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“Inserir uma criança em um coletivo desenvolve um senso de pertencimento”, diz Matheus Barbosa, psicólogo e arte educador

Através de ritmos e a força coletiva do Maracatu, crianças da zona sul de São Paulo estão encontrando um caminho para expressar seus sentimentos e superar transtornos como a ansiedade e a depressão. Mateus Barbosa, 27 anos, psicólogo e membro do coletivo Mucambos de Raiz Nagô, vem desenvolvendo um trabalho de arte, educação e saúde mental que integra a psicologia com a arte do Maracatu, para promover o desenvolvimento pessoal e social dessas crianças​.

A Musicoterapia, campo de pesquisa e conhecimento que procura observar os efeitos de experiências musicais, resultantes de encontro entre o musicoterapeuta e as pessoas assistidas é uma das práticas citadas por Barbosa, que vem sendo utilizada para trabalhar com a crianças questões cognitivas, motoras ou emocionais, beneficiando o autoconhecimento e bem-estar.

Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, o psicólogo e arte educador conta como essas experiências estão sendo adaptadas e aplicadas nos projetos culturais realizados pelo coletivo, para conectar crianças com o Maracatu e a partir desta prática de cultura ancestral conectar o desenvolvimento pessoal e emocional com a arte e a saúde mental.

Uma das ferramentas pedagógicas e lúdicas utilizadas pelo arte educador é a musicoterapia, para envolver coletivamente as crianças nos ritmos e sons do Maracatu. Foto: Zaya da Silva.

VCRP: Como você relaciona os aspectos da psicologia com a arte em seu trabalho de arte educação com crianças?

São coisas que estão intrinsecamente ligadas. Quando a gente pega os modelos de terapia complementar, a gente vê que tem um potencial gigantesco, né? Às vezes, quando a gente pensa em terapia, a gente só pensa no padrão convencional: o analista em uma cadeira, o paciente em outra, aquela troca, mas eu acho que a gente pode expandir as formas de terapias complementares, que já foram aprovadas também pelo Ministério da Saúde. Isso potencializa a comunicação e a verbalização de conteúdo que muitas vezes não conseguem ser acessados através de formas convencionais. Eu acho que a arte, de uma forma geral, como questões de musicoterapia, consegue acessar o indivíduo de uma forma mais fácil e mais horizontal.

VCRP: Você poderia citar alguma linguagem artística ou movimento cultural que possa impactar positivamente a saúde mental de uma pessoa?

O próprio Maracatu, que é a linguagem principal do grupo Mucambos de Raiz Nagô, pode ser explorado. É uma linguagem que vem das brincadeiras da cultura popular, enraizada no senso de coletivo, de estar ali pelo outro, sem a questão de querer que alguém se destaque mais que o outro. A cultura popular se manifesta dessa forma. Então, o próprio Maracatu, pela linguagem, características e funções que são ministradas, tem essa questão de você estar atento ao que o outro está fazendo para que as coisas fluam de forma coordenada. É uma linguagem muito potente.

VCRP: Você acredita que o Maracatu contribui com o autoconhecimento e o bem-estar das crianças?

O Maracatu ajuda muito nesse sentido. Temos um exemplo muito claro com as crianças do coletivo, que já cresceram nesse modo de fluidez. Inserir uma criança em um coletivo oferece espaço para que ela desenvolva um senso de pertencimento, algo que é essencial, principalmente quando falamos de crianças em situação de vulnerabilidade social. Se essa criança teve algum direito violado, ao entrar em um ambiente coletivo, ela passa a fazer parte de um espaço saudável, focado em promover o bem-estar. A presença de um grupo ao qual pertencer é fundamental para que essa criança consiga projetar um futuro melhor. Quando ela encontra modelos dentro desse ambiente, como um batuqueiro, por exemplo, ela pode se inspirar e pensar: “Eu quero tocar igual a ele” ou “Quero dar uma oficina como ele faz”. Esse tipo de exposição abre caminhos para que a criança desenvolva uma perspectiva de futuro mais saudável.

VCRP: Quais são os desafios e as oportunidades de unir uma abordagem terapêutica com uma prática cultural?

A rede pública de saúde e seus equipamentos ainda estão muito ligados a uma visão preconceituosa. Quando falamos de uma manifestação cultural de matriz africana, como o Maracatu, já existe todo um preconceito por trás. Se linguagens como a musicoterapia enfrentam barreiras, quando falamos de expressões da cultura popular, como o Maracatu, essas barreiras são ainda maiores. Além disso, essas manifestações não são muito presentes nas escolas, o que é preocupante, pois estamos falando da nossa cultura. O papel dos educadores é central nesse processo. Muitas crianças se sentem atraídas por culturas de fora, mas, se apresentarmos Maracatu, Ciranda ou Boi nas escolas, elas podem se conectar e se interessar. Essas práticas não são apenas uma promoção de saúde, mas também uma forma de aproximação e comunicação. Quando olhamos para uma pessoa, precisamos analisar o seu contexto biopsicossocial, e não apenas um sintoma isolado. Uma criança, por exemplo, pode chegar em uma roda de Maracatu, começar a se expressar e contar sua história, o que abre caminho para intervenções, talvez até interrompendo ciclos de violência. A cultura é um elemento fundamental para a formação da nossa sociedade, se a gente tira a cultura, acabou.

VCRP: Além do Maracatu, qual outra ferramenta pedagógica pode ser usada no desenvolvimento emocional e social das crianças?

