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“Educação e arte não andam separadas”, diz Jô Freitas sobre acesso à cultura nas periferias

Nordestina, nascida em Paulo Afonso, município da Bahia, Jô Freitas chegou em São Paulo aos 5 anos. Atualmente moradora do Itaim Paulista, zona leste da capital, a escritora diz que seu primeiro contato com a arte aconteceu a partir de políticas públicas. Assim começou a entender as linguagens do corpo, da musicalidade, do teatro e descobriu o sarau, espaço no qual iniciou sua jornada como poeta e escritora contando sobre as periferias e roças que morou.  

A escritora conta que sua trajetória na poesia se conecta ao encontro que teve com saraus periféricos como Pretas Peri, Cooperifa, Sarau de Sacolinha, Elo da Corrente e os Novos Barretos. Jô compartilha como foi o processo da publicação de seu primeiro livro “Goela Seca”, as adversidades de crescer em um contexto com poucos recursos educacionais e a conquista de se mostrar escritora para pessoas tão significativas em sua vida.  

Como iniciou sua trajetória na poesia?

A minha trajetória na poesia se inicia através do Projeto Vocacional, que é um projeto de políticas públicas. Na periferia, principalmente naquela época, anos 2000, não tinha muitas ações artísticas. E aí eu sempre com aquela necessidade de me expressar e não sabia como seria essa expressão. Foi [no] teatro vocacional que comecei a fazer que fui conhecendo alguns escritores da literatura brasileira, [como] Guimarães Rosa, Carolina Maria de Jesus. Eu não via isso na escola e a partir do teatro eu conheci a cena de saraus que estavam bombando nas periferias de São Paulo. O sarau O Que Dizem os Umbigos foi que me apresentou essa multiplicidade de arte, de literatura e de poesia. Foi quando comecei a fazer minhas poesias [e] performances. Fui circulando vários saraus da cidade de São Paulo.

Como você entende a conexão do território do qual você veio com o que você vive hoje?

Acho que quando a gente é da periferia a gente pauta muito território, né? Até porque a gente quer criar uma identidade e pertencimento àquele lugar. Meu primeiro território foi a roça lá de Paulo Afonso, na Bahia, e aí na vinda dos meus pais para a periferia do Jardim Camargo, que fica na zona leste, é um cenário muito hostil para crianças que vinham de um outro cenário, da roça. Então tinha muita violência. Eu vim de um lugar que meus pais chamam de invasão, porque se tem um espaço ocioso, esse espaço é para a comunidade. É preciso ocupá-lo e eu acho que é essa a noção de pertencimento sobre a periferia, e fazendo com que os próprios moradores ressignifiquem aquele espaço. De alguma maneira se cria um espaço cultural. A gente fazia um sarau que é o Sarau Pretas Peri que era em um terreno baldio. Com dois anos de atividade a gente conseguiu uma construção da praça e com [essa] construção a comunidade começou a ocupar. Nessa ocupação de compartilhamento desse espaço as relações foram melhorando, então muitas vezes a gente acha que a arte a cultura não modifica o seu território, [mas] modifica.

Como vê a importância da relação entre arte e educação? E dentro da sua construção artística?

A educação nessa minha construção artística foi bem conflituosa, porque eu fui uma estudante que não tinha muito um conteúdo que estivesse próximo do que eu me entendia enquanto ser humano. Quando a gente fala sobre a lei 10.639 que é a obrigatoriedade do ensino afro-brasileiro preto nas escolas, quando eu fui estudante não tinha isso. A gente coloca um aditivo muito determinante para uma história de massacre. Para mim, foi se [conectando] um pouco para a arte que eu consegui ir para a educação e ressignificar. Quando a gente tem um povo que sabe da sua história, a gente também consegue entender as nossas raízes, e a educação é responsável por isso, só que a gente precisa caminhar em rede. Toda uma comunidade também pode ser suporte para uma transformação na educação. 

Arte e educação estão totalmente ligadas quando a gente fala sobre essa linguagem no qual eu pertenço que é a literatura. [Estamos] entrando nos espaços educacionais a partir dos professores. Quando a gente entende que a educação tem que ser transgressora, que a educação tem que ser liberta, precisa ser plural para vários corpos, para várias identidades, a gente começa a entender que é o nosso lugar de potência, é um lugar que a gente precisa estar. Então a educação e arte são irmãs gêmeas, elas não andam separadas, até porque [estamos] formando pessoas tanto nas artes, quanto no plano educacional. Eu ainda acredito que são os professores os nossos grandes aliados para que a gente consiga uma emancipação, uma noção de pertencimento sobre a vida.  

Como foi desenvolver toda essa sua comunicação não-verbal para interpretar as suas poesias no palco?

Acho que tenho um mérito de ser nordestina, mas por outro lado eu sempre fui uma criança muito calada, não por timidez, muito retraída, minha família sempre foi muito um lugar de “para não se expressar tanto”. Tem muito isso, você não fala sobre os seus sentimentos, não fala sobre seus desejos. Então foi essa criança que tinha uma energia que foi controlada e aí as artes para mim foi esse lugar que fui encaixando, essas peças quebradas que foram tirando de mim. E alinhando com o que eu era, mas sobretudo me comunicando com o meu bairro e com as pessoas que eu acredito. Além de falar [e] escrever eu leio bastante, ouço bastante histórias [de] pessoas, então quando eu entendo que a comunicação com essas pessoas é muito simples, no sentido de é só você estar, ouvir e tentar dizer dentro das suas palavras também a sua trajetória. É porque se conecta com o outro, porque a gente está falando sobre todo um território, que seja a periferia, quilombo, aldeia, roça, [estamos] falando sobre uma massa de pessoas que acham que a arte é muito elitizada, só está nos grandes centros e que só aquilo é bom, e não, a gente tem uma comunicação que é genuína da vivência, do respeitar também quem veio antes, e está muito conectada com a ancestralidade, porque esse é o ponto.

Como foi conseguir publicar um livro de maneira independente?  

