Na segunda reportagem da série ‘cidade dos direitos invisíveis’ você vai conhecer a história de moradoras da Favela Baracela, ocupação de moradia localizada no Parque Novo Mundo, zona norte da cidade. Elas migraram de suas terras natais na região nordeste do Brasil para construir a vida na cidade de São Paulo. Hoje, em plena pandemia, essas mulheres chefes de família relatam como tem sido o cotidiano durante o isolamento social, período no qual elas foram demitidas de seus empregos.
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A vida de moradoras da favela Baracela, território de luta por moradia que existe a 40 anos no Parque Novo Mundo, bairro pertencente ao distrito da Vila Maria, zona norte de São Paulo, foi transformada radicalmente devido aos efeitos da crise econômica gerada pela pandemia de coronavírus. Boa parte dos habitantes da favela são vendedores ambulantes, diaristas, comerciantes locais ou desempenham outras funções no mercado de trabalho informal.
A favela está dividida em dois territórios: a Baracela I, onde moram as famílias mais antigas; e a Baracela II, onde residem os moradores mais novos que lutam pelo direito à moradia. De acordo com Irani Dias, 49, coordenadora geral da Associação de Luta por Moradia Estrela da Manhã, há cerca de 2.300 famílias morando no território.
Dias afirma que a grande maioria dessas famílias não está conseguindo gerar renda e que muitas são chefiadas por mulheres que são diaristas e que foram dispensadas do trabalho neste período de pandemia.
“São em torno de 2.300 famílias divididas em duas partes: Baracela I, com cerca de 40 anos, e Baracela II, que teve as primeiras construções em 2016. Cerca de 80% das famílias estão em alta vulnerabilidade social e outras 20% constituíram seu comércio lá dentro mesmo ou são ambulantes trabalhando em torno da zona norte”, descreve a coordenadora.
Ela ressalta a condição socioeconômica das famílias que ocupam a favela. “A grande maioria das famílias não está conseguindo gerar renda, muitas são mulheres diaristas que ganhavam por dia e foram dispensadas por suas patroas”.
Na ausência dos órgãos públicos competentes que poderia reduzir o impacto da pandemia na vida dos moradores, a coordenadora do movimento de moradia conta que a Associação tem feito propostas e projetos que vão desde a urbanização da área da favela até a garantia de distribuição de alimentos as famílias da Baracela. “Há uma proposta de reurbanização. Já que não cabe regularização por ser um terreno da CDHU, que já teve indenização. A área de atuação dentro do Parque Novo Mundo atende mais de 1.230 famílias que estamos mobilizando para doar cestas e produtos de higiene”, finaliza.
“Fui mandada embora ainda na experiência, porque onde eu tava ia fechar na quarentena”
Uma dessas famílias é a de Laiana Santos Silva, 22, mãe de duas crianças que também perdeu o emprego na quarentena. Ela relata que está sobrevivendo com o auxílio emergencial e principalmente com as doações que tem recebido dentro da comunidade. “Fui mandada embora ainda na experiência, porque onde eu tava ia fechar na quarentena. Aqui na minha casa estamos sobrevivendo com cestas que o pessoal dá aqui na favela. Se não fosse isso a gente morria de fome. Agora tá muito difícil, não tem emprego de jeito nenhum”, desabafa a moradora.
Santos complementa dizendo que um alívio nesse momento é não pagar aluguel. Ela sempre morou em casas de aluguel e por isso vivia se mudando por causa dos altos preços, condição que a obrigou a morar por pouco tempo e logo se mudar de bairros como Santana, Jardim Brasil e tantos outros da zona norte. A moradora encontrou na ocupação Baracela II o alívio de fugir dos aluguéis juntamente com o sonho da moradia própria, que ela busca a mais de nove anos, quantidade de tempo que calha com o momento de sair de sua terra natal na Bahia em busca de uma vida melhor em São Paulo.
“Eu nasci em Porto Seguro, cidade turística da Bahia. E é bem difícil de conseguir trabalhar lá, então a mais ou menos uns nove anos eu vim para cá, tentar trabalho e graças a deus sempre tive como me manter. Já morei em muitos lugares de aluguel, meu sonho sempre foi ter um lugarzinho meu, eu sempre sonhei em sair do aluguel, graças a deus consegui esse terreno pra mim, agora quero fazer a minha casa de alvenaria aqui, porque eu ainda moro em barraco de madeira”.
Outra moradora que também conseguiu fugir do aluguel por meio da conquista de um terreno na favela Baracela é Janaína Lourenço Da Silva, 38, que nasceu em Garanhuns, Pernambuco e veio para São Paulo também em busca de trabalho e desde que chegou aqui sonha com uma moradia própria.
“Eu sou de Pernambuco, um lugar chamado Garanhuns, minha família toda é de lá, desde que eu to em São Paulo sempre quis ter um lugar só meu, já morei em muito lugar nessa cidade, eu pagava aluguel de quase mil reais. Quando descobri por meio de um amigo que havia sido feita uma ocupação e as famílias estavam montando seus barracos, aí a gente veio arriscar, eu e meu esposo, ninguém sabia se ia dar sorte ou não, mas viemos tentar e estamos aqui até hoje”.
Janaína também conta sobre a dificuldade de se manter dentro de casa nessa quarentena quando se mora em casas muito pequenas e com muita gente. Ela afirma que não é possível ficar em casa e que não existe espaço e nem estrutura para se isolar. “Tem muitas casas de alvenaria e barracos de madeira, as pessoas tentam se controlar, mas tem que sair, não tem como ficar direto em casa, o espaço é pequeno, não tem quintal, não tem garagem, a rua é de barro, as condições são difíceis, mas é a única que temos e agradecemos a ajuda que recebemos aqui”, descreve a moradora.
