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Copa das Favelas de Free Fire quer fortalecer a cultura gamer da quebrada

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 A competição está com inscrições abertas entre os dias 16 de setembro e 7 de novembro. O objetivo é reunir jogadores de 100 favelas de todo o Brasil.

 Produzida de maneira independente pelas iniciativas de cultura nerd e gamer Black Rocket, Matiz Gestão Criativa, Perifacon, e Afrogames, a primeira edição da Copa das Favelas de Free Fire tem o objetivo de valorizar jovens talentos que estão movimentando e difundindo a cultura de jogos eletrônicos nas periferias e favelas.

O Free Fire é um jogo eletrônico mobile de ação e aventura que faz parte do cotidiano de jovens e crianças que moram nas periferias e favelas, pelo fato dele incentivar a criação de comunidades virtuais, proporcionar experiências coletivas e fomentar a cultura gamer na quebrada.

Ao todo serão 12 equipes que irão representar a sua quebrada na competição, que terá dois dias de duração. O time vencedor da Copa das Favelas terá uma premiação de R$4.000 em equipamentos eletrônicos, e para o 1º lugar um auxílio na carreira com jogadores profissionais.

Para a youtuber Andreza Delgado, 25, uma das organizadoras do Perifacon e da Perifa Gamer, o primeiro campeonato de Free fire das favelas do Brasil é fruto da inquietação social dos organizadores sobre o acesso a cultura gamer na favela.

“Cara, os jogos , toda discussão de entretenimento, tudo que tem haver com diversão mesmo da periferia, é uma coisa distante, e eu digo distante no sentido que as pessoas de favela tem direito a lazer, ou o lazer não chega nas pessoas de favela”, afirma a organizadora.

Para o evento chegar à primeira edição, a parceria com outros coletivos e projetos de cultura nerd e gamer foi fundamental para tirar a ideia do papel. “Tiramos grana do bolso e falamos: vamos fazer porque a gente acredita entendeu”, relata Andreza, ressaltando que foi necessário elaborar  um planejamento que teve a participação de todos os envolvidos até chegar a fase de divulgação do evento.

 Retratar o imagético da periferia de uma maneira criativa

Em 29 de agosto a equipe começou a produção, focando em uma comunicação que dialogue com a linguagem de um jovem gamer periférico, e retrate o cotidiano dele. “Quando a gente tá pensando na comunicação é na estrutura é exatamente para atender todo mundo”, avalia Andreza. Ela complementa que retratar o imagético da periferia de uma maneira criativa e de qualidade usando uma comunicação estratégica é uma das suas prioridades em seus trabalhos.

“Uma coisa que sempre penso nos trampos que to fazendo é que não vou fazer uma parada hollywoodiana, mas eu também quero entregar uma parada bonita e bem feita”.

Delgado reconhece a dificuldade de acesso que a periferia tem com equipamentos tecnológicos. A opção pelo Free Fire foi uma estratégia para trazer maior acessibilidade para o campeonato, que foi levando em conta também a falta de conexão com uma internet de qualidade. “O jogo que a gente escolheu não é só por ele ser jogado pelo celular, e ele não precisar de um internet hiper boa, de uma velocidade excepcional, que é igual os outros jogos que a gente vê de computador “, explica.

A organizadora da primeira Copa das Favelas de Free Fire está atenta ao fato de que existe muitos profissionais na área de jogos eletrônicos nas periferias, porém eles precisam de oportunidade e patrocínio para conseguir se auto sustentar como gamer. “É um novo mercado de trabalho dos jogos , que a gente possa apresentar essa possibilidade para periferia, eu acho injusto que cada vez mais o mercado de jogos eletrônicos cresce no Brasil e a favela seja impedida de acessar “.

Ela acredita que além da possibilidade de jogar, há outras questões relacionadas a oportunidades de trabalho e desenvolvimento econômico. “O momento que um jovem da quebrada recebe a oportunidade de trabalhar com o celular dele, com o computador dele, streamando é um novo nicho de oportunidade”, acredita Delgado.

