“Mês passado eu não liguei o fogão”: valor do gás muda rotina alimentar nas periferias

Edição:
Evelyn Vilhena

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Com o valor do gás de cozinha afetado pela inflação, famílias precisam mudar não só os alimentos consumidos antes do aumento nos preços, mas também a forma de prepará-los. 

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Com o aumento do valor do gás, virou rotina cozinhar no fogão à lenha sempre que Audryn e a família conseguem. (Foto: Vinicius Mikolaeski)

Chegando a custar mais de R$100 em algumas cidades da grande São Paulo, o aumento no valor do gás de cozinha transforma a rotina alimentar e traz mudanças sociais na conjuntura de diversos lares. É o caso das famílias de Sônia Maria e Audryn Miriam, que desde a disparada do valor, recorreram ao fogão a lenha para cozinhar.

No início da pandemia do coronavírus, Audryn Miriam, 22 anos, se mudou para a casa do pai Alexandre, no bairro Veloso, em Osasco, região metropolitana de São Paulo. Como era ele que comprava o gás, Audryn fazia o máximo para economizar e passou a mudar a sua rotina alimentar, como parar de fazer bolos com tanta frequência, em média uma vez por semana, pois ficavam muito tempo no forno.

Segundo dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP), o preço médio do botijão de gás aumentou quase 30% aos consumidores desde o começo do ano de 2021. Por conta do valor abusivo que não parava de subir, Audryn começou a fazer o máximo para evitar a utilização do fogão e ter que comprar outro botijão. O último, comprado no início da pandemia, havia custado R$85. 

“Eu comia muita comida congelada, porção de comida pronta, macarrão pronto… comia bastante mesmo. No mês passado, inclusive, eu não comi nenhuma comida de forno, eu não liguei o fogão”

diz Audryn.

Em outubro deste ano, ela saiu do emprego em que trabalhava e ficou desempregada. Com o aumento de todas as contas em casa, como água, luz, internet, alimentação e o gás de cozinha, ela decidiu voltar para a casa da mãe, Patrícia, em Cotia, também na região metropolitana de São Paulo.

Patrícia Mikolaeski, 47 anos, mãe de Audryn, é dona de casa e realiza trabalhos pontuais com organização. Ela já tinha um fogão a lenha no espaço externo de casa, mas que não usava com tanta frequência. Com o aumento no valor do gás, essa dinâmica mudou e atualmente, a maioria dos alimentos são preparados no fogão a lenha, o que faz o gás de cozinha render em média 4 meses.

Gás inflacionado

O economista Alex Barcellos, explica os motivos que fazem com que o gás aumente abusivamente o valor em tão pouco tempo. No Brasil, o gás de cozinha é repassado pela Petrobras, pois o combustível fóssil é o principal elemento. São três esferas que implicam no valor do botijão: o lucro dos investidores, o preço de operação da distribuição e os impostos estaduais.

Como parte da Petrobras foi vendida, os investidores, principalmente do exterior, visam o lucro em cima do valor do gás. Dessa forma, a Petrobras já faz o repasse com o valor de operação e lucro embutido para os distribuidores.

Os distribuidores (o ponto de entrega, o mercadinho ou caminhão), adicionam o custo de operação para a entrega do botijão até a casa das pessoas. Por exemplo: o valor do combustível do caminhão que entrega o gás. E por último, são adicionados os impostos que cada governo estadual impõe sobre aquele botijão.

Assim como em Itapevi e Cotia, o gás na cidade de Osasco está custando R$100. (Foto: Monique Caroline)

“Um botijão de gás que custa R$100, vamos entender que na operação, a Petrobras repassa a R$50. O operador/distribuidor, cobra R$35 da operação naquele ponto de venda na sua quebrada, e aí a gente complementa com mais R$15 que seriam de impostos”, exemplifica o economista Alex.

