Para realizar Enem, jovens das periferias precisam estudar, trabalhar e sobreviver à pandemia

Edição:
Ronaldo Matos

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 Como a pandemia de coronavírus afetou a rotina e a saúde mental de jovens moradores de territórios periféricos que estão se preparando para realização da prova do ENEM?

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Willian Souza Santos, 19, morador do Capão Redondo e Bianca Nobre, 17, moradora do Alto do Riviera no Jardim Ângela.

Divididos entre os estudos, trabalho e a nova rotina moldada pela pandemia do novo coronavírus, a juventude periférica vem encontrando uma série de desafios para se manter firme no propósito de realizar o Enem e ingressar no ensino superior por meio do Prouni, programa do governo federal que garante ao estudante de escolas públicas a possibilidade de aumentar as chances de conquistar vagas em universidades públicas e bolsas em instituições privadas de ensino.

Mas e a saúde mental dessa juventude periférica, como anda? Qual é o impacto de um bom temperamento emocional para realizar a prova do Enem? Conversamos com estudantes que estão passando por esse processo árduo de se dividir entre estudos, trabalho e família, para aprofundar essa discussão sobre o Enem e o acesso ao ensino superior para quem mora nas periferias.

Um desses jovens é Willian Souza Santos,19, morador do Capão Redondo. Ele estuda em casa para realizar as provas do Enem e conta que já está há três anos tentando ingressar em uma universidade pública. “Já tô há três anos tentando o Enem, meus pais vieram da Bahia atrás de uma vida melhor em São Paulo, e eles não chegaram a terminar o fundamental. Minha mãe é secretária e o meu pai é carpinteiro, então eu seria o primeiro a conseguir”, conta ele, relatando o histórico profissional e educacional da família.

O estudante comenta sobre seu nervosismo com os cenários de futuro e fala sobre suas angústias. “Minha expectativa para o vestibular é preocupante, até porque pelo momento em que estamos vivendo, já existe a insegurança por ter vindo de uma escola pública, ser negro, estou nervoso. Eu quero fazer psicologia em uma Federal, especificamente, a Unifesp por gostar da grade curricular deles”, comenta.

O jovem faz questão de descrever como a pandemia afetou sua rotina de estudos e suas motivações para continuar estudando sozinho. “Eu quis estudar sozinho por não aguentar mais fazer cursinho, visto que já fiz dois anos. Eu estudo a partir das áreas que tenho mais dificuldade, que no caso é matemática. Sigo um cronograma e tento estudar todos os dias, eu uso o celular, principalmente o YouTube com vídeo aulas gratuitas. A pandemia afetou a minha rotina, porque eu estudava principalmente nas bibliotecas públicas, onde me dá mais concentração, além de todo adoecimento mental que causou em mim e no bairro também”. 

Willian Souza Santos,19, morador do Capão Redondo.

Vestibular e saúde Mental 

Estressado com a chegada e os preparativos para o vestibular, o estudante relata o desgaste da sua saúde mental. “O vestibular me causa nervosismo e muita pressão, e eu sei que não é só comigo, mas também as pessoas ao meu redor, as pessoas que moram onde eu moro e também querem entrar em uma universidade pública. A pandemia só veio para agravar isso, porque é a primeira vez que vamos lidar com uma prova tão importante como o Enem em um cenário tão turbulento e incerto, que é difícil até pensar na prova”.

Ele acredita que uma boa saúde mental é fruto de um estado de bem estar emocional. “Saúde mental para mim é você se sentir mentalmente bem, conseguir lidar com as coisas de forma tranqüila e sem estresse”, conta.

Willian faz questão de enfatizar que tudo o que está passando tem uma forte ligação com a forma como o Governo lida com as políticas públicas ligadas à educação e a juventude. “O Estado parece não se importar muito com os jovens estudantes e trabalhadores, especialmente quando se trata de saúde mental ou o processo de estudo para o Enem em ano de pandemia. Isso fica claro quando vemos a propaganda feita pelo MEC, em que a mensagem transmitida sugere que nós temos que dar um jeito de estudar de qualquer forma e quem não tiver recursos, como internet, computador e livros, já é excluído do processo seletivo antes mesmo de fazer a prova. Em virtude do desdém que o governo tem para com os jovens pobres, pretos e periféricos que nem eu por exemplo.”