Quando olhamos, por exemplo, para o efeito da linguagem da musicoterapia e analisamos os dados, vemos que a depressão acomete 4,4% da população mundial, o que é significativo. Nesse sentido, é importante reconhecer que a musicoterapia ajuda tanto na redução dos sintomas quanto na abertura para o outro. Através dessa linguagem, conseguimos acessar a pessoa de uma forma mais horizontal e transparente, eliminando alguns filtros. Um exemplo disso é quando um psicólogo chega ao CAPS e encontra um paciente. Antes do atendimento, ele pode ter um prontuário que já traz uma série de rótulos, muitas vezes sem a certeza de que aquilo foi diagnosticado corretamente, a gente não sabe se é um transtorno ou se é um sintoma da sociedade, que são coisas muito diferentes. E é muito mais fácil rotular do que entender a origem dos problemas. A musicoterapia, como uma linguagem complementar, permite acessar a pessoa como ela se apresenta, sem os rótulos.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Médico de família e comunidade aponta reflexos do racismo na saúde de pessoas negras

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Indignação, raiva e dor, foram os sentimentos citados por Eva Marta, 47, ao relatar situações de negligência médica pelas quais ela tem passado desde 2019, quando começou a procurar ajuda para lidar com dores constantes que sente desde 2016. Eva tem artrite, artrose, tendinite, bursite no ombro direito e esporão nos pés. Devido às dores, desde 2020, ela é dona de casa, mas seu último emprego foi como trabalhadora doméstica.

Moradora do bairro São Marcos, na cidade de Embu das Artes, São Paulo, em uma das crises de dores que teve, Eva menciona que procurou o pronto-socorro do bairro, pois não tinha como pagar por uma consulta particular, e levou seis horas para ser atendida.  

Eva Marta é dona de casa, sofre com dores crônicas e mora no bairro São Marcos, em Embu das Artes. (Foto: Viviane Lima)

“Ele [o médico] falou, ‘a verdade é que isso não tem cura, não sara, a senhora tem que se acostumar com a dor’. Aí eu respondi, ‘você fala isso porque não é com o senhor’”. Eva compartilha que queria ao menos que a sua dor fosse respeitada e o que recebeu foi a alegação, por parte do médico, de que ela estava nervosa. 

Situações muito parecidas também aconteceram com Fátima Martins, 43, moradora do bairro Jardim Zaira, na cidade de Mauá, em São Paulo. Fátima é assistente social em uma UBS e também trabalha como técnica de enfermagem. “Certeza que foi uma questão racial, não tinha mais nenhum preto ali, só eu. Quando eu e meu marido chegamos, a única coisa que recebemos foram olhares diferentes”, conta sobre o ocorrido no atendimento pelo convênio médico. 

Fátima Martins é assistente social, técnica de enfermagem e moradora de Mauá. (Foto: arquivo pessoal)

A assistente social diz que procurou o pronto-socorro após sentir uma dormência na mão. Ao realizar o ultrassom e ser diagnosticada com síndrome do túnel do carpo, foi encaminhada para uma consulta com o ortopedista. Ela relembra que no dia da consulta estava acompanhada do marido, José Adriano, pois ele tinha sofrido um acidente e também precisava ir ao ortopedista. 

“Ele disse, ‘você precisa fazer outros exames, não está quebrado, é tendinite’. Aí eu questionei ele, porque eu sabia que [a questão] veio do trauma de um acidente de moto. [E o ortopedista respondeu], ‘eu sou o médico, se eu estou falando que é, é porque é’”, recorda Fátima sobre a abordagem do médico ao passar o diagnóstico do seu companheiro, José Adriano. Ao consultar outro médico, o casal soube que o problema na realidade era uma fratura.

Já no seu atendimento, com o mesmo profissional, Fátima conta que mostrou seu ultrassom e explicou que estava sentindo dores. “Ele [o ortopedista] falou, ‘isso daí vai ser para sempre, você aguenta, você é forte’”, relata a assistente social.

“Eu me senti diminuída como se eu não precisasse de atendimento nenhum, como se eu tivesse que engolir calada, como se qualquer dor para mim fosse pouco. Como se qualquer coisa que venha para melhorar a vida e trazer qualidade, eu não mereça. O meu primeiro sentimento foi de impotência. Porque ele é o médico pode falar como quiser com as pessoas?”

Fátima Martins, assistente social, técnica de enfermagem e moradora de Mauá.

Ao procurar outro profissional de saúde, Fátima constatou que existiam outras soluções para a sua dor e iniciou a fisioterapia, acupuntura e o uso de medicação. 

José Adriano é morador de Mauá e passou por racismo durante consulta médica. (Foto: arquivo pessoal)

As situações relatadas não foram casos isolados. Eva, por exemplo, diz que em outra ida ao pronto-socorro avisou que era alérgica à corticóide, mas mesmo assim foi parar na emergência por negligência médica. Já José Adriano conta que em outra consulta foi questionado inúmeras vezes se já tinha usado drogas, mesmo ele afirmando que não. “Ficou uma coisa bem constrangedora, porque é chato você ser taxado só por ser preto, pobre e favelado, é horrível isso”, afirma. 

Racismo

Diversos estudos reforçam a presença do racismo em atendimentos médicos, seja em consultas, internações e em forma de violência obstétrica. Em casos de internações, por exemplo, o Boletim Saúde da População Negra, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e do Instituto Çarê, mostra que, no Brasil, entre 2010 a 2021, foram 66.496 registros de internações com situações de erros médicos devido a acidentes ou à negligência profissional. 

“A medicina [ocidental] como esse cuidado em saúde é criada e feita do branco para cuidar a partir do branco. Se o branco pratica racismo e se beneficia do racismo em todos os outros aspectos da sociedade, não seria nesse cuidado que isso seria diferente”, pontua Thiago Santos, médico especialista em família e comunidade. 

Thiago trabalha no Centro Municipal de Saúde Mário Olinto de Oliveira, no bairro Cascadura, que fica no distrito de Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro, e pontua que no aspecto da saúde, os dados de violência obstétrica são os mais nítidos. “A mulher negra no trabalho de parto recebe menos analgesia. [Esse] é um dos campos em que a saúde realmente é mais racista”, menciona o médico. 

