Home Blog Page 36

Documentário preserva memória do artista Daniel Marques e debate saúde mental nas periferias

0

O documentário “Diga o que quiser! eu vou ser feliz à beça!”, dirigido pelo cineasta negro Renato Cândido, foi lançado no mês de maio de 2023 e está em circulação por diversos cinemas brasileiros, como o Circuito SPCine. O longa metragem mostra o legado cultural e a preservação da memória de Daniel Marques, artista que se suicidou, em 2017, com 26 anos, e problematiza o cuidado com a saúde mental da população negra e periférica.

Renato explica que o artista fazia parte de uma geração de artistas do começo do século 21 que carregava a importância do legado e memória para ampliação da arte nas periferias.

“Daniel viveu isso, e sua geração passou a acessar políticas públicas, como o programa VAI [Valorização de Iniciativas Culturais]. Na mesma época teve a semana de arte da periferia. Sérgio Vaz dizia que era a primavera artística da quebrada, em 2007”, afirma o cineasta negro.

Confira o trailer do longa metragem.

Daniel era morador do Itaim Paulista, bairro do extremo leste de São Paulo. Do candomblé, filho de Oxóssi, ele expressava toda sua ancestralidade na arte que produzia como escritor, músico, ativista social e articulador cultural.

Querido e respeitado nos variados ambientes que frequentava, o artista serviu de exemplo e referência para a periferia, sendo um dos fundadores do coletivo literário ‘O que dizem os umbigos”, sarau que nasceu em 2009 e marcou época do surgimento de encontros de literatura periférica, sobretudo na zona leste da capital, por fazer debates importantes sobre negritude e panafricanismo, questões LGBTQIA+, sempre com o artista muito participativo.

“Vejo o Dani nesse momento da encruzilhada da história. Além de ser brilhante e muito inteligente nas análises políticas que fazia, ele era muito aguerrido em relação as questões LGBTs”

Renato Candido, cineasta
Parte do filme foi produzido durante a pandemia de Covid-19. (Reprodução: Arquivo Pessoal)

O longa entrevista diversos artistas entre músicos, poetas e escritores que evidenciam Daniel como sua referência cultural e política, detalhando o papel dele para incentivar atividades culturais nas quebradas, locais historicamente negligenciados em relação à arte.

Bissexual, Daniel vivia na pele apreensões emocionais e a dificuldade de falar sobre seus problemas pessoais, características da masculinidade negra. Semelhante a grande maioria das pessoas nas periferias de São Paulo, o artista atravessava dificuldades financeiras, sem acesso digno à saúde e moradia, por exemplo.

“Vejo o drama de muitos homens negros ai. Mesmo o Dani sendo uma pessoa bisexual, existe um entrelaçamento entre condição de vida e afeto para um homem negro. Isso é muito complicado em relação à saúde mental”, aponta Renato.

“Vejo o drama de muitos homens negros ai. Mesmo o Dani sendo uma pessoa bisexual, existe um entrelaçamento entre condição de vida e afeto para um homem negro. Isso é muito complicado em relação à saúde mental”

Renato Candido, diretor do filme

A pressão para manter condições básicas de cidadania transformou a vida de Daniel, sua poesia, numa prosa sem palavras a capela. Daniel se suicidou em 2017, mas deixou seu legado nas artes que produzia.

O filme evidencia que as pessoas que Daniel influenciou carregam suas memórias e as eternizam da mesma maneira que ele encarava a vida. Com arte e poesia.

O cinesta negro Renato Candido idealizou o filme logo após o falecimento de Daniel Marques. (Reprodução Arquivo Pessoal)

A produção do documentário

Renato Cândido, mestre em cinema e audiovisual, atuante no cinema desde 2002 e professor da área, encarou diversas dificuldades enquanto homem negro para concretizar a produção do documentário, além do agravante da pandemia de covid-19.

A ideia de elaborar o filme surgiu assim que Renato recebeu a notícia do falecimento do Daniel. Daí começaram os primeiros corres para viabilizar a produção.

O diretor explica que enfrentou obstáculos financeiros para conseguir articular o documentário. “Batalhei para caramba pro VAI. Tentei em 2018 e 2019, daí conseguimos no ano seguinte, mas com muita lua”.

O programa VAI, política pública de fomento à cultura produzida por coletivos culturais das periferias de São Paulo, disponibilizou R$ 80 mil, quantia essa, segundo Renato, impossibilitou a realização de diversas ideias e técnicas de produção. Além das entrevistas captadas no longa, muito mais pessoas expressariam suas artes e performances em memória ao Daniel caso o investimento fosse maior, por exemplo.

“Isso mostra o quanto histórias negras ainda têm muita dificuldade de conseguir editais maiores. Imagina ter um orçamento de 300 mil, o tanto de coisas que poderíamos fazer mais da hora. É difícil romper com as travas do racismo”, ressalta Renato.

Em razão do baixo orçamento, e por respeitar o distanciamento social da época, o documentário trouxe mais entrevistas do que performances artísticas. Isso contribuiu, também, para as pessoas elaborarem o luto.

Com uma equipe majoritariamente negra, a produção fez imagens na praça Vila Mara e no Parque Itaim, ambas quebradas na zona leste. Também rolou filmagem na praça Daniel Marques, espaço que ganhou seu nome como homenagem.

