio da Coalizão Negra por Direitos, pode circular em diferentes regiões da Bahia, na pré-campanha, acompanhando os comitês antirracistas.

Através de sugestões das participantes, Mariana trouxe uma estratégia que foge da lógica das redes sociais, que é a possibilidade do uso da mala direta, considerando que nem todo mundo de fato tem acesso à internet. Ela também aponta sobre a relevância da TV nas campanhas. “O meio de informação mais utilizado pelo brasileiro é a televisão, a televisão ainda não foi superada por nenhum outro veículo de comunicação”, pontuou Mariana.

Ludimilla Teixeira, em 2020, concorreu a uma vaga na câmara municipal, e em 2022, disputou uma eleição para deputada estadual. (foto: Renan Peixe)

Em entrevista, Ludimilla Teixeira, coloca que, para ela, as campanhas presenciais são essenciais nas periferias. “Eu acredito que as rodas de conversa dentro das comunidades, o boca a boca, o disse me disse e o WhatsApp hoje consegue atingir melhor as pessoas que estão nas periferias, nos bairros mais empobrecidos e mais precarizados do que a gente ficar focado em rede social e internet”. Ela complementa: “Se possível brigar no partido pelo horário eleitoral também, porque engana-se quem acha que as pessoas não assistem”.

Mulher negra, de origem periférica, Ludimilla, 41, é natural de Salvador, na Bahia, graduada em publicidade e propaganda, e atua como servidora pública federal do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ludimilla é fundadora do grupo Mulheres Unidas Contra o Bolsonaro, que deu origem ao movimento Ele Não, em 2018.

Ludimilla Teixeira criou o grupo Mulheres Unidas Contra o Bolsonaro, que deu origem ao movimento Ele Não. (foto: arquivo pessoal)

Em suas ações políticas, Ludimilla, que foi candidata à vereança em 2020, e em 2022, ao cargo de deputada estadual, destaca sua preocupação em falar de modo acessível com mulheres.

“Eu quero falar com aquela parte da população feminina que está perdida aí na alienação do patriarcado. E a gente vai falar sobre Simone de Beauvoir e Angela Davis? Não, eu vou falar da minha mãe com ela, eu vou falar das mais velhas da comunidade”

Ludimilla Teixeira

Ludimilla comenta, com exemplo próximo a estratégia apresentada pela Mariana e Jheniffer sobre a adaptação da comunicação de acordo com o público-alvo.

Formar redes de apoio foi mais uma das estratégias citadas pelas convidadas e pelas participantes. Nesse sentido, Ludimilla diz que caso não concorra à eleição em 2024, irá ajudar na campanha de outra mulher. “Não sendo candidata, pretendo estar trabalhando ativamente na campanha de alguma companheira, porque não adianta só ter uma de nós lá”, comenta.

Jornada das Pretas: organizações e mulheres negras atuantes na política partidária dialogam sobre Fundo Eleitoral

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“Não é de hoje e não vai acabar agora, vamos invadir teus discursos, recriar nossas memórias”. Foi com versos como esse, da canção “Contrato Assinado”, que Jaísa Caldas, artista piauiense, abriu a Jornada das Pretas 2023. A iniciativa, que está na 3ª edição, é uma realização da Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco.

O primeiro encontro da iniciativa ocorreu na manhã do dia 07 de outubro, online,  e reuniu 37 mulheres de vários estados do Brasil envolvidas e atuantes na política nacional, para trocarem experiências e dialogarem sobre o Fundo Eleitoral, tema central do primeiro encontro. A Jornada continua nos dias 21 e 28 de outubro.

“São mulheres negras de todo o Brasil, trans, cis e travestis, que desejam fortalecer as suas agendas políticas, que desejam um espaço seguro e fortalecedor para falar sobre participação política de mulheres negras”, menciona Bárbara Barboza, coordenadora da área de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil.

Iasmin Barros, representante do Mulheres Negras Decidem, fala como o movimento se relaciona enquanto parceiro da Jornada, e menciona o objetivo geral da iniciativa. “Tentamos qualificar e promover agendas lideradas por mulheres negras buscando fortalecer a democracia e acreditamos que esses espaços de formação são fundamentais para que isso aconteça”, coloca.

“A gente sabe o quanto é difícil mulheres negras chegarem na política e aqui a gente vai tentar desmontar essas barreiras, tanto com a formação política, mas também com acolhimento”

Iasmin Barros, representante do Mulheres Negras Decidem.

O encontro, que teve como temática central o Fundo Eleitoral e como garantir o cumprimento da lei eleitoral no que se refere às cotas para as mulheres negras, contou com a participação de diversas mulheres que atuam no tema, como Mônica Oliveira, integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e facilitadora da Jornada das Pretas, além das convidadas Carmela Zigoni, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Tauá Pires, diretora do Instituto Alziras, e Estela Bezerra, assessora especial de articulação interministerial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que também foi deputada estadual com mandatos entre 2015 a 2022.

LINHA DO TEMPO

Antonieta de Barros, Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Benedita da Silva, Creuza Oliveira, Marielle Franco e outras mulheres negras, atuantes na política, foram lembradas e tiveram suas falas citadas no vídeo intitulado Mulheres Negras – Consciência Negra, apresentado por Carmela Zigoni, antes do início de sua fala, referenciando mulheres que lutaram e abriram caminhos na política para outras mulheres negras.

Assim como outras convidadas, Carmela traçou uma linha do tempo para apresentar a trajetória com os principais pontos sobre o Fundo Eleitoral. “Foi em 2014 que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a pedir a declaração de raça, cor, segundo as categorias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para as candidaturas, e isso é um marco importante, porque é a partir dessa estatística que a gente começa a dar conta de pedir mais direitos nos processos eleitorais, maior democratização e institucionalidade”, menciona Carmela. 

Tauá Pires, relembrou que em 2015, aconteceu uma reforma política que proibiu o financiamento de campanhas por empresas. “E aí vem esse debate sobre ter um fundo público que permita o financiamento de campanhas e a gente vai ver o quanto isso é importante para o aprofundamento da democracia e para a participação de mulheres negras”.

O que é o Fundo Eleitoral? Exclusivo para o financiamento de campanhas, é um recurso distribuído para os partidos apenas no ano de eleição. A definição do fundo eleitoral é feita pela LOA (Lei Orçamentária Anual) e ele é transferido pelo Tesouro Nacional para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conforme explicou Tauá durante o encontro.

Na eleição de 2016, para cargos de vereança e Prefeituras, Carmela menciona que foi fixada a regra dos 30% de cotas para as mulheres. “Mas ainda não tinha uma regra específica para o financiamento de campanhas. Menos de 1% das candidaturas de mulheres negras nesse pleito, e menos de 0,1% de declaradas pretas”, conta.

Em 2018, uma nova regra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) definiu que os partidos deveriam repassar 30% dos recursos do fundo especial de financiamento de campanha para as candidaturas de mulheres.

Tauá, Carmela e Estela relembraram a importância de Benedita da Silva, que atualmente é deputada federal e referência no que diz respeito às conquistas de espaços e direitos de mulheres negras na política. Junto aos movimentos negros, em 2020, Benedita fez com que fosse direcionada uma parte do fundo eleitoral para as candidaturas de mulheres e pessoas negras, conforme a proporcionalidade total dessas candidaturas no partido. 

“Benedita realizou uma consulta ao TSE em 2019 e o TSE acatou a aplicação, mas para eleição de 2022. E aí o STF interferiu e determinou que [a decisão] já seria para eleição de 2020”, relata Carmela. Segundo a assessora política do Inesc, os partidos, por sua vez, alegavam não saber como aplicar a sobreposição de cotas de mulheres e de pessoas negras, o que gerou uma desigualdade ainda mais acentuada nas candidaturas. 

Carmela aponta que enquanto o recurso para as pessoas brancas foi liberado no primeiro dia de candidatura, o de mulheres e pessoas negras demorou cerca de 15 dias para ser repassado, o que é um prejuízo significativo, considerando o tempo de campanha de 45 dias para o primeiro turno.

“Mesmo com essa identificação do problema que se deu internamente nos partidos para fazer o repasse, os partidos entraram com uma PEC, um Projeto de Emenda Constitucional, para anistiar os partidos, ou seja, para perdoar os partidos que não tinham feito repasse corretamente e foi aprovado”, conta Carmela sobre os desdobramentos que ocorreram após as eleições de 2020. 

Em sua fala, Carmela menciona também que houve a tentativa de implementar  uma minirreforma eleitoral, que não foi aprovada, e portanto, não vale para a próxima eleição. Mas ela pontua o que estava em jogo nessa proposta. 

“A cota seria por coligação e não por partido, teria uma redução de 20% dos recursos para mulheres e pessoas negras. Os recursos para mulheres poderiam ser utilizados por candidaturas de homens. Essa minirreforma favoreceria partidos maiores”, conta Carmela, demonstrando que direitos conquistados ainda não são garantias e seguem em disputa. 

Com falas complementares que apresentavam perspectivas e acontecimentos relacionados ao fundo eleitoral, as convidadas mencionaram que ter acesso aos dados, conhecimento sobre como os partidos políticos funcionam, se articular em coletivo para os enfrentamentos de disputas, construções dentro e fora dos partidos e manter-se informadas são estratégias fundamentais para as mulheres que querem ser eleitas. “A gente tem que ter conhecimento para poder viabilizar as nossas candidaturas”, aponta Estela.

COTA DO FUNDO ELEITORAL PARA MULHERES NEGRAS

Ao longo do encontro, as participantes puderam expor suas questões e experiências a partir de algumas perguntas orientadoras acerca dos desafios para acessar o Fundo Eleitoral. Algumas participantes compartilham os mesmos desafios em sua atuação, como a insatisfação de se sentirem usadas apenas para a garantia de um coeficiente da legenda do partido na obtenção de recursos. 

“Há uma falta de responsabilidade com a candidatura das mulheres. Porque os partidos políticos nos querem candidatas, mas eles não nos querem eleitas. Eles precisam da cota de mulheres para poder garantir a [campanha] de homens, mas eles não dão condições para que a gente vá para uma disputa de igualdade, para que a gente minimamente consiga ter uma votação expressiva”, aponta Ana Cleia Kika, liderança da região Norte e que vem refletindo sobre a sua experiência como mulher negras acessando os recursos do fundo eleitoral.

Foi em 2020, quando se candidatou pela primeira vez, concorrendo ao cargo de vereadora e passou a participar da Jornada das Pretas, que Kika pôde entender melhor como tudo isso funcionava na prática.

“Não temos as mesmas condições que os homens brancos têm dentro dos partidos, de ter apoio político, mas foi através dos movimentos sociais, através da Jornada das Pretas, do Estamos Prontas que está ligado ao Instituto Marielle Franco e outras organizações, que eu vim entender como que os partidos políticos funcionam”

Ana Cleia Kika

Ainda durante o encontro, Tauá apresentou dados sobre as desigualdades entre os financiamentos de campanhas. “Segue sendo muito determinante a questão do autofinanciamento. Ou seja, pessoas ricas, que já estão na política tradicionalmente, muitas vezes são filhos, netos, pessoas que se perpetuam na política e conseguem fazer o autofinanciamento da campanha”. 

Tauá aponta que existe um limite de 10% do teto previsto para cada cargo em disputa. Mas, segundo ela, os candidatos investem em média 36,3 milhões em dinheiro do próprio bolso para campanha. “Quais mulheres negras têm recursos próprios para poder fazer um auto financiamento?”, questiona a diretora do Instituto Alziras.

Durante o encontro, com base na pesquisa realizada pelo Inesc, Carmela comentou sobre a diferenciação de financiamentos conforme classe social, gênero e raça. “2020 foi o ano principal da pandemia, e identificamos, cruzando os dados da Receita Federal com [os dados do] auxílio emergencial, que muitas candidatas negras estavam acessando o auxílio emergencial porque precisavam, [sendo que] 30% das candidatas negras recorreram a esse auxílio. Elas realmente precisavam desse benefício”, aponta Carmela. 

Com relação a necessidade de auxílio financeiro, em entrevista, Kika conta sobre uma situação semelhante que passou em 2022, quando se candidatou a deputada estadual. “Era bolsista do mestrado e quando registrei a minha candidatura perdi a bolsa, aí fiquei em um desespero só e tomando de conta da campanha”, conta.

Ana Cleia Kika no Encontro Nacional do Estamos Prontas Rio de Janeiro 2022 (foto: Ludmila Almeida)

Ela relata que o que ajudou nesse momento foi a seleção que participou através do Instituto Marielle Franco e do movimento Mulheres Negras Decidem, para ser uma liderança do projeto Estamos Prontas. “Cada estado tinha uma liderança, que era apoiada pelo Instituto e a gente tinha uma bolsa de auxílio financeiro. Inclusive, para ajudar a gente nesse período de pré-campanha, porque muitas de nós às vezes acaba passando dificuldades, sendo que às vezes não tem nem o que comer”, pontua.

Kika foi uma das mulheres negras prejudicadas por não receber o fundo eleitoral de forma adequada. “Eu participei de várias reuniões e eles [integrantes da secretaria de finanças do partido] falavam assim: ‘vai ser depositado inclusive adicional das candidaturas negras’. E esse adicional não foi depositado. Só foi depositado a primeira distribuição que foi da cota de gênero, eles depositaram uns 15 dias depois que tinham começado as eleições, então eu saí em desvantagem em relação a outros candidatos”, aponta. 

Andreia Deloizi, liderança pernambucana, mulher negra trans, quilombola, sacerdotisa, se candidatou em 2022 à deputada estadual, sendo cabeça de chapa em uma candidatura coletiva. Andreia também faz parte da Jornada das Pretas desde 2022 e enfrenta desafios semelhantes para acessar o fundo eleitoral.

Andreia Deloizi participou do primeiro encontro da Jornada das Pretas 2023, que teve como tema o Fundo Eleitoral.
Andreia Deloizi, liderança pernambucana, mulher negra trans, quilombola, sacerdotisa, candidata em 2022 à deputada estadual (foto: Bira Fotógrafo Caruaru).

