Morador da Brasilândia, escritor, produtor cultural e educador, Israel Neto, escreve e lança conto afrofuturista em meio à pandemia. Seu intuito é disputar a imaginação e provocar leitores a sonharem com novos futuros.
Israel Neto, 33, nasceu, cresceu e mora na Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo. Para a criação do hábito de leitura teve como maior incentivadora sua mãe. Ela o colocava para ler os rótulos dos alimentos e também deixava ele ler os livros do Arquivo-X que possuía, ela gostava muito de ficções, conta Israel, o que contribuiu para ele desenvolver sua imaginação. Outra força para a sua entrada no mundo fantástico foi a TV, “…pela enxurrada de programas japoneses que a gente tinha das 16h até às 19h e a partir disso eu comecei a escrever as minhas versões desses desenhos.” – lembra Israel. Para ele, neste princípio de desenvolvimento criativo existia muito prazer e disposição para criar suas próprias histórias.
Quando questionado se ele vê sua escrita como uma arma, discorda dizendo que é ferramenta, pois seria como “…um instrumento que a gente pode tocar para disputar o imaginário da nossa galera e dialogar sobre as nossas coisas, sendo uma ferramenta para discutir a nossa realidade e projetar o futuro, mas por outro lado, é também um alimento simples, é um arroz e feijão, porque ela mexe nas nossas emoções, na nossa felicidade, então hoje eu trabalho a minha escrita nestes dois segmentos. A arma acaba sendo algo com uma única finalidade, já a ferramenta, não. A ferramenta é um termo genérico que pode servir pra apertar, pra despertar, pra bater, pra atirar, pra ajustar, pra moldar. A arma só tem uma função”, conclui Israel.
A escrita de “Não Podemos Esperar”, conto publicado pela Editora Nua, levou apenas surpreendentes três dias, mas se engana quem pensar que o tempo de trabalho no processo criativo levou apenas esse tempo. Como Israel mesmo conta: “…a escrita deste livro começou com a pandemia, eu terminei um outro trampo que vai sair no ano que vem, e eu estava lendo muita coisa, dois livros do James Baldwin e assisti uns filmes que foram feitos a partir dos livros dele. Falei: caramba! Esse cara consegue trazer umas questões tão sensíveis nos livros dele com temas tão duros. E ele sempre falando na primeira pessoa, daí eu pensei: quero ver se eu consigo fazer esse negócio aí também. Me organizei pra escrever esse material num final de semana. Peguei sexta-feira, comprei um caderno e comecei a escrever e fiquei literalmente três dias internado, escrevendo, eu falei: tem que sair, tem que sair. E aí rolou, deu certo”, relata Israel.
Sua trajetória como escritor já vem há mais de uma década, quando essa bagagem começou a ser carregada e este conto, lançado agora, começou a existir, mesmo sem a intenção, em 2011, quando lançou o livro “Amor Banto Em Terras Brasileiras”, livro que levou dois anos para ficar pronto, a diferença, como Israel mesmo explica, é que “…o escritor é alguém que trabalha todo dia. Não existe pedreiro que num dia trabalha e no outro não, não existe arquiteto que num dia desenha e no outro não. E o escritor não pode ser também aquela pessoa que precisa receber uma entidade para poder escrever. Ela tem que praticar a escrita todo dia. E a escrita não é necessariamente escrever, é ler, estudar. Pesquisar para poder escrever. Em 2009 eu comecei a estudar para conseguir escrever o “Amor Banto Em Terras Brasileiras” e publicá-lo em 2011, só que esse material do ‘Não Podemos Esperar’ já é algo que ficou acumulado, vinha estudando e meio que já estava pronto e saiu de maneira mais espontânea”.
Nessa publicação mais recente a intenção de Israel é abrir caminhos para o sonhar com outro futuro, conforme ele relata, tendo a arte como essa ferramenta poderosa, como quando em “Star Trek” muitas tecnologias apresentadas ali naquela ficção não existiam, mas abriram a possibilidade de outras pessoas se desafiarem a tentar realizar o que a ficção apresentava.