“Os filmes que eu faço emocionam. Esse é um longa que emociona a galera. Ainda que eu queria que tivesse mil pessoas assistindo, as poucas pessoas que assistiram saíram impactadas com o filme”, completa Renato.

O trabalho foi concluído em setembro de 2022. Antes do lançado em maio de 2023, Renato conta que houve algumas exibições no Centro Cultural da Juventude, no Itaim Paulista. O filme está disponível no Circuito SPcine, em São Paulo.

 

Saúde na quebrada: iniciativas culturais pautam o HIV e atuam na saúde pública #11

0

Colamos na Vila Cisper, zona leste de São Paulo, para trocar uma ideia com o Ezio Rosa, sobre o trabalho da BixaNagô, coletiva LGBTQIAPN+ que pauta HIV com recortes de raça, classe e território.

A partir desse olhar de saúde e políticas públicas, conversamos com a Marcia Marci, produtora sociocultural e idealizadora da coletiva Travas da Sul, que fala sobre como iniciativas periféricas são multilinguagens, atuando no campo cultural e também com saúde pública, como na pauta da Aids e HIV.  

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube

Ficha técnica:
Roteiro, apresentação e entrevistas – Evelyn Vilhena
Distribuição – Samara da Silva e Thais Siqueira
Produção audiovisual – Pedro Oliveira 
Identidade visual – Flávia Lopes
Vinheta e edição – Jonnas Rosa

“Tem discriminação principalmente se for uma doula preta”, doulas refletem sobre a regularização da profissão

0

Sem regulamentação, o trabalho de Doulas ainda se caracteriza como uma atividade informal e com poucas garantias, principalmente para profissionais de regiões periféricas. 

A doulagem é um trabalho de cuidado com a pessoa gestante antes, durante e depois do parto, oferecendo suporte e acompanhamento nesse processo de gestar. Em 2022, aconteceu a audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados sobre a aprovação do Projeto de Lei 3946/21, que busca regulamentar a profissão de doula no país.

Doula é uma assistente de parto, que não necessariamente possui formação em ciências da saúde. Seu trabalho é realizar um acompanhamento para o cuidado e bem estar da pessoa gestante durante o período da gestação, ao longo do parto e até os primeiros meses pós parto.

Isabela Lima, 31, atua como benzedeira, artesã e doula. Nascida em São Vicente, baixada santista, atualmente mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo. Ela conta como, por ainda não ser regulamentado, o trabalho de doula apresenta dificuldades, como falta de piso salarial e remuneração fixa.

“A doula que administra essa parte financeira de quanto cobrar, como e se vai. Tem muitas doulas que fazem esse trabalho de forma social para pessoas em vulnerabilidade, assim como eu. Acredito que esse projeto sendo aprovado vamos realizar nosso trabalho de forma mais segura e efetiva, sem que precise bater de frente com as instituições de saúde”, afirma a doula Isabela Lima, que também é mãe do Gabriel de 6 anos e do Bento de 3 anos.

A profissional aponta que além da discriminação por ser uma profissão considerada informal e não existir uma regulamentação, também enfrenta discriminação racial dentro das unidades de saúde.

“[Estamos] ali para auxiliar, não para atrapalhar como muitas vezes escutamos [da] assistência médica. Nós não somos vistas com bons olhos, temos que lidar com discriminação, principalmente se for uma doula preta. Além de lidar com a rejeição do corpo médico, ainda precisei lidar com a discriminação racial.” 

Isabela Lima, mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo, é benzedeira, artesã e doula.

A doula conta que antes mesmo de estudar e iniciar a sua atuação profissional na doulagem, já fazia um trabalho de apoio emocional com pessoas gestantes a sua volta e buscou esses estudos a partir da sua primeira gestação, período que tinha medo de sofrer violência obstétrica ou passar por alguma negligência médica. “Hoje eu me encontro como parteria tradicional, tentando fazer um resgaste de saberes ancestrais que foram tirados do nosso imaginário”, afirma. 

Isabela pontua que a doulagem é uma das funções que compõem uma equipe de assistência para pessoas gestantes. “Trabalhando justamente nesse lugar de bem estar. [Doula] traz esses saberes em relação aos cuidados com a saúde do responsável do bebê e do bebê, mas é diferente da parte técnica da assistência médica, da assistência de enfermagem. [Doula] não faz nenhum procedimento técnico de enfermagem como ausculta, exame de toque, não realizamos nada disso”, coloca.

“Enquanto pessoa preta [e] periférica atuo na quebrada, como forma de enfrentamento do medo que senti na minha gestação de sofrer alguma violência ou ser negligenciada, já que sabemos que os corpos pretos são os mais violentados. Também proporcionar a ideia de uma qualidade de vida e bem viver para as pessoas da quebrada que não tem acesso ao sistema de saúde que ferramentalize o bem viver.”

 Isabela Lima, é benzedeira, artesã e doula.

Isabela atua de forma autônoma, mas também faz parte da Associação Doula Solidária, uma iniciativa que facilita o contato da pessoa gestante com doulas de vários locais, como uma forma de democratizar e entender esse trabalho como um direito de saúde e assistência.