Durante o processo de divulgação os organizadores estão procurando patrocinadores que possam aumentar a possibilidade e perspectivas de mais jovens da quebrada acessar o universo gamer. “A gente está exatamente nesse processo de procurar parceiros e empresas que queiram apostar nesse evento”, diz Andreza.

Ela finaliza apontando a importância de sonhar com um futuro sem barreiras sociais para o universo gamer. “Essa coisa da impossibilidade de sonhar com o futuro é complicado entendeu, e eu acho que essa coisa de eu trabalhar com entretenimento, tem haver com isso, o quanto eu gosto de imaginar, sonhar, ficcionar um mundo melhor, uma vida melhor e eu acho que as pessoas têm direito de conhecer tudo isso e essas possibilidades”.

Juventude periférica: Eu sou o meu lugar

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Como me descobri um sujeito periférico e o que isso quer dizer para mim e para as juventudes das periferias de São Paulo. 

Luiz Lucas em vivencia de jornalismo nas periferias do Grajaú, extremo sul de São Paulo. (Foto: Vinícius Cordeiro)

Salve, quebrada! Eu não sei muito bem como devo começar essa coluna, mas citando já de cara o mestre Emicida: “é necessário voltar ao começo”. Sou morador do Jardim Aracati, no distrito do Jardim Ângela, extremo sul da cidade de São Paulo, mas nasci em São Roque, interior de São Paulo, em 1997. Só fui até lá nascer mesmo. Segundo minha mãe, todas as maternidades dos hospitais públicos aqui da capital estavam lotadas.

Quando criança, vivia aquela vida que só quem mora nas “bordas” conhece: jogava futebol descalço na rua e o “golzinho” de chinelo; pipa no alto, pipa nos fios, tênis nos fios, “gato” nos fios; som alto; funk, rap, forró… Eu poderia escrever uma página inteira só sobre essas vivências, mas acho que deu para entender.

Comecei a trabalhar aos 16 anos e só então eu percebi o motivo diário das reclamações da minha mãe: “estamos longe de tudo!”. Até então meu tudo era aquele bairro. Por causa do trabalho e da escola, saía muito cedo de casa e voltava muito tarde.

Foi quando um sentimento de revolta começou a bater. Estávamos realmente longe de tudo. Mas o que era “tudo”? Passado alguns anos, entendi que esse tudo era muita coisa, desde um caixa eletrônico até uma estação de metrô. Me acostumei com a rotina, acabei a escola e já engatei na faculdade. Não podia parar justo na hora que eu entendi o que era “tudo”.

No segundo ano da faculdade de jornalismo, conheci o Desenrola e participei do Você Repórter da Periferia. A partir daí o meu entendimento como sujeito periférico, ou periferiano, aconteceu. Ok, mas por qual motivo eu expliquei tudo isso?

Foi essa atmosfera que fez eu me entender como periferiano e me deu a oportunidade de escrever aqui, e que eu e você somos o nosso lugar. Que as periferias são diversas e ao mesmo tempo únicas. Que produzimos e consumimos nossa própria cultura, em nosso próprio universo.

Fugindo da lógica da pirâmide invertida do jornalismo, onde a informação mais importante vem primeiro, só quem leu até aqui vai saber o propósito dessa coluna mensal.

A ideia é conversar com os jovens para que se enxerguem também pertencentes à nação periférica e entendam toda a potência e referências desses lugares, através de textos como: as influências do rap e do funk para as quebradas; o empreendedorismo sem mesmo saber o que é isso; a autoestima de quem mora na periferia e outros assuntos que forem surgindo ao longo da minha estadia aqui nesse espaço.

Um jeito que eu arrumei para expressar toda a minha angústia e passar os tempos nos “busões da vida” foi escrevendo poesias sobre meu cotidiano. E aqui vai uma delas:

Sou da cor do talvez

Talvez polícia

Talvez ladrão

Talvez papai

Talvez irmão

Talvez rico

Talvez pobre

Talvez branco

Talvez negro

Talvez de quebrada

Talvez de condomínio

A única certeza

É que eu sou o meu lugar

Jardim Ângela vive em mim

Eu vivo nele

Ele tá na pele

Ele tá nos olhos

No busão lotado

No futebol de rua

No joelho ralado

O centro do mundo

Do meu mundo

Quebrada é mato

Eu mato e morro

Por ela.