Sendo de uma família que não pôde estudar, eu sou uma escritora, uma pessoa da palavra, isso para mim é muito valioso. É um presente poder apresentar para os meus pais e para tantas pessoas, que às vezes não tem essa percepção de potencialidade de si ou do outro, de que é possível. E aí eu escrevo dentro disso como uma forma de vingança, no lugar em que me queriam não letrada como tantas pessoas, no lugar que me queriam servindo o outro, eu sou escritora. A sabedoria não vem através da academia, não vem por escrever um livro, a sabedoria também é de vida e é pela possibilidade de olhar o mundo de formas diferentes todos os dias. Para mim, [o] livro “Guela Seca” é traçar e escrever outra história. Inclusive para as pessoas que vão chegar depois de mim, para meus familiares e para tantas outras pessoas que têm a generosidade de me ouvir. Para mim, mais do que escrever, é ser lida. E mais do que falar, é ser ouvida.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Médica destaca ginecologia natural como possibilidade de saúde preventiva nas periferias

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Embora nem sempre tenha tido essa nomenclatura, a ginecologia natural faz parte da vida de pessoas que têm útero há gerações. Presente, inclusive, nos hábitos de pessoas que vivem nas periferias que obtiveram esses saberes com suas mais velhas. Práticas como o consumo de chás, plantas e os banhos de assento são alguns exemplos desses cuidados ancestrais.

Priscila Amorim, médica especialista em ginecologia, conta que a ginecologia natural se trata de um cuidado baseado nos saberes ancestrais que não são os saberes da ginecologia moderna ocidental, tendo como base o funcionamento do ciclo menstrual e como ele se relaciona com a vida. “A ginecologia e a obstetrícia são ciências relativamente modernas [que] foram roubadas das mulheres. [Antes já] existiam as parteiras, as mulheres que se cuidavam [e] usavam os seus [próprios] remédios”, menciona.

Priscila Amorim é médica especialista em ginecologia natural. (Foto: Isabel Isbovoda)

A especialista aponta que na ginecologia natural o corpo é analisado no seu contexto biológico, social e espiritual. No sentido social passa pelo entendimento das relações que esse corpo carrega. “O corpo de uma mulher negra tem uma representação [diferente do] corpo de uma mulher branca, o corpo de uma mulher gorda vai ter um outro tipo de opressão”, explica. No aspecto espiritual, Priscila ressalta que não tem haver com religiosidade, mas com a intenção e uma crença de alcance da cura. 

“Algumas coisas não serão totalmente possíveis, porque vai depender do quão oprimido esse corpo vai estar”, coloca Priscila ao ressaltar que as opressões podem se dar em diferentes sentidos, como um relacionamento abusivo, jornadas de trabalho excessivas, entre outras.

A percepção do ciclo menstrual também é um cuidado importante nessa prática, pois, segundo a médica, plantas e ervas medicinais podem ser uma forma acessível de aplicar a prática no cotidiano.

“Fundamental é não usar anticoncepcional, porque para você poder saber e perceber as questões é importante [manter o ciclo], mas ainda assim é possível [aplicar a ginecologia natural] porque você pode ter [e utilizar] uma planta”

Priscila Amorim, médica especialista em ginecologia

Por estar ligada aos processos de autoconhecimento, a ginecologia natural ainda pode ser usada como uma ferramenta de diagnóstico precoce. “A partir do momento que você conhece como o seu corpo funciona você consegue perceber rapidamente quando alguma coisa não está como costuma ser, e aí buscar ajuda”, comenta.

Indústria farmacêutica

Priscila buscou a ginecologia natural como ferramenta para lidar com as necessidades das pacientes que atendia. “Quando eu acabei a residência eu achava que a ginecologia não era muito resolutiva para as mulheres. O que eu via era muito anticoncepcional e cirurgias. Eu não via as pacientes felizes, elas voltavam com novos problemas”, coloca.

A médica pontua que um eixo importante da ginecologia natural é a fitoterapia. “Que é o conhecimento e a identificação das plantas, e uso delas como medicamento”. Nesse sentido, as plantas medicinais podem ser usadas de diferentes formas: pode comer, tomar o chá, banhos de assento, consumir através de tinturas que extraem o princípio ativo das plantas com álcool ou, dependendo do caso, aplicações na pele com óleo medicado.

A fitoterapia, sendo o uso de plantas e ervas medicinais, é uma das bases da ginecologia natural. (foto: Isabel Isbovoda)

Segundo ela, a maioria de suas pacientes recebem bem a indicação desses tratamentos e preferem essas alternativas. Priscila também pontua que financeiramente a ginecologia natural é acessível e por isso não tem valor para o mercado. “São plantas que têm uma facilidade de acesso, como o orégano”, exemplifica. “Para que a indústria farmacêutica vai estudar isso se ela não vai ganhar nada?”. 

“Existe uma questão do ego do próprio profissional dentro da medicina. O que leva muitas vezes essas mulheres que sempre usaram recursos naturais e tradicionais para autocuidado omitirem essas informações para o profissional, porque elas têm medo de represália”, comenta. “Talvez o que precise mais seja a gente acolher esses conhecimentos do que as pessoas já têm, o que precisa fazer como extra [é] a humanização do cuidado”, diz a médica.

Para Priscila, a validação e o fortalecimento da ginecologia natural podem ser alcançados através da pesquisa acadêmica e essa também seria uma forma de lidar com o ceticismo e preconceitos que existem para ampliar o conhecimento sobre o tema. “Meus colegas médicos muitos acham que é uma medicina menor, que não funciona”.

Com pós-graduação em fitoterapia, pela Associação Brasileira de Fitoterapia (Abfit), Priscila conta que é com as parteiras, doulas e terapeutas populares que ela mais aprende e que essa troca de aprendizado também se dá com as pacientes.

A médica menciona que a prática não faz parte do SUS, no entanto ela não sinaliza isso como um problema. “Falta na medicina um olhar com mais profundidade sobre a saúde da mulher, sobre a ginecologia com mais complexidade. A minha impressão é que a ginecologia ficou dentro da medicina como uma coisa menor, meio negligenciada”, analisa.

Imagem feita no encontro sobre ginecologia natural que foi realizado por Bel Saide, do qual Priscila participou. (Foto: Isabel Isbovoda)

Ela ressalta que esse cenário tem se modificado e a retomada dos saberes ancestrais sobre a saúde das mulheres é uma das formas de reivindicar que a medicina moderna trate as pessoas, de modo geral, com mais humanidade.

“A gente [precisa] entender que essa pessoa não é [uma doença], essa pessoa é fulana, ela mora em tal lugar e ela vive de tal jeito e como isso impacta na vida dela”. A médica coloca que é fundamental que haja comunicação e que a paciente seja informada sobre os riscos e as possibilidades que ela tem nos atendimentos médicos, algo que geralmente as pessoas procuram e encontram ao optarem pela ginecologia natural.

