Todo mundo tem direito a um lar. Entenda o que o poder público tem feito para garantir moradia – e como a mobilização de moradores nas periferias da Zona Sul de São Paulo resultou em conquistas para todos
Reportagem de Ana Luíza Araújo, Rebeca Motta e Riviane Lucena. Fotos por Pablo Pereira. Edição de texto por Thiago Borges. Design por Camila Ribeiro.
A vida de Altamiro é feita de mudanças. Em 50 anos de vida, já morou em diferentes casas e bairros. Mas há quase 06 anos ele firmou sua esperança com lona de plástico e estacas de madeira no fundão do Jardim Ângela: na expectativa de parar de sofrer com o preço alto do aluguel e conseguir uma casa própria, Altamiro cercou um lote na ocupação Vila Nova Palestina. “Tudo a gente consegue com luta, né? Nada é fácil hoje em dia”, diz.
A situação de Altamiro é parecida com a de muitos brasileiros: com salários baixos ou desempregados, ter um teto pra dormir embaixo e um pedaço de chão pra chamar de seu é uma realidade distante e que atravessa o tempo. Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, a terra é alvo de disputas e os mais pobres sofrem por falta dela. Depois do fim da escravidão, os negros conseguiram a liberdade mas não tinham posse da terra. E muitos nordestinos migraram para o sudeste por não conseguirem se sustentar na terra natal.
O Artigo 6ª da Constituição Federal de 1988 tenta resolver o problema ao garantir a moradia como um direito social, como é o caso da educação, saúde ou alimentação. É básico: uma casa dá segurança física, emocional e afetiva para as pessoas. Permite fazer planos e sonhar. Mas esse direito ainda não está assegurado pelo poder público. “Muitas pessoas moram na periferia, mas ainda assim não têm suas casas próprias”, afirma Jussara Basso, líder da ocupação Vila Nova Palestina.
Uma vida por um teto
“O sonho de qualquer cidadão é ter uma moradia. Poder deitar a cabeça no travesseiro e falar: ‘é meu!'”, resume dona Ana Maria Gomes Santos. A auxiliar de serviços gerais busca essa realização para seus 05 filhos: um canto para ficar. E essa história atravessa sua vida inteira. Nascida em Caraí (norte de Minas Gerais), ela começou a trabalhar aos 06 anos na lavoura e logo depois de atingir a maioridade migrou para São Paulo com dois filhos pequenos. Foi para o Rio de Janeiro, voltou para São Paulo e morou por 05 anos em uma casa alugada no Jardim Maria Sampaio (Campo Limpo).
Com o dinheiro curto e o desejo de ter uma moradia própria, em 2006 ela comprou por R$ 2.000 um lote irregular no Jardim Gaivotas (bairro no Grajaú, às margens da represa Billings). Pela primeira vez, dona Ana e outras 103 famílias vizinhas dormiram com a sensação de ter realizado o sonho da casa própria. Mas a alegria durou pouco. Sem a posse da terra, um ano após a construção a Subprefeitura da Capela do Socorro determinou a remoção das casas e todas as famílias foram despejadas.
Enquanto alguns se abrigaram com parentes, 11 famílias ficaram na rua – incluindo dona Ana e seus filhos. A Subprefeitura improvisou um abrigo com barracas de lona em um campo de futebol até encaminhá-los a um hotel em Interlagos, onde ficaram por 03 meses. “Durante esse tempo, a gente ia a pé pra dormir na porta da Subprefeitura cobrando uma solução, até que eles resolveram pagar a parceria social”, lembra Dona Ana.
Essa parceria social é uma espécie de auxílio-aluguel com um contrato de 30 meses de duração. Com manifestações, a Prefeitura renovou o benefício por mais 30 meses. As famílias atendidas recebiam R$ 300 por mês, insuficiente para pagar o aluguel. Depois desse período, a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) transferiria os beneficiários para o auxílio-aluguel, mas isso não aconteceu.
Dona Ana morava com a família em uma casa alugada no Cantinho do Céu, também no Grajaú. Mas há 03 anos, com o desemprego e sem receber o auxílio-aluguel que a Prefeitura prometeu, ela teve que voltar para a ocupação no Jardim Gaivotas. Dessa vez, construiu a casa com madeirite. Enquanto o direito à moradia não é garantido, ela segue denunciando a situação de mais de 200 famílias. Seus relatos escritos à mão chegaram até a Universidade Federal do ABC (UFABC) e na Universidade de Michigan (nos Estados Unidos). Os universitários ajudam a comunidade com palestras, mutirões e melhorias como um campo de futebol e parquinho para as crianças. A casa ainda é uma incerteza.
