REPORTAGEM

Do Jardim Helena à Parelheiros: as tretas do acesso à internet móvel na quebrada

Edição:
Evelyn Vilhena

Leia também:

Acesso à internet precário e tardio faz parte do contexto das desigualdades digitais que afetam jovens moradores de periferias do extremo leste e sul de São Paulo.


Gustavo Ricardo teve seu primeiro acesso a internet aos 15 anos, após ganhar o primeiro celular dos seus pais. (Foto: Arquivo Pessoal)

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.

Gustavo Ricardo teve seu primeiro acesso a internet aos 15 anos, após ganhar o primeiro celular dos seus pais. (Foto: Arquivo Pessoal)

O acesso à internet chegou à vida de Gustavo Ricardo, 23, morador do Parque Paulistano, bairro localizado no distrito do Jardim Helena, zona leste de São Paulo em 2012, ano no qual ele completou 15 anos, e como presente de aniversário ele ganhou dos pais o primeiro celular. A partir desse momento marcante, ele relata que começou a explorar o mundo digital.

Gustavo considera que as novas gerações de jovens moradores das periferias se conectam cada vez mais cedo com a web, uma história bem diferente da sua, que só começou aos 15 anos. “É até uma idade bem avançada, porque hoje em dia as pessoas têm acesso a internet desde pequeno e isso não foi uma realidade pra mim”, afirma.

Oito anos após ganhar o primeiro smartphone, ele conta que até hoje o celular é o seu principal meio de acesso à internet. Além disso, ele enfatiza que na região onde mora o acesso à internet não é amplo, e que muitas vezes os vizinhos recorrem uns aos outros, devido à falta de cobertura.

“Não é uma maravilha a conexão da internet por aqui”
 

Gustavo Ricardo, 23, morador do Jardim Paulistano, bairro localizado no distrito do Jardim Helena, zona leste de São Paulo.

“Não é uma maravilha a conexão da internet por aqui. Moro num bairro que gerações passadas ocuparam, então desde lá de trás todo mundo se conhece, se você tem uma relação de afinidade com o vizinho certamente ele vai te emprestar e te ajudar. Essa coisa de emprestar internet é muito comum, você passar a sua senha do wi-fi e o vizinho também passar a dele”, relata.

As experiências de Gustavo com o acesso tardio à internet também fazem parte da história de vida da estudante de moda Andressa Mafra, 22, moradora do Parque Alvorada, bairro localizado na periferia de Guarulhos.

Ela lembra com detalhes sobre quando acessou a internet pela primeira vez e como era o computador usado para acessar a rede. “Comecei a ter acesso a internet a partir dos meus 14 anos”, relata Andressa, relembrando o formato do computador que ela tinha em casa. “Na época era aquele computador enorme com a caixa atrás e depois disso que foi evoluindo para o telefone pra celular né.”

A estudante de moda ressalta que a partir do momento que ela começou a ter wi-fi em casa, o celular ganhou uma função fundamental na sua vida. “Até hoje o celular é o melhor veículo de comunicação pra mim, o que eu mais uso, é algo indispensável na minha vida.”

Davi Biaggioli sofre para estudar, pois tem dias que sua internet não tem nenhum mega de velocidade para acessar a web. (Foto: Coletivo ArquePerifa)

Esse cenário faz parte da rotina do estudante da área da tecnologia e morador de Parelheiros, Davi Biaggioli, 16. Ele conta que a chegada da internet no bairro faz parte de um cenário precário de idas e vindas.”Foi difícil a gente ter acesso à internet aqui, teve um tempo que tinha e depois não tinha mais”, conta o jovem.

Nesse processo, uma das formas do estudante de tecnologia acessar a internet foi por meio de modem móvel, um meio que trouxe muitos problemas com o passar do tempo. “A gente teve aquele pen drive, que é horrível e por volta de 2014 a gente teve internet, mas dependia do dia.”

A alternância da qualidade de sinal faz parte do cotidiano de Davi, que às vezes consegue acessar sites básicos para apoiar os estudos, mas em outros momentos fica sem sinal. “Num dia bom o acesso chega a seis megas, mas dependendo do dia é 1, 2 ou nenhum mega”, afirma.

