A necessidade da criação e fortalecimento de políticas públicas que promovam saúde para e com a população preta, levando-se em consideração suas especificidades.
Em julho de 2020, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo publicou o Boletim CEInfo Análise: Saúde da População Negra. Apesar do boletim apresentar “avanços na implementação de políticas públicas voltadas para a saúde da população negra”, fica evidente a necessidade de ampliação das políticas públicas e da criação de soluções distintas das existentes hoje, que considerem as especificidades relacionadas a esta população.
Mas, antes de apresentarmos alguns detalhes referentes à saúde da população negra presentes no boletim, é preciso apontar a urgência de melhoria na coleta dos dados que subsidiam as análises, pois, como o próprio boletim apresenta, dos 9 sistemas de informação existentes na cidade, 7 apresentam completude da variável raça/cor abaixo de 80% nos dados coletados, ou seja, a informação sobre raça/cor das pessoas atendidas não é informada na grande parte dos sistemas e, assim, mesmo que seja possível apontar as desigualdades existentes no que se refere à produção de saúde no município, estes dados acabam analisando apenas uma parte do que de fato acontece.
Contudo, quando se observa a taxa de mortalidade em decorrência da mesma doença, Hipertensão Arterial Sistêmica, no ano de 2017, nas pessoas maiores de 60 anos, pode-se perceber que a taxa é maior na população preta, 169,3 mortes a cada 100.000 habitantes, seguida da população parda, com 132,5 mortes a cada 100.0000 habitantes. A proporção também apresenta a desigualdade ao se olhar para os menores de 60 anos.
Cruzando-se essas duas informações: a redução dos casos de Hipertensão Arterial Sistêmica na população negra entre 2008 e 2015; e a maior mortalidade de 2017 por decorrência desta mesma doença entre a população negra, e comparando-se à população branca, pode-se intuir que a atenção em saúde dada aos casos diagnosticados e o acompanhamento dos mesmos para o seu tratamento, a fim de se evitar o óbito, tem o racismo institucional como fator possivelmente originário da desigualdade percebida.
Assim, deve o município criar políticas públicas que atendam às necessidades e especificidades da população preta e parda da cidade a fim de ampliar o acesso à saúde, bem como apresentar propostas de cuidado quando diagnosticadas as doenças.
Para entender algumas possibilidades conversamos com Sirlene Santos, 42, educadora física e terapeuta. Moradora da Brasilândia por décadas, hoje reside no Parque Taipas, no Quilombo da Parada, onde realiza parte de suas atividades e participa da gestão do espaço.
Para ela, a busca pelo conhecimento ancestral da população preta deve ser considerada como possibilidade de cuidado e tratamento, especialmente dessa mesma população, e que algo essencial para a produção de saúde é o autocuidado, passando pela prática da Kemetic Yoga e pela alimentação saudável como produtores de saúde.
“Toda prática de autocuidado é um portal que está relacionado também com autoconhecimento e autoestima. São três pilares.” Sirlene, conta que quando começou a pesquisar mais sobre a importância do autocuidado na população preta e passou a praticar e disseminar o que aprendia, muitas pessoas enxergavam esse movimento como algo individualista, egocêntrico, que se distancia da ideia de comunidade de cuidado.
Mas, ela diz que é justamente o contrário, “é como quando se está num avião e tem uma turbulência, primeiro você coloca a máscara em você para depois poder colocar no outro. É preciso cuidar primeiro de si para depois ter como cuidar do outro. Ninguém salva o outro não estando primeiro salvo. É preciso se olhar, não tem lógica você não estar bem e querer ajudar os outros, vai ajudar com o quê?” – questiona.
Dentro de seu processo de ampliação do conhecimento para cuidado da população preta, conta que em 2015 começou a praticar capoeira Angola na escola Mutungo conduzida pelo mestre Zelão e foi onde teve contato com a Kemetic Yoga onde todos os movimentos priorizam a saúde integral.
“Em 2016 foi-me apresentada a Kemetic Yoga, que é africana. Eu comecei a praticar. Em 2018 houve uma formação. A princípio eu não mostrei interesse. Não me sentia preparada para a formação. Em 2019, o Mestre Yirser Ra Hotep, esteve no Brasil e fez uma palestra. Haveria uma formação com ele e quando eu decidi que já estava pronta para participar, não tinha mais vaga. Mas, quando chegou no final de setembro surgiu uma vaga e eu fui, fiz a formação em dezembro, num processo de imersão, muito importante, com 10 a 12 horas de prática por dia.”