Quando a comunidade se junta, a conquista acontece
Enquanto a luta segue no Jardim Gaivotas, do outro lado da Zona Sul o momento é manter as conquistas. Há 52 anos, Maria Cecília de Luna chegou no Jardim Casablanca. Era puro mato, não tinha asfalto, luz elétrica, nem água ou esgoto encanados. Conhecida como Dona Lurdes, ela contava 03 nascentes no quintal de casa.
A paraibana estabeleceu raízes na Zona Sul de São Paulo com o marido e 02 filhas. Longe de tudo, foi nas missas de domingo e nas novenas com a vizinhança que ela passou a atuar politicamente na região onde hoje é uma referência. Na época da ditadura militar, a igreja era o único lugar seguro para reunir grandes grupos de pessoas sem sofrer repressão. Mais do que a oração, o espaço serviu para que as mulheres falassem dos problemas do dia a dia e dos direitos que eram negados.
Muitos objetivos foram alcançados, como creches e linhas de ônibus, e o Clube de Mães ampliou a luta. Mesmo com uma casa própria, Dona Lurdes se solidarizou com as pessoas que moravam na favela do Puma, na beira do córrego do S. Quando chovia muito, o córrego inundava e a enchente atingia as casas dessas famílias, que precisavam se abrigar em escolas e igrejas. Então, as mulheres passaram a cobrar a Prefeitura para conseguir um terreno e ouvir as necessidades dos moradores. Assim, foi criada a Associação Amigos do Bairro, que ajudou ocupações irregulares a conquistar o Conjunto Habitacional Manet, que fica no Jardim Macedônia.
Hoje, Dona Lurdes tem 85 anos mas não para de atuar: ela é responsável por 04 hortas comunitárias que cultiva no CEU Casablanca, com o objetivo de conscientizar as pessoas da região sobre a alimentação saudável. Além disso, faz encontros semanais sobre costura e geração de renda com mulheres em sua própria casa. Ela continua acreditando no poder da comunidade.
Em busca da casa própria
A luta de Dona Lurdes no passado se repete no presente. Com a alta dos aluguéis e a omissão do poder público, em novembro de 2013 o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ocupou um terreno na Estrada do M’Boi Mirim (Zona Sul de São Paulo) para reivindicar moradia. Domésticas, seguranças, motoristas de ônibus, assalariados ou gente que recebe Bolsa Família: a ocupação Vila Nova Palestina virou alternativa para mais de 8.000 famílias – atualmente, 2.000 famílias continuam cadastradas pelo movimento e também estão nas listas de programas habitacionais da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano) e COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação). Algumas há 50 anos na fila da moradia.
O terreno foi escolhido também com base na Constituição, que estabelece que a propriedade deve cumprir uma função social. Ou seja, a terra estava sem uso. Mas para ser habitada, ela precisaria se transformar em uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social)
Em 2014, moradores da ocupação acamparam por 07 dias em frente à Câmara Municipal para conseguir liberação da área da ocupação Vila Nova Palestina. Depois, apresentaram um projeto na Caixa Econômica Federal e no antigo Ministério das Cidades para financiar a construção das casas e transformar a ocupação em um bairro planejado. Mas desde 2016, o programa Minha Casa Minha Vida do governo federal não financia entidades e o projeto não saiu do papel.
Enquanto a casa própria não se concretiza, as famílias da ocupação seguem regras básicas de convivência baseadas no respeito mútuo. Mais do que moradia, o movimento discute a preservação ambiental; a ocupação tem aulas de reforço para crianças, alfabetização e pré-vestibular para jovens e adultos; oficinas de comunicação, artesanato e geração de renda; e as hortas e cozinhas atendem tanto ao uso pessoal quanto coletivo.
Do lado de fora, as famílias participam da mobilização de vizinhos contra o fechamento de AMAs (Assistências Médicas Ambulatoriais); reivindicam saneamento básico e melhorias no Hospital M’Boi Mirim; e luta contra as mudanças e cortes de linhas de ônibus da região.
A luta continua a mesma: é pelo direito de morar.
Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização dos coletivos Alma Preta, Casa no Meio do Mundo, Desenrola e Não me Enrola, Imargem, Historiorama, Periferia em Movimento, TV Grajaú, Dicampana e Nós, Mulheres da Periferia, com patrocínio da Fundação Tide Setúbal.