A solução encontrada pelo jovem é pedir apoio para as irmãs que moram numa região central de Parelheiros, onde a qualidade de internet é melhor, devido aos comércios no entorno. “Minhas irmãs moram no centro e lá tem internet boa, não posso contar com a internet da minha casa, sabe? Se for algo que precise mesmo, tenho que sair de casa. Isso dificulta né, principalmente na pandemia.”

Dados desiguais 

Um estudo recente apontou o Jardim Helena como um dos 10 distritos de São Paulo com maior desigualdade digital no acesso à internet.

Esse é o cenário apontado pela Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações (ABRINTEL), que investigou a quantidade de antenas de celular nos distritos paulistanos por quantidade de habitantes.

Dos 135 mil habitantes do Jardim Helena, a região possui uma antena de célula para cada 8.440 pessoas usarem o sinal de telefonia móvel. O estudo mostra que o ideal é que uma estação de transmissão de sinal seja usada por no máximo 2.200 usuários.

Na região de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, há 335 pessoas para cada antena de celular. Ou seja, a abundância de antenas na região permite a distribuição de um sinal de internet móvel com muita qualidade para os usuários locais.

Na Região Metropolitana de São Paulo, 61% dos usuários residentes em áreas de baixa vulnerabilidade acessam a internet, por meio de celulares e computadores.

Já nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, 70% dos entrevistados usam exclusivamente o celular como interface de acesso à rede.

Esses dados pertencem às investigações realizadas na pesquisa TIC Domicílios 2019, publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).

“A gente tem que perceber que a desigualdade social também é replicada no mundo digital”

Toni Santos, educador de cultura digital e mestre em ciência da informação pelo CELAC-USP

Para Toni Santos, educador de cultura digital e mestre em ciência da informação pelo CELAC-USP, as desigualdades digitais fazem parte do cotidiano dos moradores das periferias na mesma medida de outras ausências de direitos sociais.

“A gente tem que perceber que a desigualdade social também é replicada no mundo digital, da mesma maneira que as periferias são maioria em desigualdade social com relação a tudo que a gente tem de bens e de necessidades básicas, desde saúde, educação, alimentação, transporte e qualidade de vida no geral”, analisa Santos.

Ele explica o analfabetismo digital é um dos produtos das desigualdades digitais a ser percebido e combatido no cotidiano dos moradores das periferias.

“A maioria das escolas públicas estão no ensino híbrido, e muitos estudantes não conseguem realizar as atividades online e por que? Existe um analfabetismo digital que faz com que esse jovem de maneira autônoma tenha dificuldade de acessar os aplicativos do estado e se expressar, se comunicar, fazer as atividades e tirar dúvidas”, argumenta o educador de cultura digital.

Educação e internet precária 

Com um olhar para o ecossistema de educação e formação de estudantes mais conectado com o ambiente escolar, a doutora em educação e escritora Juliana da Paz, moradora do Capão Redondo, afirma que é preciso explicar para a sociedade a diferença entre o acesso à internet e o acesso à educação.

“A escola é uma instituição que deveria proporcionar esse acesso à tecnologia e a internet, contudo, a escola pública ainda não consegue. Então nós temos muitas escolas onde a população acessa a educação, mas dentro desse currículo desenvolvido não há um acesso à tecnologia e a internet na escola”, explica Juliana, afirmando que deveria sim existir uma grade pedagógica para garantir acesso à internet e tecnologia como ferramenta educativa.

“A escola é uma instituição que deveria proporcionar esse acesso à tecnologia e a internet”

Juliana da Paz  é doutora em educação e escritora

O mestre em ciência da informação, Toni Santos, ressalta que o analfabetismo digital é um dos principais problemas gerados pela falta de políticas públicas para acesso à internet e tecnologia nas periferias.

“O analfabetismo digital faz com que as pessoas tenham um celular, e elas não utilizam nem 10% da capacidade desse celular, faz com que as pessoas tenham um equipamento para se comunicar e elas ainda gastem dinheiro com outras coisas. Faz com que as pessoas acreditem em fake news”, aponta o mestre em ciência da informação.

Ele finaliza, afirmando: “a gente precisa primeiramente criar e desenvolver processos de inclusão digital que sejam efetivos para impactar positivamente não só os jovens, mas os moradores das periferias como um todo”, conclui Toni. 

Autor

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.

Pular para o conteúdo