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A periferia do esperançar

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Em um dos momentos mais difíceis que já vivemos na periferia a esperança floresce, ela tem rostos, tem histórias, tem lágrimas e tem muitas mãos. 
Foto: Pedro Oliveira

Mês passado, tivemos a comemoração dos 99 anos de Paulo Freire na América Latina, mesmo remotamente pude observar e refletir que a periferia exerce na prática esse esperançar, somos as manifestações mais puras do não desistir, do lutar, de pensar coletivo.

Ano passado, observei muita desesperança. As pessoas viam uma perspectiva onde tudo só poderia piorar. Contudo, com tantos jovens de periferia na universidade, com tudo que os coletivos conseguiram mobilizar para manter a periferia viva neste momento, com tantas histórias que não estão na televisão porque não falam de morte, não falam dos nossos números de morte, eu não acredito que tudo acabou.

Relembrando a construção da periferia vemos que construímos tudo sozinhos, nossas casas, nossas ruas e nossos comércios, na década de 90 o Jardim Ângela foi considerado o bairro mais violento do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU) com uma taxa de homicídio de 98 para cada 100 mil habitantes. A partir de iniciativas dos próprios moradores e de instituições como a Sociedade Santos Mártires, CDHEP – Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo e organizações como associações de bairro a violência diminuiu e foi possível sonhar com mais calma.

Desde lá conquistamos muito e nos tornamos referência em cultura, em luta popular e agora podemos ver os nossos também na universidade. Quando relembro tudo isso só penso em Paulo Freire. O que mais seria o seu legado se não luta, educação popular e coletivo? A esperança mora no olhar dos jovens vendo seus amigos na universidade, no cuidado dos pais que choram ao ver que seu filho realizou um sonho mesmo sendo difícil e na nossa constância de revidar as violências do Estado de forma forte, prática e ativa.

Na periferia mora também a filosofia Ubuntu, uma filosofia africana que fala sobre a humanidade ser o coração da unidade, a periferia é seu próprio coração e pulsar, somos coletivo e por isso ainda estamos lutando para que os nossos vivam. Nós ainda vivemos a incerteza e tristeza da falta de políticas públicas, contudo também enxergamos uma luz por todas as conquistas que já tivemos.

A esperança mora em cada beco e viela onde crianças correm, riem e brincam, onde jovens felizes voltam para casa, onde pais voltam cansados do trabalho.

É difícil ter esperança vendo que ainda somos os que mais morrem, os que mais lutam e os que estão no fronte da vida, porém a esperança de Freire nos trará justamente essa perspectiva de não desistir, de continuar e transformar no coletivo. Esse texto além de ser uma forma de lembrar o legado da Educação Popular que valoriza os saberes da periferia e que se constrói com lutas, é também um texto para que não esqueçamos que o opressor já não domina completamente nossos corpos, não ficamos parados, a periferia jamais parou.

O único violento é o Estado!

Em 2020, tivemos um recorde de mortos pela PM, mesmo com a quarentena que retirou boa parte da população das ruas o Estado seguia matando pela falta de assistência no combate ao COVID-19 e também nas abordagens policiais que inclusive foram violentamente feitas contra crianças negras. Nessa história, a periferia nunca foi a fonte da violência e sim o Estado. Parece estranho pensar que o governo durante uma pandemia se ocupou em privilegiar empresários e quem supriu as necessidades da periferia foram organizações voltadas e construídas para e por ela.

Em meio a tanta violência ainda é possível sonhar? Apesar de todas essas violências acontecendo juntas eu vejo uma esperança muito grande no que já fizemos e estamos fazendo. Semana passada ouvi um audiolivro feito pelo coletivo O Corre que se chama “O inimigo invisível” e conta uma história que em meio a uma pandemia possuí esperança. Além disso ele informa as pessoas e promove um reconhecimento. Eu me vi em cada personagem da história e isso não poderia me gerar outro sentimento que não esperança.

Em meio à crise causada pelo descaso do governo, os cursinhos populares fizeram um trabalho potente em manter a esperança viva e eu vi Paulo Freire em cada um desses coletivos, eu vi o esperançar em cada uma dessas quebradas, nós somos uma potência!

Eu insisto em dizer que o sonho mora aqui, o sonho mora no Jardim Vera Cruz, no Jardim Horizonte Azul, Jardim Capela, Jardim Jacira, Jardim São Luís, Capão Redondo, Morro do Índio, Campo Limpo e em tantas outras quebradas do sul, leste, oeste e norte.

A esperança mora em você que tirou um tempo para ler até o final. O esperançar de Freire vive e cresce na periferia! Somos luta, coração e transformação.

Pessoas pretas e periféricas irão transformar a indústria da tecnologia

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Conheça os ‘devs periféricos’, jovens moradores de periferias e favelas que estão tendo a oportunidade de compreender como as questões de raça, classe, gênero e território irão moldar o pensamento e a atuação profissional de uma nova geração de profissionais de tecnologia da informação.

Gilmar Cintra, programador e estudante de engenharia da computação.

Ao relembrar a infância vivida na Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo, o programador e estudante engenharia da computação Gilmar Cintra , 32, afirma que o tradicional futebol na quadra com os amigos era deixado de lado para conhecer e vivenciar os primeiros contatos com a ciência e a tecnologia. “Em vez de ir em uma quadra com meus amigos, a gente ia em uma estação de ciência”, conta ele.

Após esse primeiro contato com o universo da tecnologia, Cintra afirma que foi na infância que surgiu o interesse pela ciência da computação. “Aí surgiu essa paixão por computação e quando você acha que acabou, que é só aquilo sempre surge algo novo”, complementa a recordação.

Porém a paixão pela ciência da computação de Gilmar vem acompanhada de uma frustração. Ele acredita que a tecnologia que poderia ser usada para resolver problemas da sociedade, no entanto, ela está sendo utilizada para produzir ainda mais desigualdades sociais, criando uma falsa sensação de evolução e ignorando problemas básicos.

“A gente tem famílias que ainda passa fome. E tem gente que ainda quer fazer entrega de drone. A gente precisa primeiro resolver esses problemas, que eles são uma coisa básica que não deveria nem existir”, ressalta o programador.

Após essa crítica sobre o mercado da tecnologia, o programador levanta outro questionamento: “como que a gente vai pra frente se tem muita gente que não tem nem saneamento básico?”

Diante das vivências e questionamentos do programador, outros aspectos importantes do processo de formação de profissionais de tecnologia vêm à tona, como por exemplo, o ambiente universitário que forma os profissionais do futuro, mas ainda pecam nas questões de diversidade. “Todos meus professores são brancos, em grande maioria homem, só vejo três professoras mulheres dentro do curso e reforço, todos são brancos”, afirma Gleyce Karen, 19, moradora de Poá, cidade da região Metropolitana de São Paulo.

A estudante de Sistemas de Informação conta que a falta de representatividade no curso também é outro problema que gera impacto no aprendizado. “Tenho dois professores que são de outros países, países vizinhos do Brasil e falam espanhol. Más dentro do curso não há diversidade e isso me entristece, pois não me vejo representada”.

Karen se mudou de Poá para a cidade de Dourados, em Mato Grosso do Sul, para estudar na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Ela relata que mora em um bairro rico na cultura indígena, mas o racismo velado dos moradores brancos ainda a persegue. Em 2019, assim que ela chegou à cidade, a estudante estava passando em uma das ruas do território e viu uma senhora olharem sua direção e falar para uma pessoa próxima a ela: “olha a negrinha” e dar risada na sequência.

Após vivenciar essa situação, Karen relembra que pensou seriamente em desistir dos estudos. “Pensei em voltar para São Paulo e desistir de tudo, más se desistisse seria menos uma mulher preta ocupando um espaço onde majoritariamente é composto por homens brancos, então permaneci e resisti assim como meus ancestrais”, argumenta.

Tais fatos relatados pela estudante sobre a discriminação racial que vivenciou contribuem diretamente com a permanência ou não de pessoas negras nesses lugares. Karen atribui sua insistência de permanecer na cidade e na faculdade onde não consegue se reconhecer nos professores e também nos estudantes ao objetivo de desenvolver suas habilidades como programadora.

“Eu gosto muito de programar, desenvolver um software, ver que um programa que eu me esforcei pra fazer está rodando bonitinho”, diz a estudante de forma entusiasmada, enfatizando que acredita que esses aprendizados podem mudar as quebrada e os moradores. “Acredito que a tecnologia muda o mundo, transforma e ajuda pessoas de várias formas e eu sempre vi a necessidade de fazer algo pelas pessoas de onde eu vim e no meu território. Encontrei na área de tecnologia da informação essa possibilidade”.