Regulamentação para garantia de direitos

“Desde que houve flexibilização da pandemia, os únicos hospitais do SUS que têm permitido entrada de doula é o hospital de Parelheiros e o Amparo Maternal que recentemente recebeu uma pressão da ADOSP – Associação de Doulas do Estado de São Paulo, para que pudéssemos voltar a atuar, pois também vínhamos enfrentando dificuldades”, coloca Hanny Rodrigues, 29, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo. Para a profissional, a regulamentação afeta diretamente as doulas que são moradoras e atuam nas periferias. 

“A galera que pode pagar por um hospital ou tem convênio, seja ele particular ou pela empresa, já consegue acessar nosso serviço sem maiores problemas, porque a maioria dos hospitais particulares permite o nosso acesso sem grandes dificuldades. É uma escolha política barrar a gente nos hospitais públicos.

Hanny Rodrigues, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo.

A doula conta que iniciou o trabalho de doulagem por influência da irmã, logo depois foi estudar e em 2018 começou a atender na área. Ela é membro da ADOSP (Associação de Doulas SP) e aponta que atualmente existe um acordo informal de uma contribuição de R$ 1.900 para um acompanhamento de encontros pré-natal, partos e pós-partos. A doula enfatiza que é apenas um acordo ético e que na prática as doulas recebem muito menos. 

“Não basta realizar um curso preparatório de doulas, embora hoje existam muitas formações disponíveis no mercado, tanto de forma presencial, quanto online. Não só sobre o parto em si, mas sobre a importância real da doula. Avaliar qual é a sua disponibilidade de tempo para dedicar à sua gestante e também a sua saúde mental”, compartilha Hanny.

Articulação em rede

A busca pela regulamentação do trabalho das doulas tem sido articulada por diversos movimentos, entre eles a Fenadoulas Brasil, organização que reúne associações de doulas do Brasil e busca articular o campo de defesa da atenção multidisciplinar com inserção de doulas nesse cuidado, além de apoiar entidades filiadas que atuam para fortalecer o protagonismo da pessoa no ciclo gravídico puerperal, a partir do acesso a informações de qualidade e atendimento humanizado, respeitoso e digno.

Morgana Eneile é doula, pesquisadora, presidenta da Fenadoulas Brasil, e pontua que não existe uma restrição para se tornar doula, mas uma orientação para pessoas que tenham o ensino médio completo e seja maior de idade. Além de uma formação de doula que atualmente é feita através de cursos livres, privados ou públicos, coordenados por profissionais que atuam com doulagem.

“A prática da profissão já está organizada formalmente na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), mas ainda há diferentes leituras que tendem a ser mais uniformizadas a partir da aprovação de uma legislação nacional que possibilite a compreensão geral do universo de trabalho”, pontua a pesquisadora em referência a importância de regulamentar a profissão.

Para Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo), é extremamente importante que aconteça a regulamentação para que possam ser reconhecidas como profissionais. “Doula é profissão há muitos anos. [É] importante esse reconhecimento como profissional até mesmo no campo financeiro. Outro ponto importante é ter coerência e coesão principalmente na base das formações”, afirma. 

“Através da regulamentação, além de equalizar minimamente as formações, considerando os critérios necessários para formação de qualidade [e] reconhecimento das profissionais, nos permite acesso aos locais onde as pessoas gestantes estão parindo seus filhos. Com a regulamentação, as Doulas têm livre acesso aos hospitais – sejam eles públicos e/ou privados rede suplementar.”

Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo)

“A presença da doula no cenário de parto é uma ferramenta extremamente importante para o cuidado das parturientes, inclusive em relação à proteção contra a violência obstétrica”, pontua Kau Marua.

Ao Padre Jaime Crowe: um agradecimento da juventude

0

Temos experiências que são frutos de sua luta pelo direito à vida da juventude, com o relato de alguns jovens que foram atendidos por seus projetos e seguem seu legado.

 “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”

Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré

São Paulo, Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Ali dos lados que Mano Brown se refere quando canta “dá ponte pra cá”. Casas demais, gente demais, talentos demais, jovens demais e oportunidades e direitos de menos. Nas nossas quebradas, sempre foi assim. Mas não sem a voz do nosso povo reivindicando pela garantia mínima de condições de vida.

E dentre essas vozes teve uma que se levantou, mas não era das mulheres que enterravam seus filhos jovens vítimas da violência, era uma diferente: de um senhor padre, branco, estrangeiro, que chegara à região. 

Levando a sério a passagem bíblica de que “a fé sem obras é morta”, Jaime foi agente de várias e várias obras, algumas lembradas pelo Rafael Cícero neste artigo:

Quando os distritos Jd. Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís passaram a ser conhecidos como Triângulo da Morte por ser a região mais violenta do mundo inteiro, o Padre rezava missas e missas de 7º dia pelos corpos das diversas vítimas de violência, em sua maioria jovens e negros da periferia. Mas não achava isso normal: sentia um incômodo e a partir daí percebeu a necessidade de lutar para reverter este quadro de homicídios na região. 

Jaime nos deixou em fevereiro de 2023 e felizmente podemos dizer que sua luta em vida não foi em vão: hoje temos experiências que são frutos de sua luta pelo direito à vida da juventude com o relato de alguns jovens que foram atendidos por seus projetos e hoje seguem seu legado. 

Ingryd Boyek, Sociedade Santos Mártires.

