Entrevista realizada pelo Desenrola com Fábio Pereira Campos, abolicionista e integrante do movimento social Amparar, mostra como o tratamento desumano dado aos escravos durante mais de 300 anos no Brasil continua mais vivo do que nunca, só que agora, acontece também dentro dos presídios brasileiros.
Como o Abolicionismo Penal poderia transformar a vida da população negra brasileira, moradora das periferias e favelas que passa pelo processo de encarceramento? Essa é a pergunta que norteia a entrevista especial realizada com Fábio Pereira, 44, estudante de Serviço Social na Universidade Federal de São Paulo, que apresenta uma série de argumentos sólidos que questionam se o dia 13 de maio é de fato uma data para celebrar a Abolição da Escravatura no Brasil.
“A gente tem dificuldade de elaborar história e memória. Enquanto a gente não conseguir fazer isso de uma forma mais sistematizada, a história vai ser sempre contada pelo outro (pessoas brancas). E pelo outro ficou tudo legalzinho, a princesa assinou a Lei Áurea, e ficou tudo certo”, ironiza o estudante de serviço social.
Desde 2015, Pereira atua como militante no movimento social Amparar, atendendo pessoas e famílias afetadas pelas marcas do sistema prisional brasileiro, em busca de garantir acesso à informação e a direitos fundamentais, que possam reduzir o sofrimento destes sujeitos, que em sua maioria são negros e moradores das periferias e favelas.
“As famílias que estão sofrendo processos de vulnerabilidade social”
Na Amparar, Fábio Pereira realiza atendimento de famílias afetadas pelas desigualdades sociais causadas pelo sistema prisional brasileiro.
Além deste trabalho, ele utiliza a sua vivência dentro da universidade para desenvolver uma pesquisa sobre o Abolicionismo Penal, que de acordo com suas descobertas, se trata da continuidade da escravidão, através de uma série de fatos que mostram claramente que o tratamento dado aos escravos durante mais de 300 anos no Brasil continua mais vivo do que nunca, só que agora, acontece dentro dos presídios brasileiros.
Esse estudo tem o objetivo de entender como os assistentes sociais atuam para ajudar as famílias de pessoas presas, e quais são os retornos que esses profissionais recebem diante de todo esse trabalho.
“As famílias que estão sofrendo processos de vulnerabilidade social, tem todo um processo do aumento da pobreza, porque elas têm que dar conta de suas casas, e tem que dar conta para manter uma pessoa que está presa”, argumenta.
Segundo o estudo de Pereira, a sociedade enxerga o Abolicionismo Penal de forma limitada, e que é preciso desmistificar o que as pessoas entendem, pois essa não é uma ação com finalidade de acabar com as cadeias ou colocar todo mundo na rua.
“A ideia do abolicionismo penal é abolir a pena , e dessa forma a prisão perderia a sua suposta função social, que é maquiar o controle e as torturas de determinados corpos racializados através de uma falsa ideia de justiça”, , explica Pereira.
Outro propósito do Abolicionismo Penal é garantir que essas pessoas encarceradas e suas famílias sejam acolhidas e auxiliadas diante de suas realidades, sem precisarem passar pela malha do judiciário. “É preciso pensar políticas públicas que alcancem uma dimensão que não determine outro processo de isolar aquelas pessoas e acharem que os problemas estão sendo resolvidos a partir do isolamento, sendo que essa pessoa tem que sair em um determinado momento e ela precisa de alguma forma ser restabelecida na sua cidadania”, explica Pereira.
Sobreviventes: marcas da escravidão
Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional, publicados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 66,3% da população carcerária no Brasil se autodeclara preta ou parda. Ou seja, dos 759 mil presos, 397 mil são afro-brasileiros e 195 mil são brancos.
“Você vai ficar 3 anos e 5 meses sendo torturado, de vez em quando vai chegar uma comida estragada e tudo bem, você vai tomar banho frio, e tudo bem se você tiver tuberculose e qualquer coisa”
Fábio Pereira é estudante de Serviço Social e pesquisador do Abolicionismo Penal.
Para Pereira, entre as marcas ainda presentes da escravidão nos dias de hoje diante da periferia, está o tratamento diferente para pessoas negras e brancas dentro das penitenciárias, o descaso com os encarcerados, a falta de políticas públicas para as famílias, e as condições dos serviços de saúde, alimentação e moradia dentro dos presídios.
