O movimento popular fez avançar os debates para a universalização da saúde e conquista do SUS. Mas a luta pela saúde continua, agora contra a tentativa de transformar em mercadoria um direito fundamental da população, especialmente das periferias
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Em julho deste ano, no meio da pandemia de coronavírus, funcionários do Hospital Municipal do Campo Limpo ocuparam a Estrada de Itapecerica para fazer um protesto. Eles se manifestaram contra a terceirização do equipamento de saúde, que deve passar da Prefeitura de São Paulo para a organização social do Hospital Israelita Albert Einstein. Não é a primeira vez que isso acontece: essa possibilidade existe há anos e reflete as tentativas de privatização da saúde pública.
“Já teve outras [tentativas de privatização], mais ou menos há 20 anos, na época do PAS, e de lá pra cá a gente não tem sossego. Sempre estão falando: ‘a OS vai entrar, a OS vai entrar’. Isso é constante, a gente não tem paz”, relata uma auxiliar de enfermagem que trabalha há mais de 22 anos no hospital e que preferiu não ser identificada.
A profissional ficou sabendo da possibilidade do Einstein assumir o hospital na periferia da zona Sul de São Paulo em uma reunião feita pelas gerências. “Por enquanto, ainda não mudou nada. A mudança lá é só por causa da reforma”, explica. “Com a privatização, a gente não sabe ainda se vai continuar no hospital, se não vai”.
Em resposta à manifestação, a Prefeitura de São Paulo divulgou uma nota onde afirma que nenhum funcionário seria demitido ou transferido. Para a auxiliar de enfermagem, isso não é uma certeza. “É claro que o Einstein não vai querer ninguém lá, né? Então, vai mandar a gente para outros lugares”, reflete a funcionária, que diz que ninguém tem garantias de continuidade no trabalho. “Dizem que até dezembro a gente vai continuar lá. Depois, não se sabe”.
Para a auxiliar de enfermagem, a qualidade do atendimento também pode cair. E ela usa o exemplo de outro equipamento de saúde da região, que atualmente é gerido por uma OS: o Hospital M’Boi Mirim. “No M’Boi Mirim é assim: se precisa de um neuroclínico, vem procurar onde? No Campo Limpo. E quando o Campo Limpo estiver privatizado, vai mandar a população para onde?”, questiona a auxiliar, que já foi contaminada pela covid-19 e se recuperou.
Para o biólogo e professor José Henrique Viégas Lemos, a pandemia de coronavírus evidenciou o problema – e, se não fosse o SUS, o número de mortes poderia ser ainda maior.
“Vimos ainda que nos hospitais classe ‘A’, a porcentagem de mortos é menor do que nos hospitais públicos. Vimos ainda que os convênios estavam fazendo corpo mole para fazer os testes rápidos para detecção da covid-19 e que foi necessária a intervenção do governo para exigir com critérios. Houve até a possibilidade de lista única para internação (utilizaria os leitos privados mais os públicos), pois enquanto nos públicos não tínhamos leitos, nos privados estavam sobrando”, compartilha o professor, que hoje é coordenador na rede de cursinhos populares Uneafro Brasil.
Para quem mora nas periferias da cidade, esse processo de privatização pode interferir em várias camadas.
A população pobre, preta e periférica não pergunta se o médico é do Estado ou da OS, se é concursado ou contratado. Ela quer ser bem atendida, seja por quem for. Infelizmente, ao deixar de fazer esta exigência ideológica, ela permite o avanço da privatização e como conclusão o serviço público privatizado não melhorou. Hoje, a maioria dos hospitais da periferia é gerida por OS ou outro ente privado, e o atendimento continua ruim
José Henrique
Uma conquista em risco
O ano de 1988 é um dos principais marcos na saúde pública do Brasil. Com a promulgação da Constituição Federal, que possuía o objetivo de garantir maior liberdade e direitos aos cidadãos brasileiros, o setor da saúde também garantiu seu espaço como um direito de todos e dever do Estado. Nasceu, assim, o Sistema Único de Saúde (SUS), fruto de muita luta popular.