Ela conta que ainda não sabe se vai se candidatar para as eleições de 2024, e relata que a experiência não é tão boa. “Fazer política sendo uma pessoa periférica, quilombola, em uma cidade que para política é muito violenta e para vereadora é mais violenta ainda, isso requer cuidado”, finaliza Andreia, que também confirma a participação nos próximos encontro da Jornada das Pretas.

Corre Coletivo usa história em quadrinhos para transformar educação de jovens nas periferias

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O Corre Coletivo, grupo localizado no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo, está transformando processos pedagógicos para educar jovens nas periferias, por meio da introdução de história em quadrinhos para promover letramento crítico e social. A iniciativa também aposta na criação de uma comunidade voltada para o acolhimento e troca de artistas iniciantes na área de arte educação.

“Nós temos uma enorme possibilidade de utilizar quadrinhos como uma linguagem pedagógica, porque ela é acessível para a juventude”, explica Wesley Silva, coordenador pedagógico do O Corre Coletivo.

Segundo Silva, quadrinhos como a Turma da Mônica ajudaram a alfabetizar muita gente, fora os clássicos, como Ziraldo, mas o universo digital possibilita outras abordagens de impacto nos leitores. “Além deles, têm os quadrinhos digitais que chegaram com muita força, principalmente as webtiras”, afirma.

Wesley Silva, o Lelo, como é conhecido nas periferias do Grajaú, é formado em artes visuais, pós-graduando em Arte educação: Teoria e Prática na ECA-USP e atua em rede com outros coletivos de arte educação nas periferias do Grajaú, um território com grande diversidade de saberes territoriais.

Cofundador do Corre Coletivo, Lelo foi o idealizador do projeto que deu vida à HQ Inimigo Invisível. Foto: Ana Pra Rua

Combate à desinformação

Em 2020, no auge da segunda onda de Covid-19, O Corre Coletivo, em parceria com o SESC Interlagos, criou o projeto ‘Inimigo Invisível’, iniciativa no começou como uma reunião de artistas para criação de desenhos para colorir, distribuídos para crianças, mas durante o avanço da pandemia de Covid-19, tornou-se uma HQ com super heróis que explica os riscos, traz dados e apresenta métodos de segurança para prevenção de contágio com o vírus.

“Para além de ser um quadrinho, ele ainda é muito educativo. Eu trago a política nas coisas que eu faço, para fazer com que as pessoas reflitam. Só que ao mesmo tempo, eu to ligado que a galera gosta de consumir comédia, besteirol. Eu quero criar coisas assim, que as pessoas achem da hora, só que ao mesmo tempo elas se vejam, porque no geral a gente não se vê, não são feitas por nós, nem para nós”, conta Ciano Buzz, educador e artista visual que participou da criação do Inimigo Invisível.

Ilustrador desde a infância, Ciano atua como educador de desenho e quadrinhos desde os 16 anos. Foto: Corre Coletivo

O artista visual Ciano, morador da Cidade Líder, zona leste de São Paulo, se define como um “griô do futuro” e busca trazer para dentro de processos educativos em escolas públicas uma visão multisciplinar em relação a arte e ao contexto de ancestralidade da população negra e periférica.

A HQ teve tanto sucesso que recebeu o chamado Oscar dos Quadrinhos, o troféu HQ Mix, na categoria Projeto Especial na Pandemia. Com isso, abriu espaço para o coletivo incentivar novas ações que não somente educassem crianças e jovens por meio dos quadrinhos, mas também abrisse um espaço de diálogo para que eles também pudessem contar suas histórias por meio das HQs, ampliando a representatividade nesta mídia.

Selo Lajota

A Base Nacional Comum Curricular, o BNCC, documento que define os direitos de aprendizagem de todos os alunos das escolas brasileiras, aponta que as HQs podem ser utilizadas, do 1º ao 5º ano do ensino fundamental para “Construir o sentido de histórias em quadrinhos e tirinhas, relacionando imagens e palavras e interpretando recursos gráficos (tipos de balões, de letras, onomatopeias)”.

Foi assim que nasceu, em 2023, o selo Lajota, espaço dedicado a ser uma comunidade de acolhimento para jovens que produzem histórias em quadrinhos nas periferias e que possuem o desejo de contar suas próprias histórias por meio dessas revistinhas. Além disso, é uma iniciativa editorial que democratiza o acesso por meio das webcomics, HQs online acessadas gratuitamente por meio do aplicativo Funktoon.

“O momento que eu juntei ciência na arte foi no quadrinho que eu estou produzindo agora [no selo Lajota], uma webcomic chamada ‘Mizu’, que é sobre uma menina gamer que retrata que a sua quebrada está passando por uma grande seca”, conta o biólogo e ilustrador, Lucas Andrade, o Lukera, um dos criadores da HQ Inimigo Invisível.

“Eu tento fazer isso no sentido da periferia se apropriar da pauta ambiental, porque eu acredito que é para ontem isso. Quando acontecem secas, somos os mais afetados por rajadas de vento, alagamentos”, contextualiza Andrade.

De forma pedagógica, cuidadosa e sensível, o Corre Coletivo busca construir diálogos com jovens estudantes de escolas públicas nas periferias, partindo de elementos culturais presente na construção da identidade cultural dos jovens.

“A gente procura chegar em uma zona próxima para falar de coisas importantes. Quando a gente fala do Miles Morales, um homem aranha negro caribenho, a gente consegue falar sobre esse recorte de ser uma criança preta na adolescência que gosta de grafiti e hip hop e está em descoberta, se sente abandonado e sozinho, e dialoga muito com o que a juventude vive”, explica Lelo.

A premissa de abordar um contexto cultural e social vivenciado pelos jovens moradores das periferias também é apontada pela a quadrinista Marília Marz, criadora da HQ curta “Zebra”, que fez parte da 8ᵃ edição da revista Ragu, vencedora do prêmio HQ MIX 2022 na categoria “Projeto Editorial”.

Para ela “pessoas negras, periféricas, indígenas e lgbtqiap+ , estão acostumadas a se verem representadas nas mídias pelo olhar, muitas vezes enviesado. A história em quadrinhos é um recurso muito importante para que as pessoas possam se enxergar, possam enxergar as próprias histórias e as próprias vidas”, conclui.

“A gente ficou 40 anos proibidas de jogar”: Maria Amorim propõe reparação histórica para o futebol feminino

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Para além dos resultados obtidos com a bola em campo, a Copa do Mundo Feminina, 2023, explicitou as diferentes e acentuadas dificuldades e desigualdades que os times femininos, ainda hoje, enfrentam. “O futebol feminino profissional quanto a investimento, não está nem 1% comparado com o masculino”, afirma Maria Amorim, 38.

Apaixonada por futebol, Maria é uma mulher preta, cearense, periférica, mãe do Lucas, de 18 anos, da Ana, de 13, e companheira do Beto. Ela é moradora de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, joga futebol desde criança e como educadora social viabiliza que meninas e mulheres da periferia pratiquem esse esporte, que frequentemente é dito como masculino.

Moradora de Parelheiros, além de jogadora, Maria também é ativista em defesa do futebol feminino (foto: arquivo pessoal)
Moradora de Parelheiros, além de jogadora, Maria também é ativista em defesa do futebol feminino (foto: arquivo pessoal)

“Eu diria que [sou] ativista da modalidade feminina, sempre buscando ocupar lugares majoritariamente masculinizados, que nunca sonhou em ser jogadora profissional, mas que sempre teve dentro de si a luta pela modalidade, que decidiu brigar por esses espaços, que não é só meu, mas de todas as mulheres que querem jogar e praticar futebol independente de se profissionalizar ou não”.

Maria Amorim. educadora social de Parelheiros.

O futebol de várzea, predominante nas periferias, é a principal área de atuação de  Maria. Ela é fundadora, junto com seu companheiro Beto, do time Apache Feminino e da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros, que reúne 110 equipes. Maria também é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos. Em 2019, ela criou e hoje conduz o projeto FutVida, que insere crianças de 6 a 15 anos no esporte.

As treinadoras, Maria Amorim e Cecília Bringel, e as crianças do projeto FutVida (foto: arquivo pessoal)

Futebol de base: peneira e investimento

No entanto, Maria também contribui com perspectivas sobre o futebol feminino profissional, somando com as visões e as realidades que há nas periferias. “O futebol feminino hoje, falando desde o profissional, que respinga no amador, eu acho que tem muito uma [questão de] reparação [histórica], né? A gente ficou 40 anos sem jogar futebol, 40 anos proibidas de jogar.” a educadora traz um contexto histórico e desdobramentos atuais sobre o assunto.

“A Federação [Paulista de Futebol], recentemente, criou a peneira sub 17. Isso é muito bom, porque na minha época não tinha peneira. Uma peneira sub 17 da Federação oportuniza as meninas a participarem e [serem visibilizadas e analisadas pelos] responsáveis de clubes. Só que tinha uma questão muito forte, que era o atestado médico”, menciona a treinadora.

Maria também relata sobre uma constatação que ela expôs em uma reunião, que ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), solicitada pela Deputada Leci Brandão, em defesa do futebol feminino, que reuniu integrantes do futebol de várzea, do profissional e a ex-coordenadora da Federação Paulista de Futebol, Thais Picarte, em 2022.

“Na minha fala, eu trouxe que entendo totalmente que o atestado médico seja necessário, mas a forma como ele é pedido é muito burocrático. Uma mãe de Parelheiros não vai faltar um dia de trabalho, para levar a menina ao médico, para conseguir um atestado.”

Maria Amorim, fundadora da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.

Ela ressalta que a demora para ter atendimento é outro problema que surge ao levar meninas ao médico, no SUS, para conseguir o atestado médico. “Para ter esse atestado, o médico vai pedir exames. Então, estava tendo menos meninas pretas nas peneiras. E aí, eu trouxe essa reflexão: onde é que estão as meninas pretas? Na periferia, esse caminho para a menina chegar até à peneira é muito longo.” complementa.

Maria acrescentou também, nesta reunião, que uma realidade recorrente nas periferias é a situação das mães solos, que não podem arriscar a fonte de renda da família, faltando ao trabalho, para acompanhar as filhas nesses processos. Ela destacou e reivindicou que, “as instituições, a confederação têm que achar um caminho”.

Reunião na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) realizada em 2022, em defesa do futebol feminino. (foto: arquivo pessoal)

As colocações da educadora social trouxeram resultados. “Esse ano de 2023, na própria peneira, eles colocaram um médico à disposição, então a menina podia ir sem um atestado médico, lá passava pelo médico da Federação e fazia o atestado na hora. Então, já foi uma possibilidade que encurtou muito o caminho das meninas”, conta Maria.

Apesar da conquista, iniciativas e dos demais feitos realizados, a educadora social diz que se preocupa muito com o cenário do futebol feminino devido à falta de valorização. “Na periferia tem muita menina boa de bola. Então, qual seria o futuro ideal para o futebol feminino? Clubes grandes, instituições como a Federação, olhar para o futebol feminino e implantar projetos, fazer parcerias com projetos já existentes”, sugere Maria. Ela menciona que o ideal é ter investimento e suporte para que no futuro essas meninas sejam selecionadas para jogar profissionalmente.

“Hoje, cada clube profissional só tem um time feminino, porque é obrigatório, ou seja, se vai participar de uma Libertadores, se o clube tá dentro da Conmebol, ele precisa ter um time feminino. Por isso que os grandes clubes têm, porque senão, não tinha”

Maria Amorim é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos.

Em contrapartida, a educadora social, através do projeto FutVida, busca aproximar e tornar possível o acesso de meninas e adolescentes, dos bairros Jd. São Norberto e Nova América, na zona sul de São Paulo, ao futebol. “A gente que é de periferia, quando decide montar um projeto e trazer as meninas para o esporte, a gente tem que buscar estratégias para que ela continue praticando, juntamente com a família”, argumenta a educadora, mencionando que é preciso fortalecer os vínculos com os pais como um caminho para tornar esses processos colaborativos, a fim de criar redes de apoio para as meninas que sonham em jogar futebol.

“Tem um ditado africano que a gente leva muito pra vida [que diz], ‘que é necessário toda uma aldeia para cuidar e educar uma criança’. E é isso que a gente faz com os nossos movimentos. A gente precisa estar junto. A gente precisa fazer essa construção coletiva”, conclui Maria.

Mulheres atuam dentro e fora de campo no futebol feminino na quebrada

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Técnica, jogadora e pesquisadora atuam a partir do futebol de várzea femino nas periferias e ressaltam a importância desse esporte para além das quatro linhas do campo.

“A gente sabe que o esporte transforma e cura muitas coisas”. Esse é um dos motivos que fazem com que a técnica Cecília Bringel, atue com o futebol. Técnica do projeto FutVida e jogadora do time Chelsea Feminino, Cecília acredita na importância do futebol feminino de várzea para além dos jogos, por ser um espaço de socialização, acolhimento e humanização do esporte e de quem o pratica.

Cecília é mãe, educadora social e moradora do bairro Nova América, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, território onde fundou, em 2022, o time de futebol Chelsea Feminino. Na região, ela também atua como diretora e treinadora do projeto FutVida.

“Eu entendo que o futebol me tirou da depressão. E no rachão eu já ouvi meninas falar, ‘eu não sei jogar bola, não sei nem chutar’, mas só do tempo que elas estão com a gente jogando, dando risada, correndo um pouco, elas já falaram, ‘isso aqui tá me fazendo tão bem’. A gente sabe que o esporte transforma e cura muitas coisas.”

Cecília Bringel técnica do projeto FutVida, fundadora e jogadora do time Chelsea Feminino.
Cecília Bringel com os filhos Isaac, 6, e Ana Clara, 10. (Foto: arquivo pessoal)

A técnica aponta que o futebol feminino de várzea opera para além do campo de futebol, com reflexos que são notados ao longo do tempo. Ela conta que, assim como muitas meninas, sua ligação com o futebol aconteceu jogando bola com meninos.