Ingryd Boyek tem 25 anos, é psicóloga e atua como assistente técnica no SCFV – Centro para Criança e Adolescente Riviera da instituição Sociedade Santos Mártires. Também é coordenadora da Rede Ubuntu de Educação Popular e psicóloga do coletivo Ubuntu de Saúde e Cidadania. Segundo ela: 

“Falar do Padre Jaime e do seu trabalho é falar sobre esperança, principalmente para a nossa juventude. A sua obra tem um impacto enorme na minha vida, porque desde quando tinha 8 anos fui acolhida pelo Centro de Formação e Recreação São José, participando ativamente das atividades do ozen, que com a mudança de nomenclatura passou a ser Centro para Criança e Adolescente (CCA), e dos cursos e oficinas do Centro para Juventude Riviera (CJ)”.

E completa: “O espaço que ocupo como indivíduo e como profissional existe porque pessoas como o Padre Jaime acreditaram que eu conseguiria e impulsionaram-me a conquistar. Orgulho-me de ser agente de transformação positiva, de poder retribuir nos lugares que percorro tudo que aprendi com esse grande homem e com tantas outras pessoas que lutam para não termos nenhum direito a menos. Agradeço por ele ter insistido no nosso território e na nossa juventude.”

Saulo Vilanova, Sarau Apoema.

Saulo Vilanova tem 24 anos, é morador do Jardim Ângela, estudante de Letras na USP e membro do Sarau Apoema. Desde 2018, é coordenador e professor da Rede Ubuntu de Educação Popular. Em suas palavras:

“Num terreno de vulnerabilidades, não há forma de se progredir sem cultivar sonhos e de lutar coletivamente. Apesar disso, são poucas as pessoas que conseguem juntar o povo oprimido e elevar nele a sua autoestima, que historicamente é esmagada. Padre Jaime, ao lutar incansavelmente por essa auto-estima, é um marco na história de muitos periféricos, sabendo eles ou não disso. Nesse bonde, é preciso incluir a juventude favelada do Jardim Ângela, a quem ele foi um incansável defensor por gerações e gerações.”

Ele continua: “É preciso dizer, porém, e é claro, que o Sarau Apoema, tão recente na história da arte periférica do Jardim Ângela, não foi o primeiro movimento a ser acolhido e incentivado dessa forma. Era também através de Jaime que batalhas de rima, apresentações de teatro, lançamento de livros e outros movimentos artísticos ganharam fôlego. Jaime acreditava na arte como forma de valorização e resgate da vida, e nisso passamos a acreditar também”. 

Saulo ressalta que nessa guerra que Jaime escolheu combater com sua sobrevivência e vitalidade, a juventude do Jardim Ângela, seja qual geração permanecer, terá sempre um espírito de gratidão.

Juntos num só lema! Saudações, Jaime!

Isabella Souza, Rede Ubuntu de Educação Popular.

Isabella Souza tem 21 anos, é estudante de Psicologia, moradora do Jardim Ângela, ex-aluna e atualmente coordenadora na Rede Ubuntu de Educação Popular. Para ela:

“Não tem como lembrar do Padre Jaime sem lembrar dos sábados em que ele visitava o cursinho e nos cumprimentava com ‘saudações corinthianas’ e um sorriso no rosto. Lembrar do Padre Jaime é lembrar do significado de Ubuntu: eu sou porque nós somos.” 

Ela completa: “Sem a ajuda e presença do Padre Jaime eu não estaria na faculdade, com bolsa 100%, no 4º ano do curso da minha vida e podendo retribuir (mesmo que minimamente) todo o esforço e trabalho que os voluntários do cursinho tiveram para que eu pudesse sonhar. A Rede Ubuntu carregará sempre a chama de esperança que o Padre Jaime acendeu em nós e essa chama ficará cada vez mais forte. Obrigada por tudo, Padre!”

No país em que um jovem é assassinado a cada 17 minutos (Atlas da Violência 2021), a continuidade de toda a mobilização segue sendo necessária. 

Nós, jovens periféricos, merecemos o direito à vida e a uma vida com oportunidades. 

Por ter levantado sua voz em nossa defesa, deixamos aqui ao padre Jaime Crowe o nosso muito obrigada.


Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Elvis Justino explica como a LGBTfobia afeta a saúde mental da população LGBTQIAPN+

0

Para desenrolar sobre o impacto da LGBTfobia na saúde mental da população LGBTQUIAPN+, o Desenrola Aí entrevista Elvis Justino, diretor adjunto da Parada LGBT de São Paulo, para compartilhar uma série de reflexões sobre como esse cenário interfere na qualidade de vida da comunidade LGBT nas periferias.

A depressão e o transtorno afetivo bipolar são exemplos de transtornos mentais causados pela ausência de cuidados com a saúde mental. Entretanto, no caso da população LGBTQIAPN+, esse problema é ainda maior, mesmo com a Resolução nº 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que torna ilegal práticas de psicólogos e terapeutas que favorecem tratamentos como a “cura gay” durante o atendimento de pacientes, essas recomendações ainda surgem como “solução” para a saúde mental de pessoas LGBT. 

Segundo Elvis Justino, esse contexto aproxima essa população do suicídio, que é fruto de uma série de complicações emocionais  impulsionada pela ausência de acompanhamento profissional para cuidar da saúde mental.