“Os cursinhos populares nos impulsionam a continuar nessa luta de ocupar as faculdades públicas que é nosso lugar por direito”

A moradora de Poá Stefany Santos Lourenço,18, estuda no cursinho popular Uneafro Brasil. Mesmo com o suporte dos educadores da organização de educação popular, ela compartilha algumas inseguranças sobre o futuro da sua trajetória como estudante universitária. “Estudo durante três anos, realizei a prova do Enem duas vezes, quero fazer História na USP, mas sigo muito insegura, mesmo sendo um sonho sempre tenho a sensação de que não vou conseguir”, afirma ela, enfatizando que todos os seus planos foram afetados: “desde pequenos até grandes planos foram afetados e quando isso acontece vem o sentimento de frustração e nossa saúde mental fica em estado crítico”.

A estudante comenta como a pandemia afetou sua rotina de estudos, e as dificuldades de conseguir em casa um espaço e estrutura para estudar para o Enem. “Antes da pandemia eu tinha um planejamento de estudos para o ano inteiro e com a chegada da pandemia precisei trabalhar mais e não consegui acompanhar o ritmo dos estudos que eu tinha antes e em casa dificilmente consigo estudar. Geralmente o espaço que tenho é na cozinha onde todos transitam, fazendo muito barulho e não consigo me concentrar, tudo se tornou mais difícil com o distanciamento”.

Lourenço finaliza falando sobre a importância do cursinho na sua vida e no território. “Os cursinhos populares são de enorme importância nos impulsionando a continuar nessa luta em ocupar as faculdades públicas que é nosso lugar por direito, a Uneafro me ajudou a ter outra visão de mundo, não somos apenas um cursinho, fazemos um trabalho com a autoestima, militância e vida, e é de extrema importância nas periferias que nós jovens se sentimos reconhecidos e com pertencimento de fazer de algo”.

Outra estudante de cursinho popular é a Bianca Nobre, 17, moradora do Alto do Riviera no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. A aluna da Rede de Cursinhos Populares Ubuntu relata suas dificuldades de estudar em casa. “Para mim, as maiores dificuldades de estudar em casa é a falta de contato humano né, aquele calor da sala de aula, isso fez eu me sentir muito só, e perder bastante motivação, eu também tive que me adaptar a um modelo de ensino à distância que ele requer mais disciplina, e era uma disciplina que eu costumava ter mais em sala de aula, então esse tipo de estudo online também é um pouco dificultoso pra mim”, compartilha Bianca.

Outro ponto bem importante descrito pela estudante aponta a desigualdade social sobre a infraestrutura para estudar dentro de casa, tanto no contexto familiar, quanto no acesso a materiais, e enxerga isso como privilégio quando pensa em seus amigos e até no seu território. “Eu tenho sorte de tanto minha família, meus amigos, e o cursinho também me apoiarem bastante nessa jornada, mas eu vi relatos e situações de pessoas que deixaram de estudar, tenho acesso à internet, computador, celular, e me sinto bem privilegiada quanto a isso, porque eu sei que não são todas as pessoas aqui da periferia que tem, mas mesmo assim eu acho difícil, não substitui a sensação de sala de aula, é difícil me adaptar a ficar olhando pra uma tela no vídeo e não me distrai, não me sentir só”.

A desmotivação de Bianca para com os estudos vem sendo combatida com o apoio da Rede Ubuntu, segundo ela, o cursinho tem ajudado a seguir em frente e se sentir mais forte nesse processo. “Eu me desmotivei de um tempo pra cá, então eu mantive o estudo, só que não no mesmo ritmo, não na mesma constância de antes, não todo dia por exemplo, não o tempo todo, igual era. Agora eu tento manter o que eu consigo, tento me respeitar, respeitar minha cabeça, só esperando que isso tudo passe, e eu consiga alcançar meu objetivo, o cursinho oferece muito apoio amigo, um apoio emocional, e é isso que me impede de desistir dos meus sonhos, os professores de lá também entendem o sofrimento do estudante, que eles já passaram por essas situações, e agora a pandemia potencializou essa insegurança, essa ansiedade, essa frustração”, conta a estudante.

Bianca finaliza comentando a importância do cursinho não só neste momento, para sua vida inteira. “Foi uma importância gigantesca, imensurável, porque além de professores eu encontrei pessoas que me inspiram diariamente, e eles acreditam no meu sonho junto comigo, então eu não tenho o que falar, e mesmo sabendo que eles também estão passando por dificuldades, porque não só os alunos, mas os professores também ficam mal nesse tempo, eles ainda estão aqui presente, tão conversando, isso eu acho que é essencial, ainda mais agora”.