Mulheres criam fundo comunitário para lançar livro com 22 autores no Campo Limpo

A professora Sandra Regina de Souza, moradora do Jardim Panorama, bairro localizado em Taboão da Serra, conta como um fundo comunitário contribuiu para o projeto Mulher Rendá viabilizar o lançamento do primeiro livro, que incentiva  mulheres comuns do cotidiano periférico a escreverem as suas histórias de vida através de poesias, textos e ilustrações.

A publicação foi exibida pela primeira vez na Feira Literária da Zona Sul, evento anual que fortalece autores e editoras independentes das periferias, por meio de atividades de incentivo a leitura na Praça do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo.

Com um corredor cultural repleto de livros, expositores realizavam vendas e vivências com o público. Entre os expositores está a professora Sandra, integrante do Projeto Mulher Rendá, que relata ao Você Repórter da Periferia com muito orgulho a trajetória de construção livro “Mulher Renda”, produzido a partir da colaboração de 22 coautores iniciantes na produção de narrativas por meio de poemas, textos e ilustrações.

O fundo comunitário irá viabilizar um novo livro produzido por jovens moradores das periferias. Foto: Nicolas Santos, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia (Setembro de 2024).

VCRP: Quando surgiu a ideia de criar um livro?

A gente teve a ideia de criar um livro quando a gente participou da Bienal do Livro e uma das organizadoras, a Joveci Fernandes quis criar um grupo só de mulheres e nós montamos um grupo de 22 mulheres, que hoje são autoras de diversas idades, religiões e gêneros.

VCRP: Como funciona o fundo comunitário para sustentar as atividades do projeto Mulher Rendá?

Eu escrevo desde os 15 anos e desde então a gente tem pedido muita ajuda política para lançar um livro e a gente nunca conseguiu, sendo funcionária pública a gente não pode ter CNPJ, com isso, a gente construiu um grupo sustentável. A gente tem uma poupança mensal de R$ 150 onde o grupo conta com mais de 20 pessoas e contribui todo mês. Essa poupança sustenta todo o trabalho do grupo, a ilustradora, as corretoras e todos os eventos que realizamos.

VCRP: Após a publicação do primeiro livro, quais são os próximos passos?

Queremos trazer mais pessoas para essa formação, porque o livro tem uma formação literária e uma formação filosófica, onde as pessoas precisam se descobrir e são pessoas que nunca escreveram e quando eu convido para participar do grupo ela se surpreende, porque vence o medo e depois consegue escrever.

VCRP: Quais foram as dificuldades durante a publicação do livro?

A dificuldade é aprender né? Éramos leigos, então nós tivemos muitos erros, como tamanho de página, número de página, onde cabia, “o que era miolo?”, então a gente foi aprendendo com essas situações, então várias vezes os miolos do livro voltava, a gente corrigia, não cabia na página, a gente tinha que organizar o texto. Então nós tivemos alguns atropelos  nesse sentido.

VCRP: Qual o propósito que vocês querem trazer para a periferia com a atuação do grupo?

O propósito é abrir uma cooperativa trazendo estudantes, jovens e crianças para praticar a escrita e tirar da vulnerabilidade, tirar da rua e fazer com que essas crianças e esses adolescentes reflitam sobre a vida. E se a gente conseguir fazer esse CNPJ, vamos para cima dos governos e das questões políticas para conseguir conquistar esse espaço.

Herança torta de um cineasta de quebrada

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Aos meus filhos João, Flora e Taiguara.

Meus amores, dia 08/10 agora seu pai vai celebrar o início de uma Mostra sobre seus 20 anos de correria no audiovisual.

Quero começar pedindo desculpas, por fazer vocês realizarem trabalho infantil nas minhas produções, por fazê-los faltarem muitas vezes na escola, por obrigá-los a dormir tarde na falta de rotina do papai, seja por trabalho ou simplesmente boêmia.

Realmente desculpa, seu pai nunca pôde e talvez nunca poderá oferecer a vocês algo além de idéias e (in)tenções políticas, confrontos imagéticos rasos e vinganças coloniais malacabadas. 

Lutei com as armas que tinha

Filhos, perdão. Provavelmente nem aquele pichuleco que todo cineasta pós morte deixa de direitos autorais ou co-autorais eu deixarei. Comecei a vida na arte dizendo que não cometeria o mesmo erro de seu avô, meu pai, que entregou seu ouro em canções que foram da censura ao estrelato de boteco, quase sempre sem garantir um vintém pro almoço do dia seguinte, estava muito ocupado sendo feliz com suas próprias criações, vivendo na música o que eu vivi no cinema, a errância de não querer ser dono de nada além do sorriso da platéia, fosse de um grande teatro ou de uma meia dúzia de gatos pingados num botequim. 

Meus queridos, saibam que não fiz por mal, eu até critiquei as atitudes dos mais velhos que me legaram essa maldição da pobreza financeira e da riqueza cultural. Mas não consegui ser diferente. 

Sabe meus filhos, até os praguejei, disse que não fizeram o sucesso merecido porque nunca foram capazes e dedicados à devida profissionalização.Descobri tardiamente o que eles já sabiam de fato, o mercado nos leva suave com sua cenoura inalcançável enquanto aproveita o passeio no nosso lombo pobre e utópico.

Filhos, desculpa mesmo, não consegui romper o ciclo, não consegui ser outro que não essa cópia revoltada de seus avós, um pouco mais estudado, um tanto mais experiente, igualmente subaproveitado, vilipendiado, eternamente romântico como eles. 

Os que enfrentaram com poesia e esperança aquela ditadura antiga que se metamorfoseou nessa distopia fake que não conseguimos enfrentar. Digo, eu pelo menos não, da rua as redes, nada fez sentido, optei por sobreviver com os pares na quebrada onde nasci e nas outras que me forjaram no caminho das lutas. Sempre tentando não adoecer e minimamente entregar uma arte suja e ultrajante como somos, eu e meus iguais.

Posso lhes dar pouco, dicas simplórias e filosofias vãs, como as que critiquei dos meus antecessores. Até aquilo que achei que não incorreria em erro, como contratos e outras formalidades que dão segurança na fragilidade das relações eu pequei, nada que produzi se sustenta além dos créditos finais dos filmes. 