Por isso, Israel diz que está se “…desafiando todo dia pra poder deixar esses campos de interpretação abertos, porque quando uma poesia ou um conto é muito duro ele não dá possibilidade de você encontrar coisas no seu texto que você colocou lá mas colocou inconscientemente. Assim, o ‘Não Podemos Esperar’ é um grito ao pensar o agora, a se mobilizar. Não tem amanhã, é hoje. E ele dialoga também pelo sonho. E quem leu o livro sabe que a unidade africana precisou tomar medidas drásticas. Na história levou 50 anos para chegar nesse ponto. E, mesmo assim, a gente ainda vai ter que se arriscar para continuar desfrutando daquilo que a gente conquistou. Enquanto coletividade, me parece algo que pode estimular as pessoas a se perguntarem… será que a gente pode mesmo? Acho que sim, acho que é possível”, reflete Israel.
Uma das leitoras do conto, Guiniver Santos, 41, que também é escritora, deu seu relato sobre a leitura: “Israel Neto faz com primazia um trançado entre raízes fartas de saberes ancestrais e o futuro que desejamos produzir. Neste livro me trouxe inquietações, pois fomos desconectados física e simbolicamente de nossos saberes e essa busca muitas vezes me pareceu ainda estar aqui no raso das minhas denúncias literárias. Israel me plantou um chip de afrofuturismo e me permitiu alcançar sonhos de um amanhã onde eu ainda exista para além de trajetórias catárticas de um futuro que tentaram adiar. Me lançou à Máquina do Tempo onde pretos e pretas avançam e não podemos esperar”
Um conto que sonha possibilidades futuras não deixa de ser uma história também disparadora de questões atuais. Em um trecho do conto, Mateus, um dos protagonistas, diz: “Estudamos o dobro, trabalhamos o dobro, pagamos o dobro, vivemos o mínimo e eles se livram de nós assim?” (p.39).
Questionado sobre qual a discussão presente nessa fala, Israel diz que aqui a ideia é levantar a discussão sobre o lugar do corpo do homem negro na sociedade atual em que seu corpo é percebido como algo que pode ser violado a qualquer momento, em um enquadro, pela origem, pela cor da pele, sendo que isso está no corpo do homem negro. “O homem negro foi o cara que teve que sair pra trabalhar muito cedo, um cara que trabalhava no campo, que não tinha contato com os filhos, o cara que tem que trazer o sustento, literalmente com dificuldade de vivenciar o afeto.”
Afinal, o que é o afrofuturismo e porquê criar esse segmento literário?
Israel explica que o afrofuturismo é algo que sempre esteve presente nas sociedades africanas e que para o tempo presente seria o “pensar o mundo a partir da visão preta, pan africanista, é um movimento que está na arte, está na moda, está na música, na literatura, no cinema, em todas as áreas, que é a projeção dos corpos negros no futuro, utilizando as tecnologias e todos os meios de produção a partir das nossas raízes, então é um movimento que projeta o futuro mas ao mesmo tempo vai inserindo as conquistas de nosso passado”. Para ele, o papel da ficção nesse universo é justamente projetar o futuro, “…se o que foi pensado vai acontecer ou não, a gente não tem obrigação com isso, mas se a gente não projetar elas, não propôr, ninguém vai fazer lá na frente”.
Como exemplo desses movimentos afrofuturistas, Israel traz alguns exemplos. Na música ele cita George Clinton do Parliament-Funkadelic que no disco “Mothership Connection” (1975), apresenta uma nave que chega na Terra trazendo o funk. “Aqui no Brasil a gente tem um filme: Branco Sai Preto Fica, que é um filme feito na Ceilândia e que conta a história de um viajante no tempo, negro, que vem pegar provas para acusar o governo brasileiro de genocídio contra os negros e as populações periféricas”, conta Israel.
Já na moda, Israel traz as influências do visual de Michael Jackson, Prince, as estéticas africanas, os povos de toda África. Para ele, é um movimento multicultural e político também, inclusive de resistência. Especificamente na literatura Israel fala que a influência afrofuturista, na opinião dele, vem para trazer “…um novo respirar para a literatura negra que nos últimos anos se tornou algo muito tangível enquanto protesto, exaltação das raízes africanas, mas talvez abriu mão de viajar para outros mundos, de filosofar sobre outros acontecimentos, de projetar outras terras, de criar fantasias, de trabalhar os seus medos de forma lírica, e o afrofuturismo vem trazer isso, inclusive para atingir um público que talvez não leia poesia, crônica, é um leitor que quer um universo mais dinâmico”.
A leitura de “Não Podemos Esperar”, certamente é uma abertura para diversas reflexões e questões. Fica o convite para perceber como Israel Neto projeta o futuro e disputa o imaginário e, quem sabe, participar da construção coletiva deste futuro.