“Desde quando era criança eu já jogava bola na rua com os moleques. Eu sempre joguei com os meninos. A maioria das meninas começam assim. A minha filha acabou de chegar e foi jogar bola com os meninos, [por exemplo]”, conta Cecília Bringel.

Jogadoras do Chelsea Feminino em momento de descontração (Foto: arquivo pessoal)

Atualmente, ela divide as responsabilidades do time Chelsea Feminino com o companheiro, Ricardo, e os jogos do time acontecem toda sexta à noite. 

“Tinham muitas meninas que jogavam bola antigamente e pararam por causa da correria do dia a dia de nós, mulheres, trabalhar, cuidar de filho, de casa, essas coisas”, conta Cecília sobre como surgiu a ideia de criar o time, que hoje é formado por 28 mulheres.

Cecília também é diretora e técnica do projeto FutVida, iniciativa criada em 2019, pela Maria Amorim, também moradora de Parelheiros e uma das lideranças socioculturais do território.

Maria Amorim é fundadora e jogadora do time Apache Feminino. (Foto: arquivo pessoal)

Educadora social e pedagoga, Maria, junto com o seu companheiro, o Beto, fundou o time Apache Feminino e a Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.

Nascida no Ceará, Maria sempre jogou futebol, desde a infância. Ao se mudar para São Paulo, com 8 anos, passou a ter maior contato com o esporte dentro da escola. “Não por vontade dos professores, mas por insistência minha, porque eu lembro de diversas vezes em que o professor me colocava para sentar ou me dava outra opção esportiva enquanto os meninos jogavam futebol”, compartilha Maria.

Maria sempre gostou de futebol e hoje entende que pode trabalhar de diversas formas a partir do esporte. Ela aponta que a importância e resistência da presença de mulheres no futebol vai além de estar em campo jogando.

“Na várzea eu posso jogar, eu posso gerir um time, ser técnica, ser responsável de um campo. Posso vender meu churrasquinho para tirar a minha renda. Posso estar inserida ali independente dos olhares, das críticas e do preconceito. Eu consigo e eu posso ocupar esse lugar de alguma forma”

Maria Amorim é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos, criadora do time Apache Feminino e da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.
Equipe do Apache Feminino. (Foto: arquivo pessoal)

Além de criadora do time Apache Feminino e da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros, a profissional também é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos.

Além das quatro linhas

Os desdobramentos do futebol de várzea feminino vão além do jogo. Alguns times, por exemplo, organizam rodas de conversas para auxiliar na saúde física e mental de mulheres. Por vezes, competir e vencer não é o mais importante na várzea feminina. 

Crianças do projeto FutVida. (foto: arquivo pessoal)

Juntas, Cecília e Maria tocam o projeto FutVida que busca inserir crianças no esporte. “Hoje, a gente atende mais de 100 crianças em duas comunidades aqui no Jd. São Norberto e Nova América”, conta Maria. A iniciativa é gratuita e atende crianças de 6 a 15 anos.

Atualmente, 15 dessas crianças são meninas, sendo que as entrevistadas apontaram vários motivos para a baixa participação de meninas, como a falta de apoio ou a proibição dos pais, por vezes essas meninas são responsabilizadas pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos irmãos desde cedo.

Todas as jogadoras que participaram da 3ª edição do “Maior Festival Feminino de Várzea do Mundo” receberam medalhas.

Outra iniciativa que também tem uma mulher à frente, é a Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros, criada pela Maria e o Beto, seu companheiro, que reúne mais de 100 equipes. “A Liga surge para entender onde estão essas equipes, como a gente faz para se unir, para se organizar e competir também”, conta Maria sobre a criação da Liga em 2016.

A partir da atuação da Liga, em 2022, junto com a historiadora Aira Bonfim, em um projeto de extensão da universidade PUC, várias equipes femininas de futebol de várzea foram mapeadas. “O mapeamento surge a partir da pergunta que muitas pessoas faziam, ‘mas tem futebol feminino?’. Foi a partir dessa pergunta também que eu decidi fazer o festival”, coloca Maria.

“A gente quer ver meninas de 13 anos jogando, mas a gente quer ver mulheres de 50 anos jogando também. Então, a liga surge para essa organização do futebol de várzea”, afirma.

Confira o mapeamento produzido pela Aira Bonfim e a Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.

A 3ª edição do festival foi realizada em julho de 2023, no Parque Sete Campos, em São Paulo. O evento foi totalmente gratuito, reuniu 80 times de futebol feminino e mais de 1.000 jogadoras.

Apoio e articulação

A historiadora Aira Bonfim, lembra que, no Brasil, o futebol feminino foi proibido por lei durante quase 40 anos, entre 1941 até 1979. “O futebol ajuda a entender muitas realidades desse período. As mulheres já estavam fazendo as mesmas coisas que a gente faz hoje, de tensionar essas questões na sociedade”, coloca a historiadora.

Aira ressalta a necessidade de olhar essa atuação para além do ato de jogar. “É importante essas meninas terem sim o sonho de se tornarem profissionais, mas por vezes, o sonho é apenas jogar futebol, que nem isso às vezes é acessível”, coloca.

Mesmo com as diversas ações realizadas dentro e fora de campo, Maria aponta a falta de investimento ainda como uma das dificuldades na prática do futebol feminino, seja ele na várzea ou profissional. Ela também ressalta que os comércios locais que apoiam financeiramente os times de várzea masculino, não dão valor quando se trata do futebol feminino.

“Ninguém quer investir e a gente está falando de política pública também, porque hoje o futebol masculino tem investimento de políticas públicas e a várzea feminina não tem”, reforça Maria.

“Tem discriminação principalmente se for uma doula preta”, doulas refletem sobre a regularização da profissão

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Sem regulamentação, o trabalho de Doulas ainda se caracteriza como uma atividade informal e com poucas garantias, principalmente para profissionais de regiões periféricas. 

A doulagem é um trabalho de cuidado com a pessoa gestante antes, durante e depois do parto, oferecendo suporte e acompanhamento nesse processo de gestar. Em 2022, aconteceu a audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados sobre a aprovação do Projeto de Lei 3946/21, que busca regulamentar a profissão de doula no país.

Doula é uma assistente de parto, que não necessariamente possui formação em ciências da saúde. Seu trabalho é realizar um acompanhamento para o cuidado e bem estar da pessoa gestante durante o período da gestação, ao longo do parto e até os primeiros meses pós parto.

Isabela Lima, 31, atua como benzedeira, artesã e doula. Nascida em São Vicente, baixada santista, atualmente mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo. Ela conta como, por ainda não ser regulamentado, o trabalho de doula apresenta dificuldades, como falta de piso salarial e remuneração fixa.

“A doula que administra essa parte financeira de quanto cobrar, como e se vai. Tem muitas doulas que fazem esse trabalho de forma social para pessoas em vulnerabilidade, assim como eu. Acredito que esse projeto sendo aprovado vamos realizar nosso trabalho de forma mais segura e efetiva, sem que precise bater de frente com as instituições de saúde”, afirma a doula Isabela Lima, que também é mãe do Gabriel de 6 anos e do Bento de 3 anos.

A profissional aponta que além da discriminação por ser uma profissão considerada informal e não existir uma regulamentação, também enfrenta discriminação racial dentro das unidades de saúde.

“[Estamos] ali para auxiliar, não para atrapalhar como muitas vezes escutamos [da] assistência médica. Nós não somos vistas com bons olhos, temos que lidar com discriminação, principalmente se for uma doula preta. Além de lidar com a rejeição do corpo médico, ainda precisei lidar com a discriminação racial.” 

Isabela Lima, mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo, é benzedeira, artesã e doula.

A doula conta que antes mesmo de estudar e iniciar a sua atuação profissional na doulagem, já fazia um trabalho de apoio emocional com pessoas gestantes a sua volta e buscou esses estudos a partir da sua primeira gestação, período que tinha medo de sofrer violência obstétrica ou passar por alguma negligência médica. “Hoje eu me encontro como parteria tradicional, tentando fazer um resgaste de saberes ancestrais que foram tirados do nosso imaginário”, afirma. 

Isabela pontua que a doulagem é uma das funções que compõem uma equipe de assistência para pessoas gestantes. “Trabalhando justamente nesse lugar de bem estar. [Doula] traz esses saberes em relação aos cuidados com a saúde do responsável do bebê e do bebê, mas é diferente da parte técnica da assistência médica, da assistência de enfermagem. [Doula] não faz nenhum procedimento técnico de enfermagem como ausculta, exame de toque, não realizamos nada disso”, coloca.

“Enquanto pessoa preta [e] periférica atuo na quebrada, como forma de enfrentamento do medo que senti na minha gestação de sofrer alguma violência ou ser negligenciada, já que sabemos que os corpos pretos são os mais violentados. Também proporcionar a ideia de uma qualidade de vida e bem viver para as pessoas da quebrada que não tem acesso ao sistema de saúde que ferramentalize o bem viver.”

 Isabela Lima, é benzedeira, artesã e doula.

Isabela atua de forma autônoma, mas também faz parte da Associação Doula Solidária, uma iniciativa que facilita o contato da pessoa gestante com doulas de vários locais, como uma forma de democratizar e entender esse trabalho como um direito de saúde e assistência.

Regulamentação para garantia de direitos

“Desde que houve flexibilização da pandemia, os únicos hospitais do SUS que têm permitido entrada de doula é o hospital de Parelheiros e o Amparo Maternal que recentemente recebeu uma pressão da ADOSP – Associação de Doulas do Estado de São Paulo, para que pudéssemos voltar a atuar, pois também vínhamos enfrentando dificuldades”, coloca Hanny Rodrigues, 29, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo. Para a profissional, a regulamentação afeta diretamente as doulas que são moradoras e atuam nas periferias. 

“A galera que pode pagar por um hospital ou tem convênio, seja ele particular ou pela empresa, já consegue acessar nosso serviço sem maiores problemas, porque a maioria dos hospitais particulares permite o nosso acesso sem grandes dificuldades. É uma escolha política barrar a gente nos hospitais públicos.

Hanny Rodrigues, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo.

A doula conta que iniciou o trabalho de doulagem por influência da irmã, logo depois foi estudar e em 2018 começou a atender na área. Ela é membro da ADOSP (Associação de Doulas SP) e aponta que atualmente existe um acordo informal de uma contribuição de R$ 1.900 para um acompanhamento de encontros pré-natal, partos e pós-partos. A doula enfatiza que é apenas um acordo ético e que na prática as doulas recebem muito menos. 

“Não basta realizar um curso preparatório de doulas, embora hoje existam muitas formações disponíveis no mercado, tanto de forma presencial, quanto online. Não só sobre o parto em si, mas sobre a importância real da doula. Avaliar qual é a sua disponibilidade de tempo para dedicar à sua gestante e também a sua saúde mental”, compartilha Hanny.

Articulação em rede

A busca pela regulamentação do trabalho das doulas tem sido articulada por diversos movimentos, entre eles a Fenadoulas Brasil, organização que reúne associações de doulas do Brasil e busca articular o campo de defesa da atenção multidisciplinar com inserção de doulas nesse cuidado, além de apoiar entidades filiadas que atuam para fortalecer o protagonismo da pessoa no ciclo gravídico puerperal, a partir do acesso a informações de qualidade e atendimento humanizado, respeitoso e digno.

Morgana Eneile é doula, pesquisadora, presidenta da Fenadoulas Brasil, e pontua que não existe uma restrição para se tornar doula, mas uma orientação para pessoas que tenham o ensino médio completo e seja maior de idade. Além de uma formação de doula que atualmente é feita através de cursos livres, privados ou públicos, coordenados por profissionais que atuam com doulagem.

“A prática da profissão já está organizada formalmente na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), mas ainda há diferentes leituras que tendem a ser mais uniformizadas a partir da aprovação de uma legislação nacional que possibilite a compreensão geral do universo de trabalho”, pontua a pesquisadora em referência a importância de regulamentar a profissão.

Para Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo), é extremamente importante que aconteça a regulamentação para que possam ser reconhecidas como profissionais. “Doula é profissão há muitos anos. [É] importante esse reconhecimento como profissional até mesmo no campo financeiro. Outro ponto importante é ter coerência e coesão principalmente na base das formações”, afirma. 

“Através da regulamentação, além de equalizar minimamente as formações, considerando os critérios necessários para formação de qualidade [e] reconhecimento das profissionais, nos permite acesso aos locais onde as pessoas gestantes estão parindo seus filhos. Com a regulamentação, as Doulas têm livre acesso aos hospitais – sejam eles públicos e/ou privados rede suplementar.”

Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo)

“A presença da doula no cenário de parto é uma ferramenta extremamente importante para o cuidado das parturientes, inclusive em relação à proteção contra a violência obstétrica”, pontua Kau Marua.

Ao Padre Jaime Crowe: um agradecimento da juventude

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Temos experiências que são frutos de sua luta pelo direito à vida da juventude, com o relato de alguns jovens que foram atendidos por seus projetos e seguem seu legado.

 “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”

Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré

São Paulo, Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Ali dos lados que Mano Brown se refere quando canta “dá ponte pra cá”. Casas demais, gente demais, talentos demais, jovens demais e oportunidades e direitos de menos. Nas nossas quebradas, sempre foi assim. Mas não sem a voz do nosso povo reivindicando pela garantia mínima de condições de vida.

E dentre essas vozes teve uma que se levantou, mas não era das mulheres que enterravam seus filhos jovens vítimas da violência, era uma diferente: de um senhor padre, branco, estrangeiro, que chegara à região. 

Levando a sério a passagem bíblica de que “a fé sem obras é morta”, Jaime foi agente de várias e várias obras, algumas lembradas pelo Rafael Cícero neste artigo:

Quando os distritos Jd. Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís passaram a ser conhecidos como Triângulo da Morte por ser a região mais violenta do mundo inteiro, o Padre rezava missas e missas de 7º dia pelos corpos das diversas vítimas de violência, em sua maioria jovens e negros da periferia. Mas não achava isso normal: sentia um incômodo e a partir daí percebeu a necessidade de lutar para reverter este quadro de homicídios na região. 