Algoritmo racista

Ao falar sobre as propagações de ódio e o viés do algoritmo que a partir da coleta de dados dos usuários aprende preconceitos com a ajuda da inteligência artificial, formando um algoritmo preconceituoso, o programador morador da Brasilândia afirma que isso só acontece por que a sociedade é racista. “Isso é uma evidência que nossa sociedade realmente é racista, não tem como negar isso”, comenta o programador morador da Brasilândia.

Uma das propostas pensada pelo desenvolvedor para lidar com esse tipo de problema é criar programas que aprendem e falam como a periferia. “A única forma de uma maneira concreta seria desenvolver uma inteligência artificial através dos inputs das pessoas que realmente moram em zonas periféricas”, conta Gilmar.

Ele propõe em construir um programa que aprenda o comportamento de moradores da periferia e transforma isso em dados que alimenta a inteligência artificial. “Se você pegar realmente as pessoas que moram nesses lugares, ou somente as pessoas negras, você consegue desenvolver uma inteligência artificial que não seja racista, que não é racista, porque espera-se que não seja inputs racistas e através desse aprendizado não racista a gente consegue desenvolver uma inteligência artificial que não seja racista e não fique julgando”.

Quando pensa na junção de suas vivências como morador da periferia com seus conhecimentos como desenvolvedor, o programador ressalta que os moradores possuem uma ferramenta muito importante para mudar a vida na periferia. “Eu imagino as comunidade no futuro com um projeto de reurbanização, ela tendo cabeamento elétrico, fibra ótica, telefonia, tudo embaixo da terra, um sistema de transporte eficiente”, imagina o desenvolvedor, fazendo uma releitura de como a tecnologias voltadas para as periferias pode impactar no seu desenvolvimento no futuro.

Já para a estudante de Sistemas de Informação do Mato Grosso do Sul, a imaginação do programador da Brasilândia só se tornará realidade se mais pessoas pretas atuarem no mercado da tecnologia da informação. “Com certeza acredito que com mais pessoas pretas dentro da área, o povo preto teria mais acesso à internet, teríamos mais aplicativos voltados para nós, aplicativos que facilitam ainda mais as nossas vidas”.

Ela finaliza a entrevista afirmando que outro passo fundamental para concretizar esse futuro para a quebrada é criar uma rede de ‘devs periféricos’ para construir, disseminar e ensinar novas tecnologias. “Acredito que o meu dever é repassar conhecimento a todos e inserir outras pessoas pretas da periferia e das favelas dentro da área tecnologia”.

Empreendedorismo sem mesmo saber o que é isso

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 Da panfletagem nos portões aos grupos do Face, a periferia arruma uma forma de mostrar serviço e fomentar o comércio local.

Jardim Ibirapuera – Zona Sul – SP/18 – Foto: DiCampana Foto Coletivo

“Trabalhe enquanto eles dormem”. A frase que virou meme já é praticada na quebrada desde o início dos tempos. Seja com o deslocamento das bordas até o centro para trabalhar nas empresas ou com uma banquinha de verdura no ponto de ônibus, a quebrada sempre buscou formas de arrecadar a renda para manter as contas em dia, se alimentar e tirar um lazer. Hoje o espaço fica reservado para falar dessa segunda opção. O nome dela? Empreendedorismo. 

Dados são importantes, mas não precisa ir muito longe para ver que o empreendedorismo local cresceu (e muito), em virtude do índice de desemprego causado pela pandemia. Garagens de casa deram lugar a mercadinhos, barbearias, adegas e todos os comércios que se possa imaginar. E como mostrar serviço com a concorrência entre vizinhos e vizinhas aumentando? Em tempos não tão distantes era muito comum ver folhetinhos de pizzarias e mercadinhos pendurados no portão. Isso ainda é bem comum, mas, partindo do princípio que até para imprimir esses papeizinhos custam uma grana, o jeito é usar o boca-a-boca, ou a “rede-a-rede”. Nesse caso a rede social.

Talvez eu tenha chegado um pouco tarde e isso que estou relatando não seja nenhuma novidade, mas eu fiquei encantado quando, durante a pandemia, me colocaram em um grupo do Facebook que levava o nome do bairro vizinho de onde eu moro: “Cidade Ipava”. Apesar de números de 2019 mostrarem constante quedas nos números de usuários (5% de usuários a menos em relação ao ano de 2017, segundo o Datafolha) , aqui para esses lados quem empreende não está muito afim de sair de lá não. 

A troca parece justa: ao mesmo tempo que muitas pessoas aparecem pedindo dicas de lugares que entregam comidas específicas pelo bairro, os comércios fazem suas postagens oferecendo seus produtos. E comentários não faltam, seja para elogiar, aprovar e comprovar que o serviço oferecido é bacana, ou até mesmo críticas construtivas sobre tempo de entrega, etc, a população está unida, ali naquele espaço digital, para se fortalecer. O grupo não é exclusivo apenas para isso, sempre aparece por lá gente que achou documento em algum lugar, que está procurando um cachorrinho perdido…Mas o que mais bomba são os comércios.

Esse relato é para mostrar que, cabe a nós de periferia, fortalecer o comércio local, seja o vizinho que cresceu com a gente e sonhou a vida toda em abrir seu próprio negócio ou a mãe de família que saía cedo para pegar ônibus para trabalhar e agora fez da sua casa seu comércio. Não é sobre dores e perdas, mas sobre as potências criadas quando a periferia se une.

“Eu e você juntos somos nóis
Nós que ninguém desata.
A rua é nóiz

Emicida

Privatização do SUS prejudica população preta e periférica

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O movimento popular fez avançar os debates para a universalização da saúde e conquista do SUS. Mas a luta pela saúde continua, agora contra a tentativa de transformar em mercadoria um direito fundamental da população, especialmente das periferias

Em julho deste ano, no meio da pandemia de coronavírus, funcionários do Hospital Municipal do Campo Limpo ocuparam a Estrada de Itapecerica para fazer um protesto. Eles se manifestaram contra a terceirização do equipamento de saúde, que deve passar da Prefeitura de São Paulo para a organização social do Hospital Israelita Albert Einstein. Não é a primeira vez que isso acontece: essa possibilidade existe há anos e reflete as tentativas de privatização da saúde pública.

O PAS, Plano de Atendimento à Saúde, foi criado em 1995 pelo então prefeito Paulo Maluf e possibilitava que cooperativas médicas atuassem no serviço público de saúde.

“Já teve outras [tentativas de privatização], mais ou menos há 20 anos, na época do PAS, e de lá pra cá a gente não tem sossego. Sempre estão falando: ‘a OS vai entrar, a OS vai entrar’. Isso é constante, a gente não tem paz”, relata uma auxiliar de enfermagem que trabalha há mais de 22 anos no hospital e que preferiu não ser identificada.

Funcionários do Hospital do Campo Limpo durante a manifestação no dia 14/07/2020

A profissional ficou sabendo da possibilidade do Einstein assumir o hospital na periferia da zona Sul de São Paulo em uma reunião feita pelas gerências. “Por enquanto, ainda não mudou nada. A mudança lá é só por causa da reforma”, explica. “Com a privatização, a gente não sabe ainda se vai continuar no hospital, se não vai”.

Em resposta à manifestação, a Prefeitura de São Paulo divulgou uma nota onde afirma que nenhum funcionário seria demitido ou transferido. Para a auxiliar de enfermagem, isso não é uma certeza. “É claro que o Einstein não vai querer ninguém lá, né? Então, vai mandar a gente para outros lugares”, reflete a funcionária, que diz que ninguém tem garantias de continuidade no trabalho. “Dizem que até dezembro a gente vai continuar lá. Depois, não se sabe”.

O Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch (M’Boi Mirim) tem sua gestão estabelecida por meio de parceria entre a Organização Social de Saúde CEJAM (Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim) e o Hospital Israelita Albert Einstein.

Para a auxiliar de enfermagem, a qualidade do atendimento também pode cair. E ela usa o exemplo de outro equipamento de saúde da região, que atualmente é gerido por uma OS: o Hospital M’Boi Mirim. “No M’Boi Mirim é assim: se precisa de um neuroclínico, vem procurar onde? No Campo Limpo. E quando o Campo Limpo estiver privatizado, vai mandar a população para onde?”, questiona a auxiliar, que já foi contaminada pela covid-19 e se recuperou.