Fui e talvez seja sempre juvenil nisso de dar preço, prazo e ordenamento jurídico em minhas obras artísticas, essa arte que tantos gostam de vangloriar como coletiva, mas que explora do mesmo modo como as biroscas e metalúrgicas que seu velho passou antes de se achar cineasta. 

Meus amados, não lhes direi para não seguir esse caminho, aliás não contem comigo para induzir caminho algum. Eu simplesmente não sei como cheguei aqui e muito menos pra onde vou na altura dos meus quase quarenta anos. E isso não é só um clichê nostálgico, contudo, sou grato ao sonho!

Só posso dizer-lhes que para além das tragédias, tropeços e engodos, vivi momentos lindos, experiências incríveis que sem a câmera jamais teria vivido, coisas únicas e finitas, como últimos relatos de mestres, puxões de orelha de anciãs, derradeiros gritos de gente anônima e infindável como tudo que mora nas profundezas do mar ou da terra, prioritariamente periféricas, pretas, dissidentes de gênero, de classe, enfim. 

Operei os discursos e desejos de gente muito parecida com aquelas que cresci vendo na casa de sua bisavó, putas, matadores, bêbados, ladrões, bichas, hippies, caipiras, trabalhadores comuns, mulheres, indígenas, pretos, mestiços e toda ordem de gente que, contra tudo e contra todos, sempre tiveram muito a dizer e quase nunca foram ouvidas.

20 anos, acreditam? Nem dou conta de processar, vivi na intensidade máxima, meu corpo e minha alma pagam o preço da velocidade que apliquei nos motores.

É que gente como eu não tem segunda chance, sabe, não pode dar errado, só pega o rabo do foguete e vai se equilibrando entre a utopia e os boletos.

20 anos não são 20 dias, e eu posso até me considerar bastante jovem pra média de vida da Faria Lima, mas vocês sabem, meu prazo de validade é periférico e frágil como uma roseira no lixão. Por isso é importante celebrar.

Dedico-lhes essa mostra e toda minha obra, inclusive as feitas antes de vocês nascerem. Criei e procriei tudo pensando em um futuro ancestral, onde a violência não nos escravize e onde vocês possam exercer a potência e a coragem que lhes é patente. 

Tá tudo errado, eu não mudei muito o cenário, mas eu amo vocês e talvez um dia isso me salve, e por consequência, talvez também salve vocês!

Veja no link abaixo os locais e datas da mostra, espero vocês



“Cresci vendo minha família passar babosa no cabelo”: empreendedora produz cosméticos naturais inspirada por tradições familiares

Resgatar tradições familiares nas periferias de São Paulo, por meio da produção de cosméticos naturais feitos à base de produtos orgânicos – é o principal objetivo de Natali Alencar, 37, moradora do bairro Arthur Alvin, Zona Leste de São Paulo. Ela marcou presença na 10° edição da Feira Literária da Zona Sul, realizada pelo Sarau do Binho, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo, para vender e expor cosméticos, que trazem uma série de benefícios para o meio ambiente e os consumidores.

Natali conta que iniciou a sua trajetória no ramo dos cosméticos naturais produzindo produtos para pele e logo em seguida evoluiu para produtos para cabelo, como shampoo e condicionador e hoje ela também fabrica produtos de higiene bucal como pasta de dente. Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, ela ressalta a importância de incentivar a sociedade a praticar o consumo de cosméticos sustentáveis e biodegradáveis, desafiando a indústria química farmacêutica.

Natali começou o negócio produzindo sabonetes, mas hoje, ela fabrica shampoo, condicionador e creme dental. Luau Queiroz, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia (Setembro de 2024).
Natali começou o negócio produzindo sabonetes, mas hoje, ela fabrica shampoo, condicionador e creme dental. Foto: Luau Queiroz, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia (Setembro de 2024).

Por que você escolheu adentrar nesse mundo dos cosméticos a partir da utilização de produtos naturais?

Grandes marcas importadas tinham essa proposta do cosmético natural, mas não tinha nada brasileiro. Os óleos vegetais eram de outros países. Então eu falei: ”Minha família cresceu passando babosa e óleo de rícino no cabelo”. Aí eu fui nesse caminho de resgatar essas receitinhas para fazer coisas para o meu dia a dia, assim eu comecei a produzir sabonetes.

Há quantos tempo você trabalha nesse ramo?

Comecei há 12 anos atrás, eu fiz um curso de saboaria, mas eu fiz para reproduzir em casa, só que aí eu depois eu acabei me aprofundando, saí do trabalho e comecei a fazer para pessoas conhecidas.

Quais foram os desafios enfrentados nessa trajetória até os dias atuais?

O maior desafio de todos para mim é que a cosmetologia no Brasil não tem nenhum tipo de legalização que seja voltada para isso, então ou eu faço uma terceirização total da minha produção para um laboratório ou eu faço de forma independente. Eu tenho um ateliê em casa e faço minhas produções em casa, mas eu ainda faço as produções sozinha. Eu sinto uma certa precariedade, porque eu sempre fico pensando nessa contramão: “como que eu vou fazer para crescer?” Esse é um grande desafio, mas no começo achar a matéria prima também foi um grande desafio.

Quais são os benefícios dos cosméticos naturais para a pele?

Os benefícios são imensos para a pele, cabelo e organismo de uma maneira geral. A gente até reduz o número de ingredientes na formulação para que seja mais limpo. Esse benefício que a gente faz da natureza, tirando os óleos vegetais de sementes, tirando os olhos essenciais das plantas e das flores torna essas moléculas orgânicas, para interagir tanto com a nossa pele, quanto com o nosso cabelo.

Como foi o processo de produzir diferentes cosméticos naturais produzidos?

Comecei com a produção de sabonetes, mas como eu uso meus produtos, meus familiares também usam e estava tendo muitas produções, acabei percebendo que precisava produzir mais. Então eu fiz um condicionador em barra, que serve pra condicionar, hidratar e finalizar. Depois percebi que havia a necessidade de fazer pasta de dente e assim foi crescendo.

Os cosméticos naturais são encontrados com fácil acesso nas periferias?

As farmácias estão 24h ali pra caso você precise de algum produto, mas em contrapartida, quando você coloca na mesa o preço de um sabonete na farmácia por 3 reais e um sabonete com produtos naturais vale muito a pena, pelos benefícios que eles trazem para nossa pele, organismo e até mesmo pro meio ambiente.