“Ele [o juiz] não fala pra você: olha você vai ser preso, vai ficar 3 anos e 5 meses sendo torturado, de vez em quando vai chegar uma comida estragada e tudo bem, você vai tomar banho frio, e tudo bem se você tiver tuberculose e qualquer coisa, porque você vai ter que aguentar isso, porque você cometeu um crime”, argumenta Pereira.
No seu ponto de vista abolicionista, as cadeias foram construídas já pensando nos povos mais vulneráveis, e mesmo tendo pessoas brancas nesse espaço, esse local de cadeia, de aprisionamento, foi e sempre será mantido para pessoas pretas, isso simboliza um marco da escravidão e que afeta até hoje a realidade dos povos das periferias.
“As pessoas estão morrendo de fome na cadeia, tem alguma coisa muito errada com a nossa humanidade. Só que é a mesma humanidade que construiu esse processo escravista, porque as pessoas que frequentam ou são levadas para dentro do sistema prisional, elas têm as mesmas características dos nossos ancestrais”, afirma.
“Essas pessoas não são egressas, são sobreviventes do sistema prisional”
Desde 2015, Fábio Pereira trabalha na Amparar, organização social que promove ações para garantir os direitos sociais de pessoas encarceradas e suas famílias.
De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2021, 250 presos morreram no sistema prisional do Estado de São Paulo em 2020. O Rio de Janeiro ficou em segundo lugar, com 154 óbitos. O suicídio está entre as principais causas das mortes de presos, segundo o estudo.
Pereira considera que as pessoas que conseguem sair do sistema prisional no Brasil não são egressas, como aponta a Lei de Execução Penal (LEP), mas sim, sobreviventes. Esses sobreviventes são vistos como mercadorias, e sempre colocadas de escanteio, principalmente quando seus perfis se tratam de pessoas pretas, periféricas, a falta de auxílio dentro das cadeias para esses que são tratados como minoria, é presente e visível.
“A pessoa não é confundida, ela é identificada”
Fábio Pereira atua como assistente social, dialogando diretamente com pessoas que sobreviveram ao sistema prisional brasileiro.
“Uma pessoa presa, o Estado vive dizendo que ela custa de 3 a 4 mil, e a gente sabe que essa não é a grana pra manutenção da vida dessas pessoas. Esses lugares de confinamento, esses calabouços que se institui as prisões no Brasil, e no mundo”, diz.
Na Bahia, onde 81,1% da população se autodeclara preta ou parda, o estado diz que gasta 3.273 reais por cada preso dentro do sistema prisional. Em Tocantins, esse valor aumenta ainda mais. O estado gasta por mês 4.200 reais por preso. Em São Paulo, o governo gasta 1.373 reais com cada preso, um valor que reforça a tese de Pereira, de ser um valor insuficiente para manter uma pessoa vivendo com dignidade dentro do sistema prisional.
O formato de encarceramento no país
Mas para além desta realidade, está o fato de que a construção de um sujeito criminoso ainda precisa ser debatido, pois foi estruturada no pensamento de que “bandido bom é bandido morto”, e é a partir deste pensamento que o sistema penal do país começa a colocar em prática seus formatos de encarceramento.
“A pessoa não é confundida, ela é identificada, ela tem uma identidade racializada enquanto sujeito criminoso, porque ela tá dentro desse bojo da construção desse sujeito”, enfatiza o abolicionista.
O estudante e pesquisador entende o sistema penal como um espaço de castigo, no qual as pessoas são tratadas como material descartável, e que ninguém faz nada para mudar, por isso, ele ressalta a importância de lutar e pontuar o que realmente acontece dentro desses locais, e que isso já não é mais um sistema, isso é um crime.
“A gente precisa reivindicar esse lugar, a gente precisa apontar o que as prisões têm feito no mundo também é um crime de lesa-humanidade, e ninguém se importa. Porque são pessoas que são descartáveis”, afirma o abolicionista.
O estudante de serviço social também diz que o tratamento praticado diante de pessoas em estado de encarceramento é sempre baseado em sua etnia, do solo de onde veio, e que isso sempre aconteceu, pois, segundo ele, a ideia era que pessoas negras fossem totalmente arrancadas da sociedade, reforçando também o fato de que os povos pretos são sobreviventes no país.
“Cadeia não reabilita ninguém, é simplesmente um lugar de castigo, de vingança social, são as pessoas que sobreviveram ao processo de embranquecimento no Brasil que vão passar por esses lugares. Porque a ideia é que não existisse mais negros em 2022”, finaliza.