Para o biólogo e professor José Henrique Viégas Lemos, a pandemia de coronavírus evidenciou o problema – e, se não fosse o SUS, o número de mortes poderia ser ainda maior.

“Vimos ainda que nos hospitais classe ‘A’, a porcentagem de mortos é menor do que nos hospitais públicos. Vimos ainda que os convênios estavam fazendo corpo mole para fazer os testes rápidos para detecção da covid-19 e que foi necessária a intervenção do governo para exigir com critérios. Houve até a possibilidade de lista única para internação (utilizaria os leitos privados mais os públicos), pois enquanto nos públicos não tínhamos leitos, nos privados estavam sobrando”, compartilha o professor, que hoje é coordenador na rede de cursinhos populares Uneafro Brasil.

Para quem mora nas periferias da cidade, esse processo de privatização pode interferir em várias camadas.

A população pobre, preta e periférica não pergunta se o médico é do Estado ou da OS, se é concursado ou contratado. Ela quer ser bem atendida, seja por quem for. Infelizmente, ao deixar de fazer esta exigência ideológica, ela permite o avanço da privatização e como conclusão o serviço público privatizado não melhorou. Hoje, a maioria dos hospitais da periferia é gerida por OS ou outro ente privado, e o atendimento continua ruim

José Henrique

Uma conquista em risco

O ano de 1988 é um dos principais marcos na saúde pública do Brasil. Com a promulgação da Constituição Federal, que possuía o objetivo de garantir maior liberdade e direitos aos cidadãos brasileiros, o setor da saúde também garantiu seu espaço como um direito de todos e dever do Estado. Nasceu, assim, o Sistema Único de Saúde (SUS), fruto de muita luta popular.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2006, 70% da população brasileira dependia exclusivamente do SUS. Neste mesmo ano, foram realizados 2,3 bilhões de procedimentos ambulatoriais e mais de 300 milhões de consultas médicas.

Mais de 30 anos depois e com muitos avanços, ainda não é possível afirmar que toda a população é beneficiada adequadamente. E a busca para melhorar o serviço bate de frente com os interesses do setor privado, que tem o lucro como objetivo e se aproveita de brechas na lei para transformar esse direito fundamental em mercadoria por meio da terceirização ou privatização dos serviços.

Para Ana Paula Oliveira, psicóloga e pesquisadora do eixo de saúde do Centro de Estudos Periféricos da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), a terceirização dos hospitais públicos significa tirar a responsabilidade do governo.

“Você coloca [o serviço] na mão de uma [organização] parceira, e essa parceira decide como é o jeito que ela quer fazer. Existe pouca supervisão dos hospitais ou mesmo dos serviços de saúde privatizados. Acontece do jeito que eles querem, não como de fato preconiza”, observa Ana Paula.

Segundo informações da Secretaria Estadual de Saúde e do Portal da Transparência, o Estado de São Paulo tem 38 unidades hospitalares com administração direta (pública) e 13 hospitais geridos por 10 OSS – é quase um terço

A legislação permitia que o Estado terceirizasse atividades que não são finalidade do SUS, isto é, aquilo que não diz respeito ao atendimento direto à saúde do usuário – como portaria, cozinha, segurança, etc. Mas a iniciativa privada se aproveitou das brechas criadas pelo governo federal durante a Reforma do Estado, entre 1994 e 1995, e também da Lei federal 9.637/1998 e da Lei Complementar estadual 846/1998, que possibilitaram a criação de figuras jurídicas privadas sem fins lucrativos, que são chamadas de Organizações Sociais de Saúde – as OSS, ou mais conhecidas apenas como OS.

“O objetivo seria ‘agilizar’ o gerenciamento do equipamento público (hospital ou posto de saúde) contratando sem concurso, captando verba do governo federal e até destinando parte dos leitos e atendimentos aos convênios e medicinas de grupo”, comenta José Henrique.

“A população, que nos anos 1980 brigou pelo SUS, se ‘desarmou’ e pouco se mobiliza juntamente com os trabalhadores. O que temos são hospitais fechando e dando lugar a shoppings”.

José Henrique

José Henrique recorda-se que médicos que ocupavam a direção do Instituto Dante Pazzanese, um equipamento público, também estavam na diretoria da organização privada Fundação Adib Jatene.

“Na época, anos 1980, 1990, 2000, inúmeras denúncias surgiram nos jornais e até no Ministério Público Federal acerca da malversação de verbas que eram destinadas a várias fundações existentes nos hospitais públicos em São Paulo. Apesar disto tudo, as fundações estão firmes e fortes”, lembra ele, que já foi perseguido por denunciar a privatização via fundações privadas neste e em outros hospitais.

A situação dos profissionais na área da saúde

A pesquisadora Ana Paula explica que uma das justificativas para o processo de privatização está ligada à contratação de trabalhadores. “O que muda é que a gestão do Estado é muito precária, porque os concursos públicos são escassos. Ou seja, não tem material humano. Essa é a grande desculpa. Não quer dizer que não tenha dinheiro. Dinheiro tem, mas não tem material humano para poder executar o trabalho, então fica um trabalho sucateado”, conta a pesquisadora.

“Essa é a principal diferença e é a desculpa que o governo tem para poder privatizar. Que eles não conseguem colocar mais pessoas porque tem que ser por concurso”

Ana Paula, pesquisadora do eixo de saúdo do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp

Para José Henrique, a presença da iniciativa privada na gestão de equipamentos que antes eram de responsabilidade total do Estado desarticula a luta dos trabalhadores. “O que acontece é que os funcionários são impedidos de [fazer] organização sindical e manifestação contra as injustiças como longas jornadas, sobrecargas de serviço, baixos salários, etc”, conta.

“O serviço público de saúde é uma conquista dos trabalhadores sindicalizados e dos movimentos populares, mulheres principalmente. As campanhas de vacinação, de saneamento básico e de alimentação nas escolas foram 100% financiadas por recursos públicos e patrocinados pelo setor público. Foi isto que permitiu a redução das taxas de mortalidade infantil, principalmente nas comunidades pobres e periféricas”

José Henrique

Um projeto de saúde preto e periférico

Saúde não é apenas ausência de doença. Mas a precarização do atendimento causa o afastamento das pessoas dos serviços de atenção básica, deixando para buscar auxílio médico em casos graves, como conta Ana Paula.

“Procurar um médico é sinal de morte. Então, o sujeito periférico só vai procurar o serviço de urgência e emergência”, diz ele, se referindo aos hospitais. A pesquisadora complementa: “Aí, chega lá em uma situação da qual pouco se dá pra fazer porque não fez promoção e nem prevenção de saúde”. Ela ainda enfatiza sobre os procedimentos de um hospital serem mais caros do que os procedimentos de uma unidade básica de saúde (UBS).

 “Existe, principalmente agora por causa da covid-19, um aumento da necessidade de ter hospital de urgência e emergência e um pouco investimento em unidade básica de saúde para fazer promoção e prevenção. Então, privatizar os hospitais não é resolver, porque o nosso problema de saúde não está na urgência e emergência. Nosso problema de saúde está na atenção básica.”

Ana Paula Oliveira

Historicamente, o acesso ao serviço de saúde pública faz parte da conquista de muitos movimentos. Com 32 anos de existência, o SUS já possibilitou o acesso a saúde a muitos moradores dos territórios periféricos, mas ainda há muito para se garantir.

A pesquisadora afirma que se analisarmos a construção do SUS, concluímos que é um dos melhores do mundo e que hoje perde apenas para Cuba, onde o poder público possui uma função e lógica diferente.

“Mas o poder público não está interessado [em colocar o projeto em prática], porque o sujeito periférico é [considerado] massa de manobra. Ele não está ali para poder fazer de fato a diferença. Então, quanto mais gente pobre, periférica e preta morrer, melhor para o Estado”, analisa Ana Paula.

Ela também defende a inclusão da perspectiva racial dentro das questões da saúde.

“Nós temos doenças da nossa raça que estão lá no indicador, tem uma portaria falando sobre isso, mas a enfermeira do seu território nunca te perguntou se você tinha essa doença porque ela parte do pressuposto de que todo mundo tem as mesmas doenças na questão da universalidade”, afirma a pesquisadora.

Os caminhos para a construção de um serviço de saúde eficaz para as pessoas, segundo a pesquisadora, passa por pensar o sistema de saúde a partir dos territórios – algo que também é ameaçado com a terceirização e privatização da saúde.