“Foi a transição capilar da minha esposa”: empreendedor cria marca de moda afro inspirado na autoestima de pessoas negras

Durante a 10° edição da Feira Literária da Zona Sul, o empreendedor Pedro Júnior, 34 anos, morador do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, mostrou que a trajetória de vida e a construção de auto estima de pessoas negras podem dar sim origem a ideias inovadoras, como a sua marca de bolsas e acessórios afrocentrados Janaluh, que ele apresentou na feira de expositores do evento.

Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, Pedro conta como o processo de transição capilar de uma pessoa negra transformou a sua paixão por moda em uma ideia de negócio que valoriza a cultura local e as raízes ancestrais da população negra e periférica.

Foto: Luau Queiroz (Setembro/2024)

VCRP: O que te motivou a entrar no ramo da moda?

Pedro Júnior: Foi uma transição capilar da minha esposa, né? Ela tinha o cabelo liso e passou a ter o cabelo afro, porém 9 anos atrás não tinha acessórios para ela usar, não era tão fácil assim e aí a gente começou a comprar alguns acessórios. Então começamos a vender e automaticamente isso virou um gatilho na gente, onde deixamos de viver o sonho dos outros para viver o nosso.

VCRP: De que maneira você acredita que seu trabalho impacta na vida de quem as consome?

Pedro Júnior: Impacta muito, não só na vida delas, mas como na nossa também, são clientes recorrentes. Muitos clientes compram a nossa bolsa e indicam para outras pessoas pela qualidade, valor e atendimento, e também pela questão da gente ser preto, é muito gratificante. Quando um cliente compra uma bolsa e depois de meses eles voltam indicando ou comprando, sempre dá uma moral pra gente continuar e não desistir.

Foto: Luau Queiroz (Setembro/2024)

VCRP: Qual seria seu público alvo?

Pedro Júnior: Depois de muito tempo fazendo curso e observando nossos clientes, compreendemos que a gente atende uma galera com idade média entre 20 a 30 anos, pessoas que já tem uma condição de saberem o que quer.

VCRP: Como foi o processo de sair do seu território para empreender?

Pedro Júnior: É um bagulho muito louco, porque às vezes a gente vive numa bolha achando que não é possível que a gente não vai conseguir chegar, que não é para todo mundo, mas é para todo mundo sim, tem que meter as cara mano, não é fácil e não vai ser uma coisa do dia para noite. É persistência mano. Eu costumo dizer que empreender é persistência, você mata um leão todo dia e você briga com você mesmo. Essa é a verdade. É resistência e persistência.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.





Eleições municipais e justiça reprodutiva

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Setembro é o mês Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, comemorado no dia 28. Esse é também o mês internacional de combate ao aborto inseguro. No Brasil, contudo, talvez seja importante falar sobre eleições antes. 

Em outubro temos que eleger prefeituras e vereanças em todo o país. As eleições municipais costumam receber bem menos atenção do que as presidenciais, embora tenham um impacto considerável em nossas vidas cotidianas. 

As candidaturas à vereança recebem ainda menos atenção. 

No entanto, uma pessoa que ocupa a posição de vereadora, tem a importante função de editar e votar projetos de lei, além de fiscalizar a execução de políticas públicas e distribuir emendas parlamentares. 

A composição do parlamento é fundamental para a redação e execução de políticas mais progressistas, para barrar as mais conservadoras e vai também moderar o direcionamento das políticas no município, fiscalizando a prefeitura. 

Se o grupo de parlamentares é majoritariamente conservador, reacionário, composto por bancadas da bala e da bíblia, as políticas sociais vão ser prejudicadas ou mesmo desaparecer. 

Até a última eleição, das 55 cadeiras disponíveis, só duas haviam sido ocupadas por mulheres negras na história da Câmara Municipal de São Paulo. Depois de Claudete Alves terminar seu mandato em 2008, nenhuma outra havia chegado à vereança até 2020, quando quatro vereadoras negras foram eleitas: Elaine Mineiro, do mandato coletivo Quilombo Periférico, Luana Alves e Erika Hilton, as três do PSOL, e Sonaira Fernandes, do Republicanos. Com elas passamos de duas para seis vereadoras negras na história da cidade de São Paulo. É muito pouco.

Não se trata aqui de defender a representatividade sem senso crítico, há muitas candidaturas que não defendem políticas que beneficiem seus próprios grupos e se associam com políticos racistas, misóginos e homofóbicos. 

Enquanto movimentos sociais e de periferia o que deve ser o nosso foco são as candidaturas que representam nosso povo mas também os nossos interesses. E, a partir do movimento de mulheres periféricas, é essencial falar sobre Justiça Reprodutiva.

Pra começar, é importante dizer que Justiça Reprodutiva não é sinônimo de aborto. Este é um conceito do movimento feminista negro, que demanda a garantia de acesso e proteção a toda a trajetória reprodutiva de todas as pessoas. Embora inclua o direito ao aborto livre, seguro e sem violência, sua abrangência vai muito além. 

A militância por Justiça Reprodutiva entende que fatores como racismo, classismo e precarização de determinados territórios se entrelaçam, limitando a autonomia corporal e reprodutiva das mulheres negras, periféricas, indígenas, lésbicas, homens trans, boycetas, pessoas não binárias, com deficiência, migrantes, em situação de cárcere, entre outras. 

Justiça reprodutiva é sobre como as políticas públicas devem funcionar na prática, para além do estabelecimento do direito no papel, para garantir a vida. É uma encruzilhada onde se encontram saúde reprodutiva e justiça social.

Este é um conceito fundamental para as mulheres periféricas, porque se preocupa com moradia para criar nossas crianças, segurança para alimentá-las e educação sexual para que elas saibam o que é consentimento e reconheçam abusos. 

Envolve também o acesso à contracepção e à informação, permitindo que adolescentes e adultas desfrutem de sua sexualidade com liberdade e prazer, além de garantir espaços seguros para aborto livre, gestação e puerpério, livres de violência obstétrica. 

Mais do que isso, trata-se de criar essas crianças sem o medo constante de que possam ser vítimas de violência policial ou do crime em uma suposta guerra às drogas. Sem esquecer de políticas de combate à violência doméstica, ao racismo ambiental, políticas de desintoxicação e redução de danos, mas também de cultura e lazer. 

Abrange o direito de parir e criar as crianças que se deseja, quando se deseja, escolhendo o melhor intervalo entre uma criança e outra, e inclusive garantindo a possibilidade de não ter nenhuma criança.