Jaime nos deixou em fevereiro de 2023 e felizmente podemos dizer que sua luta em vida não foi em vão: hoje temos experiências que são frutos de sua luta pelo direito à vida da juventude com o relato de alguns jovens que foram atendidos por seus projetos e hoje seguem seu legado. 

Ingryd Boyek, Sociedade Santos Mártires.

Ingryd Boyek tem 25 anos, é psicóloga e atua como assistente técnica no SCFV – Centro para Criança e Adolescente Riviera da instituição Sociedade Santos Mártires. Também é coordenadora da Rede Ubuntu de Educação Popular e psicóloga do coletivo Ubuntu de Saúde e Cidadania. Segundo ela: 

“Falar do Padre Jaime e do seu trabalho é falar sobre esperança, principalmente para a nossa juventude. A sua obra tem um impacto enorme na minha vida, porque desde quando tinha 8 anos fui acolhida pelo Centro de Formação e Recreação São José, participando ativamente das atividades do ozen, que com a mudança de nomenclatura passou a ser Centro para Criança e Adolescente (CCA), e dos cursos e oficinas do Centro para Juventude Riviera (CJ)”.

E completa: “O espaço que ocupo como indivíduo e como profissional existe porque pessoas como o Padre Jaime acreditaram que eu conseguiria e impulsionaram-me a conquistar. Orgulho-me de ser agente de transformação positiva, de poder retribuir nos lugares que percorro tudo que aprendi com esse grande homem e com tantas outras pessoas que lutam para não termos nenhum direito a menos. Agradeço por ele ter insistido no nosso território e na nossa juventude.”

Saulo Vilanova, Sarau Apoema.

Saulo Vilanova tem 24 anos, é morador do Jardim Ângela, estudante de Letras na USP e membro do Sarau Apoema. Desde 2018, é coordenador e professor da Rede Ubuntu de Educação Popular. Em suas palavras:

“Num terreno de vulnerabilidades, não há forma de se progredir sem cultivar sonhos e de lutar coletivamente. Apesar disso, são poucas as pessoas que conseguem juntar o povo oprimido e elevar nele a sua autoestima, que historicamente é esmagada. Padre Jaime, ao lutar incansavelmente por essa auto-estima, é um marco na história de muitos periféricos, sabendo eles ou não disso. Nesse bonde, é preciso incluir a juventude favelada do Jardim Ângela, a quem ele foi um incansável defensor por gerações e gerações.”

Ele continua: “É preciso dizer, porém, e é claro, que o Sarau Apoema, tão recente na história da arte periférica do Jardim Ângela, não foi o primeiro movimento a ser acolhido e incentivado dessa forma. Era também através de Jaime que batalhas de rima, apresentações de teatro, lançamento de livros e outros movimentos artísticos ganharam fôlego. Jaime acreditava na arte como forma de valorização e resgate da vida, e nisso passamos a acreditar também”. 

Saulo ressalta que nessa guerra que Jaime escolheu combater com sua sobrevivência e vitalidade, a juventude do Jardim Ângela, seja qual geração permanecer, terá sempre um espírito de gratidão.

Juntos num só lema! Saudações, Jaime!

Isabella Souza, Rede Ubuntu de Educação Popular.

Isabella Souza tem 21 anos, é estudante de Psicologia, moradora do Jardim Ângela, ex-aluna e atualmente coordenadora na Rede Ubuntu de Educação Popular. Para ela:

“Não tem como lembrar do Padre Jaime sem lembrar dos sábados em que ele visitava o cursinho e nos cumprimentava com ‘saudações corinthianas’ e um sorriso no rosto. Lembrar do Padre Jaime é lembrar do significado de Ubuntu: eu sou porque nós somos.” 

Ela completa: “Sem a ajuda e presença do Padre Jaime eu não estaria na faculdade, com bolsa 100%, no 4º ano do curso da minha vida e podendo retribuir (mesmo que minimamente) todo o esforço e trabalho que os voluntários do cursinho tiveram para que eu pudesse sonhar. A Rede Ubuntu carregará sempre a chama de esperança que o Padre Jaime acendeu em nós e essa chama ficará cada vez mais forte. Obrigada por tudo, Padre!”

No país em que um jovem é assassinado a cada 17 minutos (Atlas da Violência 2021), a continuidade de toda a mobilização segue sendo necessária. 

Nós, jovens periféricos, merecemos o direito à vida e a uma vida com oportunidades. 

Por ter levantado sua voz em nossa defesa, deixamos aqui ao padre Jaime Crowe o nosso muito obrigada.


Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Campanha Elas Transformam: construindo caminhos e ações

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O movimento Elas Transformam é uma iniciativa do projeto MUDE com Elas que mobiliza ações e campanhas de combate ao racismo e ao sexismo no processo de inserção juvenil no mundo do trabalho.

Antes de tudo peço licença aos leitores de minhas colunas, meus temas são gerais e desde 2020 busquei trazer reflexões para possíveis debates, contudo, resolvi também falar sobre ações que implementam importantes mudanças e podem ser nossa nova forma de criar diálogos com as juventudes.

Sendo assim, vim apresentar o Mude com Elas, um projeto que nasceu em 2020 e é implementado pela Ação Educativa, tem colaboração com a Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em São Paulo (AHK São Paulo) e possui apoio da Terre des Hommes Alemanha (TDH), responsável pela coordenação geral do projeto e co-financiadora junto com o Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha. 

O projeto foi planejado pensando a entrada desigual dos jovens no mundo do trabalho e junto a isso os marcadores de gênero e raça, dentro do cenário da falta de políticas públicas, inserção desigual, sobrecarga, racismo entre outros, seria necessário criar estratégias para garantia dos direitos dos jovens e principalmente das jovens mulheres negras que são extremamente afetadas negativamente por essa dinâmica.

Assim o Mude se estruturou em algumas frentes envolvendo: incidência com a criação de uma parceria multiatores, envolvendo a sociedade civil, poder público e setor privado, e também uma iniciativa piloto de inserção de jovens mulheres negras nas empresas parceiras da AHK, prevendo formação técnica e cidadã e sensibilização de colaboradores de empresas alemãs.

Desde o lançamento, o projeto vem se unindo a diferentes atores sociais e políticos, além de refletir sobre a formação das jovens que fizeram parte desse aprendizado e suas entradas no mercado de trabalho.

Em 2021, o projeto conseguiu atuar para a criação de uma Subcomissão de Juventude dentro da Comissão de Finanças e Orçamento e desde então a Comissão instalada tem sido uma maneira de levar até o poder público as problemáticas enfrentadas pelos jovens de periferia, em especial as jovens mulheres negras.

Pensando em toda essa trajetória, o projeto construiu a maravilhosa Campanha Elas Transformam que foi lançada em 1 de Maio, o dia do trabalhador.

O movimento Elas Transformam é uma iniciativa do projeto MUDE com Elas que mobiliza ações e campanhas de combate ao racismo e ao sexismo no processo de inserção juvenil no mundo do trabalho. O projeto MUDE com Elas tem como realizador a Ação Educativa, Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em São Paulo (AHK São Paulo) e o escritório de Terre des hommes Alemanha (Tdh).

A Campanha busca um diálogo com as empresas e seus pares para que sejam realizadas mudanças efetivas dentro do mercado de trabalho como um todo, não somente no RH.

Falar sobre jovens mulheres negras e mercado de trabalho também é tocar na trajetória das nossas jovens de periferia que estão agora iniciando a sua jornada. Então convido aos leitores interessados a procurarem e apoiarem essa luta! 

Por fim, deixo o convite para o evento “Encontro de Juventudes “Orçamento e Políticas Públicas” que acontecerá no dia 24 de Junho de 2023, das 13h30 às 17h, no Auditório 1º de Maio, no 1º andar da Câmara Municipal de São Paulo: Viaduto Jacareí, 100 – Bela Vista, São Paulo – SP, Palácio Anchieta. 

Que um dia nossos jovens possam sonhar

Que a morte desencontre nossa vida

Para que o horizonte seja um passo para construção 

E não o fim cinza

Agnes Roldan

“A demarcação de terra é baseada no modo de vida do não indígena”, denúncia Thiago Djekupe

Luta pela demarcação de terras criminaliza povos indígenas e impede ações coletivas, que poderiam unir as periferias, favelas e quilombos. (Foto: Dan Agostini)
Manifestação reúne lideranças indígenas guarani para protestar contra o Marco Temporal. (Foto: Dan Agostini)

Na última terça-feira (30/05), a Câmara dos Deputados, em Brasília, aprovou o projeto de lei 490, que estabelece o Marco Temporal, um conjunto de regras jurídicas que dificulta a demarcação de terras indígenas. No mesmo dia, em reação a esta decisão, inúmeros protestos dos povos indígenas se espalharam pelo Brasil.

Em São Paulo, lideranças indígenas guaranis do território Jaraguá, localizado na região noroeste da cidade, ocuparam a Rodovia dos Bandeirantes e foram brutalmente repreendidos pela polícia militar.  

“A demarcação de terra é baseada no modo de vida do não indígena, na sua crença geográfica, porque nós se entendemos como um povo livre e não proprietário de terra, nos entendemos como parte da terra, parte de toda vida que se encontra aqui”

Thiago Djekupe, liderança guarani do território indígena Jaraguá

O texto do projeto de lei do Marco Temporal só reconhece as terras indígenas legalmente ocupadas ou que estavam em disputa para serem demarcadas quando a Constituição Federal foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, momento reconhecido na história do país como período de redemocratização após o fim da ditadura militar.

Com 283 votos a favor do Marco Temporal, os parlamentares do PL, PSD, PP, PSDB, PODE, MDB, AVANTE, PV, PSC, PDT, União Brasil, Republicanos, Cidadania, Patriota e Solidariedade, partidos que representam o centrão e a extrema direita, contribuíram para o PL 490 avançar para o Senado Federal. Agora, o projeto de lei tramita com a numeração 2.903/2023.

A terra indígena Jaraguá possui 1,7 hectares, ou seja, mais de 10 mil metros quadrados. Essa região é cercada pelo Rodoanel, Rodovia dos Bandeirantes e Anhanguera. Atualmente, os povos indígenas desta região seguem na disputa política para demarcação dos 534 hectares, uma luta coletiva e  histórica que pode ser completamente inviabilizada pela aprovação em definitivo do Marco Temporal.

“O pico do Jaraguá é sagrado para nós. Chamamos de Itawera, porque o ‘Ita’ é das pedras e o ‘wera’ é a força dos raios. O pico do Jaraguá no mundo é o lugar que mais tem ascendência do raios, que diverge né, ao invés de ele descer, ele sobe, e para nós, isso é o natural, e nós caminhamos sempre em busca da Yvy marã e’ỹ, que significa ‘Terra Sem Males’. Então esse é o caminho que fazemos seguindo a espiritualidade, seguindo a nossa fé”, contextualiza o líder indígena do povo Guarani.

A sobrevivência dos ancestrais do presente

O líder indígena Thiago Jekupe lembra que a sobrevivência faz parte da sua infância, momento em que uma família de empresários imobiliários tentou se apropriar de forma criminosa das terras sagradas do Jaraguá.

“Quando eu era criança, a família Pereira Leite veio aqui para tentar comprar a terra com uma mala de dinheiro. Colocou aqui um monte de homens armados com fuzil, metralhadora, calibre 12, cercaram nossa comunidade para nos ameaçar, e eu era só uma criança, e mesmo no tempos de agora com a gente provando que a nossa existência que garante as demais vidas, a gente teve o governo do estado, governador do palácio dos bandeirantes, um bandeirante chamado Geraldo Alckmin, entrou com um mandado de segurança contra o processo de demarcação da terra indígena Jaraguá”, revela.

“Lutar por demarcação é lutar pelo pouco que sobrou para que sobrevivamos. Quando estamos falando de demarcação, não é só demarcação de terra indígena, tem que se lembrar que as terras quilombolas mal são faladas. Não se fala sobre demarcação de terra quilombola, terra caiçara, vários movimentos têm a visão e movimento de querer aquilombar a periferia, mas não querem garantir os quilombos”

Thiago Djekupe, liderança guarani

A demarcação da terra indígena Jaraguá foi conquistada em 2015, reconhecendo os 532 hectares como área pertencente ao povo guarani, mas logo em seguida aconteceu o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, um fato que mudou totalmente a vida dos mais de 1 mil indígenas que viviam no território naquela época.

Neste contexto, o Ministro da Justiça, Torquato Jardim, do governo do presidente sucessor Michel Temer, revogou a Portaria Declaratória n°581, de 2015, que reconhecia os 532 hectares de ocupação guarani na região metropolitana de São Paulo. Desta forma, o território passou a ter somente 1,7 hectares.

Periferias, favelas e territórios indígenas juntos pelo direito à terra

Luisa Silva Rafacho, 24 anos, agente cultural e ambiental, moradora do Jaraguá, afirma que as periferias têm uma forte relação na luta pelo direito com os territórios indígenas. “Eu acredito que as lutas por terra na quebrada e na aldeia se relacionem ao ponto que são formas de pensar em futuros coletivos, em soluções de reflorestamento, de bioconstruções, e principalmente a forma que você constrói sua casa, capta água e luz, poderia ser uma luta muito mais compartilhada, principalmente no campo das políticas públicas”, argumenta.

Para a agente ambiental, essa seria uma forma coletiva de promover um desenvolvimento cultural e ambiental que poderia evitar a separação destas lutas dentro da cidade. “Ser uma pessoa preta e periférica vivendo em um território de preservação dos últimos remanescentes da mata atlântica do Brasil, e ainda ter a cidade como parte disso, é compreender essa relação que a cidade está inserida dentro da mata, e foi crescendo assim, e só de pensar nisso, eu me adapto nessa condição, acredito que a floresta pode ser o futuro”, ressalta a moradora do Jaraguá. 