“Você tem o [Programa] Saúde da Família, que você vai ter um médico da sua família, que vai pessoalizar a relação. [Assim,] contempla-se de que as pessoas são diferentes. Mas quando a gente terceiriza o serviço, o objetivo é o que? É produção, é meta para bater, não é saúde para promover”, finaliza Ana Paula.

Ao longo dos anos, a saúde pública no país deixou de ser um privilégio para poucos, e com apoio da luta popular passa a ser entendida como um direito de todos. Hoje, ainda existem caminhos a serem a percorridos na busca da garantia desse direito que, além de ser de livre acesso, também precisa atender às características e demandas periféricas.

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.

Quebrada Maps reúne jovens e crianças para criar uma nova geografia de SP

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Com a educação e o direito à cidade como principal foco de discussões, o projeto reúne professores, jovens e crianças das periferias de São Paulo, para investigar a história de bairros, utilizando ferramentas educativas de mapeamentos cartográficos e geolocalização. 

Foto: Thais Cerqueira

O professor de geografia Wellington Fernandes, 34, transformou sua pesquisa de mestrado em uma metodologia pedagógica capaz de compartilhar técnicas de produção de cartografia e mapeamentos para jovens e crianças, visando contar histórias invisíveis sobre os bairros periféricos de São Paulo, onde os participantes das atividades do projeto residem.

Fernandes conta que o mestrado possui um guia que mostra como trabalhar com mapas, pensando especificamente nas periferias. Uma das inspirações do professor é baseada na cartografia indígena, que traz em sua essência uma linguagem de disputa por território. Logo ele viu que poderia implementar essa lógica, para construir uma nova geografia da cidade.

“Uma geografia conectada com a periferia, conectada com o conteúdo”, define o criador do projeto Quebrada Maps. Ele enfatiza que a partir desse propósito, decidiu levar sua pesquisa para além dos espaços acadêmicos, tornando a escola pública da quebrada em um dos espaços de atuação.

“A cartografia hegemônica não dá conta de contar nossas histórias, aí no rolê com a juventude na escola, a gente chegou aí com a galera do quebrada maps”, afirma ele, relembrando que esse foi o processo para o desenvolvimento da pesquisa até ela ganhar o nome: Quebrada Maps .

Fernandes faz questão de relembrar o momento que entendeu junto com os estudantes qual seria o objetivo da existência do Quebrada Maps. “Vamos por em tona todas as nossas territorialidades das nossas quebradas e nossos lugares no mapa, só que mano o trampo é grande, pois nós temos muita história”, diz.

Ele complementa afirmando a prioridade de disseminar essa metodologia na quebrada. “O lance é que mais pessoas possam fazer isso, então além de fazer um exercício de contar outras histórias, também é de fortalecer que outras pessoas contem a história”.

O processo de desenvolvimento de uma nova cartografia que fale sobre o território passa por uma dinâmica que usa soluções tecnologias de mapeamento e geolocalização vai da teoria à prática. “A gente usa o Google Maps pra fazer as edições necessárias. Quando dá a gente também usa o Open Street Map, que é uma base aberta de dados livres, onde você consegue também editar a base de uma maneira muito mais ampla do que no Google”.

A vivência com os moradores das periferias também se torna um grande diferencial para tornar a cartografia com a cara da quebrada. “A gente fala: aonde você comprou doce tá aí no mapa? Vocês acham que a tia que vende coxinha aqui na frente da escola ia curtir estar no mapa” De repente, a gente pode até perguntar pra ela”, explica o professor, que a partir dessa concepção começa criar um mapa colaborativo com alunos de escolas públicas. 

 “A gente rompe o muro da escola e vai pros galpão de construção dos prédios na favela” 

 “Ao mesmo tempo o fortalecimento da autoestima dos alunos, mas também da construção do sujeito político dele, tipo as meninas que participam , como elas conseguem pensar no mapa a partir do gênero, como ela consegue pensar o mapa a partir de um lugar de cuidado, ou a partir de um lugar de insegurança, é como a gente vai construindo o conteúdo a partir desses indivíduos”, explica Jéssica Cerqueira , 28, moradora do São Miguel Paulista, e uma das educadoras que ministra oficinas no projeto.

Os educadores procuram levar o Quebrada Maps para além dos muros das escolas, para que os estudantes possam falar com mais pessoas, e desta forma, construir e transportar histórias cartográficas do território periférico para o mundo virtual.

Um desses territórios é a Favela do Sapé, localizada no distrito do Rio Pequeno. O bairro passa por um forte processo de especulação imobiliária e isso reflete na qualidade de vida dos moradores da região. “A gente fazia a formação dentro do galpão de construção dos prédios, com a galera ali da região e da Raposo Tavares, a gente rompe o muro da escola e vai pros galpão de construção dos prédios na favela para conseguir dialogar com o território além da escola”, relata Jéssica.

Ao relembrar sobre esse momento ela define: “foi potente demais a gente estar discutindo sobre um lugar que tinha não problemas, como a verticalização da favela do Sapé”.

Um dos motivos dos educadores para desenvolver essa metodologia de mapeamento com que constrói uma linguagem cartográfica da periferia foi justamente o fato de refletir sobre a desigualdade digital , que afeta os moradores das periferias e favelas.

“Se a gente quisesse por exemplo fazer uma trampo do Quebrada Maps de forma digital com os alunos, talvez vários deles não poderia acessar, porque nem todos tem internet. Às vezes demora vários dias pra responder porque tava sem internet”, contextualiza Cerqueira.

Através desta percepção de realidade dos estudantes sobre inclusão digital nas periferias, ela faz um relato sobre um acontecimento na formação com um dos seus alunos. “Eu lembro que na oficina a gente tirava duas ou três fotos e travava grande parte dos jovens, só quem tinha internet na hora chegava na oficina”, relembra a educadora, ressaltando que esse fator acabava distanciando os alunos que não tem plano de celular ou que só coloca crédito a cada seis meses para não perder o número.

A educadora entende que o papel do Quebrada Maps vai além de uma metodologia, mas sim um espaço para criação de repositório de dados cartográficos. Ela já consegue prever em quais situações esses dados poderiam ser utilizados. “Em 2021, é o ano do plano diretor da cidade né e como que a gente consegue de repente reverberar nessa construção, como que a gente discute a cidade como periferia não sendo só o fundão, só aonde as pessoas chegam pra dormir e tomar banho”, questiona. 

 “Eu não sabia o que era o Google Maps até entrar no Quebrada Maps” 

“Eu não sabia o que era o Google Maps até entrar no Quebrada Maps”, relata Júlia Isabel, 15, uma das alunas do projeto. Junto com a descoberta das ferramentas de cartografia e suas funções sociais, a estudante também explorou histórias do seu bairro. O primeiro mapa construído por ela gerou um grande impacto ao perceber a importância dos moradores para o território.

“Através desse mapa eu conheci história da dona Lourdes, que usa plantas medicinais como remédio para fortalecer sua comunidade dentre várias outras história de resistência periférica”, conta Julia, destacando que essa percepção veio logo no primeiro contato prático com a produção de um mapa que ganhou o nome de ‘Revanche da Quebrada’.

Outra estudante, Jennifer Paiva, relembra como ela e seu grupo ficaram chocados quando descobriram a falta de visibilidade de seu território em cartografias virtuais. “Eu me senti desvalorizada, eu fiquei chocada no primeiro momento, e me perguntava por que meu território não estava no mapa, sendo que ela não está no mapa, mas está em quase todos os jornais”, questiona.

A partir desta experiência de se sentir fora do mapa, ele questiona ainda mais o motivo pelo qual seu bairro fica em evidência em programas de noticiário policialescos, mas não aparece no Google Maps. “Eu me vi perguntando também por que ele não aparece no mapa, como aparece no jornal, eles querem mostrar só o que é ruim, não o que é bom, e no mapa a gente pode mostrar o que é bom”, acredita.

Conselheiros de saúde brigam por acesso a direitos no fundão da M´Boi Mirim

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Durante a pandemia, os conselheiros de saúde fiscalizam os serviços públicos em diversos bairros da região para assegurar acesso a direitos sociais básicos para a população local.

Durante a pandemia de coronavírus, os moradores do Fundão da M´Boi Mirim, região do distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, que abriga os bairros de Jardim Capela, Vera Cruz, Horizonte Azul, Vila Calu, Parque Cerejeira e Vila do Sol, presenciaram mais uma vez a triste realidade das periferias e favelas que é o descaso do poder público para fornecer serviços públicos de qualidade.