“Em todas as instituições do nosso Estado [o racismo] é sempre mais velado. Existem algumas estratégias, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que foi implementada em 2009”, coloca. O especialista comenta que essa política tem bons dados, mas que não teve acesso a ela durante a graduação. “Essas ações, que muitas vezes o governo faz no sentido anti-racista, não são aplicadas. [Na] prática não soa como uma das prioridades”.

Outra falha que potencializa a negligência médica no atendimento à população negra, conforme aponta Thiago, é a superlotação dos centros médicos. “A distribuição das clínicas, o acesso aos profissionais, isso já é um fator que o racismo opera. Na Grande Tijuca, que é uma região de classe média, a gente tem 100% de cobertura. E a população que não é coberta é justamente de uma área mais distante, é uma população mais preta”, analisa o especialista.  

O médico ressalta que o racismo afeta a saúde e diminui a expectativa de vida das pessoas negras por terem menos acesso a diagnósticos, tratamentos e centros de saúde. Além do aspecto da saúde mental, taxa de suicídio e violência. “Se a gente sabe que o homem negro jovem suicida mais, a gente precisa ter um olhar mais atento para quando ele chega no consultório com uma queixa de saúde mental”, exemplifica.

Grupo de saúde mental que Thiago organizou no Centro Municipal de Saúde Salles Netto. (Foto: arquivo pessoal)

Thiago é especialista na estratégia de saúde da família e comunidade, área que abrange diversos aspectos das relações sociais. “A gente faz um diagnóstico comunitário para entender como é a dinâmica da região, como ela funciona e como a relação da comunidade com o território influencia na saúde”, explica o médico.

Elementos culturais e os recursos sociais que a população tem a disposição para promover saúde também são levados em consideração nesse tipo de atendimento médico. “A gente vai levantar quantas igrejas têm na região, quantos terreiros, como é a relação dessa população com o tráfico”, exemplifica Thiago sobre alguns aspectos de abordagem que a medicina de família e comunidade abrange.

“A medicina de família aqui do Brasil tenta sair um pouco dessa questão de causa de doença para resolução [e busca] olhar a pessoa como um todo. Entender além da doença, como essa doença implica para ela”, aponta o médico.

Segundo ele, em muitos casos pessoas negras não vão ao médico para evitar situações de racismo. Mas há quem não perceba essas violências, “se você não prestar atenção é imperceptível”, comenta Fátima. Como assistente social do SUS, ela diz que considerar a história e a vivência do paciente, junto com uma educação antirracista continuada no setor da saúde são pontos fundamentais para a melhoria no atendimento.

Eva conta que não tomou nenhuma providência diante das situações pelas quais passou. Fátima pretende denunciar o ortopedista por racismo para o Conselho Regional de Medicina (CRM) e para o convênio. 

“Quando você denuncia, você mostra que esse profissional, essa instituição está com um tratamento inadequado, isso protege outras pessoas e a gente, enquanto povo negro, precisamos aprender a se proteger cada vez mais”, destaca Thiago.

Thiago Santos é médico especialista em medicina de família e comunidade (MFC), no Rio de Janeiro. (Foto: arquivo pessoal)

Thiago menciona que não há uma normativa ou protocolo de atendimento pelo qual seja possível identificar uma conduta racista no âmbito da saúde. “A forma disso acontecer menos [é] divulgar [para o médico] o que é esperado de uma consulta. [Estar atento a] como que a gente deve ser tratado, não só dentro da saúde, mas em qualquer lugar, o respeito que a gente merece”, menciona o médico.

Em termos de denúncia, ele indica que a pessoa que passou por uma situação de racismo em um centro médico procure as ouvidorias locais de saúde e comunique o ocorrido para o gestor responsável pelo local. “Lembrando que racismo é crime, se realmente você está sentindo que sofreu essa violência não está errado acionar os meios legais, acionar a polícia”. 

Apesar de ainda ser a minoria, Thiago coloca que ter profissionais negros e com consciência racial na área da saúde ajuda a diminuir os impactos que esse racismo institucional pode causar. “Que a gente enquanto povo esteja cada vez mais apto para cuidar da gente mesmo. Quando eu atendo uma senhora preta dá esse sentimento de estar atendendo a minha vó e da forma que eu gostaria que ela fosse atendida, isso faz uma diferença grande nesse sentido”, finaliza o médico.

Sorrisos na quebrada

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Estamos chegando na reta final do ano. Em Taipas e várias outras comunidades, projetos sociais, ONGs e times de futebol se unem para fazer a alegria dos pequenos. Eles organizam festas, distribuição de brinquedos e eventos que transformam os espaços da comunidade em lugares de pura diversão. 

Aqui na quebrada já vai criando aquele clima dahora, todo mundo já se organizando e se juntando para ajudar no partilhar com todos. 

Nesse mês de outubro, devido ao dia das crianças, diversos projetos estão proporcionando muita diversão para a molecada. O time Unidos do Jd Brasília proporcionou uma tarde de muita diversão, lanches e brinquedos para as crianças do Jd Brasília. 

O Projeto Social Quadra F Mirim também organizou o evento que aconteceu dia 20 de outubro, na Cohab Brasilândia. Além de toda diversão, comidas e brincadeiras eles também realizaram sorteio de bicicletas para a criançada da comunidade, um dia de lazer que fica registrado eternamente na memória delas. 

A galera do projeto semente do amanhã sempre se organizou em prol da festa das crianças e fazem um grande e lindo evento na Cohab Taipas, muitas crianças de até bairros mais próximos participam e se divertem. 

Esses eventos são muito mais do que uma simples comemoração, são momentos de inclusão, onde crianças que muitas vezes não têm acesso a brinquedos e doces podem vivenciar um dia de felicidade e encantamento.

Isso mostra  o poder de união da quebrada, onde o coletivo se fortalece, garantindo que cada criança tenha seu dia de alegria, sorrisos e muito amor. 

Que a gente sempre pense e reflita todos os dias sobre cuidar, acolher e mostrar que cada criança merece ser feliz.  

Já dizia Racionais: “Olhe as crianças que é o futuro e a esperança, que ainda não conhece, não sente o que é ódio e ganância!”

