Seja para empreender, ir ao médico, pagar uma conta ou simplesmente acessar a internet, a geração x enfrenta uma série de barreiras de acessibilidade digital que comprometem a sua autonomia no universo digital.
Os moradores das periferias que nasceram entre 1960 e 1980 (tem entre 40 e 60 anos) fazem parte da geração x, grupo social que segundo o IBGE representa 26% da população brasileira. A empregada doméstica Rita de Cássia, 50, moradora do bairro Jardim São Francisco, localizada na zona sul de São Paulo, faz parte desta parcela da população que sente na pele o choque cultural de nascer em mundo analógico e hoje vivenciar as relações humanas conectadas pelo celular e o acesso à internet.
Ela tem duas filhas, trabalha como diarista na semana e nos finais de semana vende doces, lanches e petiscos em uma barraca em frente à sua casa, para complementar a renda familiar. Além da correria nos dias úteis, ela ainda tem que lidar com o fato de não saber se conectar à internet, tendo que depender sempre de alguém para ajudar ela a realizar suas tarefas.
“Eu não sei mexer em nada no celular, se eu for comprar alguma coisa eu peço pra ela (minha filha), tudo que eu for fazer eu tenho que pedir pra ela. Só que tem dia que ela não tá naqueles dias bons, aí ela fica estressada e eu fico nervosa”, relata Rita.
A empregada doméstica conta que todas as atividades feitas pelo aplicativo do banco são feitas por sua filha Monique, e que não há sequer uma função que ela saiba mexer, e mesmo se soubesse, por terem muitas senhas no aplicativo, ela raramente consegue lembrar e memorizar.
“Ela coloca umas senhas e eu nunca consigo gravar, então é só ela que mexe. Aí eu tenho medo de mexer e transferir errado”, enfatiza Rita.
O ponto chave na história de vida da Rita é que ela depende que sua filha esteja em casa para fazer qualquer movimentação no celular, por isso, quando Monique não está, não se arrisca sequer em mexer no smartphone. E quando precisa que seja rápido, ela vai até o banco buscar ajuda.
“Eu não consigo mexer no aplicativo, tenho medo de fazer qualquer coisa, e quando é assim eu vou direto no banco. Aí eu chego lá, falo pra eles que não sei mexer, e só assim o gerente vai e me ensina”
pontua.
Rita explica que não é por falta de vontade, e que as filhas já tentaram ensiná-la várias vezes como acessar e manusear os aplicativos no celular, mas que ela possui muita dificuldade em lembrar de tudo, e por isso sempre necessita de auxílio.
“Como foi minha filha que fez tudo do pix pra mim, só ela que sabe mexer, ela vem me ensinar mas não entra. Às vezes me ligam pedindo pra eu transferir um dinheiro, e nem sempre a Monique está perto de mim pra fazer. Eu também não sei tirar dinheiro no caixa eletrônico, não consigo”, diz Rita.
O fator geracional e a cultura de viver na época da comunicação analógica também afeta o cotidiano de Maria Jacira, carinhosamente conhecida como “dona Fia”,62, moradora da Cidade Ipava, zona sul de São Paulo. Há mais de 25 anos ela tem um bar no bairro e atualmente vende feijoada aos sábados.
Por trabalhar com vendas, dona Maria sempre ouve os clientes perguntarem se ela aceita o pix como forma de pagamento, mas ela explica que não tem e não confia nisso, e que na maioria das vezes perde a venda por isso.
“Eu não tenho pix, porque não sei mexer e tenho medo, por causa dos roubos que acontecem hoje em dia, então não uso de jeito nenhum”, afirma Maria.
O maior medo da comerciante é fazer qualquer tipo de movimentação financeira com o cartão fora do banco, com isso, ela explica que só usa o cartão direto na boca do caixa. “Eu mexo no meu cartão sem usar pix, não uso o cartão do lado de fora do banco, quando quero fazer qualquer coisa eu vou direto na boca do caixa.”
Além do medo de usar o cartão e ativar o pix para receber pela venda dos seus produtos, dona Maria também tem receio de pedir ajuda para qualquer pessoa, por medo de cair em golpes, e que nunca sabe quando isso pode ou não acontecer com ela.
Ela diz que prefere ir direto na sua agência do banco, mesmo sabendo que terá dificuldades, do que habilitar qualquer serviço diferente do que ela já está acostumada.
“Eu prefiro enfrentar uma bruta de uma fila e ser atendida lá dentro no banco, não tenho coragem de usar o cartão nas máquinas eletrônicas do lado de fora de jeito nenhum, até porque não sei, nem dinheiro eu sei tirar”, conta a moradora.
Esses obstáculos enfrentados dentro das agências são muito significativos, levando em conta que muitos dos que ainda frequentam são pessoas na terceira idade. E nesse processo, eles ficam expostos a uma série de frustrações que ocorrem durante ou antes do atendimento.
“Toda vez que eu vou, é mais de 2 horas na fila, naquele tumulto danado, e a gente fica lá em pé toda vida esperando. E às vezes chega a hora da gente e não está atendendo mais, ou o sistema que cai”, desabafa.
Maria acredita que por não saber mexer no celular e nos aplicativos, por ter mais dificuldade do que outras pessoas, o risco de ser roubada e de alguma coisa acontecer com o dinheiro que ela movimenta é grande.
Por assistir muito jornal na televisão, a dona de casa leva em conta todas as notícias que saem referente ao pix, e que, segundo ela, nunca são coisas boas. Fora conversas com irmãos e vizinhos, onde na maioria são relatos negativos.