Ele expõe que uma das alternativas para baixar esse valor, seria uma política do governo federal realizando uma intervenção. Isso não acontece pois com a privatização, a Petrobras possui outros proprietários e investidores estrangeiros donos de grandes capitais. Dessa forma, o governo não intervém para manter boas relações com os investidores.

Além de todas as esferas econômicas que o preço implica na vida de uma família periférica, o economista qualifica como problema gravíssimo a precarização da qualidade alimentar, como é o caso de Audryn, ao consumir produtos congelados e comidas prontas. 

“O aumento do consumo dos produtos industrializados, produtos práticos, que você utiliza água ou somente um forno micro-ondas, também tem sido observado como um grande problema na qualidade de comida dessas pessoas que não conseguem ter o gás em um preço mais favorável a ser utilizado”

expõe o economista.

A “SEVIROLOGIA” DO FOGÃO À LENHA 

 Para Patrícia, o fogão a lenha não é tão prático como o gás para cozinhar, pois mesmo que ventilado, deixa um cheiro muito forte no ambiente, suja muitas panelas e demora um pouco mais para ascender. Ainda assim, para ela, a comida fica mais saborosa.

“Agora eu tenho usado bem mais, antes eu só usava final de semana. Agora faço arroz e feijão pro almoço e janta. […] Não é uma saída de praticidade, é uma questão de gosto”, comenta Patrícia.

Apesar de não ser uma saída de praticidade, Audryn e a família optam por usar o fogão à lenha sempre que podem. (Foto: Vinicius Mikolaeski)

A dona de casa Sônia Maria, 54 anos, moradora de Itapevi, também recorreu à utilização de um fogão à lenha improvisado pelo marido José Santos, na laje de casa. Antes do fogão a lenha, o gás rendia em torno de um mês, custando R$100.

Mesmo cortando os alimentos que utilizavam muito gás, como bolos e carnes, o preparo do almoço e janta faziam com que o botijão acabasse logo. Isso fez com que o marido, que é pedreiro, criasse um fogão a lenha, ao pegar uma lata de tinta vazia, encher de cimento e colocar uma chama de fogão.

“Ele foi criativo. É muito bom, a água ferve rapidinho e a comida é outro sabor. O arroz é tão gostoso. Quando você tá cozinhando os vizinhos que passam já ficam: ‘ai que cheiro gostoso de comida'”, conta Sônia sobre a experiência.

Sônia e a família utilizam o fogão à lenha improvisado que o marido fez principalmente aos finais de semana (Foto: arquivo pessoal)

Assim como Patrícia e Audryn, Sônia e a família não gastam comprando lenha, pois encontram muita madeira perto da região em que moram. Ela diz que além do fogão à lenha, também gosta de cozinhar no fogão a gás, e fora o preço do botijão, tem que economizar em tudo, por conta do preço abusivo dos alimentos também.

“Eu ia ao mercado duas vezes por mês, a gente comprava carne e frango, fazia a compra de mistura por um mês. Agora não dá mais, agora eu diminui bastante porque aumentou demais. A asinha de frango que eu comprava era R$10 reais e agora tá R$25, tá muito caro aqui”, enfatiza Sônia.

O economista Alex apelida de “sevirologia”, a forma como a população periférica se “vira como dá” e inventa outros caminhos para viver dentro da forte crise econômica que o Brasil enfrenta. Ele enxerga como um grande risco ambiental, social e de segurança individual e coletiva o cozimento dos alimentos à lenha.

“É terrível saber que hoje a gente tem todas essas questões ligadas a essa necessidade do gás mais caro. Se você pensa em comunidades com densidades demográficas maiores como moradias populares, muitas das vezes corre um risco de incêndio, tem diversos problemas relacionados”

analisa o economista.

Alex ressalta que esse cenário é apenas um dos reflexos de um sistema de desenvolvimento que não se faz igualitário a todos. “Se esse é o sistema que é pra gente acreditar como sistema de desenvolvimento, que consegue levar a oportunidade através da meritocracia pras famílias, é um sistema que vive no Mundo Mágico de Oz, porque ele não está trazendo isso”, finaliza.

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