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Krystal Fokatrua apresenta Capoeira Vogue como movimento de resistência cultural

Envolvida com a prática da capoeira desde os 7 anos, e com a dança vogue a partir do 13 anos de idade, Krystal Fokatrua, 26, uniu as duas linguagens, e a partir dos seus estudos passou a dar aulas de Capoeira Vogue na USP (Universidade de São Paulo). Além de instrutora da prática, Krystal é chef de cozinha e atualmente trabalha em um restaurante no centro de São Paulo.

Nascida em Além Paraíba, município de Minas Gerais, após passar por muitos estados, a artista se mudou para São Paulo aos 17 anos, mas conta que foi em 2022, que decidiu superar as estatísticas que limitam a existência de pessoas trans e indígenas. 

Krystal compartilha sobre as dificuldades desde a infância, incluindo viver em situação de rua ao retornar para São Paulo, e como se envolveu em atividades culturais, como produção de festivais, eventos artísticos e a influência da capoeira vogue na construção de sua identidade.

Como você começou a se envolver com a Capoeira Vogue e como isso conecta a sua trajetória?

A capoeira eu comecei a estudar de sete para oito anos de idade e o Vogue eu comecei a estudar com 13 anos. Desde que eu comecei a estudar o Vogue também conhecia a dança contemporânea que me trouxe uma possibilidade de mesclar ritmos [e] culturas. Minha mestra me [mostrou] um vídeo de [outro] mestre de capoeira [que juntava] capoeira com dança contemporânea [aí] me veio a ideia de trazer a Capoeira Vogue também. Entendendo que era a corporeidade que o meu corpo se expressava, que as pessoas apontavam ‘você está fazendo Capoeira Vogue’, que não é só Capoeira e não é só Vogue, tem uma conexão, uma junção, uma fluidez entre uma coisa e outra que é nítida de se ver.

Como a estética e o ritmo da Capoeira e do Vogue se complementam em uma apresentação?

Quando as batidas tocam. Acredito que quando o movimento vem de dentro ele só acontece quando a gente sente tanto [o] feeling de um, como outro. E como também os instrumentais se conectam de uma forma que faz com que o corpo se mova.

De que forma a capoeira vogue está ligada a outras lutas sociais e políticas da comunidade LGBTQIAPN+ nas periferias?

No grito por existência, por pertencimento, por se entender em um lugar de que você resgata a sua ancestralidade através da sua corporeidade, através daquilo que você é, não através daquilo que te atacam para ser e todas essas culturas elas trazem isso à tona em todos os seus gestos, movimentos, histórias e fundamentos. Como elas foram fundamentais com gestos de resistência, de luta e de pertencimento à própria existência.

Como essa prática pode ser uma forma de resistência e empoderamento para a comunidade  LGBTQIAPN+?

Como estratégia de jogo, de marketing, de ser malandra, de ser fluída, sensível, mas também de ser bruta, de saber quebrar o aço, se defender quando necessário. Então é importante no empoderamento social, onde a gente vive um país que mais massacra tanto pessoas periféricas negras, trans, indígenas. É parte dessa pluralidade de entender que você não está só, que você tem a possibilidade e a capacidade de se manter existindo.

Como a presença da capoeira vogue em eventos periféricos pode abrir discussões sobre raça, gênero e sexualidade?

Com certeza a partir do momento que a gente pensa e aceita que cada ser é um ser. Tanto na Capoeira como no Vogue a gente aprende que você tem o seu jogo, o seu gingado, o seu Kant. É aquilo que você desperta em você, aquilo que você vai acordando em você de acordo com a sua convivência social, de acordo com aquilo que a gente pode estar coletivamente criando estratégias para poder estar resistindo e prevalecendo no sentido de só existir.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.  

“A minha presença fala por si só”, diz Maria Preta sobre ancestralidade e caminhada no rap 

MC Maria Preta, 26, moradora de Poá, Região Metropolitana de São Paulo, é MC, rapper e participa de diversas batalhas de rima, como a Batalha Dominação. É a partir dessas vivências e lugares que frequenta que a artista elabora sua carreira como um corpo indígena em diáspora.

Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, Maria Preta fala sobre os reflexos da sua ancestralidade e identidade na construção da sua visão de mundo.

Como é o seu processo criativo?

Meu processo criativo sempre foi muito intuitivo. Minha arte simplesmente vem, não é algo que eu pedi ou estudei para fazer, embora eu estude sempre. Isso vem da minha vivência, sabe? Quando comecei a me entender como uma pessoa indígena em diáspora, percebi que nunca fui vista só como uma mina preta de quebrada. Tinham vários estereótipos que me colocavam e eu não entendia porquê. Quando entendi que isso vinha da minha ancestralidade indígena, isso começou a influenciar diretamente na minha arte e no meu trampo.

Como sua ancestralidade também reflete no seu processo criativo?

Eu sempre soube que minha bisavó era indígena, mas não entendia a importância disso até encontrar outras pessoas no meu meio artístico e social que também se identificavam como indígenas. Minha avó é do povo tupi-guarani, veio do Paraguai, mas a gente sabe pouco da história dela. Eu cresci com ela falando tupi e dialeto, então isso faz parte de mim. Na minha arte coloco propositalmente essa vivência e temas que acho importante. Eu sempre reafirmo que aqui é terra indígena, que o ‘Pindorama’ veio antes de ‘Brasil’. Mesmo que eu não fale sobre isso o tempo todo, minha presença, enquanto um corpo indígena e em diáspora, eu sempre vou estar imprimindo isso de uma forma ou outra, ainda que eu não fale no palco a minha presença fala por si só.

Você já enfrentou obstáculos por ser quem você é, tanto no rap quanto em outros cenários artísticos?