Segundo o Ministério da Saúde, em 2006, 70% da população brasileira dependia exclusivamente do SUS. Neste mesmo ano, foram realizados 2,3 bilhões de procedimentos ambulatoriais e mais de 300 milhões de consultas médicas.
Mais de 30 anos depois e com muitos avanços, ainda não é possível afirmar que toda a população é beneficiada adequadamente. E a busca para melhorar o serviço bate de frente com os interesses do setor privado, que tem o lucro como objetivo e se aproveita de brechas na lei para transformar esse direito fundamental em mercadoria por meio da terceirização ou privatização dos serviços.
Para Ana Paula Oliveira, psicóloga e pesquisadora do eixo de saúde do Centro de Estudos Periféricos da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), a terceirização dos hospitais públicos significa tirar a responsabilidade do governo.
“Você coloca [o serviço] na mão de uma [organização] parceira, e essa parceira decide como é o jeito que ela quer fazer. Existe pouca supervisão dos hospitais ou mesmo dos serviços de saúde privatizados. Acontece do jeito que eles querem, não como de fato preconiza”, observa Ana Paula.
Segundo informações da Secretaria Estadual de Saúde e do Portal da Transparência, o Estado de São Paulo tem 38 unidades hospitalares com administração direta (pública) e 13 hospitais geridos por 10 OSS – é quase um terço
A legislação permitia que o Estado terceirizasse atividades que não são finalidade do SUS, isto é, aquilo que não diz respeito ao atendimento direto à saúde do usuário – como portaria, cozinha, segurança, etc. Mas a iniciativa privada se aproveitou das brechas criadas pelo governo federal durante a Reforma do Estado, entre 1994 e 1995, e também da Lei federal 9.637/1998 e da Lei Complementar estadual 846/1998, que possibilitaram a criação de figuras jurídicas privadas sem fins lucrativos, que são chamadas de Organizações Sociais de Saúde – as OSS, ou mais conhecidas apenas como OS.
“O objetivo seria ‘agilizar’ o gerenciamento do equipamento público (hospital ou posto de saúde) contratando sem concurso, captando verba do governo federal e até destinando parte dos leitos e atendimentos aos convênios e medicinas de grupo”, comenta José Henrique.
“A população, que nos anos 1980 brigou pelo SUS, se ‘desarmou’ e pouco se mobiliza juntamente com os trabalhadores. O que temos são hospitais fechando e dando lugar a shoppings”.
José Henrique
José Henrique recorda-se que médicos que ocupavam a direção do Instituto Dante Pazzanese, um equipamento público, também estavam na diretoria da organização privada Fundação Adib Jatene.
“Na época, anos 1980, 1990, 2000, inúmeras denúncias surgiram nos jornais e até no Ministério Público Federal acerca da malversação de verbas que eram destinadas a várias fundações existentes nos hospitais públicos em São Paulo. Apesar disto tudo, as fundações estão firmes e fortes”, lembra ele, que já foi perseguido por denunciar a privatização via fundações privadas neste e em outros hospitais.
A situação dos profissionais na área da saúde
A pesquisadora Ana Paula explica que uma das justificativas para o processo de privatização está ligada à contratação de trabalhadores. “O que muda é que a gestão do Estado é muito precária, porque os concursos públicos são escassos. Ou seja, não tem material humano. Essa é a grande desculpa. Não quer dizer que não tenha dinheiro. Dinheiro tem, mas não tem material humano para poder executar o trabalho, então fica um trabalho sucateado”, conta a pesquisadora.
“Essa é a principal diferença e é a desculpa que o governo tem para poder privatizar. Que eles não conseguem colocar mais pessoas porque tem que ser por concurso”
Ana Paula, pesquisadora do eixo de saúdo do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp
Para José Henrique, a presença da iniciativa privada na gestão de equipamentos que antes eram de responsabilidade total do Estado desarticula a luta dos trabalhadores. “O que acontece é que os funcionários são impedidos de [fazer] organização sindical e manifestação contra as injustiças como longas jornadas, sobrecargas de serviço, baixos salários, etc”, conta.