“Tem psicólogos que são defensores da corrente da cura gay […] que se utilizam de casas terapêuticas, que acabam sendo lugares de tortura”

Elvis Justino, diretor adjunto da Parada LGBT de São Paulo

Este é o quinto episódio da primeira temporada do Desenrola Aí, o programa de entrevistas do Desenrola e Não Me Enrola que busca descomplicar assuntos relevantes para a vida da população negra e periférica. Nesta temporada, vamos abordar sobre o direito à vida e a luta da população LGBTQIAPN+ nas periferias. O Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e a Fluxo Imagens. 

Sobre o Desenrola Aí 

​O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. Nessa primeira temporada vamos abordar sobre os direitos, à vida e a luta da população LGBTQIAPN+ nas periferias. O Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

“Por conta de política muitos alimentos ficam caros”, diz criador do projeto Nutri Favelado

0

Percebendo a falta de conexão entre políticas públicas, debates científicos da faculdade de nutrição e a realidade social e econômica dos moradores das periferias e favelas, José Carlos, 26, morador de Piracicaba, interior paulista, fez uma todo o conhecimento necessário para criar o Nutri Favelado, um perfil de Instagram que apresenta de forma “favelada” o debate sobre o direito à alimentação.

Desde o início da sua caminhada, o nutricionista já sentia que dentro de sala de aula não se encaixava, não somente na parte social, mas também na forma como era ensinado o que e como deveria ser uma alimentação correta.

“Não me situava muito naquilo que estava sendo ensinado. Estudávamos sobre o corpo, proteína, o que pode ou não comer e deixavam de lado as condições que nós, moradores das periferias, temos de fato para fazer uma refeição”

José Carlos, nutricionista e criador do projeto Nutri Favelado
Atividades realizada com o grupo de Juventudes do SESC 24 DE MAIO, região central de São Paulo. (Foto: Renata Teixeira)

O ativista ainda reforça que dentro da academia é ensinado como lidar com uma pessoa com uma determinada condição social, mas quando chegavam pessoas abaixo daquilo que era estipulado, não sabiam como orientar.

A partir desta visão crítica, o Nutri Favelado gera debates e reflexões que são de interesse dos moradores da quebrada, a fim de aproximar os seguidores da plataforma digital de assuntos que giram em torno do caminho que o alimento faz até chegar em suas mesas, tudo isso, através de muito estudo traduzido de forma simples e acessível para todos.

“Muitas coisas que eu via em sala de aula, estavam distantes do que eu via nas ruas”

José Carlos, criador do projeto Nutri Favelado

“O Instagram me deu mais liberdade para me expressar. Tem um problema de fome batendo na porta e eu tenho o conhecimento, então o objetivo é amenizar os problemas dos meus de uma forma simples”, explica José.

Filho de catadores de latinha, ex-motorista da Uber e hoje nutricionista formado pela Universidade Metodista de Piracicaba e pós graduado em nutrição vegetariana e vegana, José uniu o conhecimento acadêmico com sua realidade socioeconômica, para trazer informações e provações sobre o que é comida e como ela está totalmente ligada à política e a condição de vida dos moradores das periferias e favelas.

Política e alimentação saudável

A lei 11.346, de 15 de setembro de 2006, cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que tem como dever, o direito de assegurar uma alimentação adequada e de qualidade para todos. Além disso, a Constituição Federal reconhece a alimentação como um direito social de todos os brasileiros. Mas tudo isso, assegura de fato a população periférica?

Em 2018, o Brasil retornou ao Mapa da Fome da ONU, com a chegada da pandemia, o cenário se agravou, conectado a uma profunda crise política, fatores que segundo José estão intimamente ligados.

“É por conta de política que muitos alimentos ficam caros, inacessíveis, e é nesse momento que ficamos desprotegidos de políticas públicas e começamos a ver muitas pessoas passando fome, comendo somente ultraprocessados e ficando cada vez mais doentes. Nesse momento entra a minha fala de fazer com que as pessoas entendam os caminhos que os alimentos fazem até chegar em suas mesas”, ressalta José.

Impactos na juventude

Através deste trabalho nas redes sociais, José Carlos está conseguindo compartilhar conhecimentos sobre como conseguir comer bem e adaptar essa demanda dentro da rotina agitada dos moradores das periferias e favelas.

Conversamos com a Isadora da Silva de Melo, 25, moradora da Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo e estudante de gestão de resíduos na EACH USP Leste, para saber como tem sido sua experiência passando com o nutricionista José Carlos.

“Decidi buscar um auxílio alimentar com um especialista para que conseguisse ter uma alimentação completa dentro da minha rotina e realidade”

Isadora da Silva de Melo, estudante e moradora da Cidade Tiradentes

Isadora também conta que parou de consumir carne há 6 anos, mas somente há dois anos se tornou vegana e através dessa mudança alimentar, sentiu necessidade de buscar auxílio com um especialista.

A moradora da Cidade Tiradentes relembra que dentro de casa, sua mãe passou algumas vezes no nutricionista através do SUS e quando tinha 10 anos, também chegou a fazer um acompanhamento, porém sofreu gordofobia pelo próprio nutricionista.