“Já aconteceu com meu irmão da pessoa falar que fez o pix e quando foi ver não fez. Minhas colegas também reclamam, e eu já vi na televisão, por isso não quero”, afirma Maria.
A dona de casa mora sozinha e depende também da internet móvel para mexer no celular, isso quando põem crédito e possui dados móveis disponíveis. Por muitas vezes seu celular fica de canto, pois por não saber mexer, usa só para fazer ligações.
“Tenho meu celular vai fazer 10 anos, não sei mexer em nada não, queria saber entrar na internet e fazer um Facebook, já pelejei, já tentaram me ensinar, mas não consigo, e tudo eu tenho que pedir, é chato. Eu só uso o celular pra ligar, mandar áudio eu ainda sei, mas só isso também”, exemplifica.
Já aconteceu de Maria receber um SMS que informava a data, horário e nome do hospital onde ela faria uma consulta médica, mas por não saber identificar o aplicativo de mensagens, a concorrida consulta no sistema público de saúde quase deu errado, se não fosse o apoio da filha.
“Minha consulta que estava marcada, veio pelo celular, e eu só fiquei sabendo porque minha filha mexeu pra mim, se não fosse ela eu não teria nem ido. Não tinha mais nenhuma informação, quando cheguei descobri que era uma endoscopia e não fiz porque não estava de jejum e nem com acompanhante”
conta Maria.
Mesmo tendo uma rotina que concentra boa parte das atividades diárias no celular, ela enfatiza que vai atrás em busca de informações quando é preciso. “Ficou muito ruim com esse negócio de ser tudo pelo celular. Eu vou longe, vou atrás, enfrento fila, ônibus, sol quente, porque não sei mexer no celular.”
Para entender o outro lado dessa história, e obter uma avaliação técnica e analítica sobre o uso de dispositivos e aplicativos móveis para pessoas mais velhas, conversamos com Magno Ozzyr, 36, gerente de projetos de tecnologia que atua com soluções digitais para empresas e organizações do terceiro setor.
Magno disse em entrevista que pensa em desenvolver um software voltado para a terceira idade, para facilitar o dia a dia desses moradores. Ele começou explicando que precisamos entender os fatores de cultura e de segurança de cada um, como indivíduo. Porque as pessoas de terceira idade possuem uma visão diferente do que entendemos hoje como aplicativo, banco digital e funções modernas que facilitam o nosso controle.
“É sempre bom ter alguém administrando ali sua conta, alguém que você consiga reclamar. E essa pessoa acaba não entendendo que ela pode ter essa relação com o aplicativo. Eu posso fazer uma reclamação por ali, posso abrir um chamado por ali e ser atendido de forma imediata inclusive”
explica.
Outro ponto que Magno aborda é a abstração das imagens para essas pessoas da terceira idade, onde a forma de enxergar um aplicativo é diferente, pois enquanto eles enxergam somente figuras e objetos, nós sabemos o que tudo aquilo que aparece na tela do celular significa, seja um ícone que representa “salvar” ou uma frase que aponte o que queremos fazer.
“O que eu percebo é que existe muita dificuldade na abstração, porque aquilo não tinha relação nenhuma com o que aquelas pessoas viam na sua juventude ou infância. É muito difícil você trazer uma noção completamente nova de interação através de um dispositivo, sem explicar essas abstrações”, argumenta.
Magno aborda também que a facilidade em aprender e guardar informações é diferente para um jovem do que para uma pessoa da terceira idade, que existe essa diferença e que por muitas vezes não pesamos na balança ao decorrer do dia a dia.
Em sua opinião, os jovens, principalmente agora em momento de pandemia, tiveram que se adaptar para trabalhar e estudar dentro de casa, tendo que mexer em mais de 10 abas ao mesmo tempo, mas que apesar disso, conseguem realizar essas tarefas tranquilamente, diferente de uma pessoa mais velha, se precisasse sofrer essa mudança.
“Agora pensa essa realidade pra quem mal sabe ler ou não sabe ler, ou seja, os símbolos são imagens, eles não dizem nada para aquela pessoa além de imagens. Então imagina que você está vendo um monte de risquinho preto na tela e não diz nada pra você”
pontua.
Magno ressalta que alguns aspectos de desigualdades sociais também afetam os moradores das periferias que enfrentam essas barreiras de acessibilidade. Segundo ele, essas pessoas tiveram ausência de saúde, educação, saneamento e necessidades básicas nos primeiros momentos da vida, e assim, a tecnologia se torna realmente uma função totalmente moderna e distante para essas vidas.
“A gente precisa olhar para a tecnologia de uma maneira muito parcial. A tecnologia não chega onde está a pobreza, a gente tem situações de pessoas sem esgoto, sem acesso a água, e a falta de água cria débitos cognitivos. Pessoas que não tiveram acesso à água nas suas primeiras fases de vida, têm um desempenho cognitivo menor do que a maioria das pessoas”, analisa.
O gerente de projetos de TI, destaca que a tecnologia tem a sua dimensão baseada na exclusão social. “A tecnologia do país é muito boa, o problema é que ela não é para todos!”, conclui Magno.
Parabéns Flávia Santos, linda matéria e um tema muito pertinente e indispensável.
Matéria como está deveria ser de acesso a todos, assim a geração “X” se apropria do que pertence a eles também, pois, está época é de/para todos geração X, Y ou Z.
E é dever de todos ajudar quem precisa.
Parabéns pela matéria! Todas essas tecnologias deveria ser mais acessível pra essas pessoas com mais dificuldades de aprender.