Devido ao racismo direcionado às tradições de matrizes africanas, ainda existe dificuldade em reconhecer como esse conjunto de costumes e tradições ancestrais estão vinculadas à natureza e prezam pela preservação do meio ambiente, inclusive nos terreiros em regiões periféricas.
“Essa relação se dá exatamente porque nós cultuamos divindades que representam aspectos vinculados aos recursos naturais, aos biomas e à diversidade que o meio ambiente nos oferece”, comenta Felipe Brito.
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Felipe é Baba Ẹgbẹ, que significa pai da comunidade e da sociedade, do Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba, localizado no bairro Chácara Mafalda, distrito de Água Rasa, na zona leste de São Paulo. Felipe mora no bairro Jardim Nova Poá, em Poá, município de São Paulo, é jornalista, mestre em políticas públicas e fundador do coletivo Ocupação Cultural Jeholu.
“Quando tem um terreiro numa região periférica, essa é uma região petrificada, em que o córrego foi canalizado, está sujo, poluído ou o esgoto está a céu aberto. É um lugar que não tem rio, não tem cachoeira, as poucas árvores que existem são preservadas pela própria comunidade.”
Felipe Brito, Baba Ẹgbẹ do Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba.
Ele comenta que é nesse contexto, com a privação de áreas verdes e dos recursos naturais, que os povos de terreiro são afetados pelo racismo ambiental e pela falta da justiça climática, pois isso interfere diretamente nas práticas e nos hábitos das tradições de matrizes africanas.
“As lideranças negras que estão nos conjuntos habitacionais, nesses bairros mais afastados têm que repensar como organizar suas tradições nesses espaços”, diz Felipe. Além disso, também há os alagamentos, racionamento de água, erosão, entre outros problemas relacionados ao racismo ambiental, que impactam na vida de todos que vivem nas periferias, inclusive os povos de terreiro.
Terreiros e periferias
“Você vai morar na periferia porque o metro quadrado é mais barato para você montar o seu terreiro e organizar a sua comunidade. Mas ao mesmo tempo você vai ter que se deslocar muito para fazer os seus ritos”, comenta Felipe. O Baba Ẹgbẹ conta que muitas áreas verdes próximas aos terreiros são propriedades privadas ou rodeadas por grupos violentos e intolerantes às tradições africanas.
“[Estamos falando] também de uma reinvenção na urbanidade. Quando você chega em uma casa de candomblé na cidade de São Paulo, você vai ver que parece uma pequena reserva de Mata Atlântica. Por menor que seja a casa, tem que ter a folha, porque senão a gente não tem o culto do Orixá e a presença dele.”
Felipe Brito, Baba Ẹgbẹ do Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba.
Preservação ambiental
Felipe ressalta que as tradições de matrizes africanas têm responsabilidade com o sagrado das folhas, pois representam a cura, a sacralização dos rituais que são vinculadas às divindades. Ele também destaca alguns exemplos de como essas tradições estão conectadas e dependem da preservação da natureza para a manutenção da própria existência.
“Dentro da tradição de Iorubá, muitas orixás como Iemanjá, Iansã e Oxum são veiculadas a rios. [No Brasil elas] são vinculadas ao oceano, mar, rios, lagoas, cachoeiras. Não preservar, não ter consciência, não utilizar os recursos naturais de maneira racional faz com que inevitavelmente nós tenhamos a inexistência da energia vital dessas divindades no culto delas”, ressalta.
A comunidade do Ilé Maroketu Àṣẹ Ọba adaptou as suas práticas para diminuir possíveis impactos ambientais. “A gente só utiliza alguidar, que é aquela vasilha de barro em que se deposita as oferendas no terreiro. Quando nós vamos depositar qualquer coisa fora, nós utilizamos a folha de bananeira, de mamona”. Felipe conta que as velas são acesas apenas no terreiro para evitar incêndios na mata e que instrumentos de plástico não são utilizados nos rituais.
“Existe uma perseguição em relação às tradições de matrizes africanas [que são apontadas] como poluentes do meio ambiente. [Em paralelo a isso] existem movimentos de conscientização dentro das matrizes africanas para que nós entendamos o nosso papel em relação ao meio ambiente”, afirma.
O Baba Ẹgbẹ conta que é necessário considerar que o candomblé, assim como as demais tradições de matrizes africanas, passaram por processos de ocidentalização e embranquecimento, e que práticas que desconsideram e desrespeitam o meio ambiente são traços dessa colonização forçada.
Segundo ele, o que é posto como religiões de matrizes africanas é uma forma restrita e de apagamento das múltiplas tradições que existem, determinando apenas como religião as práticas e tradições que não dizem respeito somente à espiritualidade.
Além disso, as tradições de matrizes africanas englobam outras possibilidades de modo de vida e organização social, que têm como base visões de mundo fundamentadas na ancestralidade e nas culturas africanas, que destoam com o que é ocidental, branco e eurocêntrico.
“Nós somos uma tradição infelizmente de resistência, [pois] se temos que resistir é porque algo nos oprime. Então essa interação de resistência diz respeito também a resistir preservando o meio ambiente, os recursos naturais que dão vida e forças às divindades nas quais nós acreditamos como herança cultural e ancestral africana no Brasil”, finaliza Felipe.