“Segundo os profissionais de saúde, eu era considerada uma criança acima do peso. Desde pequena tive alguns problemas com alimentação. Eu lembro que o nutricionista disse que eu iria passar a vida inteira triste e gorda se eu não mudasse minha alimentação”

Isadora da Silva de Melo, estudante e moradora da Cidade Tiradentes

Atualmente, Isadora, consegue seguir uma alimentação saudável e acredita no Veganismo Popular, acessível para todas as classes e raças. Além disso, a jovem conta que na parte econômica ela sentiu uma grande diferença, já que através dos legumes e verduras, ela consegue trazer variedades de consumo, o preço é mais barato que uma carne, e de fácil acesso em feiras livres.

“A gente sempre tenta orientar a comer bem conforme suas condições financeiras. As pessoas associam o ser saudável com comer algo sem açúcar ou nozes, o que só distancia a população, por isso sempre tento ao máximo voltar a alimentação saudável ao arroz, feijão, frutas, legumes e verduras. O mais difícil é adequar a realidade, mas tendo o básico, é possível”, conclui o nutricionista.

Campanha Elas Transformam: construindo caminhos e ações

0

O movimento Elas Transformam é uma iniciativa do projeto MUDE com Elas que mobiliza ações e campanhas de combate ao racismo e ao sexismo no processo de inserção juvenil no mundo do trabalho.

Antes de tudo peço licença aos leitores de minhas colunas, meus temas são gerais e desde 2020 busquei trazer reflexões para possíveis debates, contudo, resolvi também falar sobre ações que implementam importantes mudanças e podem ser nossa nova forma de criar diálogos com as juventudes.

Sendo assim, vim apresentar o Mude com Elas, um projeto que nasceu em 2020 e é implementado pela Ação Educativa, tem colaboração com a Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em São Paulo (AHK São Paulo) e possui apoio da Terre des Hommes Alemanha (TDH), responsável pela coordenação geral do projeto e co-financiadora junto com o Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha. 

O projeto foi planejado pensando a entrada desigual dos jovens no mundo do trabalho e junto a isso os marcadores de gênero e raça, dentro do cenário da falta de políticas públicas, inserção desigual, sobrecarga, racismo entre outros, seria necessário criar estratégias para garantia dos direitos dos jovens e principalmente das jovens mulheres negras que são extremamente afetadas negativamente por essa dinâmica.

Assim o Mude se estruturou em algumas frentes envolvendo: incidência com a criação de uma parceria multiatores, envolvendo a sociedade civil, poder público e setor privado, e também uma iniciativa piloto de inserção de jovens mulheres negras nas empresas parceiras da AHK, prevendo formação técnica e cidadã e sensibilização de colaboradores de empresas alemãs.

Desde o lançamento, o projeto vem se unindo a diferentes atores sociais e políticos, além de refletir sobre a formação das jovens que fizeram parte desse aprendizado e suas entradas no mercado de trabalho.

Em 2021, o projeto conseguiu atuar para a criação de uma Subcomissão de Juventude dentro da Comissão de Finanças e Orçamento e desde então a Comissão instalada tem sido uma maneira de levar até o poder público as problemáticas enfrentadas pelos jovens de periferia, em especial as jovens mulheres negras.

Pensando em toda essa trajetória, o projeto construiu a maravilhosa Campanha Elas Transformam que foi lançada em 1 de Maio, o dia do trabalhador.

O movimento Elas Transformam é uma iniciativa do projeto MUDE com Elas que mobiliza ações e campanhas de combate ao racismo e ao sexismo no processo de inserção juvenil no mundo do trabalho. O projeto MUDE com Elas tem como realizador a Ação Educativa, Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em São Paulo (AHK São Paulo) e o escritório de Terre des hommes Alemanha (Tdh).

A Campanha busca um diálogo com as empresas e seus pares para que sejam realizadas mudanças efetivas dentro do mercado de trabalho como um todo, não somente no RH.

Falar sobre jovens mulheres negras e mercado de trabalho também é tocar na trajetória das nossas jovens de periferia que estão agora iniciando a sua jornada. Então convido aos leitores interessados a procurarem e apoiarem essa luta! 

Por fim, deixo o convite para o evento “Encontro de Juventudes “Orçamento e Políticas Públicas” que acontecerá no dia 24 de Junho de 2023, das 13h30 às 17h, no Auditório 1º de Maio, no 1º andar da Câmara Municipal de São Paulo: Viaduto Jacareí, 100 – Bela Vista, São Paulo – SP, Palácio Anchieta. 

Que um dia nossos jovens possam sonhar

Que a morte desencontre nossa vida

Para que o horizonte seja um passo para construção 

E não o fim cinza

Agnes Roldan

“Através da pipa parei de beber”: brincadeira de infância muda estilo de vida de morador da periferia

0

Em um final de semana, a equipe Pipeiros do Ipava, reúne cerca de 30 pessoas para praticar a tradicional brincadeira de infância de empinar pipa em um terreno no Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo. Para Adriano Magalhães, co-fundador do coletivo de pipeiros, a atividade é uma questão de autocuidado.

O objetivo no início era resgatar a brincadeira de infância, um costume de diversão que, embora tenha marcado sua vida, não era aprovado pelo pai, que considerava que isso era coisa “de quem não tinha o que fazer”.

“A sensação de correr atrás do pipa é de liberdade, sinto que vai me fazer bem”, afirma Magalhães, morador da Cidade Ipava, periferia da zona sul de São Paulo.