A gente sempre enfrenta obstáculos, né? No rap, desde que eu saio de casa já encaro olhares. Seja no trem, seja quando eu chego na quebrada, tem atravessamentos. Racismo, etnocídio, tudo isso acontece e a gente sente. O rap é um meio muito machista, a gente sabe disso, mas enquanto estamos fazendo a gente vai mudando o jogo. Por exemplo, hoje a final da batalha foi eu e a Laura, uma referência enorme para mim. Quando a gente está lá, [estamos] reafirmando e mudando as coisas. Essas pequenas ações são revolucionárias, minha existência é revolucionária, então a gente segue pregando o que acredita, mesmo sabendo dos desafios.

Quais suas referências e seu meio de apoio na cena?

Brisa Flow, Ana Bya, Katu Mirim, Quilabi, essas pessoas me ajudaram a enxergar minha vivência como uma pessoa originária. A gente precisa de referência para existir, né? Estamos abrindo caminhos para quem vem depois e até para quem veio antes. Minhas influências não são só de pessoas cis ou mães, mas também de pessoas trans e não-binárias que atravessam minha vivência por a gente entender mesmo que esse lugar [é] ocupado por diversos tipos de corpos […] A arte transforma, inclusive [nós] artistas, e minhas referências me moldam e me mudam.

Quem é Maria Preta e quem é Vitória Maria? Como elas se conectam?

Eu tenho aceitado e trazido para a minha vida, muito recentemente, a Vitória. Por mais de 10 anos eu vivi apenas a Maria Preta e só vivi para ela. Essa pergunta é especial porque estou me reencontrando enquanto indivíduo, não artista, embora, desde que eu era só a Vitória, sempre tenha sido artista. Mas quem é a Maria longe dos palcos? Eu comecei a me conectar com isso ao entender que as pessoas endeusam artistas, visualizam-nos de forma diferente. Tenho me reconectado com a pessoa que talvez eu tenha sido criada para ser, com as versões que em algum momento neguei. Estou num momento de reencontro comigo mesma, abraçando meus defeitos, traumas e dores. É aí que a Vitória encara a Maria, nesses momentos de cura e reencontro. Ser artista no palco é fácil, mas fora dele é que a coisa pega. Minha arte reflete o que sou. Antes tentava ser algo que não sou, mas sou muita coisa.

Onde a Maria Preta quer chegar? Qual vai ser o lugar dela no futuro?

Eu acredito muito que quem planta, colhe. O que tô plantando é tipo um pé de abacate: demora para dar fruto, mas quando dá, é rico e nutritivo. Eu quero ficar rica, sustentar minha filha com dignidade, ocupar espaços, pagar minhas contas sem dor, saca? E também ajudar outras pessoas. Acho que todo favelado quer isso: dignidade. Não é nem só sobre dinheiro, é sobre viver com dignidade, estou nessa busca.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola. 

“A primeira barreira do artista é sempre ele mesmo”, afirma Ganjão, rapper de São Vicente 

João Pedro Tavares, 23, conhecido pelo nome artístico Ganjão, é do município de São Vicente, litoral de São Paulo, e há sete anos iniciou sua trajetória artística através das batalhas de rima como MC de rap e funk. Desde 2017, é organizador da Batalha do Caoz, que acontece na Praça Infante Dom Henrique, em São Vicente, com foco em pautar a representação de mulheres, pessoas trans e fomentar debates sociais pouco pautados na região, segundo o artista.

Ganjão conta sobre os processos de se manter enquanto artista independente e como se deu a construção da Batalha do Caoz, criada para a inclusão da comunidade LGBTQIAPN+ nas batalhas de rima, e se tornou um local de encontro para todos os interessados na cultura hip hop. 

Nesses dez anos de caminhada, qual foi a primeira barreira enfrentada para entender o seu eu artista?

A primeira barreira do artista é sempre ele mesmo. Primeiro tive que entender que o que eu estava fazendo era arte, e aí fui expor depois. No começo era muito difícil saber se aquilo ali podia ser algo, porque antes estava só querendo me expressar. No final das contas percebi que era mais eu ter fé no que acredito, no que eu faço,  para conseguir fazer as outras pessoas também acreditarem em mim.

Como você quer que o público receba sua arte no primeiro contato? 

No hip hop a gente tem aquela parada de resistência que muitas vezes a galera já chega numa ideia de que ‘Ah, porque é hip hop, porque é funk é sujo, é violento’. Eu sinto que na real o que mais falo é sobre amor e resistência, não é tanto em relação a destruir, mas sim construir. Eu quero que as pessoas entendam isso, que vejam a minha arte como uma parte de mim, não como algo contra as pessoas.

Como surgiu a ideia da batalha do conhecimento no seu território e qual a importância disso?

A Batalha do Caoz começou porque a gente já [tinha] esse papel de fazer as batalhas de rima. Encostava um bonde só de mulheres, porque eu não tinha feito a transição ainda, mas aí toda a batalha a gente ouvia uma rima machista. Às vezes havia homofobia, transfobia e pensamos que não íamos mais fazer esse movimento de ir para as batalhas, [assim] criamos um espaço para a gente. Então a Batalha do Caoz surgiu nessa intenção de criar um espaço para as pessoas se sentirem bem de rimar. Sempre falo que foi uma semente que a gente plantou lá em 2017, que hoje é uma árvore grande com frutos, folhas e galhos enormes que acaba colhendo as outras pessoas, mesmo não sendo mulher, não sendo pessoa trans e LGBT, por ser um espaço mais tranquilo, uma batalha diferente [com] intuito diferente, é mais fácil das pessoas começarem a rimar e de aprender o que é o movimento hip hop.

Como você enxerga o desenvolvimento e futuro da sua carreira musical e da batalha? 

