Entrevista

Curta aborda precarização e informalidade de trabalhos ocupados por jovens negros e periféricos

O curta “Samuel foi trabalhar”, retrata a busca do primeiro emprego e levanta discussões sobre direitos trabalhistas diante do aumento do trabalho informal.
Edição:
Evelyn Vilhena

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Um jovem, negro e periférico que está tendo as primeiras experiências como trabalhador e se depara com questões como a precarização e a informalidade do trabalho. Esse é o enredo central do filme “Samuel foi trabalhar”, que apesar de ser uma ficção, retrata a vivência de alguns jovens que estão à procura do primeiro emprego.

Segundo levantamento dos Principais destaques da evolução do mercado de trabalho no Brasil 2012 - 2023, divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2022 os trabalhadores informais totalizavam 38,2 milhões de pessoas, número que subiu para 39,4 milhões de pessoas no ano seguinte, é o que consta na PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), publicada em janeiro de 2024.

A pesquisa considera como ocupação informal as seguintes categorias: empregado no setor privado e empregado doméstico sem carteira de trabalho assinada, empregador e trabalhador por conta própria sem registro no CNPJ e trabalhador familiar auxiliar, ou seja, pessoas que trabalham em atividades conduzidas por membros da família, geralmente em pequenos negócios, propriedades rurais ou estabelecimentos familiares, sem remuneração formal.

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Janderson Felipe, 30, é cineasta e diretor do curta “Samuel foi trabalhar”, que aborda a vivência de muitos jovens de territórios periféricos no mercado de trabalho. Ele comenta que pela falta de oportunidades e a urgência em gerar renda, pessoas que vivem em periferias acabam inseridas em trabalhos precários que em muitos casos não gostam, mas que realizam por necessidade. 

Janderson Felipe no Festival Internacional de Cinema de João Pessoa. (foto: Natália Di Lorenzo)

“Às vezes a gente tem uma qualidade artística e a gente não consegue encontrar esses trabalhos. A gente não consegue dar vazão e ao mesmo tempo conseguir ganhar dinheiro com isso [como artista] e acaba entrando nesses lugares”, aponta Janderson, que também é jornalista e cresceu no bairro Tabuleiro dos Martins, em Maceió.

Cenário que vai de encontro com as discussões sobre direitos trabalhistas, como a revisão das jornadas de trabalho, debate que ganhou força no campo político e social em 2024, a partir do movimento VAT – Vida Além do Trabalho junto da deputada Erika Hilton (PSOL), que propôs uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para acabar com a escala de trabalho 6×1 no Brasil, que representa seis dias de trabalho consecutivos seguidos de um dia de folga.

Saiba mais: Como pensar em relações de trabalho dignas e com direitos garantidos?: Curta aborda precarização e informalidade de trabalhos ocupados por jovens negros e periféricos

Em 2019, quando Janderson começou a escrever o curta, ele comenta que em Maceió, acontecia um aumento no processo de precarização do trabalho pela uberização, modo de atuação informal que utiliza aplicativos para conectar trabalhadores a clientes e caracterizado pela falta de direitos trabalhistas, e isso reforçou a importância de falar sobre o assunto.

A pesquisa Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais, realizada pelo IBGE, Unicamp e o Ministério Público do Trabalho, por meio da PNAD Contínua, avaliou que no 4º trimestre de 2022, no Brasil, a população ocupada de 14 anos ou mais, foi estimada em 87.2 milhões de pessoas, sendo que 2.1 milhões realizavam trabalho por meio de plataformas digitais (aplicativos de serviços) ou tinham clientes e efetuavam vendas através de plataformas de comércio eletrônico. Desse total, 1.490 mil pessoas trabalhavam por meio de aplicativos de serviços e 628 mil utilizavam plataformas de comércio.

Os fatores externos, sociais e políticos, também se uniram à própria vivência do cineasta de nunca ter conseguido acessar um posto de trabalho formal, com carteira assinada e direitos garantidos. “Samuel também é um filme de terror nesse sentido, porque eu nunca assinei a carteira. Eu ficava, ‘caramba, nunca vai chegar’. Até o ponto que eu já não tenho uma questão sobre isso, mas quando eu era mais jovem tinha essa nóia”, compartilha o diretor.

Encontro entre ficção e vida real

O enredo do curta se dá a partir de Samuel, que está prestes a deixar a informalidade e ser contratado, mas é assombrado pelo seu instrumento de trabalho: a fantasia de engenheiro.