“Lésbicas existem o ano inteiro”: o significado do mês da visibilidade lésbica na quebrada

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Como o mês da visibilidade lésbica atravessa os processos de descoberta e a vida de duas mulheres que moram nas periferias da zona sul de São Paulo? Além da questão geracional, elas compartilham como é o processo de autoafirmação entre família, amigos e a vivência nos territórios.  

Jessica Campos, moradora do Capão Redondo (Foto: JEFF)

Hoje, 29 de setembro faz um mês que foi celebrado o marco nacional da visibilidade lésbica. A data estabelecida no Brasil foi criada por ativistas brasileiras e dedicada ao dia em que aconteceu o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas, realizado em 1996. Agosto é um mês voltado para lembrar a existência da mulher lésbica, as violências sofridas por elas e as pautas que o movimento reivindica.

O que é ser lésbica e moradora de quebrada? O que é ser lésbica e morar nas periferias do Jardim Ângela e Capão Redondo? Essa visibilidade existe para mulheres lésbicas, pretas e mães? Ela existe só em Agosto ou o ano inteiro? Conversamos com mulheres que irão nos responder essas e outras questões sobre a visibilidade lésbica nas periferias e favelas.

Quando tinha 18 anos Gisiane Gonçalves, 31, uma mulher lésbica e mãe, moradora do distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, lembra como foi o processo de descoberta da sua sexualidade.

“Com 18 anos eu já sabia o que eu era e o que eu queria, mas eu não queria aceitar de jeito nenhum, eu achava que era uma fase, que ia passar, e que era coisa da minha cabeça”, conta ela.

Apesar de ter se descoberto com 18 anos, só com 28 ela se reconheceu pra si e para o mundo como uma mulher lésbica. Durante esse tempo ela negava quem ela era e como se sentia na sua própria convivência. “Eu tentei bastante me esconder por muitos anos, mas tem uma hora que a gente não consegue mais”, afirma.

Outro relato que reforça a importância da visibilidade lésbica nas periferias é o de Jessica Campos, 21, moradora do Jardim Caiçara, no Capão Redondo. Ela é organizadora do Sarau do Capão e educadora do cursinho popular Carolina de Jesus.

Ela relata que o seu processo de descoberta se conecta também com questões ligadas ao território onde mora e a cor da sua pele. “Meu processo de descoberta com a minha sexualidade foi uma mistura de reconhecimento próprio e construção do meu ser né, isso é muito louco, acho que se reconhecer mulher é muito complexo, aí se reconhecer mulher preta, periférica e lésbica é um combo grandíssimo e cheio de complexidades”.

Campos afirma que esse processo de autoconhecimento foi importante para formar sua identidade. “Eu fui me construindo aos poucos, porque foi um processo todo esse reconhecimento, de conseguir chegar e falar hoje ‘eu sou Jéssica, uma mulher preta, moradora do Capão Redondo e lésbica’, até conseguir entender que sou uma mulher que tem voz, se colocar, ser vista e escutada”.

A educadora relata que a cultura de escrever poesias foi uma importante aliada para fortalecer esse processo de autoafirmação. “A escrita foi uma das coisas que fez com que eu conseguisse me localizar no mundo, colocar minhas angústias para fora, e eu acho que isso é um ponto muito importante quando a gente fala da escrita, o quanto a escrita é um potencial dentro da periferia, a gente traz a poesia marginal como um escudo e como um portador da nossa voz em outros espaços”, conta.

“Quando a gente tem a família do nosso lado a gente consegue dar a cara a tapa sem se preocupar”

Gisiane Gonçalves, moradora do Jardim Ângela. (Foto: Monique Menezes)

Gonçalves ressalta que o fato de ela não conseguir verbalizar sobre quem ela é publicamente, veio pela falta de conhecimento sobre si mesma, de entender o que ela sentia, e o que é ser lésbica. “Foi muito difícil, porque a gente já nasce assim, a gente sabe o que é, mas a gente não quer aceitar”.