Em época de eleição municipal, candidatos a ocupar os cargos de prefeito e vereador aparecem em massa nas periferias e favelas para realizar campanha eleitoral e dialogar sobre as demandas da população local. Mas passado esse período, os moradores relatam com indignação que esses representantes do poder público somem dos territórios.

Foi a partir desta consciência política que o articulador comunitário Genésio da Silva, 51, se tornou conselheiro de saúde para fiscalizar equipamento públicos localizados no Fundão da M´Boi Mirim, ele afirma que precisa fazer esse trabalho, porque os moradores não conhecem seus direitos e deveres.

“Eu entrei no conselho participativo da saúde porque eu via uma necessidade da população. As pessoas não têm conhecimento sobre quais são seus direitos, a gente tá tentando sensibilizar as pessoas para mostrar os direitos que temos, e também reconhecer nossos deveres como comunidade, a gente conversa muito com as pessoas que o governo não dá nada de graça para ninguém. Ele apenas retorna com os impostos que pagamos”, afirma.

O conselheiro de saúde atua como articulador comunitário no Jardim Capela, um dos bairros que compõem a região do Fundão da M´Boi Mirim. Ele comenta que o conselho participativo é um dos resultados das lutas por direitos que existem no território há quase duas décadas.

“O conselho participativo nasceu ali por 2002, por lutas nossas, onde entendemos a necessidade de existir um conselho gestor participativo da saúde e nos mobilizamos para enviar a documentação pra secretaria de saúde para poder ser aprovado, e foi”, relembra Silva.

Ela explica que para ser conselheiro é necessário ser eleito pela sociedade civil organizada, a fim de coletar as demandas dos moradores do territórios e tentar resolver junto ao poder público. “A participação do conselho gestor é de extrema importância, porque até então é a pessoa que fica sabendo tudo que acontece, temos a autonomia de fiscalizar os equipamentos, de chegar a um hospital e fiscalizar, de ver o que está acontecendo. É como um fiscalizador da saúde representando o seu território”.

O conselheiro complementa afirmando que a fiscalização foca principalmente na qualidade do atendimento médico oferecido pelas unidades de saúde localizadas nas periferias. “Nós fiscalizamos as unidades de saúde. Nossa discussão é principalmente relacionada às unidades de saúde se tá faltando médico, se está acontecendo a limpeza direito, se está tendo atendimento correto, nós levamos as demandas e tentamos juntos melhorar os equipamentos dos nossos bairros”. 

Como funciona o conselho gestor de saúde no território

Sob administração da Subprefeitura do M’Boi Mirim há cerca de 31 Unidades Básicas de Saúde (UBS), 9 postos de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), 3 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e 2 Prontos Socorros, para atender uma população superior a 560 mil habitantes, formada por moradores dos distritos do Jardim Ângela e Jardim São Luís.

Em meio à pandemia de coronavírus, como ficou a fiscalização do funcionamento e atendimento dos moradores nesses equipamentos públicos? Os conselhos gestores de saúde existem para fazer essa fiscalização e a mediação do atendimento, a partir das demandas de cada território.

O conselho gestor funciona no formato tripartite, ou seja, é dividido em três partes, sendo composto por 50% de representantes da sociedade civil, os usuários, 25% de funcionários públicos dos equipamentos e 25% da administração pública.

A cidade de São Paulo possui uma estrutura forte quando o assunto é conselho de saúde. O município conta com o Conselho Municipal de Saúde, Fundo Municipal de Saúde, a Conferência de Saúde Municipal, as Audiências Públicas de Saúde e os Conselhos Gestores das Unidades de Saúde, que foi promulgado em 1999 e é a instância máxima de política pública dentro dos territórios periféricos.

Outro conselheiro de saúde do Fundão da M’Boi Mirim é o Gilberto Pereira Da Silva, 56, com um histórico de 18 anos atuando pela garantia de direitos sociais para a população local, ele detalha o passo a passo sobre a fiscalização de problemas nos serviços dos equipamentos de saúde. “Essa fiscalização se torna documentos que a gente leva para supervisão técnica de saúde que é nossa supervisão M’Boi Mirim e isso é encaminhado para coordenadoria e chega até Secretaria de Saúde. Nós pedimos as respostas no máximo entre 5 e 10 dias para devolver ao conselho, se não chegar, nos organizamos para ir em grupo na Secretaria da Saúde discutir essa demanda diretamente lá com o secretário do município”.

Ele também explica que devido à pandemia, em alguns casos a fiscalização dos serviços públicos de saúde está acontecendo à distância, mas que isso não impede o diálogo com as unidades de saúde. “Com a pandemia a gente vem fiscalizando à distância. Uma vez ou outra a gente vai na unidade, aqueles conselheiros que podem vão com mais freqüência, mas mesmo assim eu vou sempre que posso e o nosso diálogo é com o responsável pelo equipamento de saúde, ou seja, cada equipamento é composto de um gerente que é responsável por todo aquele equipamento e esse gerente é o presidente do conselho”. 

“O poder público não é atuante na região, normalmente quando aparece é em momento de eleição”

O conselheiro Genésio da Silva comenta sobre as dificuldades que ainda enfrenta dentro do bairro e como isso permanece invisível para o poder público. “O bairro onde eu moro ainda faltam muitas coisas para nossos jovens, nossas crianças, nossos idosos, nós temos poucos acesso à cultura, lazer e esporte, o poder público olha pouco para nós”.

Ela ressalta que os bairros do Jardim Capela, Vila Calu, Vera Cruz, Horizonte Azul, Parque Cerejeira e Vila do Sol são os territórios onde ele atua e que por sinal, representam áreas onde o poder público está mais presente na questão de saúde.

“A gente está em cima, mas falta muito na questão da educação, transporte e principalmente no meio ambiente, nossas áreas verdes estão abandonadas aqui, eu também faço parte do conselho gestor de meio ambiente da subprefeitura M’Boi Mirim, onde a gente tem muita dificuldade para cuidar das nossas praças que já são poucas, mas que temos, não temos zeladoria adequada, limpeza de córrego não temos, temos bastante dificuldade mesmo aqui na região e tudo isso é saúde também, o poder público não é atuante na região, normalmente quando aparece é em momento de eleição”.

Ela enfatiza que quando os conselheiros se unem para fazer reivindicações o poder público se torna omisso. “Quando estamos reivindicando nossas demandas dificilmente somos atendidos pelo poder público aqui na nossa região”.

“Perdemos entes queridos por causa da falta de equipamentos de saúde pública aqui na região”

O conselheiro Genésio comenta sobre o impacto que pandemia trouxe para o território e dentro das unidades de saúde. “Perdemos vários entes queridos por causa da falta de equipamentos de saúde pública aqui na região e em muitos outros territórios de periferia. Estava falando com a gerente da UBS e eu soube que tivemos 1007 infectados somente na área de abrangência de uma unidade com 207 óbitos e com 300 em tratamento, isto é, estamos falando de pessoas cadastradas na unidade que a gente tem acesso e as pessoas que a gente não tem acesso, a ‘população invisível’ que são as pessoas das ocupações desordenadas que temos aqui na região, então esse número hoje é muito maior, e isso é muito preocupante. Temos que nos sensibilizar, fazemos ações para melhorar isso”.

Embora as ações de fiscalização dos serviços de saúde sejam essenciais, o conselheiro conta que o período da pandemia de coronavírus e o estado de abandono dos serviços públicos na região do Fundão da M´Boi Mirim exigiu dele e de outros conselheiros que atuam no bairro uma organização coletiva para realizar uma série de ações de conscientização da população local.

“A gente faz ações de conscientização, estamos nos reunindo entre três e quatro conselheiros para se organizar e preparar nossas ações, a gente está fiscalizando os atendimentos, tanto os voltados para covid-19 quanto os outros. Chegou um ponto que não tinha atendimento nenhum que não fosse para covid, que fechou os equipamentos e não é assim, daí fizemos uma reunião e fomos para cima deles”, relata Silva.

Ele faz questão de ressaltar que a pandemia existe, mas que a população local ainda sofre com doenças crônicas que também levam ao óbito. ” Se não tiver tratamento como por exemplo do câncer, diabetes, depressão, precisa de um acompanhamento, ultimamente estamos discutindo também sobre outras demandas que ainda tem no território e não pode deixar de ter atendimento como dengue e DST´s”. 