Jekupe também acredita nessa correlação de luta e diz que a quebrada se unir à demarcação também é uma forma de independência das periferias. “Imagina a periferia aproveitando seus espaços para trazer saneamento ecológico, saneamento barato, prático, se você tem agrofloresta na quebrada, entende que pode se investir em placas solares e parar de pagar energia, você sai da mão dos bandeirantes, da mão do palácio dos bandeirantes, eles não querem que a periferia entenda que a quebrada forte, que uma memória pode despertar a independência do seu território”, analisa.

Ao parar por alguns momentos e refletir sobre tudo o que tem acontecido no contexto do Marco Temporal, o líder indígena faz uma comparação sobre o impacto da criminalização da vida nas periferias, favelas e nos territórios indígenas.

“Nós estamos em situação precária que nem nas favelas e nas quebradas, sem saneamento básico, abandono de animais, por isso temos que lutar juntos e não dividir nossas lutas, as pessoas nos criminalizam pra dividir, a gente só tá buscando uma terra sem mal, e porque o não indígena não pode também buscar uma terra sem mal?”, questiona o líder guarani.

Justiça tributária: Entenda por que o pobre cada vez fica mais pobre #36

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Você sabe como são cobrados os impostos no nosso país? Sabe como isso afeta o quanto sobra do seu salário no fim do mês?

No Brasil, a maior carga tributária é cobrada sobre o consumo, na forma de impostos indiretos, ou seja: em taxas quando compramos mercadorias, sejam elas roupas ou alimentos. Nesse sentido, as taxas afetam a população de formas diferentes. 

Atualmente, nosso sistema de tributação é o regressivo, isso significa que, proporcionalmente, quem recebe menos, sente de forma mais significativa o peso dos tributos, mesmo pagando o mesmo preço em determinado produto, em comparação com alguém que ganha mais. 

Por exemplo, se uma pessoa que recebe R$ 100.000,00 compra uma calça jeans de R$ 200,00, que tem um imposto ICMS de 31,45% – o que representa R$ 60,96 do seu preço – esse valor é aproximadamente 0,07% da renda dessa pessoa em forma de taxas. Já para quem recebe um salário mínimo (R$1.518,00), comprar dessa mesma calça representa em torno de 4,3% dessa renda apenas em impostos.

No episódio 36 do Cena Rápida, convidamos a Eliane Barbosa, professora do curso de Administração Pública da Unilab no Ceará e também diretora da Plataforma Justa, para explicar sobre a desigualdade no sistema de cobranças brasileiro. Também participa Douglas Belchior, professor de história e diretor do Instituto de Referência Negra Peregum, que em agosto de 2025, junto com diversas organizações e movimentos sociais, lançou a campanha Justiça Tributária, Já!

Esta reportagem foi produzida com apoio do Território da Notícia como parte da campanha Justiça Tributária, Já!

Custo de vida na quebrada: o básico pesa no bolso

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O aumento dos alimentos tem pesado nas mesas das famílias periféricas, que precisam fazer malabarismos, se virando, para poder fechar o mês. O salário mínimo não acompanha a inflação, e quem vive de bico, trabalho autônomo/informal, sente ainda mais o impacto.

Segundo dados do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), hoje o ideal de salário mínimo para uma família de até 4 pessoas, que vive na quebrada, se manter durante o mês com o básico seria de R$ 7 mil reais. Salário esse que está bem longe da realidade de muitas famílias.

Na feira e no mercado se tenta negociar até o último centavo, trocando misturas mais caras pelas mais baratas, e muitas vezes deixando de lado o que antes era o básico: fruta, leite, café. Comprando no pingado o que dá para levar.

Esse aumento no preço da comida escancara um Brasil desigual, enquanto no centro da cidade os carrinhos estão cheios e o delivery nunca para, na quebrada a mãe precisa escolher entre comprar mistura ou pagar a conta de luz.

Sempre sobra para a quebrada ter que se virar. Mas até quando? Até quando a comunidade vai ter que se equilibrar na corda bamba, improvisando na panela, enquanto bancos e grandes empresas batem recorde de lucro? 

A dignidade não pode ser privilégio. Viver para além do básico é direito, não favor. O problema não é só a alta dos preços, é a desigualdade que insiste em deixar a periferia com as sobras de um país que não garante justiça social. 

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Síndrome pós-aborto? As evidências dizem o contrário

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Há alguns anos, em um almoço de domingo na casa da avó, minha sobrinha contou que o professor de filosofia tentou organizar um debate na sala de aula. Ele queria dividir a turma em duas, de um lado quem era contra o aborto, deveria defender seus porquês. De outro, quem era a favor, deveria fazer igual. “Mas não deu certo, né? Quem vai ser contra o aborto?”, disse ela, no auge da tranquilidade de seus 14 anos. Foi um reboliço. Daqueles bons mesmo. Argumentos variados apareceram, até que alguém disse: “a mulher que faz um aborto fica traumatizada pra sempre!”

Nessa hora, ela já tinha lançado um: tia, me ajuda! E eu, que não sou psicóloga, mas gosto demais de trocar ideia, respondi que o aborto, quando feito em condições seguras e respeitosas, não é necessariamente traumático e que as pessoas têm respostas emocionais diferentes a experiências difíceis. 

No Brasil, em que o aborto está necessariamente ligado a situações de trauma, como a violência sexual, risco de vida da mulher e, em particular, a criminalização, talvez o impacto psicológico seja realmente aumentado. 

Além disso, há os casos de luto parental, como as malformações e abortos espontâneos, onde a perda de uma gestação desejada é geralmente vivida com muito sofrimento. Mas ressaltei que  era difícil mensurar, já que não temos as condições ideais para produzir dados científicos confiáveis no Brasil.

Não temos como entrevistar quem faz um aborto fora destas condições traumáticas, porque a interrupção voluntária de uma gestação ainda é crime e as pessoas precisam se esconder, mas que eu mesma conhecia várias pessoas muito felizes e confortáveis com suas decisões de abortar. 

Além disso, a criminalização faz com que não haja como garantir tratamento médico acolhedor para ninguém, já que profissionais de saúde não recebem o treinamento necessário, e quase não cuidam adequadamente nem dos abortos espontâneos, nem dos previstos em lei.

O debate sobre os supostos impactos psicológicos do aborto é muito antigo. Nos anos 1980, o tal trauma era equiparado ao dos soldados que voltavam da guerra do Vietnã. Esse mês, no entanto, um projeto de lei, apresentado pela vereadora Sonaira Fernandes, institui a “Semana de Conscientização Sobre a Síndrome Pós-aborto” para “informar e conscientizar à população da cidade de São Paulo sobre as consequências psicológicas que acometem a mulher após a realização de procedimentos abortivos”. 

Não é novidade que a extrema direita mundial seja bem avessa a evidências científicas, então é meio chover no molhado. Mas vocês me desculpem, educar sobre aborto é meu trabalho.

É comum defensores da existência da tal síndrome dizerem que é “evidente” que as mulheres se arrependem de abortar, que sofrem perda de autoestima e depressão. Mas as evidências científicas seguem dizendo o contrário.

A professora estadunidense Diana Greene Foster é autora do mais extenso estudo sobre os impactos de fazer ou ter negado um aborto na vida e na saúde mental das mulheres, feito quando o aborto ainda era legal em todo seu país. Ao apresentar os resultados, conta de um juiz que defendia a restrição no acesso ao aborto dizendo exatamente isso: era evidente, embora as evidências não existissem.

Diana e sua equipe visitaram 30 clínicas de aborto nos Estados Unidos e selecionaram quase mil pacientes que foram acompanhadas por dez anos. Essas mulheres foram separadas em dois grupos: as que fizeram um aborto e as que tiveram o seu aborto negado por estarem acima do limite de semanas permitido. O livro, Gravidez Indesejada: The Turnaway Study, foi publicado no Brasil em 2024, pela Sextante.

As mulheres tinham, no início, condições sociais e de saúde similares, e eram entrevistadas a cada seis meses, para medir suas saúde física, mental e o bem-estar de suas famílias. Durante os anos em que foram acompanhadas, contudo, suas vidas tomaram caminhos que poderiam ser atribuídos ao fato de terem ou não tido acesso ao aborto que queriam e necessitavam.

Primeiro, um maior impacto na saúde mental (como ansiedade, depressão, baixa autoestima) e saúde física (incluindo uma morte no parto) entre as que foram obrigadas a parir. Os resultados em termos sociais e econômicos também são importantes: as que conseguiram abortar eram menos impactadas pela instabilidade profissional e pobreza, além de conseguir mais facilmente sair de relações violentas.

Poder planejar a reprodução impacta sobre ter maior ou menor autonomia financeira, em poder sair de um relacionamento abusivo, no cuidado das crianças que já existem ou em seguir com os estudos, coisas que, segundo a OMS, afetam profundamente a saúde mental

Ao mesmo tempo, esse projeto de lei de SP insinua novamente que as mulheres não sabem tomar decisões informadas sobre seus próprios projetos de vida. Como se não tivéssemos a capacidade intelectual ou a estabilidade emocional necessárias para tanto, quando, na verdade, essa é geralmente uma decisão que coloca na balança finanças, saúde, família, filhos, relacionamentos e ambições de vida. E isso porque as mulheres cuidam de todo mundo, como já falei aqui antes, e é disso que trata a Justiça Reprodutiva, há décadas.

Por fim, queria fazer um convite: dia 28 de setembro é celebrado como dia Latinoamericano e Caribenho pela Legalização de Descriminalização do Aborto e o Dia Internacional do Aborto Seguro. Então, se você está em São Paulo nesse mês tão importante para feministas do mundo inteiro, não deixe de ocupar a Avenida Paulista, e participar da Marcha organizada pela Frente Estadual pela Legalização do Aborto, em frente ao MASP, a partir das 11h.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Falta de políticas públicas agravam problemas com álcool nas periferias, apontam especialistas

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No Brasil, 45% dos brasileiros consomem algum tipo de bebida alcoólica, sendo 27% de forma moderada e 17% de maneira abusiva, segundo estudo do Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool (CISA), que traz dados coletados até 2023. Considerando uma população com mais de 200 milhões de habitantes, isso representa cerca de 36 milhões de pessoas sob uso de álcool no país. O panorama também mostra que, entre as pessoas que declararam consumo abusivo de álcool, 59% são negras.

O sanitarista, pesquisador e redutor de danos, Allan Gomes, aponta que questões relacionadas ao uso excessivo de álcool são problemas sistêmicos. “O desemprego e a falta de oportunidade vão criando um cenário de vulnerabilidade e estresse constante. Quando não existe equipamento cultural, esportivo, de lazer, o bar se torna um ponto de lazer, [de socialização] para essa população, principalmente aquela que tem os marcadores de classe, de raça e de cor”, afirma.

Segundo Allan, fatores sociais interagem entre si e potencializam o risco de quem desenvolve este uso abusivo, que também envolve a combinação de vários fatores sociais, econômicos e culturais.

“Questões de saúde, como o uso de álcool e drogas, atingem a todos. Por isso, é essencial olhar para cada situação a partir da redução de danos, construindo junto com a pessoa a melhor resposta para aquele momento, contexto e realidade”, pontua ao citar o uso que gera prejuízo ao indivíduo e, por vezes, as pessoas do entorno.

Ele coloca que o uso abusivo de álcool pode estar relacionado a uma série de situações, como o marketing para consumo da bebida, dificuldade de acesso a equipamentos públicos, questões familiares, contextos sociais e econômicos, entre outras situações. “Existe uma naturalização muito forte do consumo do álcool que muitas vezes faz parte da vida comum. Sempre irá aparecer como elemento de socialização para todo mundo. Esse marketing que existe da indústria do álcool é muito agressivo”, coloca.

Consumo x dependência

Ao considerar que o consumo de álcool não é o problema em si, mas sim a dependência, o especialista lembra que, entre os fatores do uso abusivo, em muitos casos, está vinculado a um recurso de socialização. 

“É claro que socializar com álcool é algo comum, mas podemos problematizar [os contornos desse consumo em excesso], que afeta, por exemplo, a população de rua de forma muito diferente. A experiência de viver na rua é angustiante e pesada”, exemplifica ao citar sobre os diferentes contextos e motivações no consumo. 

“Muitas vezes, o álcool funciona como um amortecedor, ajudando a lidar com o isolamento e a falta de políticas públicas. Acaba sendo um alicerce para suportar a vida em meio à precariedade. É como uma válvula de escape”. Allan Gomes, sanitarista, pesquisador, redutor de danos em álcool e outras drogas.

Ao se debruçar sobre as estatísticas, Allan analisa que a população negra é a mais impactada. Ele pontua um acúmulo de vulnerabilidades e a principal delas, quando se trata dessa população, é o racismo nas estruturas sociais. Para os homens negros, o cenário ganha outros contornos.

A edição de 2024 da pesquisa Álcool e a Saúde dos Brasileiros do CISA, mostra que mulheres negras (pardas e pretas) são as mais afetadas por mortes relacionadas ao álcool e a população negra em geral tem as maiores taxas de óbitos atribuíveis ao álcool.

“O uso histórico da bebida alcóolica carrega estigmas [colocados sob a pessoa que consome], mas se esmiuçar [voltamos aos] paradigmas raciais. O racismo vai adoecendo, nós, homens negros, e acabamos nos retraindo. Nesse contexto, o álcool se torna uma forma de acolhimento, mas também de destruição”, ressalta.

Políticas de cuidado como forma de prevenção ao excesso e dependência

O pesquisador ressalta a importância da rede de apoio quando existem circunstâncias de danos como reflexo do uso abusivo. Na perspectiva da política pública, através do SUS, cita os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), em especial os de atendimento para álcool e drogas que desenvolvem um trabalho de cuidado das pessoas com algum tipo de transtorno relacionado à bebida e outras substâncias. 

Allan lembra que o SUS oferece o Programa de Controle do Tabagismo, que promove grupos de apoio nas Unidades Básicas de Saúde. “Da mesma forma, é necessário, em termos de política pública e SUS, construir programas de educação em saúde voltados ao álcool, tanto para quem deseja parar de beber definitivamente quanto para quem quer apenas reduzir o consumo. A redução de danos é importante, pois constrói junto com a pessoa e o profissional de saúde a melhor abordagem”, explica.