De um tempo para cá eu tenho [buscado] profissionalizar tanto a batalha quanto a minha carreira, acho que uma coisa não se solta da outra, porque faço a batalha e sou o Ganjão, o cantor. Então quando eu me apresento, geralmente, eu falo sobre a batalha e quando eu estou na batalha as pessoas [me veem] apresentando. A gente está caminhando para um lugar de profissionalizar, de ter mais recursos, de ter uma equipe para ajudar a fazer as coisas, porque é muito difícil ser independente. Tenho estudado para conseguir editais de cultura e fazer mais do que só por mim e pelos nossos, podendo profissionalizar as pessoas, pagar cachê, alimentação e transporte. Eu enxergo a gente bem grande daqui a um tempo, de um ano para cá muita coisa já mudou e eu tenho certeza que ano que vem muita coisa ainda vai mudar.

Como o seu corre agrega o território em que você vive?

Quando eu comecei a participar desse tipo de movimento não só como público, via muita coisa que não me agradava e achava que era só eu. Quando comecei a pontuar esse tipo de coisa que não me agradava, percebi que tem outras pessoas que também não se agradavam. Acho que quando começo a falar sobre a minha realidade, minha vivência, outras pessoas também acordam e elas continuam a acordar outras pessoas. Sinto que quando a gente começa a viver de arte, cultura, música e movimento social, conseguimos aprender muita coisa, passando para outras pessoas que se não tivessem contato com você não teriam aprendido também. É meio que uma troca de informação, de valores e um vai ajudando o outro sempre. 

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Crespinhos Dança: projeto utiliza a dança charme para fortalecer identidade negra nas infâncias

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Inspirado no baile charme, movimento cultural de fortalecimento da identidade negra nas décadas de 1970 e 1980, o Crespinhos Dança apresenta para crianças e adolescentes a dança charme com intuito de estimular o protagonismo negro desde a infância, através do resgate desse ritmo que nasceu na periferia e marca gerações. 

“A gente começou com a ideia de produzir conteúdos e ações voltadas para o protagonismo preto. Esses conteúdos e ações são para todas as crianças, porém, é feito por crianças e adolescentes pretos”, explica Renata Moraes, 40, produtora cultural, articuladora e moradora do bairro Praça Seca, que fica no distrito de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. 

Formado por crianças e para crianças, o Crespinhos Dança existe desde 2015, e é um dos projetos da produtora e coletivo Crespinhos SA, assim como o Bailinho da Crespinhos, que são eventos de baile black, e a artista mirim Elis Mc, que atuam de forma integrada. A iniciativa foi fundada por Renata, que realiza os projetos em coletivo e com parcerias, como a do Luis Marques, que é dançarino, coreógrafo e coordenador do Crespinhos Dança. 

Atualmente o grupo é composto por 13 crianças e adolescentes, com idades entre 7 e 17 anos, junto com seus responsáveis, em sua maioria mães, que participam de modo contínuo. As atividades, como os aulões, também são realizadas por essas crianças e abrangem as demais infâncias dos locais onde são realizadas as ações. “A gente gosta do Luiz puxando [as atividades], mas sempre [com] uma criança no comando também para elas [as crianças] se identificarem”, explica a produtora. 

A rotatividade de membros é constante por se tratar de um projeto formado por crianças. A participação no grupo é gratuita e os encontros acontecem no Centro Cultural Dyla Sylvia de Sá, aos sábados ou domingos, com duração de 3 a 4 horas.

Geralmente, os encontros semanais são iniciados com a Renata que propõe alguma atividade, roda de conversa ou reflexões sobre direitos e deveres das crianças. “Desde muito nova a criança pode ter essas ideias sobre direitos e identificar coisas”. Racismo, assédio e discriminação são exemplos dos temas abordados.

“É um grupo para dançar, se conhecer e se fortalecer. O processo é criança e responsável, mãe e pai”

Renata Moraes, produtora cultural, articuladora e criadora do Crespinhos SA.

“A gente faz esse aulão e depois [tem] a intervenção da Elis Mc [uma artista mirim] que dança e canta”, menciona Renata, ao pontuar que essa interação entre as crianças gera impacto positivo e direto por elas se identificarem. Ela conta que isso é evidenciado com o retorno que o coletivo recebe a partir do carinho das crianças em forma de abraços, pedidos de fotos e de novas atividades.

As atividades são variadas, algumas têm um direcionamento social e outras são voltadas para o comercial. No âmbito social, o coletivo realiza encontros, piqueniques, rodas de conversa com os pais, aulões, oficinas e eventos como os bailes blacks. Essas ações geralmente ocorrem no parque Madureira, na Praça Mauá, em bibliotecas e centros culturais.

As parcerias comerciais de campanhas publicitárias com produção de conteúdos como vídeos, jingles, fotos, divulgação e editais é o que possibilita financeiramente que o coletivo e as ações sociais gratuitas aconteçam.

Movimento cultural

Para Renata, o charme é um movimento que muitas pessoas não têm mais contato com frequência e que geralmente desperta o interesse de adultos. No projeto é o fio condutor artístico que encontraram para levar a ideia de fortalecimento e autoestima. Ela conta que pais já procuraram o coletivo para tentar lidar com a situação de racismo vivenciada pela criança, tendo a iniciativa como um espaço de acolhimento. “[Mas] a sociedade é preconceituosa e a gente não vai acabar com racismo”, pontua.    

O charme teve início nos anos 80, e se tornou uma expressão cultural importante para a juventude negra nas periferias da época. A música que mistura Soul e o R&B, que é um ritmo mais lento, segundo Renata, dá origem aos passos de dança que, no Brasil, é chamado de charme. “Surge da galera saindo para se encontrar nos clubes, a maioria morava em comunidade”, aponta Renata. 

Ela coloca que entre os elementos da dança o tapete vermelho no qual o dançarino performa, é um símbolo para as pessoas negras. Entrar num tapete vermelho [dançando], ser o destaque não é fácil e para pessoas pretas isso é muito complicado, porque a gente não foi ensinado a estar nesse local”, diz.

“A gente foi ensinado a estar atrás, aplaudindo, idealizando, querendo estar ali e aí quando isso se inverte ou quando isso vira uma coisa para todo mundo, é realmente enriquecedor. Você vê no semblante tanto da criança, do adolescente [e] do adulto, quanto isso é importante”, explica Renata sobre como através da dança charme é possível fortalecer a autoestima e o senso de pertencimento independente da idade.