A direção, roteiro e montagem do curta foi feita por Janderson e Lucas Litrento, que é jornalista, escritor, cineasta e morador do bairro Benedito Bentes, em Maceió. Segundo Janderson, eles sempre imaginaram fazer um filme popular, que as pessoas pudessem se reconhecer, principalmente pessoas de periferias, negras e que também fosse uma representação do jovem maceioense.

“No cinema brasileiro recente, de fato, quem está pensando no trabalhador parte muito do cinema negro, porque ainda é uma coisa muito próxima. Os pais, mães e irmãos da gente são esses trabalhadores também. Muitos realizadores [dos filmes] foram ou são esses trabalhadores. Existe um cinema periférico geral no Brasil que pensa esses trabalhadores.”

Janderson Felipe, diretor e roteirista de cinema.

“[A proposta] era pensar quem é esse jovem periférico que estudou em escola pública a vida toda, terminou de se formar e o que ele vai fazer da vida. É o jovem que muitas vezes não vai acessar a universidade e quais são os empregos que ele vai conseguir?”, menciona Janderson sobre as motivações do curta.

Saiba mais: Dos anos 90 ao século XXI: o acesso da juventude periférica ao mercado de trabalho: Curta aborda precarização e informalidade de trabalhos ocupados por jovens negros e periféricos

“Tem [no] filme a discussão sobre buscar os direitos junto ao empregador. As meninas querem o dinheiro da passagem, pelo menos, para não gastar a grana do próprio bolso para poder trabalhar. Que é uma coisa que eu já vivi”, menciona Janderson sobre situações do filme que dialogam com a realidade de trabalhadores informais.

Questões sobre dias de folga e lazer também são abordadas no filme, tendo os territórios como ponto de partida. “Quando se pensa em Maceió se pensa na praia, o estado também vende esse imaginário. [Porém] quando se pensa em acessar esses espaços dentro da perspectiva de quem é da periferia, esse lugar não é só de lazer e turismo, também acaba sendo o ambiente de trabalho de muitas pessoas”, explica.

Curta aborda precarização e informalidade de trabalhos ocupados por jovens negros e periféricos
Cena do filme que se passa na orla de Maceió, mostra a perspectiva de trabalho que há no local, para além do lazer. (foto: Amanda Môa)

Janderson menciona que as pessoas negras e periféricas que acessam a praia, principalmente as mais turísticas, em muitos casos estão trabalhando, mas que também há famílias que vivem nesses locais e que têm a praia como uma das poucas opções gratuitas de acesso ao lazer na cidade. “O Samuel no filme vai para um baile de reggae, [por exemplo]. Os escapes desses jovens da periferia, o lazer deles acabam não sendo a orla de Maceió igual é para os turistas”, pontua.

Segundo o diretor, a dificuldade de deslocamento na cidade, que se agrava nos fins de semana e feriados com a escassez de transporte público, também contribui para que os trabalhadores, que são moradores de bairros afastados da orla, procurem por outras opções de descanso e lazer.

“Trazer esses espaços reconhecíveis para quem é de Maceió bater o olho e ver, ‘é perto do lugar onde eu moro, já passei por aí’”, explica Janderson sobre a ideia de representar ao longo do filme os bairros da Serraria, Salvador Lyra e Grota do Rafael, periferias de Maceió, que também receberam parte das gravações.

O filme circula entre as categorias de fantasia, terror e comédia. “Tem coisas engraçadas do trabalho do Samuel que não são [bem] engraçadas, mas tem uma graça ali, tem uma coisa de um riso meio estranho”, explica.

Estudante do ensino médio, de uma escola pública, participa de discussão sobre o filme, após exibição no Festival Revoada. (foto: Renata Baracho)

Jovens que se assemelham com os personagens são apontados por Janderson como o principal público do filme. “Quando tem esses jovens é onde o filme mais chega. No Festival Revoada, aqui em Maceió, teve várias sessões para escolas públicas. Teve uma sessão em que um menino decidiu falar sobre trabalho, que tem que buscar os direitos. O filme realmente pegou para ele”, relata.

Janderson fala com entusiasmo de como está sendo a recepção do filme por jovens que vivem nas periferias e finaliza, “o melhor público são eles”.

O filme está em circulação em festivais e mostras de cinema. As próximas exibições em dezembro serão na 7° Edição da Mostra Sesc de Cinema, em Belém-PA; entre os dias 3 a 10 no Macau International Short Film Festival; de 12 a 15 no 12º Curta Brasília – Festival Internacional de Curta-metragem; 9 a 14 deste mês no 15º Festival de Cinema de Triunfo e também na 15ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano entre o dia 12 e 15 de dezembro.

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