Sirlene Santos.
Sirlene explica que Kemetic é a palavra original para se referir ao que hoje é conhecido como Egito (que seria uma palavra colonizada pelos gregos), que significa “terra das pessoas pretas”. Ela conta que “…há registros que trazem os vestígios de uma prática rotineira, cotidiana de feita pelos povos que habitavam as margens do Nilo. Essa prática teria migrado para a etiópia e da etiópia para a Índia, e essa prática ficou popularizada como Yoga.”
Ela conta ainda que a Kemetic Yoga contribui na produção de saúde integral porque olha para a pessoa em sua totalidade: “um corpo que sente as emoções, que sente as energias, um corpo templo, um corpo inteiro. Por ser africana, é uma prática que afeta diretamente o corpo preto, que sempre está em estado de alerta, e dentro da prática a gente trabalha justamente o relaxamento. É possível esse corpo relaxar? Essa é a proposta, trazer o “seneb” que significa saúde em abundância.”
Qual a relação entre o Kemetic Yoga e o autocuidado?
“Está ligada ao autocuidado porque o nosso corpo tem dificuldade de relaxar, de se tranquilizar, de estar em paz. Através das práticas a gente traz a automassagem, as práticas meditativas e as técnicas respiratórias, além da postura, não somente física, mas que mexe com as energias bloqueadas, o fato de estarmos sempre alerta atrapalha a gente a se expressar. Dentro das práticas de Kemetic Yoga a gente vai desbloqueando as energias estagnadas. É uma reestruturação, uma restauração, unindo o corpo que está fragmentado. ”
E Sirlene completa que esta relação não tem a ver com o indivíduo, pois “não se está somente olhando para si, mas, principalmente para a comunidade preta.”.
“No movimento Kemetic Yoga Brasil nossa visão é popularizar esse conhecimento para conscientizar o povo preto que é necessário parar para se cuidar. E não é algo só físico. E aqui entra a questão da alimentação. O que que te alimenta? Você se nutre ou você está adoecendo? Você se alimenta ou você se enche? Não somente o que come, mas, um filme, uma leitura, um ambiente, tudo isso te alimenta, qual é o propósito com o qual você está levando a vida?”
Mais uma vez é preciso perceber que é possível a criação ou fortalecimento de políticas públicas que promovam saúde para e com a população preta, levando-se em consideração suas especificidades.
Sirlene nos conta que um fator que ajudou a decidir fazer a formação em Kemetic Yoga foram os vários pedidos que vinham dos coletivos de pessoas pretas e que cuidam do corpo preto nos mais diversos locais da cidade para ela levasse práticas de meditação e antes ela o fazia como praticante e agora se sente mais capacitada como instrutora.
Diz ainda que enquanto educadora física, isto lhe tem impulsionado, apesar da percepção ainda existente de que a proposta seja apenas algo do corpo, muitas vezes descolada da mente, como se o movimento fosse apenas para fora, apenas a técnica, apenas algo mecânico, se limitando à estética, e o desafio é duplo por primeiro apresentar a proposta de autocuidado como relevante para a população preta e também para conseguir apresentar como a tríade corpo, mente e espírito.
Como você enxerga o autocuidado nas periferias, especialmente na Brasilândia?
“É impressionante como as pessoas que têm se disponibilizado a cuidar do outro não têm cuidado de si. As pessoas têm estado muito entregues à militância, mas não se cuidam. No ano passado tentamos trabalhar com pessoas que cuidam de outras pessoas, porque vimos que nós que estamos nessa frente, ficamos sempre pelo outro, no extremo. E quando a pessoa pausa, começa a se perceber e a falar não… as pessoas estranham. Mas, é preciso fazer esse movimento de se cuidar para poder cuidar do outro. Cuidar de quem cuida é urgente!”
A provocação final que Sirlene nos deixa para reflexão é que nas periferias falta muito essa visão de que é preciso primeiro se cuidar para depois cuidar do outro, ou mesmo para realizar as suas tarefas. E que entende fazer parte dessa semente que ainda está sendo plantada. “Talvez outros terapeutas da região tenham outras percepções. Mas, eu percebo que a própria militância, ativistas, ainda não entenderam a importância do autocuidado.”
E você, como tem praticado o autocuidado e o cuidado comunitário?
Parabéns Daniel! Excelente conteúdo, com muitas reflexões importantes e necessárias!
Por mais matérias de qualidade como esta!