É uma agenda ampla de bem viver.

Dito isso, quais são as candidaturas engajadas que você conhece? Quais as pautas que essas candidaturas defendem? E, você, pessoa branca antirracista, quais candidaturas do movimento negro, LGBTQIAPN+ e periféricas você está defendendo e apoiando? 

A Frente Estadual pela Legalização do Aborto de São Paulo lançou a Campanha Voto por Justiça Reprodutiva, que coletou assinaturas em apoio a esse tema para as eleições municipais em cidades do Estado. 

A Agenda Marielle, inspirada no legado de Marielle Franco, também vai no mesmo sentido, demandando compromisso político com pautas antirracistas, feministas, LGBTQIAPN+, periféricas e populares. 

É importante conferir as listas de assinantes antes de ir às urnas. Recomendo também que você acompanhe o projeto Desenrola aí nas Eleições, que entrevistou candidaturas periféricas na cidade de São Paulo. 

Não dá pra vacilar, a Câmara Municipal merece muito mais da nossa atenção.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.


Biblioteca comunitária Assata Shakur disponibiliza acervo com obras de escritores negros

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Na garagem da casa de número 190, na Rua Chaberá, localizada no bairro e distrito da Vila Formosa, zona leste de São Paulo, é possível encontrar uma variedade de livros gratuitos, todos com autoria de escritores negros. É nesse endereço que fica a biblioteca comunitária Assata Shakur, que além de disponibilizar livros, oferece cursos, promove debates, palestras e festas que celebram revolucionários negros referências para o coletivo, como Malcolm X e Assata Shakur. 

Professor e cofundador do espaço, Kairu Kijani conta que a biblioteca se tornou um local de combate ao epistemicídio, contra o apagamento de criações e conhecimentos produzidos pela população negra. “A biblioteca é essa grande possibilidade de conhecer a nossa história e estudar os nossos teóricos, pessoas negras que produzem conhecimento e que não é tão fácil de ser acessado”, afirma o cofundador da biblioteca.

Na biblioteca Assata Shakur são realizados cursos, debates, palestras e formação política. (foto: arquivo do coletivo)

Morador do bairro e distrito do Cangaíba, na zona leste de São Paulo, Kairu aponta que a criação da biblioteca surgiu da necessidade de ter um espaço em que as pessoas pretas pudessem se encontrar, estudar, socializar e ter momentos de lazer. 

“A gente percebe o quanto a biblioteca é importante, porque vêm pessoas de diversas localidades, até de fora de São Paulo. A gente vê o quanto as pessoas [que] vêm aqui se conscientizam [e] socializam. A biblioteca é um potencial incrível para agir enquanto grupo e pensar em outras possibilidades de viver nessa sociedade que é extremamente competitiva, individualista e a gente quebra essa lógica do capital.”

Kairu Kijani, professor e cofundador da biblioteca Assata Shakur.

Kairu relembra que o processo de construção da biblioteca foi complicado, pois pelo fato de atuarem de forma autônoma, toda construção se deu a partir de recursos próprios. Outra dificuldade tem haver com o próprio diferencial do espaço. “Quando a gente, em 2017, começou a comprar livros, [o acesso a livros de escritores negros] não era como é hoje”, menciona. Ele diz que os livros eram garimpados em sebos e sites virtuais, também por conta dos preços. 

O local que atualmente comporta a biblioteca era a garagem de Edneusa, mãe de uma das fundadoras da iniciativa, Tati Nefertari. Inaugurada em 2019, pela organização Ujima Povo Preto, a biblioteca carrega o histórico da iniciativa que foi fundada por pessoas conectadas ao movimento hip-hop, negro e educacional. Kairu explica como o nome da iniciativa, assim como da biblioteca, dialogam com o objetivo deste trabalho. “Ujima vem de uma palavra suaíli, e é um princípio do Kwanzaa, que é uma celebração africana feita no final do ano. O Kwanzaa tem alguns princípios e um deles é o Ujima, que significa trabalho coletivo e responsabilidade”, explica.

A biblioteca foi criada da necessidade de ter um espaço para que as pessoas pretas pudessem se encontrar, estudar e socializar. (foto: arquivo do coletivo)

O professor pontua que Assata Shakur foi uma revolucionária preta e que se inspiraram nela por conta da mensagem, ideias e práticas da escritora e militante. “Ela fez parte da organização Panteras Pretas, nos Estados Unidos, e do Exército de Libertação Negra. Ela também teve uma passagem [na] luta pela educação [com as crianças], quando entrou no Partido dos Panteras Pretas. E é muito pela questão de como ela enxerga a luta do povo preto, a questão da autonomia e da combatividade”, explica Kairu sobre a homenagem. 

É a própria iniciativa que mantém o espaço financeiramente. Como todos trabalham com outras demandas, a biblioteca geralmente é aberta aos fins de semana, das 9h às 18h. “Mas se alguém quiser pegar algum livro é só mandar mensagem que a gente faz o possível para abrir na semana”, coloca Kairu.

Quilombinho Beatriz Nascimento

Durante o período de férias escolares, a biblioteca também realiza ações com foco nas crianças. A atividade, nomeada em homenagem à historiadora negra Beatriz Nascimento, acontece no mês de janeiro, sábado e domingo, das 9h às 17h, com café da manhã, almoço e lanche da tarde. “Elas vêm e participam das oficinas e a gente percebe o quanto esse espaço não escolar fortalece a negritude, consciência e a socialização das crianças”, observa Kairu. 

Atividade realizada com as crianças que participam do projeto Quilombinho Beatriz Nascimento. (foto: arquivo do coletivo)

“É um espaço não escolar em que [as crianças] aprendem tanto quanto ou até coisas que não aprendem na escola por conta do currículo escolar que tem muitos conteúdos eurocêntricos”, comenta o professor. 

As atividades que acontecem na biblioteca têm como base o hip-hop e Kairu conta que isso também se estende para o Quilombinho. “A gente entende o hip-hop com cinco elementos, que é DJ, grafite, Mc, B-boy e o conhecimento”, explica.

As crianças e os realizadores das oficinas do Quilombinho Beatriz Nascimento. (foto: arquivo do coletivo)

Além de hip-hop, as crianças também têm oficinas de capoeira, balé, culinária e contação de história. “No final de [cada edição] a gente faz um grafite em uma parede do bairro. Você vê a felicidade deles, [pois] é uma linguagem que acaba sendo expressada, pessoas vão passar na rua e ver o grafite que você fez”, menciona Kairu.