O projeto também utiliza a literatura como ferramenta de autoconhecimento para as crianças. “A gente trabalha com as poesias do Sérgio Vaz, [que é um parceiro], e a gente faz algumas intervenções poéticas”, conta Renata.

O grupo é composto por 90% de pessoas que são de periferias e favelas, e a atuação em escolas públicas também estreitam as relações com os territórios. “Durante o ano inteiro a gente visita duas escolas públicas por mês. Abrimos essa agenda no início do ano, os educadores entram em contato e agendam até dezembro”, compartilha.

Segundo Renata, apresentar diferentes movimentos culturais amplia a perspectiva que crianças e adolescentes têm sobre o que é cultura negra e periférica, além de proporcionar trocas entre gerações. “A geração que viveu aquilo [baile charme] consegue se conectar com a geração de agora, [assim] as duas conseguem dialogar e dançar juntas”, finaliza.

Moradora de Parelheiros conta sobre novas perspectivas de vida a partir do acesso à educação 

Natural do município de Garanhuns, Pernambuco, e atualmente moradora de Parelheiros, zona sul de São Paulo, Roseane da Silva, 52, é empreendedora e estudante do Cieja Lélia Gonzalez. Com uma barraca de doces e pano de pratos, ela foi uma das comerciantes presente no aniversário de 20 anos da unidade educacional, realizado em parceria com o coletivo Sertão Perifa, na Praça do Trabalhador, em Parelheiros, no mês de setembro.

Roseane conta que não teve a oportunidade de estudar na infância. Após um processo de abandono do pai e da mãe, o que a levou a morar com a avó, a comerciante começou a trabalhar aos 12 anos, e aos 17 anos se mudou para São Paulo. Somente aos 52 anos que Roseane encontrou a possibilidade de estudar e iniciar a alfabetização, o que segundo ela representa um recomeço em sua trajetória e a chance de novas perspectivas sobre sua vida ao olhar para si.

Quais são as lembranças mais marcantes da sua trajetória?

Eu nasci em Pernambuco, Garanhuns, perto de Recife. A minha infância não foi fácil. Fui criada com a minha avó, minha mãe veio embora para São Paulo e depois quando eu estava com 17 anos foi me buscar, não tive estudo. Comecei a estudar agora com 52 anos. Casei nova, [aliás] não casei, minha mãe falou ‘aprontou vai embora daqui de casa’. Então me enviou [para] um casamento também [com] sofrimento. Se eu falar que minha infância foi boa eu estou mentindo. Foi muito sofrimento, muita tristeza, porque eu cresci lá sem pai. Eu me separei. Fiquei quatro anos na cadeira de rodas [e] voltei a andar. Passei [por] momentos difíceis de saúde e agora comecei a estudar. Agora que estou começando a engatinhar, ser feliz, ter oportunidades.  

Você pode nos contar um pouco sobre sua vida antes de voltar a estudar? O que fazia e como eram os seus dias?

Eu era do lar. Eu vivia num casamento de sofrimento, eu era escrava num casamento que não existia, por isso que eu falei para você que muitas coisas mexeram no passado, é como abrir uma ferida, né? Eu estou abrindo agora.

O que te motivou a voltar para escola nesta fase da vida? 

[É um desejo] muito antigo, porque agora eu estou vivendo para mim. [Tem] 7 anos que eu estou separada. Estou vivendo para mim agora. Eu posso, trabalho por conta, vendo pano de prato, recebo dinheiro do governo, mas eu faço aquele dinheiro do governo multiplicar na minha vida, porque tenho problema de saúde. Eu tenho diabetes [e] reumatismo, através do trabalho da infância que eu tive que hoje carrego esse problema de saúde, [momento] que eu poderia ter brincado, curtido a vida como adolescente ou como criança e eu não sabia o que era aquilo. A minha infância foi trabalhar e hoje eu sou feliz porque eu tenho minhas netas, minha filha, um filho que eu vivi para ele, mas ele não [viveu] para mim.

Como você ficou sabendo sobre o Cieja e o que te fez escolher essa escola para retornar aos estudos?

Foi através de uma pessoa, eu estava fazendo pano de prato e ela me indicou aqui, fiquei na fila de espera e Deus abriu a vaga para mim e eu sou feliz, nunca é tarde para recomeçar.

E agora que está estudando, quais são os seus próximos sonhos e objetivos?

Enquanto eu tiver esperança eu quero ir [o] mais longe que Deus permitir, que nós podemos fazer para as pessoas os planos de Deus, então ele aprovando fazer isso hoje, amanhã Deus faz outra coisa na nossa vida, mas eu estou feliz de estar aqui na escola.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Pai de santo aponta a educação como instrumento de combate à intolerância religiosa

Setembro é um mês encantado em vários territórios. Mês em que é celebrado o dia de São Cosme e Damião, momento no qual muitas comunidades afro-religiosas comemoram as crianças encantadas, os erês e ibejis. Exatamente em setembro, dia 28, no evento de 20 anos do CIEJA Lélia Gonzalez, localizado no Parque Maria Fernandes, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, que encontramos Fernando Oliveira, 51, com sua encantaria, ao contar sobre sua relação com a educação e religiosidade. Morador do bairro Jardim São Rafael, na Cidade Dutra, zona sul de São Paulo, ele é estudante, pai de santo e presidente do grêmio estudantil da instituição.

A figura de Seu Fernando carrega muitas referências visuais. Com seu chapéu panamá de cor branca e fita vermelha, os dedos das mãos enfeitados com anéis de búzios e tridentes, e no pescoço sua corrente de São Jorge, é possível identificar a religiosidade como algo importante na sua vivência. Após ter migrado de Pernambuco para São Paulo, aos 15 anos, ele conta que ter voltado a estudar, já adulto, contribuiu para potencializar o papel que exerce enquanto liderança no território. 