“O serviço público de saúde é uma conquista dos trabalhadores sindicalizados e dos movimentos populares, mulheres principalmente. As campanhas de vacinação, de saneamento básico e de alimentação nas escolas foram 100% financiadas por recursos públicos e patrocinados pelo setor público. Foi isto que permitiu a redução das taxas de mortalidade infantil, principalmente nas comunidades pobres e periféricas”
José Henrique
Um projeto de saúde preto e periférico
Saúde não é apenas ausência de doença. Mas a precarização do atendimento causa o afastamento das pessoas dos serviços de atenção básica, deixando para buscar auxílio médico em casos graves, como conta Ana Paula.
“Procurar um médico é sinal de morte. Então, o sujeito periférico só vai procurar o serviço de urgência e emergência”, diz ele, se referindo aos hospitais. A pesquisadora complementa: “Aí, chega lá em uma situação da qual pouco se dá pra fazer porque não fez promoção e nem prevenção de saúde”. Ela ainda enfatiza sobre os procedimentos de um hospital serem mais caros do que os procedimentos de uma unidade básica de saúde (UBS).
“Existe, principalmente agora por causa da covid-19, um aumento da necessidade de ter hospital de urgência e emergência e um pouco investimento em unidade básica de saúde para fazer promoção e prevenção. Então, privatizar os hospitais não é resolver, porque o nosso problema de saúde não está na urgência e emergência. Nosso problema de saúde está na atenção básica.”
Ana Paula Oliveira
Historicamente, o acesso ao serviço de saúde pública faz parte da conquista de muitos movimentos. Com 32 anos de existência, o SUS já possibilitou o acesso a saúde a muitos moradores dos territórios periféricos, mas ainda há muito para se garantir.
A pesquisadora afirma que se analisarmos a construção do SUS, concluímos que é um dos melhores do mundo e que hoje perde apenas para Cuba, onde o poder público possui uma função e lógica diferente.
“Mas o poder público não está interessado [em colocar o projeto em prática], porque o sujeito periférico é [considerado] massa de manobra. Ele não está ali para poder fazer de fato a diferença. Então, quanto mais gente pobre, periférica e preta morrer, melhor para o Estado”, analisa Ana Paula.
Ela também defende a inclusão da perspectiva racial dentro das questões da saúde.
“Nós temos doenças da nossa raça que estão lá no indicador, tem uma portaria falando sobre isso, mas a enfermeira do seu território nunca te perguntou se você tinha essa doença porque ela parte do pressuposto de que todo mundo tem as mesmas doenças na questão da universalidade”, afirma a pesquisadora.
Os caminhos para a construção de um serviço de saúde eficaz para as pessoas, segundo a pesquisadora, passa por pensar o sistema de saúde a partir dos territórios – algo que também é ameaçado com a terceirização e privatização da saúde.
“Você tem o [Programa] Saúde da Família, que você vai ter um médico da sua família, que vai pessoalizar a relação. [Assim,] contempla-se de que as pessoas são diferentes. Mas quando a gente terceiriza o serviço, o objetivo é o que? É produção, é meta para bater, não é saúde para promover”, finaliza Ana Paula.
Ao longo dos anos, a saúde pública no país deixou de ser um privilégio para poucos, e com apoio da luta popular passa a ser entendida como um direito de todos. Hoje, ainda existem caminhos a serem a percorridos na busca da garantia desse direito que, além de ser de livre acesso, também precisa atender às características e demandas periféricas.
Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.
Percebe-se a degradação so sistema de saúde pública de maneira paulatina,sutil e inexorável.O intento é privatizar mesmo e deixar a população entregue a sua própria sorte.O irônico é perceber que atualmente, mais que nunca,que o profissional da saúde entra no sistema público,saudável e quando se aposentar,ou mesmo antes quando sai geralmente leva consigo as terríveis consequências de doenças adquiridas do seu trabalho.