 “Aqueles trabalhadores que utilizam o serviço de saúde local conseguem ir à UBS na quinta-feira às 10h ou às 14h?” 

Com um cotidiano devastado por uma série de desigualdades sociais, como falta de direito à cidade, trabalho e renda, saúde, segurança pública, cultura e educação, os moradores das periferias enfrentam outra dificuldade que é ter tempo para participar desses espaços que ajudam a construir melhores rumos para os serviços públicos no território.

“Aqueles trabalhadores que utilizam o serviço de saúde local conseguem ir à UBS na quinta – feira às 10h ou às 14h? A definição da agenda de atividades não é um importante instrumento de viabilização dessas reuniões? A juventude se interessa pelo formato de reunião de 2h sem muitas vezes ter pauta definida de maneira coletiva?”, questiona a pesquisadora Tatiana Montório, 36, moradora de Veleiros, bairro da zona sul de São Paulo, que integra o grupo de pesquisa 3PAC (Política, Políticas Públicas e Ação Coletiva) da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Segundo a pesquisadora, os conselhos precisam repensar o modelo de participação popular e acolhimento de novos atores. “Obviamente que contar com esses espaços de participação são ganhos na história da participação do Brasil e da cidade de São Paulo, mas há de se repensar um modelo que de fato promova a participação e incentivam o surgimento de novos atores”.

Mesmo com uma visão crítica em relação ao modelo de participação popular dos moradores das periferias nos conselhos participativos, Montório reafirma a importância dos conselhos de saúde para a cidade, enfatizando como os movimentos sociais de saúde foram precursores na luta pelo SUS e participação política.

“Na história dos conselhos do município de São Paulo, o movimento popular de saúde foi precursor dos debates sobre participação e um importante input na luta pela seguridade básica de saúde, na luta pelo SUS”, afirma a pesquisadora, explicando como isso impactou a Constituição Federal de 1988. “A promulgação da Constituição deixa claro que se o município quer receber recursos financeiros do Ministério Da Saúde é obrigado a ter seu conselho municipal, ou seja, caso o município não tenha esse espaço e todo o regramento exigido como composição, atas, balanços, etc, ele não receberá recursos financeiros para atuar”.

Ela ressalta que há municípios que não valorizam como deveria a participação dos conselhos para decidir o rumo dos serviços e políticas públicas. “Não estamos aqui falando de uma variável apenas, participação social nas políticas de saúde, estamos deixando claro que mesmo aquela municipalidade que não ‘gosta de conselheiros’, porque já ouvi isso, não tem opção de se desfazer do espaço. As arenas, as disputas e o jogo político se fazem muito presentes aqui”.

A pesquisadora afirma que o funcionamento do conselho pode mudar, a depender da cultura de participação popular e gestão pública de cada território. “Seu funcionamento se distingue de território para território, o entendimento sobre a importância e impacto nas decisões também muda a depender de muitos fatores e eu destaco aqui, o perfil do conselheiro, movimentos sociais nos bairros e suas conquistas, lutas e interesses dos gestores públicos locais nesses espaços”.

Outro ponto bem importante abordado pela pesquisadora é a necessidade de existir um volume de publicidade para divulgar o papel dos conselhos para a população, a fim de atrair novos perfis de conselheiros. “Destaco que a horizontalidade e a chamada pública com a publicidade é um fator importante na atração de conselheiros interessados e quem sabe estudantes, pesquisadores, conhecedores do tema. E quando de fato, você consegue ter esse público deliberado, podemos assistir conquistas muito importantes, como a implementação dos CAPS nos territórios, ou ainda o alinhamento com os temas de educação e assistência social, cujas políticas públicas fazem intersecção em diferentes atividades”.

Ela lembra que acompanha o trabalho de alguns conselhos que a partir do seu espaço de participação popular conseguem conquistas importantes para políticas públicas, mas que ainda há a necessidade de fomentar a diversidade de conselheiros nos espaços de participação. “Assistimos alguns conselhos que sem vazão a sua voz, buscam através do Ministério Público a judicialização de políticas públicas. Temos unidades que conseguiram distinta ampliação no apoio maternal e fortaleceram as políticas de planejamento familiar. Claro que os territórios ganham, mas a falta de publicidade e de incentivos a essa participação distanciam o usuário padrão dessas instâncias participativas”. 

Centro de Estudos Periféricos defende a criação das Casas de Conselho

Recentemente o Centro de Pesquisas Periféricos colocou no mundo a Agenda Propositiva Das Periferias, e dentro do eixo de Participação Popular abordou a importância de fomentar a criação das Casas de Conselhos nos territórios periféricos. O professor e coordenador da pesquisa Tiaraju Pablo comentou sobre como pode surgir esses espaços de organização social dentro dos territórios.

“As Casas de Conselho seriam espaços autônomos em relação ao Estado. Como um local onde a população discute seus problemas e se organiza, talvez as Casas de Conselho funcionem como um espaço onde surjam questões que não funcionam no bairro, como os Conselhos de Saúde. Logo, as Casas de Conselho poderiam servir como espaços de pressão”, define o pesquisador.

De acordo com os estudos apontados na pesquisa, esses espaços seriam uma forma de valorizar e resgatar uma organização de participação popular que já era utilizado nos quilombos durante o período do Brasil colônia. “As Casas de Conselho propostas estão baseadas nas Casas de Conselhos que já existiam nos quilombos do Brasil. Eram locais onde a população fazia assembleias, discutia seus problemas e tentava viabilizar soluções”, explica.

Segundo o coordenador da pesquisa, as Casas de Conselho poderiam ser organizadas como locais onde a população de um determinado território possa se encontrar para conversar sobre seus problemas locais e para pensar também os problemas do mundo. “Essas Casas de Conselhos poderiam funcionar em domicílios dos próprios moradores, em associações de moradores, em coletivos culturais ou mesmo em espaços ociosos”.

D’Andrea finaliza detalhando como esses espaços de participação e escuta da população periférica poderia atuar na sociedade. “Um dos principais objetivos é romper com o individualismo e reforçar os laços de sociabilidade. Pensamos as Casas de Conselhos como uma estrela de quatro pontas: 1) o lado material, distribuindo cestas básicas ou alguma refeição, pois sem alimento ninguém vive, ainda mais em tempos de crise como estes que estamos vivendo; 2) o lado educativo, formando jovens e ensinando sobre o funcionamento da sociedade; 3) o lado artístico, pois a arte desperta a sensibilidade humana; e o 4) o lado afetivo, pois o afeto é revolucionário”.

Mais de 150 mil famílias em luto, inclusive a nossa.

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Por aqui, a família de um integrante do Desenrola é a família de todos do Desenrola. Para nós é assim: não é só trabalho, é afeto, é cuidado, é família, seja de sangue ou de coração. Hoje vamos falar da nossa família, que assim como outras milhares perderam e tem perdido pessoas amadas, seja pela bala, pela fome ou pela covid-19. 

Flavia, Thais e Fabiana.

Assim que começou o isolamento social devido a pandemia em março deste ano, fechamos nosso espaço, o Centro de Mídia M’Boi Mirim, e passamos a trabalhar de casa para ajudar a conter a proliferação do vírus que já fazia milhares de vítimas ao redor do mundo. Em maio, a irmã e a mãe da Flavinha contraíram a Covid-19, mas conseguiram se curar e hoje estão bem. O mesmo não aconteceu com as irmãs da Thais.

Pessoas mais próximas já sabem que esse mês foi muito doloroso para nós. Nas últimas semanas, perdemos Fabiana e Flávia, nossas queridas familiares. Irmãs da Thais, mulheres negras e periféricas, Fabiana e Flávia estavam sempre presentes em nossas vidas.

Ambas foram internadas, uma no hospital Parelheiros e outra na Santa Casa da Bela Vista. Com poucos dias de internação, nenhuma das duas resistiu. O falecimento da Fabiana aconteceu no dia 05 e o da Flávia no dia 14 de outubro.

Nossa intenção é compartilhar a importância das duas na vida da família e daqueles que tinham a sorte de tê-las por perto. Por aqui, a família de um de nós do Desenrola é a família de todos do Desenrola. Para nós, é assim: não é só trabalho, é afeto, é cuidado, é família, seja de sangue ou de coração.