Para ela, o processo de aceitação começou em superar as dificuldades internas, para conseguir enfrentar as externas. “Eu ficava escondida com as meninas, só que eu não tinha um relacionamento sério”. Gisiane desabafa que uma das suas maiores dificuldades era “não ter alguém assim próximo, pra conversar, pra se espelhar, e você ser a primeira de tudo na família”.

Após passar um bom tempo fortalecendo sua coragem, Gisiane conheceu uma mulher e se apaixonou, naquele momento ela viu que não fazia mais sentido se esconder. “Quando eu me apaixonei aí não tinha mais como esconder, porque eu queria estar com a pessoa, eu queria que a pessoa tivesse com minha família, e ela me deu uma força e eu tive coragem de contar”, relata.

Ao recordar sobre o processo de autoconhecimento e afirmação do seu afeto por mulheres, ela comenta sobre a facilidade de aceitação de sua família. “Minha família é muito cabeça fechada, é muito certinha, foi uma surpresa de verdade, eu fiquei bem feliz”, retrata Gisiane, afirmando que seus maiores medos relacionados à forma da sua família iria reagir foram criados por ela mesmo.

Hoje, ela olha a questão da aceitação da família de outra forma. “Quando a gente tem a família do nosso lado, a gente consegue dar a cara a tapa sem se preocupar. E fui vendo como era o mundo real fora da minha bolha, que eu achava segura só comigo mesmo e eu fui expandindo”.

Gisiane tem uma filha de nove anos, fruto do seu antigo relacionamento com um homem e considera que umas das maiores dificuldade no seu processo de reconhecimento da sua sexualidade foi contar para sua filha. “Desconstruir e contar pra ela foi o mais difícil, foi o mais marcante porque ela aceitou tão bem, que eu acho que eu já deveria ter contado a muitos anos atrás”.

Gonçalves descreve as cenas desse momento, afirmando que utilizou algumas cena de um filme sobre relacionamento afetivo entre duas mulheres, para confidenciar seu amor por uma mulher

“Eu falei para ela: ‘a mamãe gosta de meninas, a mamãe devia gostar de meninos, mas a mamãe gosta de meninas’. E ela foi super de boa, falou para mim: ‘é eu percebi que você anda muito com a tia’, aí eu falei: ‘mas você sabe o que é isso?’, e ela: ‘sim, você namora’. Eu falei: ‘mas você tá de boa com isso?’ e ela: ‘se você está feliz, eu estou feliz”.

Quanto mais Gisiane se reconhece mais os assédios e a insegurança de circular pelos territórios aumentam, porém ela conta que nada mais faz ela voltar atrás. “Eu sou muito feliz com a pessoa que eu sou, e tive coragem de mostrar pro mundo quem eu sou, e a gente não precisa de um homem do lado da gente pra gente ser capaz, para criar uma filha, pra fazer qualquer coisa”. 

“É muito louco ser uma mulher lésbica e morar no Capão Redondo”

Jessica Campos é poeta a educadora no Cursinho Carolina de Jesus. (Foto_Mariana Smania)

A poeta e educadora que mora no Capão Redondo conta as dificuldades de pautar sexualidade dentro do território, onde mora e atua nos seus projetos de cultura e educação. “Acho que é muito louco ser uma mulher lésbica e morar no Capão Redondo porque minimamente a nossa dificuldade de acesso limita até os nossos afetos né, acho que um dos podcasts que a gente produziu no cursinho fala muito sobre isso, quando a gente tá falando da visibilidade lésbica na quebrada, porque a dificuldade de acesso à informação faz com que a gente tenha dificuldade de se reconhecer como uma mulher lésbica”.

Para Campos, a mulher já tem a heterossexualidade compulsória. “A gente se enxergue só se relacionando com um cara, onde a gente não vê a possibilidade de se relacionar com uma mulher e eu acho que essa é uma das limitações né, e a gente vai encontrando as maiores dificuldades em não se sentir abraçada ou reconhecida no seu próprio território, por essa dificuldade de acesso de informação, então acho que esse é um dos maiores obstáculos que a gente passa e vai quebrando essa barreira aos poucos né. Morar na quebrada é uma construção e desconstrução constante com as pessoas que estão ao seu redor, mas como relacionar nossa sexualidade com o território?”, questiona ela.