“Três varetas, papel de seda e a rabiola são a diversão da periferia”

Adriano Magalhães de Siqueira, presidente da equipe Pipeiros do Ipava
Adriano transformou os finais de semana ao lado da Equipe Pipeiros do Ipava em momento de autocuidado e bem estar com amigos e filhos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Com a notícia da criação da equipe Pipeiros do Ipava se espalhando, novos membros chegaram – hoje são cerca de 80 – e empinar pipa passou a mudar para melhor a rotina dos finais de semana do grupo de amigos.

“Através da pipa mudei o estilo de vida pra melhor, parei de beber, não falo palavrão, me tornei mais educado”, afirma Magalhães, que durante 10 anos ingeriu bebida alcoólica excessivamente.

“Nos festivais que faço com a minha equipe não tem nenhum tipo de bebida, por exemplo, justamente por todos saberem do que já passei — e alguns deles também. Todo mundo respeita muito”, conta o pipeiro.

Adriano incentiva o resgate de brincadeiras de infâncias para mostrar as crianças que existem outras formas de diversão e interação, além do celular. (Foto: Arquivo Pessoal)

Resgate de infâncias

Para Magalhães, presidente da equipe Pipeiros do Ipava, o resgate da infância é um impacto importante provocado pela pipa nas crianças de hoje. Para ele, vê-las brincando na rua e saindo da frente das telas de celular e televisão é primordial para o desenvolvimento e criação de memórias desta fase da vida.

“Minha filha tem 11 anos e hoje tem o celular da moda, mas na minha época era diferente, minha diversão era outra e eu fico feliz quando vejo que ela faz coisas que eu fazia, como cair de bicicleta e se machucar, ela tá vivendo”, relata o pipeiro.

“Quero mostrar como é bom ser feliz e com pouco, trazer de volta a essência das brincadeiras do passado”

Adriano Magalhães de Siqueira, pipeiro

Além do resgate do que foi a sua própria infância com os amigos nas ruas e lajes das periferias da zona sul de São Paulo, o presidente da equipe Pipeiros do Ipava entende que sua missão é apresentar outras brincadeiras para as crianças, que sejam interativas e sem um grande custo para os pais.

“Com 1 real o moleque já pode ter uma pipa e se divertir. Eu comento sempre com a minha esposa sobre isso de a gente querer trazer isso de volta, pedra por pedra e quem sabe construir um castelo. E não é só sobre pipa, estamos trazendo brincadeiras das antigas: esconde-esconde, pega ladrão e são brincadeiras que não tem um custo, mas tem valor”, finaliza.

Terra enquanto direito: sem demarcação, não existe democracia #10

0

Trocamos uma ideia com o Juão Nÿn e o Dustin Farias, artistas que fazem parte do Coletivo Estopô Balaio, que falaram sobre a peça Reset Brasil, uma produção que reflete sobre a memória e luta indígena no território da zona leste de São Paulo.

A partir dessa troca, o episódio reflete sobre o direito à terra a partir da perspectiva da população que é anterior ao que chamamos de Brasil, o olhar de quem já estava aqui, os povos indígenas. 

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube

Ficha técnica:
Roteiro, apresentação e entrevistas – Evelyn Vilhena
Distribuição – Thais Siqueira e Samara Santos
Produção audiovisual – Pedro Oliveira
Identidade visual – Flávia Lopes
Vinheta e edição – Jonnas Rosa 
Nesse episódio usamos trechos do áudio “Trem-Ato” que faz parte da peça Reset Brasil do Coletivo Estopô Balaio que teve Direção Musical, Edição e Mixagem por Rodrigo Caçapa
Voz no trecho exibido – Ane Pankararu
Foto da arte – Cassandra Mello

Educadora aponta limitação de políticas públicas para pessoas com deficiências ocultas nas periferias

0

Luciana Viegas fala sobre a importância de pensar políticas públicas para pessoas com deficiências ocultas levando em conta as relações entre raça, gênero e território.

“O autismo é uma pauta muito mercadológica, porque envolve terapeuta, envolve psicólogo, envolve saúde, medicina privada”, segundo Luciana, essa é uma das dificuldades que pessoas com deficiências ocultas enfrentam ao longo da vida. Luciana Viegas, é uma mulher negra, ativista dos direitos humanos, educadora popular, autista nível de suporte um e também fundadora do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI).

Luciana atribui o seu diagnóstico tardio, aos 25 anos, como parte dessa característica mercadológica do autismo. “Eu tive rede e capital financeiro para bancar uma avaliação caríssima. Eu juntei dinheiro porque eu não aguentava mais. Eu precisava saber”, afirma Luciana, 29, que é moradora da favela do Mangue, em Pirituba, região norte de São Paulo.

Durante esse tempo todo que eu fiquei sem diagnóstico, [foi] muito por ser uma mulher negra, isso eu tenho muito certo na minha cabeça, porque quando a gente fala em autismo, você não vê uma pessoa preta autista. 

Luciana Viegas, educadora popular, autista nível de suporte um e fundadora do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI).

A educadora afirma que quando identificou a violência por trás desse processo do diagnóstico, compreendeu o racismo presente nesse contexto. “Aquele olhar violento que os médicos tinham sobre mim tinha um fator de raça e gênero fundamental. Ser uma mulher negra autista tem impacto, porque a gente não tem acesso ao diagnóstico”, aponta.