A Fabiana sempre cedeu sua casa e suas panelas quando a gente e os jovens atendidos no nosso programa de formação, o Você Repórter da Periferia, estávamos fazendo reportagens no Grajaú. A casa dela era parada obrigatória e o almoço sempre era o macarrão do Desenrola.

A Flávia fez orações assim que alugamos o espaço do Centro de Mídia na intenção de que nossa atuação ali sempre trouxesse prosperidade. Falando nisso, elas sempre que conseguiam estavam por lá, participando da nossa inauguração e de outros eventos.

Há 500 anos estamos morrendo: de fome, de bala e agora também de covid-19

A pandemia nunca parou tudo de fato, principalmente para quem mora nos territórios periféricos. Nunca tivemos em um isolamento adequado, até porque sabemos de onde vem as pessoas que de fato fazem os serviços e a cidade acontecer todos os dias.

Quantos pessoas da sua família de fato puderam ficar em casa e no final do mês ter seu dinheiro garantido? Quantas pessoas que você conhece se sentiam seguras em casa? Pensa em quantos conhecidos e amigos continuaram a trabalhar durante todo esse tempo. Já se perguntou por que isso aconteceu?

Nossa morte, a morte de quem é preto, periférico, pobre, lgbtqia+ não é um problema para quem governa e para a burguesia. Nossas mortes não tem relevância para eles, mas para nós sim. As mais de 150 mil famílias em luto importam para nós.

Hoje, segundo o IBGE, temos 10 milhões de brasileiros passando fome e 13,8% da população está desempregada. Em 2016, quase 75% das mortes violentas eram de jovens negros. Fome, desemprego e morte: é o que esse modelo socioeconômico tem oferecido à nós, pretos, pobres, periféricos.

Nossas famílias sofrem há muito tempo, choram em um luto permanente. Nossos ancestrais foram arrancados de seus territórios e escravizados, a maioria dos que se revoltaram foi dizimada. De geração em geração, da colonização ao século XXI, nossa dor se mantém.

É por nós e por muito mais que seguimos acreditando na comunicação periférica como umas das ferramentas da nossa revolução e independência. Para que o genocídio pela fome, pela bala, pela covid-19 entre tantas outras, parem de interromper brutalmente nossas vidas e os nossos sonhos.

Aqui fica nosso abraço e agradecimento pela passagem da Fabiana e da Flavia nesse mundo e abraço a todas as famílias que perderam pessoas queridas. 

A periferia é o nosso centro!

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Na contrapartida do que a mídia hegemônica insiste em representar a periferia é também espaço possibilidades, de lutas, de esperança e de solidariedade! 

Foto: @menino_do_drone

“Para nós, a periferia é um país”. 

Sérgio Vaz

A periferia é para milhões de brasileiros periféricos um espaço geográfico marcado não só pela distância em relação ao centro, mas sim, pela relação de vivência, pela construção diária de significados, pelas caminhadas e brincadeiras nas ruas e vielas, pelas trocas e aprendizagens nas escolas, praças, campo de futebol e nas igrejas; um lugar de afetos, conflitos, relacionamentos e de solidariedade, como muitos dizem “minha comunidade”. Desta forma a periferia não é o nosso centro apenas simbolicamente.

Na literatura acadêmica a periferia caminha com seu par dialético centro, mais especificamente como o negativo do centro, um lugar afastado resultante do processo de metropolização das grandes cidades. O que de fato o é! Mas não o é, apenas, não o é para todos. Para muitos a periferia é o próprio centro da vida! O conceito de centro é entendido como local de trabalho, de compras, de decisões de poder, de pluralidade cultural.

Neste sentido, já faz tempo que as periferias tornaram espaços de possibilidades e de emprego para milhares de pessoas, centro de compras e de um comércio diversificado, embrionária de muitas lutas sociais, como um dos maiores movimentos feministas do Brasil, os Clubes de Mães da zona Sul, que balançou as estruturas da ditadura militar e, que dizer da cena cultural da periferia, com suas rodas de samba, grafites, saraus, batalhas de rima, bailes funks. Retomando o poeta fundador da Cooperifa, Sérgio Vaz, “a periferia é um país”!

De fato, apesar da complexidade e diversidade das periferias, esse espaço também é marcado por contradições, que pode sim ser entendido como a marca visível das contradições e desigualdades da sociedade capitalista. Os grandes veículos de comunicação não nos deixam esquecer isso, reforçam diariamente os estereótipos da periferia como lugar natural de violências e desta forma constroem no imaginário dos brasileiros, inclusive dos que vivem na periferia ideia de um lugar negativo.

Na contrapartida do que a mídia hegemônica insiste em representar a periferia é também espaço possibilidades, de lutas, de esperança e de solidariedade! Por esse motivo, iremos nos apropriar deste veículo de comunicação periférico, para discutir e apresentar essas questões tão esquecidas dos grandes meios de comunicação, que noticiam apenas os problemas das quebradas. 

Nas próximas colunas traremos à baila, as lutas, os abandonos do estado em relação a periferia, mas como freirianos, iremos anunciar também as potências revolucionários das quebradas, as experiências de engajamentos sociais, os projetos de sustentabilidades e de relação socioambiental, a potência da educação popular em espaços formais e informais.

Espaço Cultural CITA teme despejo em meio à pandemia

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A ocupação no Campo Limpo que conta com uma trajetória de nove anos, promovendo arte em diversas linguagens e articulando os agentes locais, corre o risco de despejo e encerramento de suas atividades

Mais de 200 costureiras de periferias da Zona Sul de São Paulo confeccionam máscaras de tecido que são distribuídas a agentes públicos, como bombeiros, policiais ou profissionais da saúde. Mas o projeto corre risco de parar por ação do próprio poder público.

A iniciativa, que gera renda às trabalhadoras e contribui com a prevenção ao coronavírus, é bancada pelo programa “Costurando pela Vida” da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura paulistana e conta com a articulação do Espaço Cultural CITA. Contraditoriamente, esse mesmo espaço está sob ameaça de desocupação por outro órgão municipal: a Subprefeitura do Campo Limpo. 

“Não faz sentido nenhum os caras quererem tirar a gente daqui”, explica Junin, produtor cultural do CITA que aguarda a chegada de uma ordem de despejo prometida para a próxima semana.

Que lugar é esse? 

 Desde 2011, o Espaço Cultural CITA ocupa parte de um terreno nas proximidades da praça e do terminal de ônibus do Campo Limpo. Segundo Junin, esse terreno teria sido doado por uma família para a Prefeitura para instalação de equipamentos de saúde, educação e cultura. Atualmente, o quarteirão conta com serviços como creche, casa de cultura, Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviço de Assistência Especializada (SAE) em infecções sexualmente transmissíveis e Aids.

O CITA reúne artistas, agentes comunitários e articuladores culturais independentes interessados em desenvolver pesquisas e trabalhos na esfera cultural.

Hoje, mais de uma centena de trabalhadores da área ocupam o espaço em 10 coletivos de diferentes vertentes que atua em eixos como Artes Cênicas (com Bando Trapos, Cia Diversidança, Clã do Jabuti e Via Vento), Saraus, Culturas Populares (com o Maracatu Ouro de Congo, Baque Mulher e Candongueiros do Campo Limpo), Permacultura (com os coletivos Megê Design Sustentável e NUPECI – Núcleo de Permacultura do CITA) e Formação (com o coletivo C9 Iluminação).

Apesar de ter fechado as portas ao público por conta da pandemia de coronavírus, o espaço continuou na ativa com a reorganização dos coletivos residentes e doações de cestas básicas, por exemplo.

“Atualmente, estamos com 4 projetos financiados por editais públicos acontecendo”, explica Junin.

Além do edital para costureiras, há projetos que recebem recursos do governo do estado (via ProAc e Pontos de Cultura) e recentemente o grupo também foi contemplado em um chamamento da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo para reconhecimento de ocupações culturais autônomas.

A ameaça 

O grupo relata que, no dia 06/10 recebeu a visita da chefe de fiscalização da Subprefeitura do Campo Limpo acompanhada da Polícia Militar. A justificativa seria a denúncia de uma suposta “invasão” do espaço por pessoas em situação de rua, que foi negada pelos agentes culturais.

No dia seguinte, a servidora identificada apenas como Elaine retornou ao espaço e pediu a documentação que comprovasse autorização para a presença do grupo no local, além de informar que foi realizado um laudo que apontava situação de risco do espaço.