Ao relembrar as memórias que a marcaram e a ajudaram entender quem ela é hoje, a moradora comenta sobre seus medos. “Acho que uma das coisas que mais me marcaram na construção de quem eu sou hoje foi quando eu parei em um momento da minha vida onde eu tinha começado a me relacionar com mulheres, e eu comecei a olhar para trás, do tipo quem eram minhas amigas mais próximas, as pessoas que eu queria está mais perto, o que eu sentia por essas mulheres, acho que isso fez com que eu conseguisse reconhecer quem eu sou, e perceber que é uma coisa que está comigo desde muito tempo, eu só não conseguia ver”.

Ela recorda que muitas vezes teve que fugir de situações que a fariam pensar sobre a sua sexualidade. “Eu saia desses espaços para não parar e pensar ‘será que eu sou lésbica? ‘, porque vai que eu sou e no fundo eu era. A gente só se questiona nesse sentido quando tem dúvida, e a gente não é ensinada a investigar essas dúvidas como legítimas”.

Para Jéssica, a descoberta do afeto entre mulheres foi outro processo bem importante e demorado. “Quando eu descobri o que era afeto entre mulheres, eu fui explorando isso, mas é muito difícil dada a sociedade que a gente vive, do tipo de olhares, da galera que não quer que a gente fique junto, a galera que fica incomodada quando estamos andando de mãos dadas, acho que é um processo muito louco, mas hoje eu não me limito mais, eu sempre estou atenta ao espaço, ao território que eu estou, sempre com muito cuidado, mas nunca me limitando”.

Em meio a esse processo, ela compartilha a sensação de dividir um espaço e a companhia com a sua companheira. “Estar acompanhada com a sua companheira é uma coisa de respeito mesmo, eu não quero colocar alguma coisa na minha vida onde eu não possa demonstrar amor a ela, eu quero demonstrar amor a ela em todos os espaços”, comenta Jéssica, abordando as dificuldades de demonstrar amor em público e sobre as formas que ela foi entendendo o afeto em sua trajetória

A poeta também reflete sobre o significado do Mês da Visibilidade Lésbica em sua vida, e a influência que teve em sua trajetória. “Faz pouco tempo que eu tenho contato com o mês da visibilidade lésbica, isso é muito louco né, porque mulheres se reconhecem lésbicas há muito tempo, desde que nascem, mas se reconhecer politicamente como lésbica é diferente, acho que o mês traz bastante significância, mas ao mesmo tempo afirmo que lésbicas existem o ano inteiro, assim como a galera preta, nós pretos e pretas não existimos só em novembro, e lésbicas não existem só em agosto, lésbicas não existem só na adolescência, mulheres lésbicas, são lésbicas quando crianças, adolescentes e também quando envelhecem”, afirma.

Sobre o amor lésbico, Jéssica comenta que ele é sempre taxado como algo impossível e doloroso, quando na realidade não é bem assim. “A gente sempre tem que pensar que nós estamos aqui hoje, se reconhecendo como lésbicas hoje, porque lá atrás tiveram pessoas que fizeram coisas para que nós estejamos aqui hoje, então o mês da visibilidade lésbica reforça que nossa luta é constante, mas nossa luta não tem que ser só sobre dor, é sobre amor também, sobre afeto e ver que é possível ser lésbica e ter um amor tranquilo. Então o mês da visibilidade lésbica ele me traz essa tranquilidade de que a gente tem luta, a gente tem força, de que a gente sempre esteve colocada nos espaços e de que a gente é muito mais do que só lutar”.

Ela finaliza a entrevista enfatizando a importância da sua relação com a poesia e como isso ajudou no seu processo de se olhar, se ouvir e se ver. “Meu primeiro contato com a poesia foi no cursinho popular Carolina de Jesus, lá tem muitos saraus, muito incentivo a escrita, lá que eu comecei a escrever, o meu professor, o Gabriel pediu para escrever uma poesia para recitar na aula, e foi ali que eu comecei a colocar minha vida para fora, a partir daí eu comecei a me reconhecer como quem eu sou hoje, a partir dali comecei a me construir e a me ler né, porque quando eu coloco para fora eu to lendo quem eu sou, e tinha muita coisa entalada, então eu consegui a partir da escrita me reconhecer como uma mulher preta, pobre, periférica, lésbica e o peso que isso traz por morar no Capão Redondo que sei lá, nos anos 90 era um dos lugares que mais morria preto, que mais morria gente. Tudo que eu sou hoje é pela escrita”.