O termo deficiência oculta abrange todas as deficiências que não são aparentes e que por conta disso se tornam invisibilizadas. Como surdez, autismo, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), esquizofrenia, uso da bolsa de colostomia, fibromialgia, entre outras.

Luciana pontua que quando esse contexto mercadológico envolvendo deficiências se choca com as realidades que há nas periferias “é desesperador”. 

A educadora conta sobre a dificuldade também no processo de diagnóstico do seu filho Luiz, de 6 anos. “O médico falou ‘se seu filho não tiver uma terapia de 40 horas, ele não avança.’ E a terapia de 40 horas é 7.000 reais por mês. Como que a mãe pobre e periférica vai pagar?”, questiona a fundadora do Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), que também é mãe da Elisa, de 4 anos.

Luciana afirma que a prioridade no desenvolvimento de seu filho Luiz, que é um menino negro, com autismo de nível três de suporte, está pautada em uma questão de sobrevivência. 

“Uma das coisas que a gente mais pega firme com ele [Luiz] é a comunicação. Ele precisa [se] comunicar, porque se ele for parado por alguma batida policial, ele precisa comunicar de alguma forma, ele não fala, essa é a minha maior preocupação. Só preciso que meu filho volte vivo para casa”, afirma. 

Políticas públicas

Nesse processo, Luciana Viegas menciona sobre os cordões de identificação de pessoas com deficiências ocultas que estão em circulação. “O cordão ajuda sinalizar publicamente que você é uma pessoa com deficiência”, afirma.

Junto a isso, há também a sinalização de atendimento prioritário, com a adição do símbolo do Transtorno Espectro Autista, mais conhecido como TEA ou apenas autismo.

O cordão com figuras de quebra-cabeça e o símbolo do infinito, ambos coloridos, são para identificar especificamente pessoas autistas. O Cordão de Girassol abrange todas as deficiências ocultas.

Luciana afirma que para compreender o que essas sinalizações significam é preciso entender o que é deficiência.“Deficiência é a limitação em contato com a sociedade e [a partir disso] se cria uma barreira. Um exemplo: eu sou autista, não falo, só que eu estou numa sociedade completamente oralizada. Então, quando a sociedade só tem uma forma de comunicação, mesmo existindo outras, a sociedade criou uma barreira comunicacional e esse contato gera a deficiência”, aponta.

Além do acesso ao acompanhamento médico, pessoas com deficiências ocultas precisam lidar, principalmente, com equipamentos públicos que ainda não oferecem o suporte necessário.

No transporte público de São Paulo, por exemplo, alguns ônibus circulam com uma sinalização para identificar prioridade para as pessoas, mas Luciana aponta uma grande brecha nessa comunicação.

Aquela fita com o quebra-cabeça, aquilo foi criado por pais de autistas lá nos Estados Unidos, fazendo com que eles colocassem o autismo como um problema a resolver. Por isso o quebra-cabeça com as peças [que] precisam encaixar. [Assim] você trata a subjetividade da pessoa autista como um problema, então aquilo não é representativo.

Luciana Viegas é autista e fundadora do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI).
No Brasil, o cordão de identificação de pessoas com deficiência oculta foi regulamentado em apenas alguns estados. Em São Paulo, o Projeto de Lei (PL) 12/2023 está em tramitação e prevê a regulamentação do Cordão de Girassol. 

A Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência (SMPED) aponta que, no momento, a única identificação regulamentada na cidade de São Paulo é a da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo. A cidade regulamentou em 2022 a emissão da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista – CIPTEA. O documento é emitido gratuitamente pela SMPED através do Portal SP 156 e nos postos de atendimento presencial do serviço Descomplica SP.   

Estabelecimentos públicos e privados que disponibilizam atendimento prioritário, conforme a lei estadual nº 16.756, de 2018, devem incluir nesse atendimento pessoas com autismo e sinalizar isso, assim como a sinalização que há em assentos preferenciais nos transportes públicos de São Paulo, que agora também contêm a figura da fita com quebra-cabeça, símbolo mundial da conscientização sobre o TEA. Essas sinalizações são exclusivamente para pessoas com autismo e não incluem outras deficiências.

Luciana ressalta a efetividade do uso do cordão de girassol, mas pontua que a população de modo geral não sabe o que o cordão significa. No entanto, a função do cordão não se esgota apenas no sentido da identificação perante a sociedade, o uso do cordão contribui, principalmente, como parte de um processo de auto identificação.

“Entender a importância do cordão e o uso dele por quem de fato tem deficiência é um processo de auto identificação. Um processo não só político, mas de identidade. Então, sim, você pode ter acesso [ao cordão] em qualquer lugar, mas aquilo precisa ser usado por pessoas que de fato têm uma  deficiência”, coloca Luciana Viegas, ativista dos direitos humanos e educadora popular.

Luciana ainda chama a atenção para a importância de escutar as pessoas com deficiência sobre barreiras e necessidades, sendo essencial que essas narrativas sejam consideradas nos processos de tomadas de decisões. “Não deixar as pessoas com deficiência falar gera um impacto muito profundo no pensamento de políticas públicas”, finaliza.