“Não existe uma abordagem fixa para cuidar do álcool na saúde pública. O essencial é dialogar com as pessoas sobre o uso problemático e abusivo, que afeta inclusive as dinâmicas familiares”. Allan Gomes, sanitarista, pesquisador, redutor de danos em álcool e outras drogas.

Ele coloca alguns caminhos para enfrentar o uso problemático de álcool, como: criar campanhas de educação e saúde sem apelo punitivista ou moralista; desenvolver programas de controle e redução do consumo que envolva as UBS no território; fortalecer outros espaços de acolhimento e acompanhamento e a elaboração de uma estratégia nacional focada em promoção da saúde, ancorada nos princípios da redução de danos. 

“Existem os Narcóticos Anônimos, os Alcoólicos Anônimos, grupos de apoio comunitário que são estratégias a se considerar. Mas que eles não sejam a única resposta. A redução de danos, reconhecida pela Política Nacional de Saúde Mental há pelo menos 20 anos, ainda enfrenta muitos preconceitos, tanto entre profissionais quanto no nível da política pública. Isso porque ela é, acima de tudo, uma estratégia de direitos humanos”, destaca Allan.

Estrutura social e seus diferentes impactos  

A política para Redução de Danos é uma resolução baseada na Portaria Nacional nº 1.028, de 1 de julho de 2005, que garante saúde com liberdade e autonomia. A mesma não é contra a abstinência, mas busca pautar um uso seguro que entenda as dinâmicas que atravessam a vida das pessoas.

Astro Rafael Feraci, psicólogo e redutor de danos que trabalha junto às populações em situação de vulnerabilidade, ressalta que a abordagem precisa sair do campo teórico e se aproximar da realidade das pessoas nos territórios. “Por mais que a gente tenha muitos relatos sobre como é uma droga legalizada com a via comercial e tudo mais, falta trazer para o pé no chão. O que é necessário é uma conversa sincera e trazê-lo como uma substância, pois muitas vezes o álcool nem é visto como droga. O álcool não é visto, o cigarro não é visto, o remédio, o café que se toma não é visto como uma substância”, explica.

Entre os atravessamentos nessa discussão que envolve desigualdades, para Astro, o acesso a espaços diversos também é uma camada de debate. “Qual é o tipo de lazer que cada região periférica consegue ter? O centro de São Paulo é um lugar mega badalado, com vários acessos à cultura, ao lazer e a espaços de socialização. Ao mesmo tempo, temos pessoas que conseguem acessar esses recursos e também o outro lado: a população em situação de rua, que não tem acesso a nada”, exemplifica.

“A redução de danos traz esse olhar para a singularidade do [indivíduo]. Quando a gente ouve a pessoa, a gente consegue atender o corpo completo. Também existe um lugar estrutural onde se olha para o uso de forma muito individual, pensando na pessoa que faz uso de substâncias. Só que o uso de álcool acontece de forma coletiva, socializando num rolezinho ou na rua para amenizar a fome, o frio e outras situações”. Astro Rafael, psicólogo e redutor de danos. 

O psicólogo ressalta a necessidade de ações conjuntas que considerem as pessoas de forma mais ampla, também a partir dos atravessamentos sociais. Classe, raça e gênero são marcadores que estruturam as avaliações e uso dos espaços de saúde, como refletem os resultados da avaliação sobre os serviços de Atenção Primária do SUS, divulgada em 2025, a partir de uma amostra composta por 2.458 respostas de todo o Brasil. 

O estudo ‘Perfil dos Usuários Mais Frequentes da Atenção Primária à Saúde (APS)’, mostra que mesmo sendo a população negra – 57,1% pessoas pardas e 16,2% pretas, em especial mulheres 60,2%, a que mais busca serviços de APS, são os homens brancos que melhor avaliam o atendimento. Ainda que eles não utilizem o serviço.

“Moro na periferia de Suzano, sou transmasculino não binário, então [coloco] outros recortes também para pensar esse uso. É importante colocar que estou falando de uma perspectiva própria [pois] minha história também se atravessa a partir desse assunto”, comenta ao pontuar outras perspectivas no debate debate sobre redução de danos com populações vulnerabilizadas.

Astro alerta sobre os efeitos do estigma com as pessoas em situação de maior risco que fazem o uso excessivo a ponto de causarem danos para si e coletivamente. “Isso gera um distanciamento desumanizado. A pessoa deixa de ser vista como humana e vira ‘outra coisa’, selvagem”. Para ele, reconhecer a importância da humanização na acolhida gera construção de vínculos genuínos. 

Atendimentos públicos

Encontre endereços de unidades do CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), principal serviço, funcionando em regime de “porta aberta” para oferecer tratamento multiprofissional e acompanhamento sem necessidade de encaminhamento ou agendamento prévio: Acesse aqui

Espaços que realizam reuniões dos Narcóticos Anônimos (NA) para orientação e encaminhamento próximos ao seu endereço: Acesse aqui. O site também oferece a opção de participar de reuniões virtuais.

O NA oferece uma linha telefônica para pessoas que precisam de ajuda imediata: 0800 888 6262 ou 132. Também existe a opção de conversar pelo WhatsApp: (19) 3255-6688.

Também é possível buscar apoio do grupo Alcoólicos Anônimos (AA): Acesse aqui para localizar endereços onde são realizadas reuniões presenciais ou virtuais.

O AA realiza atendimento também através de WhatsApp, pelo telefone: (11) 94719-6531. Além de um número de Plantão Telefônico: (11) 3315-9333.

As Unidades Básicas de Saúde podem orientar e encaminhar para tratamento especializado através do Sistema Único de Saúde.

Quando a poesia é a historiadora das periferias

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Os cantos de exaltação dos territórios e de seus moradores apontam para vitórias passadas e presentes sem esquecer as mazelas que nos são impostas e a necessidade de futuros nossos.

Não é de hoje que a poesia conhecida como épica ou erudita, narra a história de alguns povos contando como suas glórias superam suas desventuras. Assim acontece com a Ilíada e a Odisseia de Homero, escritas pelo autor com base na tradição oral grega narrando as histórias de Ulisses e seus companheiros gregos na Guerra de Tróia e no retorno do “herói” à Atenas como símbolo da suposta “inteligência superior” desse povo.  

Foi assim com “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões que, no século XVI, procurava eternizar em forma de exaltação a violenta expansão e colonização portuguesa em África e Ásia, que já ocorria há dois séculos e que estava chegando à América. 

Essas são as histórias que – quando a estrutura precária de nosso sistema público de educação permite ou é superada – conhecemos nas aulas de literatura, história e em adaptações cinematográficas. Histórias que transformam violência e dominação em experiências de glórias de um povo. Que são usadas à exaustão para nos convencer da falsa superioridade branca e europeia da tal da “civilização”. 

Importante dizer que até bem pouco tempo não ouvíamos falar dos Griots e de sua capacidade de narrar as histórias de diversos povos africanos. 

Esses cantos à civilização, palavra que vem de civitas (que significa cidadão, em latim, aqueles que viviam em cidades) serviam para celebrar cidades que eram como os países que temos hoje. Nas cidades/municípios brasileiros, são inúmeros os exemplos das epopeias locais. Paulo Eiró, poeta romântico da segunda metade do século XIX, cantava as paisagens e sobrados de “sua” Santo Amaro natal (antiga cidade e hoje distrito de São Paulo) com grande nostalgia.  

Arlindo Cruz, referência do samba, recentemente falecido, também o fez cantando o subúrbio de Madureira, no Rio de Janeiro. Aqui em São Paulo, além de sambistas e rappers que cantaram territórios negros, de favelas e periferias, temos poetas que colocam nossa realidade em outro patamar, provando a sua dignidade de serem cantadas, estudadas e incensadas pelo mundo – que o diga Sérgio Vaz, hoje musealizado em exposição do Museu das Favelas.

A civitas periférica  não é considerada cidade e nem civilizada pelos “donos dela” (que se acham civilizados e civilizadores…). No entanto, para nós, ela tem sentimento, cor, inteligência, venturas e desventuras. Temos nossos griots e nossos épicos que nos dizem o tempo todo que somos parte da cidade e temos as rédeas de nosso futuro. 

Danylo Paulo, precocemente falecido em agosto do ano passado, aos 34 anos de idade, é uma dessas figuras. Além de poeta, era produtor cultural, fanzinero e grafiteiro, sendo um dos fundadores do Sarau do Vale em 2015, coletivo que atua como Casa de Cultura Popular do Jardim Iguatemi, distrito que não possui esse equipamento pela prefeitura.  

Memórias de Um São” é uma de suas obras primas. Um épico sim. Inspirado na enciclopédia da cultura periférica e popular de São Mateus, produzida por Amanda Freire e Priscila Machado durante a articulação do Fórum de Cultura de São Mateus em 2015.

Neste texto o heroísmo é de São Mateus, e São Mateus são seus moradores, cidadãos-criadores do seu lugar.

Cidade ainda fronteira, com suas novas ocupações surgindo. Cidade rapper, cidade graffiti, cidade teatro. Cidade violência policial e urbana. Cidade que produz conhecimento que melhora nossa visão de mundo, de nossas opções, mas sem incentivo para chegar onde deveria. Franja onde o cheiro do Aterro Sanitário, o São João, fustiga nossas narinas. 

Lugar onde reina a poesia, com Sarau do Vale, Seu Camilo, Urbanista Concreto, Slam São Mateus e suas jovens poetas, apesar de todas as amarguras. Romantismo, glória? Não. Temos aqui o épico pé no chão, que pega o busão lotado e parado na avenida, mas quer o transporte vazio, confortável e rápido. Que sofre com o aterro, mas quer os parques. Que foge do tiro e sonha com a paz. Que celebra sua cultura, seus produtores, mas lamenta o subfinanciamento. Não tem como não lembrar que essa era a essência do Danylo.  Amor por São Mateus sim, cego jamais. 

Quando chegamos à zona sul, distrito do M’Boi Mirim, Jardim Ibirapuera, terra do sanfoneiro Escurinho do Acordeon, da líder comunitária e professora Tia Maria e de um Bloco do Beco que toma a Salgueiro do Campo, principal rua do bairro, todos os anos nos carnavais, colocamo-nos a escutar a poetisa e moradora Jenyffer Nascimento (uma das maiores escritoras e arte-educadoras desse país, vale ressaltar) ironizando poeticamente a identidade implementada pela burocracia do Estado que apaga as mulheres negras e periféricas.  

Jenyffer Nacimento. Minidocumentário Identidade Quebrada. IbiraLab, 2023.

Que as trata, e os demais moradores das quebradas, como número de RG, CPF, foto, documento, estatística sem passado, presente ou futuro, destinados a produzir riqueza para outros. Sem vida criativa no seu bairro. Esse canto dos supostos anônimos, sem importância, mas com muito brilho no olhar é o fio que conduz o minidocumentário Identidade Quebrada, produzido em 2023 por jovens do curso de audiovisual do IbiraLab, braço audiovisual do Bloco do Beco, articulado pelo cineasta e poeta Daniel Fagundes, também colunista nesta casa.  

Um épico gerando outro. Se Tróia tem filme, porque o poema Identidade não pode ter um também?  Nele, as identidades esvaziadas pelos números e estatísticas são reveladas pela própria Jenyffer (Jê), por Antônio Luiz (Buldog), David (Mc Zô), Arnaldo (Pastel) e José Claudemir (Caburé), apelidos que revelam sua popularidade e capacidade de circulação no bairro.  

Cada personagem e sua história de vida são parte dos espaços e atividades que ajudam a sustentar e transformar no Jardim Ibirapuera (poesia, bateria do Bloco do Beco, funk, futebol de várzea e bar), no bairro em construção, antes longe de tudo e hoje cada vez mais intenso, periférico e central, ventura e desventura se misturam. Construção permanente.

Enquanto os cantos coloniais celebram aquilo que para nós é desgraça de cinco séculos, nossos griots fazem o épico da autoconstrução, da sobrevivência que passa pela realização de alguns sonhos, ainda de necessárias reformas, reconstruções, expansões, revoluções. 

Uma epopeia que sofre no trem, passa calor na falta de árvores, espera na fila do SUS,  foge das enchentes mas já tem a ciência de passados e presentes erguidos que já conseguimos cantar e repensar coletivamente. 

Vale a pena ler (e assistir), por inteiro, essas duas epopeias periféricas. 

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Nova edição do Você Repórter da Periferia 2.0 cria laboratório de jornalismo de soluções a partir da zona leste de São Paulo

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O Desenrola e Não Me Enrola, organização de jornalismo periférico de soluções e educação midiática antirracista, realiza uma nova edição do Você Repórter da Periferia 2.0, com o objetivo de implementar uma metodologia inovadora de cobertura jornalística baseada na coleta de dados do território de Guianases, na zona leste de São Paulo, para produzir reportagens que facilitam o acesso a direitos sociais.

O programa foi criado com base numa visão estrutural sobre a dificuldade da juventude negra e periférica de acessar o mercado de trabalho de jornalismo e comunicação.  De acordo com a  pesquisa “Raça, gênero e imprensa: quem escreve nos principais jornais do Brasil?”- Gemaa/UERJ, a distribuição racial dos colaboradores dos 3 principais jornais do país – Folha de S. Paulo, Estadão e O Globo – é similar. em todos,  brancos são maioria entre os produtores de conteúdo, representando, na média, 84% do total. Em contraponto, o Desenrola e Não Me Enrola reúne  65,6% de inscrições de pessoas negras nas edições anteriores de programas de formação midiática. Desse total, 39,3% eram pessoas pretas e 26,3% pardas. Com isso, fica evidente a desigualdade do quadro funcional em empresas jornalísticas quanto à diversidade racial, já que existe amplo interesse de pessoas negras e periféricas na área da comunicação.