Oficinas online de Guarani estão com inscrições abertas

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 As oficinas trazem educadores que estudam e vivenciam as línguas e culturas Yorubá e Guarani e sua importância na formação sociocultural brasileira.

Aulas de Guarani por Tupã Sérgio e Tapaiyuna dos Santos kitãulhu, ambos da Aldeia Tape Mirim (Tenondé Porã), em Parelheiros.

Coletiva Tear & Poesia de Arte Têxtil Preta Nativa está com inscrições abertas para as oficinas de língua e cultura Guarani. Diante da pandemia, todas elas acontecem gratuitamente de forma virtual entre os dias 19 a 22 de outubro (mais informações abaixo).

As aulas trazem a importância dos idiomas na formação sociocultural do país, mostrando suas influências nos hábitos e costumes da população brasileira, seja na língua, alimentação, religião ou nas artes.

As oficinas serão transmitidas por meio de vídeos gravados previamente. As de Yorubá, que já estão com as inscrições finalizadas, iniciaram no dia 5/10 e seguem até 13/10, às 19h30, sendo dois dias reservados para tirar dúvidas, e ministradas pelo nigeriano Prince Adewale Adefioye Adimula. Já as de Guarani, com inscrições abertas, serão realizadas entre os dias 19 e 22/10, também às 19h30, com Tupã Sérgio e Tapaiyuna dos Santos kitãulhu, ambos da Aldeia Tape Mirim, que integra as terras indígenas de Parelheiros (SP). (Faça aqui a inscrição da oficina de guarani).

Idealizados por mulheres reunidas na Coletiva Tear e Poesia, que existe na zona sul de São Paulo há 20 anos, os encontros online integram o ‘Projeto Pangeia Entre Elos: Palavra de Mulher’, que tem como objetivo pesquisar as teorias da pangeia e a relação dos grafismos africanos com os grafismos nativos das populações indígenas brasileiras.

Chama-se pangeia o fenômeno ocorrido há mais de 200 milhões de anos, quando os continentes formavam uma única massa. O “supercontinente” foi pouco a pouco se separando em pedaços, a partir de acontecimentos naturais, transformando-se no que hoje conhecemos.

Segundo Rita Maria, coordenadora da coletiva, o intuito com as oficinas é dar uma base cultural e linguística às pesquisas que a organização realiza em 2020 sobre as similaridades entre esses grafismos. Até o fim do ano a coletiva pretende também lançar um livro em bordados e textos trazendo a pesquisa da ancestralidade africana e indígena e como se relacionam às vivências das mulheres nas periferias. Bordam em forma de luta por igualdade e valorização das identidades negras e indígenas.

“Temos como foco dialogar com a mulher em diáspora, tanto imigrantes africanas quanto latino-americanas e caribenhas, mostrando também semelhanças entre grafismos nativos brasileiros, indígenas, e africanos, buscando identificar similitudes sutis pouco estudadas e menos difundidas entre culturas originárias daqui e de África”, diz Rita. 

O Yorubá e sua importância no Brasil  

As oficinas de Yorubá, que já iniciaram,  serão ministradas por Prince Adewale Adefioye Adimula, 50. Nascido na cidade de Ilê Ifé, estado Osun da Nigéria, Prince chegou no país em 2001 e, em 2019, também naturalizou-se brasileiro. Desde a chegada, é sacerdote Baba Adimula em casas de religião de matriz-africana.

É líder de jovens africanos da Comunidade Yorubá de São Paulo e atua, ainda, no Centro Cultural Adimula Oodua, promovendo o intercâmbio cultural e histórico entre brasileiros e nigerianos, trazendo importantes figuras religiosas para cá ou realizando excursões para distintas regiões da Nigéria. “O Yorubá é muito usado no Brasil como ferramenta da liturgia nos cultos de Candomblé. A raiz é única, mas há particularidades que recebeu em território brasileiro, se diferenciando daquele que é falado na Nigéria, Benin ou Costa do Marfim”. 