Segundo o professor, através das atividades as crianças percebem que diversas coisas partiram de construções realizadas no continente africano e por pessoas pretas. “Eles acabam criando senso de identidade, orgulho negro e tendo posicionamento político. É uma ética e estética negra fortalecida [junto com] os pensamentos e posicionamentos políticos”, comenta.

Kairu com as crianças na biblioteca Quilombo Seu Gustavo. (foto: arquivo do coletivo)

As interações com as crianças incentivaram o coletivo a criar um espaço exclusivamente para elas. Em 2022, o grupo fundou a biblioteca Quilombo Seu Gustavo, que é formada por livros infantojuvenis somente de escritores negros, funciona aos fins de semana das 9h às 17h, na Cidade Tiradentes.

Legado de amor e cura através das memórias ancestrais

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É muito provável que não prestamos atenção nesses sinais de conexão, ou do que quiserem chamar. 

Essas conexões podem acontecer na leitura de um livro ou o socorro inexplicado de algum desconhecido ou amigo que aparece naquele momento difícil simplesmente para nos ajudar, sem que tivéssemos pedido.

São várias situações inusitadas que poderia descrever aqui, porém, só utilizei esses exemplos para ilustrar a ideia e dizer que, para algumas pessoas isso seria só coincidência, para outras, mais sensíveis e atentas, nomearia de sincronicidade, intuição ou até mesmo ajuda espiritual. E porque não um cuidado ancestral?

Já aproveitando essa introdução para compartilhar situações vivenciadas por mim que vou discorrer na escrita deste artigo. Elencaria como conexões espirituais ou ajuda ancestral, o que importa é que tudo tem haver com o amor e cuidado que recebemos, seja no físico ou metafísico.

Sempre procurei entender meu passado, minha infância, a educação que recebi e a forma que fui criada. No fundo, sentia um vazio gigantesco por não saber quase nada sobre meus pais e antepassados, só as poucas história que tive oportunidade de ouvir da minha mãe, Rosa, onde escrevo um pouco sobre ela em alguns capítulos do livro “Obará – Escrevivências Coletivas de Autocuidado”. ]

Também aproveito para compartilhar aqui um pouco sobre ela com vocês.

Reconheci a forma de vida de minha mãe, também descrita em um dos livros indicados na oficina de Escrita de Si, conduzida pela Bianca Santana, já citada aqui anteriormente. Foi uma experiência maravilhosa, me senti muito sintonizada e conectada aos meus ancestrais. Obtive algumas respostas e tudo fez muito sentido para mim.  

Neste livro que se chama “O Espírito da Intimidade”, de Sobonfu Somé, a autora nos proporciona ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. Foi para mim uma daquelas sincronicidades e intuições bem poderosas que mostram muito o que temos a aprender com os ancestrais e nos conhecermos para nos fortalecer. 

Minha admiração por minha mãe é notória nos meus relatos no livro que escrevi. Sua força, presença e inteligência foram importantes para mim, pois vivíamos em um ambiente hostil e perigoso, pois na periferia o dia a dia era muito violento e nada fácil para uma mulher preta e viúva na década de 70, com quatros filhos pequenos. Mantê-los e educá-los como ela se propôs a fazer era muito complicado.

Intuo que ela teve muito apoio de forças ancestrais poderosas e invisíveis aos sentidos físicos e que esteve presente durante toda a sua trajetória, acolhendo suas dores, fraquezas e ainda lhe dava força para manter um comportamento firme, obstinado com os filhos e para si. Não perdia o hábito de manter o cuidado com sua aparência elegante, bonita e vaidosa como uma filha de Oxum.

Construiu uma vida digna e com um certo bem estar, mesmo com todas as adversidades com a pobreza que era presente nas nossas vidas. Contrariando as normas e regras sociais criou seu próprio mundo, suas próprias regras na vida que lhe foi imposta.

Fui criada por esta mulher admirável com características do cafuso, a mistura negra e indígena. Suas características amorosas, sua beleza, inteligência e força não passavam despercebidas. Era uma mulher preta lindíssima. Com seu bom gosto e gestos requintados, causava inveja nas mulheres e muito desejo nos homens, e por isso, muito admirada e também muito perseguida, mas adentrar os motivos disso dá um outro artigo. 

O que importa nesse momento é descrever o quanto ela viveu sua própria vida, suas crenças e os costumes de seus antepassados. Mesmo com todas as dificuldades e perseguições sofridas, não deixava de cultuar sua fé na Umbanda e nos guias. 

Ao escrever sobre ela sinto uma conexão muito forte com todas essas experiências. Minhas memórias me levam a minha infância, quando às sextas feiras eram religiosas, pois cuidava do terreiro para que a gira de Pretos Velhos, Caboclos e demais entidades chegassem num ambiente limpo, cuidado, organizado, florido. Preparado para quando iniciasse a gira, as entidades fossem recebidas de forma amorosa para dar seus passes, ensinar suas rezas, curar as feridas dos assistentes que lhes procuravam pedindo ajuda. 

Também posso dizer que nos protegiam pelos caminhos da sua vida, da minha infância e na pré-adolescência, como também de meus irmãos.

Convivi e senti a magia da cura e do socorro dos males espirituais que me afetaram e que eles sempre estavam lá para nos ajudar e curar. Ainda tive a ajuda de minha avó Ambrósia (madrasta de minha mãe) com suas rezas e benzimentos que tirava da cama com suas rezas e ervas me curando do mau olhado.

Finalizo este artigo com a certeza de que muito do que tenho escrito e trazido para nossas sessões podem estar sendo intuídos por estes antepassados que precisam ser lembrados, amados e valorizados, pois nos deixaram um grande legado. 

Hoje sigo alguns passos desta mãe e mulher que me marcou a vida de forma profunda e amorosa, deixando sua história como exemplo para ser seguido e segue me ajudando a superar minhas dores.

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“Quero que a arte seja minha principal fonte de renda”, diz cantor independente do Capão Redondo

Morador do Valo Velho, bairro localizado no distrito do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, Adan Costa, 25, conta que se aproximou da arte ainda criança e que prioriza o sonho de viver do seu talento. O artista foi uma das atrações da 3º edição do Ballroom na Sul, evento que busca exaltar o protagonismo LGBTQIAPN+ e descentralizar o movimento, realizado em setembro, na Casa de Cultura Municipal Santo Amaro, região sul de São Paulo.