Partindo dessa motivação, o Você Repórter da Periferia 2.0 está em um território específico: “escolhemos Guaianases porque o bairro está entre os 10 piores distritos com infraestrutura digital de acesso a internet na zona leste de São Paulo”, argumenta Thais Siqueira, co-fundadora do Desenrola e Não Me Enrola, citando um dado do Mapa das Desigualdades da Rede Nossa São Paulo. 

Thaís lembra a força de atuação de coletivos no território.“Além disso, é um território rico em memória e atuação de coletivos e organizações sociais que buscam combater as desigualdades sociais que afetam a região. Queremos ser um parceiro nesta jornada de ampliar o acesso a direitos da população, por meio do jornalismo de soluções”, diz. 

Vitória Guilhermina, moradora do Rio Pequeno, na zona oeste de São Paulo, entrou no Você Repórter da Periferia aos 18 anos, em 2018, sem imaginar que o jornalismo se tornaria sua profissão. “Apesar de adorar fazer perguntas, não gostava de jornalismo”, conta Vitória. 

Vitória Guilhermina foi aluna do Você Repórter da Periferia em 2018. Hoje, ela atua como assitente de coordenação de Articulação e Educação Midiática. Foto: Gabriel Zahid.

Após a experiência, ela mergulhou na área, produziu reportagens, filmes e oficinas sobre memória dos territórios e produção audiovisual em diversas periferias de São Paulo. Influenciada pela experiência transformadora do Você Repórter da Periferia, hoje ela faz o curso de Educomunicação na USP.

Vitória atua na assistente de coordenação do Desenrola e Não Me Enrola, fato que ampliou a sua visão sobre o projeto. “Você Repórter da Periferia 2.0 é jornalismo de interesse público, vamos descobrir o que está sendo discutido nas quebradas, o que as pessoas querem saber. Fui formada em conexão com meu território e agora estou numa posição de decisão e co-criação coletiva”, explica.

Com início previsto para setembro, o programa tem um formato híbrido e de laboratório de jornalismo que incentiva a investigação dos territórios com autonomia e visão de dados. Nesta edição, sete jovens que já passaram por formações anteriores integram a equipe de reportagem. 

“A meta é fomentar o jornalismo que nasce dos territórios articulado diretamente com as comunidades, lideranças e moradores, produzindo informação como um direito fundamental”, conta.

O Você Repórter da Periferia 2.0 será realizado em parceria com a plataforma Território da Notícia, solução tecnológica gerida pelo Desenrola e Não Me Enrola e Periferia em Movimento, que distribui conteúdos jornalísticos por meio de totens digitais em comércios periféricos, conectando produção e circulação de notícias locais. 

A iniciativa faz parte um projeto piloto que está conectado com as reformulações do Desenrola e Não Me Enrola, preparadas ao longo desse ano com o objetivo  de aperfeiçoar e ampliar o impacto da cobertura jornalística baseada em direitos, gerar e cruzar dados, fortalecendo a participação direta dos moradores no acesso à informação.

O Desenrola e Não Me Enrola, juntamente com a Periferia em Movimento, faz a gestão da Território da Notícia, iniciativa de solução tecnológica que distribui notícias de 14 veículos periféricos por meio de 16 totens em 10 distritos da cidade de São Paulo. Foto: Território da Notícia / Gsé Silva.

‘‘Deu uma nova realidade para muitas pessoas de periferia”: artistas apontam o papel político do rap nos territórios

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Elemento central da cultura hip hop, através das letras que, geralmente, apresentam discussões sobre raça, classe, violência policial, entre outras demandas, o rap passou a influenciar o debate público a partir de questões políticas e sociais.

No Brasil, o movimento surgiu no final da década de 1980. O país, ainda nos reflexos do regime militar, vivia intensas tensões sociais, enquanto a cultura de rua ganhava força e o rap se espalhava cada vez mais nos territórios. Em São Paulo, foi nas praças da Rua 24 de Maio, próximas à estação do Metrô São Bento, que o gênero começou a tomar forma, consolidando-se mais tarde como uma expressão artística popular. 

A rapper, cientista social, ativista e produtora cultural, Rubia Fraga, é uma das principais referências do rap nacional. Pioneira na cena, ela formou o grupo RPW em 1991, atuou em coletivos como Minas da Rima, Hip Hop Mulher e atualmente integra a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Desde 1989, se define como uma operária do movimento e destaca que a trajetória do rap é marcada por lutas contínuas, sendo uma expressão legítima de resistência e emancipação social. 

“[É uma forma] de protesto, denúncia e contestação. Até a ostentação é um grito do jovem preto periférico, das mulheres, das manas e monas, que querem também usufruir das boas coisas. É um desabafo.” Rubia Fraga, cientista social e integrante da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop.

Rubia destaca que o rap é um retrato atual da sociedade brasileira e faz parte da emancipação das periferias, das lutas sociais, raciais e de gênero. “A geração dos anos 80 fala do seu cenário, a dos 90; dos 2000. Em 2025, a geração atual traz críticas com novas roupagens e formas de expressão. Isso é ótimo. É preciso revitalizar o discurso do rap para que ele dialogue com o povo, principalmente com as juventudes”, coloca.

Embora as formas de opressão tenham se transformado, a cientista social pontua que ainda vivemos em um país colonizado, escravocrata, que cultua a misoginia, homofobia, transfobia e o racismo, lutas pautadas de diferentes formas pelo movimento. 

“As elites e a extrema direita criam novas ferramentas com o passar do tempo. O samba foi criminalizado, a capoeira foi tratada como vadiagem. O rap passou pelo mesmo com muitos shows interrompidos pela polícia, muitos artistas presos. Hoje, também vemos isso acontecendo com o funk. A origem social é a mesma. Faz parte de um projeto de opressão”, afirma.

Os quatro elementos

O dançarino e ativista Nelson Triunfo, considerado precursor do breaking dance no Brasil, também destaca que o hip hop, especialmente o rap, sempre foi resistência às diversas formas de marginalização. Ele lembra os primeiros passos dados para a construção de uma consciência crítica coletiva nas periferias. “Fomos descobrindo as coisas brincando, misturando dança com capoeira e trazendo isso para o hip hop”, conta. 

“Quando os jovens começavam [a escutar o som], a pegar os passos [de breaking], percebia que eles ficavam mais à vontade e abertos para [o diálogo]. Era nesse momento que chegava mostrando que existiam outras possibilidades, que estudar era muito importante”, relembra. 

O artista conta que na época, muitos jovens começaram a dançar em grupo, dar aula e, naturalmente, viraram multiplicadores da cultura. Ele que já era ativo no campo quando o reconhecimento do rap ainda era impensável, cita sobre as transformações e desafios enfrentados ao longo das décadas, e menciona que com o tempo surgiram outras vertentes, como o trap. 

“O hip-hop já é livre por natureza, inclusive, ainda difícil de ser compreendido por muitos, pois não é uma só cultura. Tem várias expressões: A dança, que já dialoga com a capoeira. A pintura, que vem das artes plásticas. O canto, a criação lírica, o DJ. Você pode não saber cantar, mas pode dançar. Pode não dançar, mas saber pintar. A gente tem muitas ferramentas nas mãos.” Nelson Triunfo, dançarino e educador popular.

Após alcançar muitas pessoas nos anos 1990, o movimento se espalhou pelo Brasil e contribuiu para o nascimento de vários projetos sociais. “Naquela época, ainda não existia celular, então, quando algo passava na TV, todo mundo via. O povo assistia televisão para aprender. De repente, o Brasil inteiro estava dançando breaking”, recorda Nelson.

A visão do hip hop como ferramenta de transformação social foi o que norteou toda sua militância em Diadema, cidade berço das atividades promovidas por Triunfo. “Quando a gente começou o trabalho em Diadema, o cenário era pesado. Todo mês morria alguém. Uma vez, apenas em um mês, morreram três moleques [da quebrada]. Vieram com a ideia de chamar o prefeito, trazer a polícia para a favela. E eu falei: ‘Não, pelo amor de Deus! Não faz isso!’ A gente aqui sabe conviver com a quebrada, mas não com a polícia dentro da nossa atividade”, cita.

No final dos anos 1980, Nelson Triunfo iniciou, em escolas de Diadema, um trabalho com oficinas que reuniam os quatro elementos: rap, grafite, DJ e breakdance.

Conhecido por animar rodas de dança em pontos marcantes do centro paulistano, como o Theatro Municipal e a Praça da Sé, foi chamado pelo então prefeito José de Filippi Jr. (PT) para ministrar aulas e oficinas culturais aos jovens diademenses, o que acabou fortalecendo ainda mais seu vínculo com a cidade e com a juventude periférica, consolidando sua importância na difusão do hip hop em Diadema.

“Quando eu chegava para dar aula de dança na escola, os alunos me reconheciam e contavam como tinham gostado da aula. Na [aula seguinte], perguntavam: ‘Você se lembra de mim?”, relembra com nostalgia como o hip-hop contribuiu para enriquecer a educação e fortalecer o envolvimento cultural e comunitário dos alunos.

Novos fazedores de cultura

Com o tempo, novos agentes passaram a contribuir com o legado construído ao longo de anos. Jean Triunfo, por exemplo, que cresceu ouvindo Racionais MC’s, Facção Central, Sabotage e outros nomes da cena, conta que o rap forjou sua identidade e senso de pertencimento, o que também o levou a atuar em uma das vertentes do movimento. 

Jean esteve à frente da gestão da Casa do Hip Hop de Diadema de 2020 a 2024, equipamento cultural que fez parte da sua infância. “Minha vida inteira foi naquele espaço. Lá é minha segunda casa. Tenho lembranças até hoje do meu pai me acordando e me chamando para irmos até lá, onde eu passava o dia inteiro dançando, cantando, brincando, pulando”, conta.


“Meu pai nunca me obrigou a nada. Ele sempre foi muito versátil: Canta, compõe, faz de tudo, mas nunca falou ‘você tem que seguir esse caminho’. Eu escolhi ser MC, fazer beatbox, jogar basquete. Isto veio das referências ao meu redor. Em tudo que crio, seja um projeto, uma ideia, um trabalho coletivo, sempre penso se isso vai realmente fazer diferença na vida das pessoas”, conta Jean, que também é filho de Nelson Triunfo.

Atualmente, Jean lidera a On Fire Streetball Brasil, iniciativa que une basquete de rua, ações sociais e a preservação de espaços públicos em diferentes comunidades periféricas. Ele também é produtor no rap, fortalecendo a cena musical.

Pedagogia do rap

O rap enquanto processo de aprendizado, coletividade e incentivo para construção de sonhos é o que Letícia Reis destaca. Assistente social e organizadora da Batalha da VR, ela referencia o gênero como ferramenta de transformação. “Esse é o nosso trabalho: fazer com que essas crianças, jovens e adolescentes, através do hip hop, venham até a gente e saibam que podem ser o que quiserem”, afirma.

“Às vezes a criança está ociosa, mas tendo uma batalha de rima, [ela] cola e começa a ver que pode ter sim possibilidades [na vida]. Se quiser ser um MC, um DJ, grafiteiro, um dançarino de breaking, que hoje é até modalidade olímpica, ela pode;” Leticia Reis, assistente social, produtora cultural e organizadora da Batalha da VR.

Influenciada pelo seu avô, que realizava projetos sociais na região onde mora, no Parque Jd Santa Madalena, na zona leste de São Paulo, Letícia passou a frequentar batalhas de rima e atualmente integra a batalha da VR e a batalha do Badá, em Heliópolis. Ela também lidera o Projeto Raça Neguita. “Assim como meu avô plantou essa semente em mim, eu planto no meu filho para que ele também possa, lá na frente, plantar [nos filhos dele]”, diz.

Letícia ressalta que as batalhas de rima também são espaços de expressão e troca, mas ainda sofrem muito preconceito. “A gente ocupa espaço público por direito, faça chuva ou faça sol. É um trampo social, onde a gente leva cultura, lazer e entretenimento, que deveria ser obrigação do Estado, mas muitas vezes somos nós que fazemos isso”.

Renata Martins, conhecida como Mc Caramelo, articula as ações junto com Letícia e comenta de um novo momento que o rap vive. “A internet veio pra fortalecer uma nova geração, uma nova história, mas não podemos nos esquecer da base, do porquê tudo começou”, afirma. 

“O rap é um protesto social. Para [o sistema] e para quem vê de fora, é fácil julgar o que o povo periférico produz, tratando a nossa arte como crime. O rap é o grito dos esquecidos. Somos um povo que sobrevive fazendo milagre.” Renata Martins, Mc, fotógrafa e organizadora da batalha da VR.

Renata pontua que o rap deu uma nova realidade para muitas pessoas nas periferias, e acredita que o movimento de mulheres encabeça uma revolução. “A força da mulher dentro do rap é gigante”.

“O rap hoje traz [novas formas]. Já temos também o trap, outros caminhos, outras vivências. Eu sou daquelas que acredita que a gente pode mudar, se reinventar, se adaptar, mas sem perder a essência: o rap raiz, o rap nacional e de protesto”, finaliza Letícia.

Felizs celebra memória e resistência em 11ª edição com programação literária na zona sul de São Paulo

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A FELIZS – Feira Literária da Zona Sul consolida-se como um dos principais eventos do calendário cultural paulistano ao chegar à sua 11ª edição. De 19 a 27 de setembro, a programação gratuita ocupará escolas, bibliotecas, centros culturais, o Sesc Campo Limpo e outros espaços da zona sul. Nascida do desejo de reunir e valorizar os artistas e escritores da periferia da região, a feira tem a literatura como sua linguagem central, promovendo um intenso intercâmbio cultural.

Resistência e memória no território

Com o tema Memória e resistência: “a luta não é para hoje é para sempre”, a edição de 2025 presta uma homenagem especial a Ana Dias, símbolo de resistência popular no território. Ativista, educadora popular e liderança de grupo de mães, viúva de Santo Dias, líder operário assassinado em 1979 durante a ditadura militar, em um piquete em Santo Amaro, Ana assumiu o compromisso de manter viva sua memória e luta.