A importância da língua e cultura Guarani 

 As oficinas de Guarani serão orientadas por Tupã Sérgio e Tapaiyuna dos Santos kitãulhu, ambos da Aldeia Tape Mirim (Tenondé Porã), em Parelheiros, zona sul de SP. Agricultor, Tupã Sérgio entende que “a cultura brasileira é a cultura guarani”.

Para ele, aprender a língua é uma forma de colaborar com as lutas dos povos indígenas, já que ainda há muitos preconceitos e estereótipos ligados aos povos que vivem em regiões urbanas. “É importante aprender para também ter respeito e valorizar a nossa cultura. Uma pessoa veio aqui e disse que éramos ‘modernos’ porque tínhamos celular e vestíamos roupas”, explica.

Para Tupã Sérgio, um dos maiores ensinamentos que obteve com seus mais velhos foi o Xondaro, conhecida como a arte marcial dos guaranis, servido também como um ritual de transição da adolescência para a vida adulta dos indígenas guaranis, com aspectos tanto físicos, quanto comportamentais e espirituais. “Isso me influenciou bastante. Na prática do Xondaro, aprendi a plantar, respeitar a natureza, os animais e as crianças”, diz. 

Sobre a coletiva Tear e Poesia

A Coletiva Tear & Poesia de Arte Têxtil Preta Nativa é constituída por mulheres residentes da periferia da zona sul da cidade de São Paulo, que atuam há mais de 20 anos na região, com uma trajetória de participações em eventos, espaços e atividades como ilustração do livro Santo Amaro em Rede do SESC; Virada Cultural, Programa Pétala por Pétala – SESC Interlagos; Saraus e Feiras Literárias. Bordam em estilo ancestral como forma de luta por igualdade de oportunidades e direitos e valorização da beleza e identidades de negras e indígenas. Se autodenominam “tecelãs do verso”, pois bordam poemas e histórias ligadas à memória afetiva e herança cultural feminina, com questões ligadas às mulheres negras e indígenas, as crianças, a natureza, a culturas populares, tendo cantos, danças tradicionais e brincadeiras da cultura popular como estimuladores em suas oficinas.

Sobre o projeto ‘Pangeia Entre Elos: Palavra de Mulher’
O projeto “Pangeia Entre Elos – Palavra de Mulher” foi criado a partir de um processo de pesquisa sobre cultura, idioma e grafismos dos povos indígenas e africanos, com o objetivo de perceber na identidade brasileira as raízes profundas com essas tradições. Por meio da arte têxtil, a coletiva quer conectar mulheres bordadeiras com suas ancestralidades. O processo original de trabalho envolve encontros de bordados e a produção de um livro coletivo, mas diante do isolamento social em decorrência da pandemia do novo coronavírus, as oficinas estão sendo ministradas de maneira virtual. Saiba mais: 

 Serviço

Oficinas de Língua e Cultura Guarani
Data: 19, 20, 21 e 22/10 (Guarani)
Horário: sempre às 19h30
Quem pode participar: livre para todos os públicos

Link para inscrições em Guarani: http://bit.ly/oficina-cultura-lingua-guarani

Contatos/ Redes Sociais: www.tearepoesia.com | Facebook e Instagram

Distopia Periférica: os efeitos sociais de um mundo remoto

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Eu estive pensando muito sobre esse momento tão distópico do nosso país, o que é distopia? Se trata de um lugar imaginário onde vivemos em opressão, uma utopia distorcida, tipo sonho que vira pesadelo, sabe?

Foto: Menino do Drone

O termo “distopia” foi ideia do pensador John Stuart Mill, para explicar a inversão dos valores utópicos na era industrial, parece fácil, mas é bem complexo, melhor para entender tudo isso é o livro Viagens de Gulliver, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (eu posso emprestar), entre outras obras que você pode acessar se digitar no Google obras distópicas. Quando isso ocorrer, seu perfil digital vai mudar e seu algarismo da rede social vai incluir notícias, propagandas e ideias nunca vistas por você até então, vale a pena.