Ela enfatiza que além destes fatores que inviabilizam o isolamento social, o abastecimento de água é outro grande problema enfrentado pelos vizinhos na favela. “Pensando na quarentena não é possível ficar em casa e nem sem contato. A estrutura é difícil. A água, por exemplo, acaba de noite e só volta de manhã cedo”.
Censo 2010: a desigualdade dos migrantes nordestinos
Os problemas com moradia, renda e empregabilidade narrados pelas moradoras chefes de família entrevistadas pela nossa reportagem foram apontados nos dados do Censo 2010, que completa 10 anos de existência em 2020. Quem comprova essa ligação é o relatório socioeconômico produzido em 2011 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a partir da análise de alguns indicadores do Censo.
O rendimento mensal médio do trabalhador migrante nordestino que veio de Pernambuco para São Paulo era de R$ 903,20. Já o trabalhador que veio da Bahia era de R$ 937,35. Ambos os estados correspondem aos locais de origem de Laina, que nasceu em Porto Seguro, cidade turística da Bahia e Janaína, que veio de Garanhuns, em Pernambuco.
O estudo também aponta que os migrantes que vieram de outros estados das regiões Centro-Oeste e Sul, possuem rendimentos que giram em torno de R$ 2.000,00, ou seja, o dobro da renda recebida pelos migrantes nordestinos.
Outro dado impactante que revela essa desigualdade entre os migrantes nordestinos é o acesso à educação, direito social estruturante que ajuda o cidadão a conseguir melhores oportunidades de geração de renda e trabalho. Os baianos com idade entre 30 e 60 anos representam 59% entre os quais não concluíram o ensino fundamental, já os pernambucanos têm uma taxa de 56,4% de não conclusão.
Em comparação com as pessoas nascidas em São Paulo, a taxa de não conclusão do ensino fundamental cai para 24,3%, um indicador que revela novamente o dobro de diferença, o qual coloca os paulistanos em lugar privilegiado em relação ao acesso à educação.
Entre as profissões mais ocupadas pelos migrantes nordestinos destaca-se a de empregadas domésticas, com a maior proporção de 21,1%. Esta posição no mercado de trabalho ilustra outro cenário apontado no estudo, no qual o indicador revela que 54,3% de baianos e 57,2% de pernambucanos residentes na região metropolitana de São Paulo recebem um salário mínimo ou menos.
“A favela nunca é ouvida de fato”
Segundo a pedagoga Luana Maria Ferreira Martins, 32, que atua em bairros da Subprefeitura da Vila Maria e Vila Guilherme com articulação cultural e territorial no coletivo Casa No Meio Do Mundo, as políticas públicas habitacionais não chegam às favelas, onde os moradores sofrem com condições de moradias precárias.
“As política públicas habitacionais não chegam, os prédios construídos a pouco tempo no território não levam em consideração os perfis familiares, não existem projetos habitacionais do Estado pensado de fato nos moradores que estão em alta vulnerabilidade, muitos residem próximos a córregos, em becos extremamente apertados e em casas alugadas, e ainda falando do impacto no perfil desse moradores são em sua maioria a população preta, pobre, nordestina, com perfil socioeconômico que não supera a renda de dois salários mínimos”, avalia a pedagoga.
Para Ferreira, a especulação imobiliária com altos valores de aluguéis expulsa as pessoas dos territórios, fazendo com que muitas famílias tenham que morar em ocupações, causando uma sensação falsa de realização do sonho de casa própria.
“Por conta dos altos valores de aluguéis e a parte burocrática que também não facilita, os moradores acabam indo viver em ocupações, mas acho que isso cria uma falsa sensação de realização de sonho da casa própria, muitos terrenos são desapropriados, deixando muitos moradores iludidos, ou vivendo em situações insalubres onde correm perigo constante, o poder público poderiam encontrar maneiras de facilitar condições habitacionais, onde os moradores pudessem realmente realizar um sonho de casa própria”
explica.
Ela também ressalta que o isolamento social não está funcionando nas quebradas, e que o poder público deveria tomar outras medidas pensando nas estruturas dessas famílias. “O isolamento não está funcionando, primeiro as condições habitacionais não permitem, são casas pequenas, barracos, cortiços que muitas vezes moram cinco pessoas, sendo impossível o isolamento social, segundo a questão financeira, muitas famílias não estão tendo o que comer e precisam sair para trabalhar”.
Para amenizar os impactos da pandemia no cotidiano dos moradores, ela sugere um olhar mais sensível e próximo da realidade das pessoas. “As medidas necessárias são um olhar mais sensível para as questões periféricas, ampliar políticas de assistência como os auxílios que a quebrada precisa, mas demora a aprovar. A periferia está precisando de ações do poder público urgentemente, pois a fome não está esperando, muitos vão morrer pelos vírus e muitos de fome, a quebrada precisa ser motivada, se já estivessem realizados projetos habitacionais na periferia antes dessa crise, seria mais fácil o isolamento social acontecer de maneira mais eficiente”.
As organizações e associações de moradia estão o tempo todo pensando nas vidas dentro das favelas e tentando elaborar projeto e propostas que melhorem as condições de moradias dessas pessoas, mas muitas vezes não são ouvidas ou levadas em conta. Luana nos conta que percebe a favela sendo ouvida pelo poder público só quando há um processo de reintegração de posse.
“A favela nunca é ouvida de fato, observo o descaso em criar projetos habitacionais, é tudo sempre empurrado com a barriga, quando poderia ser organizado de uma forma correta, os moradores só são lembrados quando sofre processo de reintegração de posse, o poder público não cria projetos habitacionais, que realmente pautem as necessidades de moradia na vida das pessoas que moram em favelas”, finaliza.