Entrevista

“O povo preto sabe que tem algo errado”: pesquisadora explica impacto do racismo ambiental nas periferias

Edição:
Ronaldo Matos

Leia também:

Ana Sanches Baptista, pesquisadora de desigualdades socioambientais e questões de raça, afirma que para discutir racismo ambiental é necessário escutar quem mais sofre suas consequências.  

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.


Favela do Pulman, 2021. Foto: @menino_do_drone

Casa alagada, escassez de água e de saneamento, são só alguns exemplos de como o racismo ambiental está presente nas periferias muito antes de se tornar um tema amplamente falado nas rodas de debate. Moradores de periferias, negros e indígenas são algumas das populações que entendem e vivenciam na prática esse contexto social, que nos territórios marginalizados não é apenas uma análise, mas sim uma realidade.

Atenta aos impactos sociais desse cenário no cotidiano da população negra e periférica, a integrante da Rede Quilombação, coletivo do movimento negro em São Paulo, Ana Sanches, pesquisa as desigualdades socioambientais e questões de raça, a partir da ótica do racismo ambiental. A doutoranda em Mudança Social e Participação Política pauta a sua atuação a partir da necessidade de ouvir as comunidades de terreiro e as mais diversas etnias.

Em entrevista ao Desenrola, a pesquisadora aponta que é fundamental dar lugar para o povo dizer o que e quais são as reais necessidades e pautas que o representa, e a partir disso começar a construir propostas. Confira a entrevista completa com a pesquisadora.

Desenrola – O que é racismo ambiental no contexto das periferias?

Ana Sanches – É a água que não chega ou que chega em má qualidade e em pouca quantidade. É a casa alagando e desabando. É o esgoto a céu aberto. A falta de energia. É o lixo nos becos e nas vielas, é o ar, alimento e solo contaminado. É o despejo de famílias e destruição dos barracos sob a acusação de ilegalidade. É a ausência do Estado que não leva infraestrutura adequada para as quebradas ocupadas por população negra, indígena, pobre e é também a ausência desses grupos vulnerabilizados nos espaços de poder.

Desenrola – E o que é justiça climática também no contexto periférico? 

Ana Sanches – É repensar o planejamento urbano de forma justa, popular e inclusiva, para que as pessoas tenham moradia digna, com água na torneira em e qualidade suficiente. É garantir segurança e dignidade da vida humana na produção e fornecimento de energia elétrica (pensando que a produção de energia ainda é fundamentalmente poluidora por conta da fonte de combustíveis fósseis), e que o fornecimento inadequado de energia ou sua ausência coloca a população em situação de risco. É também garantir a participação e poder da população nos espaços de decisão.

Desenrola – Você acredita que essas discussões e análises chegam até as periferias e seus moradores? Se sim, como? Se não, porquê?

Ana Sanches – Não chegam em todo lugar, há muitas periferias no mundo e no Brasil. A verdade é que o povo preto sabe que tem algo errado e sente, literalmente na pele, que há algo errado. Algo injusto que não bate, sabe?

Há saberes populares ainda pouco validados, principalmente no meio acadêmico e entre intelectuais brancos. Sempre digo que há mais de 500 anos nós e nossos ancestrais já sabíamos que vivíamos em uma situação dolorosa e violenta, porém, os conceitos como racismo e racismo ambiental ainda não haviam sido criados.

O que eu quero dizer é que precisamos saber ouvir os discursos que são construídos nas quebradas, pois o povão pode não estar falando uma linguagem técnica e conceitual, mas sabe, e muito bem, na prática, o que é o racismo ambiental. Sabe inclusive como melhorar seu território. Creio que os acadêmicos privilegiados da branquitude é que tem que aprender a ouvir o dialeto e os gritos de socorro e não chegar impondo o que é ou não um debate importante.

Desenrola – Como o racismo ambiental está afetando nesse momento homens, mulheres, crianças negras que dependem de recursos naturais do meio ambiente para sobreviver?

Ana Sanches – Às mudanças climáticas, os efeitos dos eventos extremos e as problemáticas de degradação ambiental já estão afetando algumas populações.

Por exemplo, pense na população ribeirinha, indígena, caiçara e ou quilombola que dependia de pescar no Rio Doce? Ou que entende em sua religiosidade o Rio como um ser, um Deus, algo sagrado? É uma violência material, que afeta a dignidade dessas populações de variadas formas. Em suas possibilidades de práticas religiosas e espirituais, em suas formas de alimentação e sua própria manifestação cultural e de vida.

Pessoas urbanizadas que não tem essa relação de dependência direta (pra comer e cultuar) e afetiva com os rios, não são afetadas da mesma forma.

Desenrola – Existe uma relação do setor privado com as mudanças climáticas? Se sim, como isso se dá?

Ana Sanches – Depende de qual setor privado estamos falando. Há grandes corporações e grandes empresas, algumas até de capital misto, na qual a ideia do lucro é a que prevalece. Eu diria que há uma grande relação entre capitalismo e mudanças climáticas, no sentido que não há sustentabilidade nessa lógica capitalista, na qual a exploração de recursos naturais e de pessoas é o que o mantém de pé.

Essa ideia do maior lucro possível, com menor gasto e que despreza a vida humana, mas principalmente daqueles considerados “não dignos ou descartáveis”, ou seja, as vidas negras e indígenas, é exatamente o nosso problema. É o racismo que sustenta o capitalismo e foi o que o tornou tão forte.

Claro que precisamos olhar com cuidado, pois há recortes de gênero aqui que também são importantes, afinal, se olharmos para mulheres negras, veremos a base da pirâmide.

Desenrola – Qual a importância de relacionar justiça climática, justiça racial e justiça territorial? Na prática, o que isso representa? 

Ana Sanches – Pensando que a base das desigualdades na sociedade é uma desigualdade racial, de gênero e de classe, não temos como separar a justiça ambiental/climática do que pensamos como justiça e direitos humanos em uma sociedade.

O entendimento de dignidade e de humanidade que possuímos, é exatamente a que permite às desigualdades raciais, sociais e ambientais que vivemos. Portanto, quando falamos que não há democracia, enquanto houver racismo e machismo, é nesse sentido. Para haver qualquer tipo de justiça, é preciso antes de tudo enfrentar o que estrutura as injustiças e no nosso caso brasileiro, o racismo é a primeira coisa que precisa começar a ser combatida.

Este conteúdo foi produzido no âmbito do projeto Planeta Território, uma iniciativa da Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade para fomentar e distribuir informação de qualidade sobre a emergência climática, o contexto eleitoral e o impacto na população periférica por meio de totens digitais em estabelecimentos comerciais das periferias de São Paulo


Autor

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.

Pular para o conteúdo