Bianca Nobre, 17, moradora do Alto do Riviera no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo.

“Os alunos não são iguais aqueles do comercial do Enem né, a gente tem uma realidade muito dura” 

A coordenadora do cursinho popular Ubuntu, Agnes Roldan, 20, descobriu a existência da iniciativa em 2017, ano no qual, a universitária ainda estava cursando o ensino médio e hoje cursa Ciências Sociais na FMU.

Ela lembra como foi esse processo de sair do ensino médio e ingressar na universidade com apoio do cursinho popular. “Em 2017, no meio do ano eu ainda era estudante do ensino médio, descobri que existia um cursinho na periferia de graça. Isso não fazia muito sentido na minha cabeça, mas eu quis saber como era, onde era, recebi informações de como chegar no cursinho e cheguei. Um dos meus colegas de trabalho hoje é o Renato, que me recebe e me abraça, isso é bem marcante pra mim”.

Agnes recorda o importante fato de que após dois anos de ingressar como aluna, ela foi convidada para fazer parte do grupo de coordenação do cursinho. “Estudei o resto do ano na Ubuntu e ingressei na faculdade depois, os ajudei com algumas coisas de entrevista no ano seguinte, aí em 2019, o Renato, o mesmo que me recebeu em 2017 para ser aluna, me liga perguntando se eu não quero entrar na coordenação, e essa vai ser minha historia com o cursinho, muito próxima, quase uma família, e tem essa ligação de ser aluna e depois ser coordenadora”.

Em meio à pandemia, a coordenadora relata que foram necessárias uma série de adaptações no planejamento geral do cursinho e que medidas foram tomadas para de alguma forma aproximar as pessoas dentro da internet.

“De repente a gente precisa parar esse planejamento e mover tudo para uma realidade online, e na realidade online é difícil você manter essa afetividade na educação, o contato próximo, e aí a gente passou a tentar concertar isso, a gente faz lives aos sábados para eles terem aulas com os professores do cursinho, na semana eles estudam na plataforma do descomplica , tem uma equipe de redação para corrigir redação pra eles, além disso, a gente faz outras atividades”, conta Agnes.

Ela revela que neste momento, os alunos da Rede Ubuntu estão usufruindo de parcerias importantes para manter os sonhos de acessar a universidade acesso e energizados. “Eles estão passando por uma série de diálogos com um grupo de pesquisadores sobre como vai ser o futuro do trabalho, e como eles olham esse futuro, e teve parceria com a 4g Pra estudar, que ajudou demais a gente, pois os alunos puderam realmente ter acesso à internet e estudar e se concentrar nos estudos”, explica a jovem, afirmando que com a aproximação da data do Enem vai rolando um nervosismo entre os alunos do cursinho.

A coordenadora comenta sobre as propagandas que passa na televisão a respeito dos estudantes e fala sobre como é a realidade. “Os alunos não são iguais aqueles do comercial do Enem né, a gente tem uma realidade muito dura, muitos alunos estão trabalhando, fazendo jornada dupla, tripla, no meio de uma crise sanitária, isso gera tristeza, isso gera desesperança. Então você percebe que eles querem muito continuar, querem muito realizar o sonho de poder entrar em uma faculdade, mas o momento vai desanimando”, analisa.

Embora a coordenadora do cursinho popular enfatiza como eles estão cuidando e fortalecendo os seus alunos, ela prevê um futuro difícil para os estudantes de escolas públicas que moram nas periferias e favelas. “O cenário é difícil, o cenário daqui para frente prevê muita evasão escolar, infelizmente é uma coisa que eu consigo enxergar, é a relação que o governo está tendo com os alunos de escola pública nesse momento, ele prevê uma evasão escolar, uma evasão que já está acontecendo na realidade, por conta de um ensino remoto que não foi pensado nos alunos pobres né, que são a maioria de escolas públicas”.

Consciente do estado de abandono dos estudantes das escolas públicas na periferias, Roldan fala sobre como a Rede Ubuntu tem pensado a saúde mental entre os estudantes nesse momento. “É um coletivo que vem pensando essas ações, enquanto rede a gente fez algumas rodas de conversa com eles, pra pensar saúde mental, para trabalhar essa esperança, pra dizer estamos aqui, somos Ubuntu, e tem dado certo, tem sido muito gostoso esse momento, pra cuidar da saúde mental dos alunos, que é uma coisa que realmente pesa muito, na hora de você prestar vestibular”.