O presidente do grêmio estudantil fala do papel emancipador que a educação tem dentro da sua comunidade religiosa afro-diaspórica.

Qual é a sua trajetória na educação?

Na juventude eu não pude estudar porque nós viemos para São Paulo, minha mãe passou por dificuldades, então nós tivemos que trabalhar para ajudar em casa. Agora, depois de adulto, vim procurar uma escola para aprender a ler e escrever por que o ser humano no Brasil se não tiver estudo ele não é ninguém. Tem muitas portas que são fechadas, aí quando você começa a estudar é que você começa a entender e a procurar boas melhorias para sua vida. É o que eu estou fazendo hoje.

E qual a função que a educação tem na potencialização do seu papel de liderança?

Um zelador de santo tem que saber ler, tem que saber escrever. Se você não souber uma cultura e não buscar conhecimento você não tem como passar isso para um filho de santo. Ter acesso a essa educação institucional, principalmente o estudo, para [nós] que não [sabemos] ler, abre uma porta espiritual, porque se você não está bem contigo mesmo, você não consegue estar bem com outras coisas. Então com isso tudo eu vivia muito deprimido. Cheguei em tempo de depressão e ansiedade, então eu voltei a estudar. Eu voltei a viver de novo.

Você acha que as religiões de matriz africana devem ser abordadas na educação a fim de combater o racismo religioso?

Sim, mas principalmente ter representantes nossos em Brasília, né? Porque tendo mais gente lá é garantido que vamos ser mais respeitados.

Qual o papel educacional que uma comunidade religiosa tem dentro de um território periférico?

O papel principal é tirar da cabeça dos outros que é coisa do diabo. Diabo para nós não existe, a religião cura e benze. Nós não pregamos mentiras. Minha espiritualidade veio da África, da senzala, foram os negros que trouxeram e isso não é coisa do diabo.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

“Consigo ter base para o sustento da minha família”, afirma doceira sobre renda através da venda de morangos

No dia 28 de setembro, aconteceu a comemoração dos 20 anos do CIEJA Lélia Gonzalez, em parceria com o coletivo Sertão Perifa, na Praça do Trabalhador, em Parelheiros, zona sul de São Paulo. Entre os comerciantes que vendiam seus produtos, Eliana Gorete, 54, se destaca com seu sorriso e a venda de espetos de morango com chocolate. Moradora de Embu Guaçu, a doceira trabalha de forma independente há seis anos.  

Eliane ficou conhecida como “Moranguinho”, e conta que quando começou a vender nas ruas tinha muita insegurança por falta de experiência e por não saber se os clientes iriam gostar de seus produtos. Mesmo diante da ansiedade, ela seguiu com seu trabalho e atualmente vende em pontos fixos na cidade de São Paulo, e em eventos culturais junto da família.

Como surgiu o interesse de trabalhar com doces?

Eu comecei fazendo um curso de artesanato e vi o de gastronomia do Sebrae. Minha filha fez também, ela me ajuda, daí eu tive a ideia do morango gourmet. Morango com chocolate e coco acho que dá bom também, e seguimos fazendo esse trabalho junto com a família. Às vezes preciso de ajuda de terceiros, mas vamos para vários lugares e faço amizades também.

Como você iniciou o seu trabalho com os morangos em diferentes lugares?

Fui numa festa vender meus morangos e lá outro rapaz me chamou, e na festa dele o jornal de Parelheiros me viu, tirou foto da minha barraca e dos meus doces, até que eu fui parar no Rincão, que é um clube com seis piscinas aqui no Jaceguava, aí fui trabalhar lá e [fui] sendo convidada para vários outros lugares.

Como você se tornou “Moranguinho”?

Eu fui chamada para um evento para fazer maçã do amor e comprei 200 maçãs. Fiz o teste, ficou linda e no outro dia ficou ruim, não dava para fazer com chocolate. Chegou uma moça que me chamou “oi moranguinho, eu soube que você não conseguiu fazer as maçãs do amor”, e eu não entendi como ela sabia. Ela pediu 30 maçãs para levar e fazer, e no outro dia [me trouxe] elas prontas. Depois levou as outras 170 maçãs e trouxe prontas [também]. Eu perguntei porque ela estava me ajudando, e ela me disse que Deus disse pra ela me ajudar, depois disso, me chamam só de Moranguinho.

Qual o ponto crucial que mudou a sua vida depois que você iniciou com os morangos?

Aprender que existem vários tipos de morango, não existe só um morango, tem o que aguenta três dias na geladeira, outros não. Foi um desafio aprender isso, eu sofri muito, porque eu já comprava o morango e ele não durava e hoje já sei como fazer. Tem 10 tipos de morango aqui em São Paulo, no Rio com outros nomes também, agora eu já sei como conservar, cuidar, preparo meus chocolates, criei o meu morango gourmet e deu certo. Eu aprendi muito para conseguir fazer como faço hoje.

Como uma mulher periférica, como você enxerga a mudança que o seu trabalho trouxe para sua vida socialmente?

Mudou muita coisa porque eu comecei fazer amizades com várias pessoas e não só ganho dinheiro, trabalha comigo minha filha, meu irmão, cunhada, genros. Então  mudou bastante coisa que hoje consigo ter base para o sustento da minha família.

Onde você se imagina daqui alguns anos?

Já [tem] seis anos que eu trabalho com os morangos de chocolate, tenho ponto fixo na praça de Embu Guaçu e em Parelheiros. Tem evento que eu vou e sou convida, [como na] ilha do Bororé, e no último sábado eu consegui fazer uma feira de gastronomia e artesanato que consegui um espaço de um amigo que tem um bar e restaurante. Eu [levei] barracas de doces, marcas de artesanato, brechó, contratei um cantor e foi um sonho que eu realizei. Quero ir mais para isso também, fazer coisas além dos morangos com chocolate.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.