Nascido em Minas Gerais, Adan se mudou para São Paulo em busca de melhores oportunidades para sua carreira na música. A partir de referências ligadas ao Dancehall e ao movimento Ballroom, o artista inclui recortes sociais em suas produções que se conectam com suas vivências no território e em espaços culturais que circula. 

Como você definiria sua ocupação?

Num sentido geral, sou artista. Sou cantor e também trabalho como stylist. Eu tenho uma marca de upcycling, que é customização de roupa, chamada DogStyle. E na vida padrão de São Paulo, eu trabalho em Call Center [e] costumo dizer que trabalhar CLT é meu hobby.

O que fez você escolher ser cantor? 

Eu gosto de arte desde que eu me entendo por gente. Desde que eu comecei a poder exercer qualquer tipo de habilidade artística comecei a colocar em prática. Eu aprendi a tocar violão com uns 10 anos de idade, ter familiaridade, criar notas [e] compor as minhas próprias músicas. Isso foi evoluindo e virou um espaço muito meu. Eu criava para exercitar, mas também como espaço de prazer, lazer e de expressão. Antes era algo muito intimista, só meu. Demorou um tempo para eu criar coragem de abrir para outras pessoas. A identificação do outro é gratificante. Você permitir que outras pessoas se identifiquem com o que você pensa, com o que sente, com o que já viu, é um espaço de cura. Quando eu tive contato com essa possibilidade, o sonho de trabalhar com a música foi ficando mais forte. Saber realmente que o que eu faço não é só um lazer próprio, mas principalmente para a identificação do outro é a função mais daora da arte. Conseguir ser um instrumento de cura para mim, e a partir da minha cura, contaminar [e] abraçar outros universos.

Quais são as suas formas de consumir cultura?

Minha principal forma de consumir cultura, mesmo que eu não queira, é através da internet. Em relação à moda, eu consumo muito de brechós, adoro moda sustentável. O upcycling tem brilhado os olhos das pessoas, principalmente na cena underground. E claro, os rolês. Quando falo de rolê na periferia é onde eu consigo ter mais referências de moda, além das referências musicais. Só de estar nesse espaço cultural já dá para absorver muita coisa. O que eu mais frequento são eventos de Dancehall, mesmo não sendo cantor de reggae.

Como você começou a frequentar esses espaços?

Eu vim de Minas [Gerais]. Estava na universidade estudando artes cênicas. Lá eu tinha contato com cultura, mas era um nicho universitário. Vir para cá [São Paulo], me trouxe abertura para nichos que são mais orgânicos nesse sentido. Eu sou um desses que vem para consumir cultura daqui e fazer cultura aqui dentro, tendo contato com pessoas que já estão há tempos nesse espaço. Minha amiga Marilu, por exemplo, ela foi criada nessa cultura e ajudou a me inserir ali dentro. Eu gosto muito de eventos que fomentam artistas periféricos. Promover um evento que fortaleça os artistas independentes faz toda diferença no cenário cultural geral.

Qual a importância das iniciativas culturais no território que você mora?

É essencial. Precisamos entender que nós somos o principal espaço de evolução da nossa própria arte. Não tem como querer transformar a arte periférica em algo global, se eu não começo primeiro pela periferia. Falando da minha vivência como artista que vem de fora e que foi criado pelo Capão Redondo, nesses quatro anos de São Paulo, esse foi o aprendizado mais importante que eu tive até agora [de] começar pelas pessoas que me influenciam e que são as minhas referências, para depois o centro da cidade tomar conhecimento de quem sou eu. Hoje me sinto muito mais preparado por ter tido essa visão, essa comunhão com os artistas que eu encontro ao longo da minha trajetória. Muitos eventos são organizados de maneira independente, em outros existe uma outra visão. Existem instituições que têm um espaço, às vezes não tem verba, não tem nem equipamento, mas só de ter um espaço seguro, já é um um ponto. Eu sou frequentador da Fábrica de Cultura do Capão Redondo. Minha última música eu gravei lá de forma 100% gratuita. Eu só preciso de um espaço digno para exercer minha arte, ensaiar, isso já fortalece muito a minha a minha carreira. Além do contato direto com a arte de outras pessoas. Não existe outro espaço para viver isso que não sejam esses. 

Como esses movimentos contribuem com a formação da sua própria identidade? 

Eu era uma pessoa na faculdade, já aqui em São Paulo, eu me identifico como outra pessoa. Em relação a referências, tanto estéticas quanto de construção de personalidade. Eu realmente precisei romper o ciclo que eu tinha onde eu morava. Em questão de produção artística, não precisa ser uma cidade grande para se fazer arte de qualidade. Mas vir para cá e ter a vivência da cidade em si, no que diz respeito a fomentar a minha arte e me auto sustentar sozinho sendo CLT,  engrandeceu muito a construção da minha pessoa como ser humano, mas também como cidadão. 

E para o futuro, o que você idealiza? 

Falando como o Adan que vai fazer um pocket show no evento da quebrada hoje, eu já estou num lugar em que eu não imaginava estar. Isso já é um ponto muito positivo. Eu já consigo identificar pessoas que acompanham o meu trabalho mesmo não estando próximo do meu círculo social, isso também é um ganho muito grande. Pensando no futuro, eu quero poder ter mais estabilidade e conforto para fazer o que eu quero fazer sem precisar lidar com o jogo do mercado. Eu sei que em partes é necessário pela sociedade que a gente vive. Mas eu acredito que o Adan do futuro vai conseguir se manter a partir da arte. Eu quero muito que a minha arte seja a minha principal fonte de renda para que não precise ficar mantendo as mesmas pessoas ricas, não no sentido ganancioso ou prepotente, mas tendo em mente o reconhecimento. O mais daora em ser artista é aprender a reconhecer o valor do nosso trampo. Eu não cheguei aqui à toa, precisei abandonar muita coisa para ser chamado para um evento na periferia, ser reconhecido pelas pessoas daqui. Não é só porque eu conheci alguém, pelo contrário, conheceram meu trabalho. Algo que eu formulei durante todos esses anos e isso está virando algo, sendo reconhecido de alguma forma. Então eu já sinto esse reconhecimento, mas espero que o futuro me traga ainda mais. 

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.