Agnes finaliza comentando sobre os posicionamentos do Estado referente à educação e a saúde mental dos jovens que estão estudando para o vestibular. “Se a gente vivesse no mundo ideal, a gente teria o estado que pensasse nas desigualdades, o estado deveria ter feito isso, pensando nos alunos, nos recortes dos alunos, pensando nos professores que estão tendo que trabalhar o dia inteiro, que tiveram salário cortado nessa época, então com acesso aos dados que ele tem, e com um pouco mais de pensamento nas desigualdades sociais que a gente tem, o estado poderia ter feito um serviço mais efetivo”, argumenta.

Olhando para esse cenário de desigualdade sociais na educação, avanço no número de casos críticos de saúde mental e escassez de direitos digitais, a psicóloga Mayra Ribeiro, 40, integrante da Uneafro Brasil, explica o que está acontecendo neste momento de pandemia com a juventude periférica e enfatiza que ela passará a viver várias transformações e pressões. “O que ta acontecendo com o jovem, que faz o vestibular, é ele tá se sentindo mal, deprimido, ansioso, isso não é doença mental, tá de boa, que bom que ele tá sentindo tudo isso, enlouquece ai, é a hora pra isso mesmo, vai ficar tudo bem, isso não é doença mental, é uma ansiedade natural, doença mental é realmente outra coisa”,

A psicóloga comenta como esse é o momento de romper com o tradicional jeito de utilizar de outros meios e formas para adquirir conhecimento e se fazer conhecimento. “Os próprios conteúdos online vão facilitando essa nova maneira de aprendizagem, através disso, dessa pessoa mesmo, ir lá, pegar o conteúdo que o professor colocou no Google Class, e dali ele mesmo ir procurando, e olhando, e que eles também passam a ressignificar esse lugar onde vivem, eu acho que também tem esse momento de ressignificar isso, saber que às vezes você vai conseguir ler, acompanhar o YouTube e tudo mais, na questão da concentração e do barulho, porque tem muita gente lá, é de novo não pensar no método tradicional, é pensar aqui, o foninho, a leitura, eu a tela, e um cantinho”.

A psicóloga fala sobre como a insegurança afeta os estudantes e ressalta o papel dos cursinhos surgirem como espaços de quilombo. “O jovem negro, como todo jovem ele é inseguro, o racismo pode fazer que ele fique ainda mais inseguro, mas não que isso tenha como ser mensurado, eu diria que a insegurança é complicada nesse momento, de mudança de vida que é o vestibular, então o cursinho popular é a ferramenta ancestral que fez o desenvolvimento da população negra, funciona pela diáspora, organizada em movimentos, como a ferramenta do quilombo, a periferia é aonde todos os negros foram alocados, por conta do racismo espacial, então o que eu acho dos cursinhos e a estrutura, é a única estrutura que até agora a gente conhece, que foi capaz de transformar a vida dos negros de vez até agora”.

Atenta aos impactos causados pela inexistência de políticas públicas que cuide da saúde mental da juventude, Mayra comenta sobre as posições do governo neste momento. “Eu acredito que nesse momento esse governo não tem nenhuma preocupação com a educação, eles são assumidamente que acreditam na força do braço, então qualquer coisa de achar que eles estão incentivando a educação é pura ilusão, porque eles falam abertamente que não ligam. Acredito que todos os jovens que estão prestando vestibular, ainda mais jovens de quebrada, têm plena consciência que na quebrada dele ainda tem problemas maiores a serem resolvidos, e que precisam ser pensados primeiro, antes da política pública da saúde mental dele, antes de estar realizando um sonho, importante lembrar que ainda a entrada para universidade, é a realização de um sonho”, aponta ela.

A psicóloga encerra deixando uma mensagem a todos que estão na caminhada de ingressar na universidade e no mundo acadêmico. “É sempre importante que essa pessoa que tá tentando ingressar na faculdade, entenda que ela tá realizando um sonho, e que vai ser muito bom, e por mais que seja uma jornada difícil, a jornada da intelectualidade é uma das mais bonitas que têm escolher viver sobre o pensar, sobre o ler, sobre ajudar as pessoas, enquanto se faz isso, através de pesquisa, artigo, entre outras coisas, é um dos maiores privilégios que alguém pode ter então boa sorte, se joguem”.

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