Ana Maria do Carmo Silva – Ana Dias. Foto: Acervo Pessoal

Militante nas Comunidades Eclesiais de Base, ela e o marido haviam migrado do interior para o Jardim Ângela no fim dos anos 1960, engajando-se nas causas dos trabalhadores urbanos e rurais. Desde lá, Ana mantinha atuação política ao lado de outras mulheres, organizando Clubes de Mães como o do Jardim Santa Margarida e participando do Movimento do Custo de Vida, que enfrentava as políticas econômicas da ditadura.

“Mesmo alvo de ameaças, manteve-se firme, afirmando a importância da luta coletiva e da memória, por isso a nossa escolha e mulheragem ”, frisa Silvia Tavares, educadora e produtora da Felizs. Ana Dias segue atuante no Comitê Santo Dias, ao lado dos filhos Luciana e Santo Filho, promovendo atos públicos no local onde o marido foi morto.

A proposta desta edição da FELIZS é estabelecer as continuidades entre a experiência do período ditatorial e os dias atuais nas periferias, refletindo sobre a luta contínua por direitos e voz. “Eventos como a FELIZS, que dão visibilidade para autores independentes expressarem suas questões, são de suma importância para a literatura nacional, pois trazem um panorama alternativo e inclusivo”, destaca Diane Padial, idealizadora da feira.

A programação, construída para valorizar todos os artistas, inclui saraus, encontros com autores, shows, performances, conversas literárias e oficinas. Entre os nomes confirmados estão Ana Dias, Bel Santos Mayer, Lilia Guerra, Cidinha da Silva, Jennyfer Nascimento; Marcelino Freire e shows de Lenna Bahule com Ermi Panzo, Grupo Cupuaçu, Jonatas Petroleo, Grupo Candearte, Bloco Afro É Di Santo, Vitor da Trindade e Geraldo Magela. O tradicional Sarau do Binho também se apresentará, e desta vez terá uma apresentação extra no Museu da Língua Portuguesa.

Sarau Poesia de Todo Canto no Sesc Campo Limpo. Foto: Divulgação/Felizs

Incentivo à leitura

Uma das iniciativas de maior impacto da FELIZS é a Moeda Literária, criada em 2018. O projeto direciona recursos para que estudantes, professores de escolas públicas e mediadores de leitura possam adquirir livros diretamente dos expositores durante a feira. “Conseguir oferecer esse benefício fortalece a produção e difusão de obras literárias”, explica Suzi Soares, produtora curadora do evento. Em 2024, R$25 mil em Moedas Literárias circularam no evento, e a meta para este ano é alcançar R$40 mil, fortalecendo ainda mais a economia criativa local. A campanha de arrecadação está aberta na plataforma Benfeitoria.

Cédulas da Moeda Literária que movimenta a economia criativa e incentiva a venda de livros na periferia do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Foto: Thais Siqueira.

Serviço

FELIZS – Feira Literária da Zona Sul
19 a 27 de setembro
Mais informações pelo site e pelo Instagram.

O silêncio ancestral como estratégia de cura e resistência

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Nesta sessão, proponho uma reflexão sobre o silêncio — esse movimento interno que muitas vezes nasce de incômodos, dores ou sentimentos que preferimos não revelar. Contudo, para além dessa dimensão, o silêncio pode também ser compreendido como um espaço fértil de introspecção e autoconhecimento. Ele nos conduz a um encontro profundo com nós mesmos e com uma força ancestral que costumo evocar em nossas sessões, onde a escrita se torna ferramenta para compreender outras dimensões de nossa cultura e resgate de memória.

Muitos de nós não cultivamos o hábito de reservar tempo para o recolhimento, porque vivemos em uma sociedade que não nos permite parar. 

Nesse ponto, o silêncio também ganha um aspecto cultural e religioso. Recordo, por exemplo, a experiência do roncó, em que o recolhimento ritualístico convida à introspecção diante do sagrado. Nesses momentos, aprendemos a não permitir que o mundo externo invada nosso espaço interno, preservando-o como território de cuidado, cura e ressignificação.

O silenciar, portanto, pode ser compreendido como prática de cura interior, capaz de nos elevar a um grau mais profundo de autoconhecimento e de conexão com o sagrado. É também um modo de lidar com dores que não conseguimos verbalizar de imediato, criando espaço para sua transformação.

Entretanto, como psicóloga, não posso deixar de observar o silêncio que se impõe às mulheres diante das violências sofridas. Muitas vezes, o que não é dito se prende na garganta, sufocado pela vergonha, pela humilhação ou pelo medo. 

Esse silêncio, que deveria ser refúgio, torna-se também mecanismo de sobrevivência diante das tantas violências que atingem os mais vulneráveis. Até mesmo no espaço terapêutico — pensado como seguro — nem sempre é simples romper esse silêncio que guarda feridas de infância, de mulheres, ou mesmo de homens ensinados a suportar em silêncio como prova de força.

O silêncio, portanto, é ambivalente: pode ser fonte de poder interior, mas também de auto penalidade. É complexo e multifacetado, exigindo de nós sabedoria para discernir quando calar e quando falar.

Assim como o caçador que, na paciência silenciosa, consegue atingir seu objetivo, precisamos aprender a usar o silêncio como estratégia para ir mais longe. Há momentos em que calar é contemplar o sagrado, ouvir a alma, reconhecer o próprio tempo de amadurecimento. Em outros, é necessário romper o silêncio, erguer a voz e enfrentar os algozes.

Percebo, portanto, que o silêncio é parte constitutiva de nós. Ele se revela quando falamos demais sem nos ouvir, quando precisamos aprender a escutar a nós mesmos para lapidar nosso caráter. Ele também se manifesta como gesto de respeito, reverência e conexão com o sagrado — como nos ensinaram nossos ancestrais.

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“O Movimento Negro Unificado é uma escola de formação”,  destacam ativistas sobre protagonismo do MNU na luta contra o racismo no Brasil

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Greves, marchas, ocupações, denúncias e centenas de mobilizações foram encabeçadas ao longo de mais de quatro décadas pelo Movimento Negro Unificado (MNU), que nasceu em 1978, em resposta às violências intensificadas pela ditadura militar no Brasil. A geógrafa especialista em educação para as relação étnico-raciais, ativista e intelectual Regina Lúcia, uma das militantes que compõem a vanguarda do MNU, relembra sua trajetória, destaca retrocessos e principais marcos, especialmente para as pessoas negras periféricas.

“Estes 47 anos foram, em primeiro momento, um desvelamento do racismo no Brasil, desmascarando a dita democracia racial e colocando às claras que o Brasil era um país racista. O MNU foi sempre ponta de lança para as lutas e conquistas”, afirma Regina ao relembrar momentos que marcaram a história da luta negra.

Segundo a ativista, muitas conquistas do movimento negro chegaram às periferias. “Foi [muito importante] para a população negra, pobre, periférica, poder sonhar e ver seus filhos entrarem nas universidades. A briga pela regularização dos quilombos, a propagação da cultura negra e a lei 10.639, que embora ainda não esteja sendo aplicada na sua totalidade, já produziu muito material retratando acerca da nossa história e de nossa contribuição neste país, mas também para a história mundial”, lembra.

Ela também cita as cotas no serviço público, nas universidades públicas e privadas e a política de atenção integral à saúde da população negra. “Tudo isso configura conquistas, mas ainda existe luta para ser feita”, acrescenta a militante, que destaca o genocídio contra a população negra como, ainda, o mais importante desafio.

“[O] genocídio não está só na morte pela bala da polícia, do Estado, mas na negação à saúde, à alimentação. E há um fenômeno mais recente, um fato que tem se agravado: o suicídio, em especial, de homens negros jovens, muitos já chegando na fase da universidade. O suicídio é mais um produto do projeto de genocídio”. Regina Lúcia, ativista e intelectual do Movimento Negro Unificado (MNU).

A tomada de uma consciência crítica racial que contemple todas as dimensões e que desenhe futuros possíveis a partir da luta coletiva, é o que Regina espera ver garantido para seus netos.

“Eu já ouvi muito dos meus filhos, há alguns anos, que estava na hora de parar, que eu já tinha lutado muito, mas hoje eles entendem que não dá para parar. Já participei de muita luta, de muitas construções, mas o que [sigo acreditando] é que não dá para retroceder”, afirma Regina que já possui mais de 50 anos de militância política, sendo 30 anos de militância no movimento negro organizado.

Estrutura organizada a partir de territórios

A compreensão de que a população negra é diversa — seja em termos territoriais, educacionais ou políticos — foi o fio condutor que guiou a organização político-social do movimento, buscando dar conta dessa pluralidade presente no Brasil conforme as transformações históricas ao longo dos anos. A estrutura se organiza a partir do território em que cada militante está inserido, seja no trabalho, na educação ou em outras frentes de atuação. 

A partir daí, a mobilização permanece nos municípios e nos estados brasileiros, com distribuição de núcleos temáticos que possuem independência de ação, mas que seguem diretrizes bem delimitadas para incidir nacionalmente, inclusive, na política institucional.

Já no campo internacional, o movimento constrói articulações diversas, especialmente com organizações negras, coletivos de vítimas da negligência e violência de Estado, como movimentos de mães que perderam seus filhos e também aquelas que lutam pela libertação de familiares, inclusive do cárcere, em diferentes partes do mundo. 

Nesse sentido, Regina ressalta que, para o movimento social, estas alianças são compromissos inegociáveis de solidariedade e unidade na luta: “Precisamos derrotar o racismo enquanto política de controle da humanidade e enquanto política de reprodução do capital”, diz.

“Temos nos engajado em todas as lutas na defesa da vida, especialmente, das mulheres negras no Parlamento, pela indicação de mulheres negras ao STF, ao STJ, por exemplo”.

Regina Lúcia, liderança no Movimento Negro Unificado (MNU).

Nova geração, luta antiga

Aos 25 anos, a jovem estudante de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UNB) e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo, Brenna Vilanova, representa uma nova geração de militantes do MNU. Filha de uma trabalhadora doméstica e neta de nordestinos, ela diz que carrega na própria história a marca das desigualdades que atravessam a população negra brasileira.

Durante a pandemia de covid-19, a aproximação se estreitou. Em 2022, oficializou então sua filiação ao Movimento Negro Unificado em uma data simbólica. “Fiz a filiação em uma comemoração do dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Foi uma experiência muito gostosa de viver, não porque seja gostoso militar, pois a gente lida com muita dor, mas porque simbolizou um acolhimento, uma reconstrução de casa, de lar, que nós, pessoas negras, precisamos”, relembra.

Desde então, tem se dedicado especialmente a organizar a juventude negra dentro do movimento social Brasiliense. “Faço parte desta geração mais nova e tenho conseguido trazer outros jovens para dentro do MNU, [articulando] essa perspectiva de continuidade. Aprendo, todos os dias, com os mais velhos, mas também puxo os meus iguais e os meus mais novos. É isso que repito muito e sempre: o MNU, para mim, é uma escola de formação. Quando a gente aprende, a gente também tem que ensinar. É essa continuidade do legado, sem mudar a essência do MNU, mas renovando a forma de se organizar conforme o tempo em que a gente vive”.

“Temos dificuldade de trazer esses meninos negros para organização [político-social] que estão expostos à precarização do trabalho, falta de tempo. Ao mesmo tempo em que conseguimos colocar jovens negros dentro da academia, ainda falta alcançar muita gente que está nas quebradas: as mães negras, aquelas trabalhadoras que seguram tudo sozinhas”.

Brenna Vilanova, militante pelo MNU, estudante de Ciências Sociais e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo.

A compreensão da luta coletiva e construção de conhecimento faz parte do repertório da pesquisadora ao citar a ex-coordenadora nacional do MNU, Ieda Leal: “Certa vez, Ieda falou algo que me marcou profundamente: ‘eu não estava na escadaria em 1978, mas eu estava na carta de princípios’. Eu também me sinto assim. Nunca estive nas escadarias do Theatro Municipal junto com o MNU, em seu começo, mas sempre me senti pertencente”, compartilha. 

“Quando o movimento escreveu sobre a criança negra, sobre a juventude negra brasileira, sobre trabalho digno, eu estava ali. Eu sou fruto desse diálogo potente que o MNU faz”, destaca a jovem se referindo ao ato de fundação do MNU, realizado no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo.

Brenna menciona os contextos que representaram gargalos ao longo das décadas de construção coletiva, bem como os desafios atuais e futuros que enxerga com preocupação. “O MNU se funda denunciando o namoro do Brasil com o Apartheid. E até hoje a gente segue nessa estratégia internacional. O problema é que, ao mesmo tempo em que avançamos devagar no combate ao racismo, surge essa onda da extrema-direita, que é a nossa principal ameaça”, coloca.

“Quando você flexibiliza o discurso, quando libera conteúdo racista nas redes sociais, como o Elon Musk fez, por exemplo, isso se transforma em violência concreta nas periferias. Onde corpos negros não têm proteção social nem judicial, a violência aumenta”, ressalta Brenna sobre o avanço da extrema-direita.

Mesmo reconhecendo conquistas, como a lei de cotas e sua recente renovação, a ativista chama atenção para contradições existentes, inclusive, em governos progressistas. “Foi com o presidente Lula que [sancionamos] as ações afirmativas, mas, ao mesmo tempo, houve frustração quando não houve a indicação de uma mulher negra ao TSE. Mais uma vez ficamos de fora. Isso mostra como o povo negro no Brasil ainda precisa construir sua política sozinho”, observa.

“O Movimento Negro Unificado é uma escola de formação, e que a gente construa com os nossos mais velhos, com os nossos anciães, mas também com a juventude e com as crianças negras, pois é isso que irá garantir a continuidade dessa luta”.

Brenna Vilanova, militante pelo MNU, estudante de Ciências Sociais e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo.

Para ela, é a memória, somada à resistência que renova a esperança do povo negro para o fim do racismo como estrutura social. “Para quem veio antes, é só saudação e gratidão. Eu piso devagarinho neste caminho que foi aberto. E para quem está chegando, digo que o importante é pisar também, ocupar o lugar, se organizar”, finaliza.