“Deixamos aqui evidente que o Espaço Cultural CITA não solicitou ou recebeu oficialmente a visita de um Engenheiro Civil ou Bombeiro Militar enviado pela Subprefeitura do Campo Limpo, e também não teve acesso ao Laudo do Engenheiro ou AVCB (Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros) citado pela chefe da fiscalização”, dizem os agentes culturais em comunicado.

Eles citam ainda que, há anos, o espaço recebe avisos da Secretaria Municipal da Saúde, que teria planos de usar a área atualmente ocupada. Apontam também que, desde 2011, há um processo de Cessão de Uso do Espaço protocolado junto à Secretaria Municipal de Cultura para viabilizar a permanência do grupo no local. Esse processo estaria desaparecido no órgão municipal.

Durante a visita, a chefe de fiscalização disse ainda que, em até 10 dias úteis, o CITA receberia uma ordem de despejo. Desde então, os trabalhadores da cultura do espaço se articulam com parlamentares e membros do poder executivo para continuarem no local. Também já coletaram mais de 5 mil assinaturas neste abaixo-assinado.

Junin lembra que o CITA não é a única ocupação ameaçada. A Casa de Cultura do Jaçanã e o Espaço Cultural Jardim Damasceno (na Zona Norte), a Okupação Cultural Coragem e o Reação Arte e Cultura (na Zona Leste) são outros pontos que correm risco de despejo, mesmo tendo projetos que são ou foram financiados pelo poder público.

Outro lado 

A Periferia em Movimento entrou em contato por e-mail com as assessorias de imprensa da Secretaria Municipal de Subprefeituras, da Subprefeitura do Campo Limpo, da Secretaria Municipal da Saúde e Secretaria Municipal de Cultura. Na noite de sexta-feira (9/10), a Secretaria de Comunicação (Secom) da Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura de São Paulo, por meio da Subprefeitura Campo Limpo, informa que esteve no local no último dia 7. O pedido de concessão para o uso do espaço citado se encontra vencido, não tendo mais valor legal. Foi lavrado um auto de interdição e desocupação da área. O prazo para cumprimento é de 10 dias”.

Educação de qualidade: Algo que poucos podem comprar

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Em meio à crise educacional causada pelo descaso do governo com a segurança e saúde da população das periferias, problemas que antes eram escondidos por trás de um discurso onde os professores eram vilões, que iriam ensinar o comunismo começaram a mostrar sua verdadeira face, talvez só um prédio não seja uma escola.  

Feira de profissões realizada pelo Cursinho Popular Carolina de Jesus.(Foto: Você Repórter da Periferia)

A educação de qualidade tem um preço e poucos podem comprar, com o ensino remoto podemos observar melhor o que já era realidade a muito tempo, os alunos da rede pública vivem em descaso constante e não possuem ferramentas de estudo, assim como os professores que trabalham sem parar e não recebem nem um salário que possa pagar as próprias contas, muito pelo contrário, a realidade são professores exaustos com depressão, ansiedade e morrendo aos poucos na frente de seus alunos.

Enquanto o governo mostra alunos com notebooks de 12 mil reais, brancos e com quartos individuais, a realidade mostra alunos precisando trabalhar no meio de uma pandemia, vivendo em condições precárias ou de constante sobrevivência e sem recursos para acompanhar as aulas.

O governo mostra professores do Estado ora como pessoas que trabalham por amor, ora pessoas que são demoníacas e vão levar seu filho para o comunismo! A realidade mostra professores adoecendo mais a cada ano, sacrificando seu salário para comprar material para aula, sem perspectiva de futuro, pois a cada ano as categorias aumentam e nada de concursos, o salário é baixo e a exaustão é alta para lidar com várias salas de 40 alunos cada. Parece que o amor acaba mais cedo ou mais tarde sob essas condições.

Então as pessoas deveriam lutar mais? Cobrar mais? Ora vamos lá perder o olho, levar bomba na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) ! O buraco é muito mais fundo, embora professores permaneçam lutando e resistindo, o Estado retribui sempre com gás de pimenta, tiro de bala de borracha e depois diz que não sabia, diz que os professores eram baderneiros! Nossa que baderneiros horríveis!

Numa realidade onde a escola não tem papel higiênico, nem sabão, uma realidade onde existem meses que eu no ensino médio só comia biscoito de água e sal, uma realidade onde nosso governador quis dar ração para as crianças, somos animais para este governo, um lote inteiro que só não precisa morrer todos juntos!

Essa escrita parece ácida e triste, mas eu não gosto de escrever com rodeios, de um lado temos uma pressão para esses professores permanecerem na luta, de outro um estado que não se importa em colocar sua polícia para espancar professores, a exaustão aumenta, o estresse aumenta, o amor acaba, o amor tá tentando continuar…

Mas então tudo o que é público é ruim? Não. É necessário reafirmar que a educação pública é necessária, mas além de universal deve ter qualidade e estar aliada a outras políticas públicas, a educação vive e reflete a sociedade então a mudança deve ser muito mais profunda.

Além do problema dentro da escola temos a realidade cruel onde o maior fator para abandono escolar é trabalho. Segundo o IBGE 10,1 milhões de jovens não completaram sequer a educação básica, pesquisas nos mostram também que a maior parte dos jovens de periferia tem o primeiro contato com um trabalho precário. 

A culpa não é deles! 

Tive o privilégio de terminar o ensino médio e entrar numa universidade, mas acompanhei muitas histórias ao meu lado diferentes, muitos jovens indo do trabalho para a escola, muitos jovens sem acesso a contraceptivos e engravidando na adolescência, muitos que se viam como “burros”, quando eu entrei nas salas de aula como estagiária vi a mesma história, era como reviver meus anos de ensino médio.

A maior parte dos alunos não se sente capaz, muitos trabalham desde os 14 anos, desde infância, se tornaram adultos enquanto eram crianças, e de que vale a pena continuar estudando? Essa pergunta ronda muitas cabeças onde a prioridade é não passar fome.

Tudo isso acontece pelo descaso com a educação e com a juventude que ao longo dos anos vem aumentando, a realidade é cruel. Alunos passando fome por dependerem da merenda escolar, e segundo dados da Fundação Abrinq, em 2019 60,3 milhões de pessoas declaram viver com renda per capita de meio salário-mínimo, R$, 499 e 26,3 milhões declararam viver com metade disto, apenas R$ 249,50.

Esse cenário fica mais triste quando os dados mostram que 18,8 milhões de crianças até 14 anos vivem em condição de baixa renda, destes 5,3 milhões estão em São Paulo. 

Como querer estudar se eu não comi nada hoje?  

Se alguém souber como, por favor, explique, pois eu acho impossível, além disso, o governo não faz nenhuma política concreta de permanência escolar, ou seja, esses alunos vivem num constante limbo.

Nem a pandemia, nem a vida são iguais para todos e a educação de qualidade passa a ser algo que poucos podem comprar, nessa sociedade onde te ensinam que existe mérito e se você não conquistou algo é culpa sua. A educação é uma mercadoria para se vender, mas sabemos que tudo isso é conversa para boi dormir!

Contudo, eu ainda sigo afirmando que Paulo Freire não errou, devemos esperançar para não desistir e lutar, assim já tomamos nossos espaços e devemos continuar para que possamos um dia mudar os dados onde apenas 36% dos alunos de ensino superior vieram de escola pública, não somos números, nem saco de pancada, somos histórias e potencial. Todavia o projeto continua sendo ter sempre uma crise na educação, cortar asas para que pássaros não possam voar.

Apesar de ver tudo isso, eu também noto nos jovens uma esperança, o acesso lhes deu a oportunidade de se reconhecer, eles questionam muito mais do que eu vivenciei há três anos atrás quando eu estava no ensino médio. Todos os dados tristes que trouxe nesse texto foi a fim de propor uma reflexão sobre a realidade ao redor e sobre os nossos, relembrar é preciso, transformar é uma necessidade.

A periferia segue sendo uma potência, um lugar do qual eu tenho orgulho de viver e que me inspira a partir das pessoas que vivem e resistem nela, e com certeza se fomos perguntar a nossos pais eles diriam que as coisas melhoraram, a partir de muita luta.

Nós não fracassamos, nós na realidade estamos levantando a nós mesmos e aos nossos por meio de redes de apoio, cursinhos populares, iniciativas de bairro, um jornal da própria quebrada. Agora somos nós que vamos escrever nossas histórias.

“Pobreza não quero mais

A caneta é meu troféu

Borda as palavras no papel

É tudo o que quero dizer…”

-Tula Pilar, Sou uma Carolina.