Como não dizer que esse é o nosso caso no momento? Pensamos que poderíamos chegar mais próximo de um país mais ideal, igualitário, onde no mínimo a discussão sobre o direito fosse possível, mas estamos mergulhados no processo inverso, um pesadelo distópico de nosso “não lugar” ou utopia de governo e ética social.

O que é essa realidade? A realidade é tudo que existe sendo ou não perceptível, até a ilusão também é uma realidade, então pensar sobre isso é uma questão importante desses tempos. A realidade é uma constante mudança, não só o que é estático, mas até nossos sonhos são massas importantes dessa realidade, e o que temos sonhado ultimamente?

Antes da pandemia havia uma discussão de como viver através das redes sociais, isto é, remotamente, tem um impacto negativo em nossas vidas, e em instantes, durante a pandemia, toda nossa vida tornou-se remota.

Durante um período na minha geração “remoto” significava distante, afastado, vago, hoje nem sei como usar essa palavra para distância se ela remete a uma proximidade utópica ou seria distópica. 

Um filme de ficção científica

Hoje estamos remotos no espaço e não no tempo, pois atividades remotas preconizam a transmissão em tempo real. Tenho uma lembrança remota de quando tudo isso começou a acontecer em nossas vidas, pois às vezes tenho a sensação de que tudo isso é natural, mas “remoto” é estar em tempo real ou no passado?

Parece muito fácil para essa geração, tudo que está ocorrendo, mas para quem viveu a realidade como uma constituição de que para algo acontecer era necessário a presença e a matéria, tudo o que estamos vivendo é quase um absurdo filme de ficção cientifica.

Nem todos estão presentes nesse novo mundo, pois mesmo ele não precisando da presença propriamente dita, ele precisa do equipamento para que sua presença seja levada para o outro no tempo espaço.

Assim como dinheiro se estabeleceu como intermediário entre as mercadorias e a força de trabalho, os aparelhos eletrônicos se tornaram intermediários das nossas relações humanas. O certo é que se não estamos pagando pelo produto, nós somos o produto, produto que alimenta toda a indústria de exploração da força de trabalho invisível por trás de nossas telas.

Foto: Flavia Lopes

Exclusão digital 

Então um novo tipo de exclusão se estabelece nessa nova forma de estar e existir, a exclusão digital. Sempre que imagino um novo mundo, na minha utopia exclui todo tipo de questão negativa que acompanha minha vida, racismo, desigualdade, fome, entre todas que vão atacando minha mente.

Entretanto, no novo mundo digital todas elas são possíveis e até maiores, pois podemos olhar para elas de forma global. Mesmo presa na minha bolha do algoritmo EdgeRank, que é determinado por três critérios variantes, a afinidade, o peso do meu público e quantas curtidas elas alcançam. Entre outros critérios que eu não compreendo, provavelmente esse programa, sabe coisas sobre mim que conscientemente eu nunca diria. Por exemplo, como é constrangedor comemorar o aniversário de uma amizade que não existe mais.

A exclusão se forma em todos os campos desse país e se intensifica nesse tempo, nessa realidade, sendo ela remota ou presencial. A insegurança alimentar continua sendo o principal problema em todas as periferias, acesso à internet e equipamentos eletrônicos que dão acesso a esse mundo remoto do trabalho, da educação e da saúde.

Como estruturar nossa realidade a partir de protocolos construídos em vida remota, onde não existem diversas questões que só humanos soltos no mundo do convívio podem promover. Como viver com adaptações da vida tão duras. Muitas delas vão demorar séculos para que possamos aceitar, ou que nossos olhos, coluna, peso, emocional consiga assimilar na cadeia de desenvolvimento, se é que ela existe de fato.

Somos filhos da terra, do ar e da água, enquanto estamos sentados em nossas poltronas, as arvores seres fundamentais para nossa respiração, estão queimando diminuindo o oxigênio fundamental para nossa vida. Em minha realidade distópica, além do atual presidente da república, – nada mais distópico -, vejo oxigênio sendo vendido em uma propaganda da Nestlé.

É nesse momento que surgem teorias da conspiração, tão prováveis quanto vender oxigênio como um novo nicho de mercado, levando em consideração a morte do trabalho digno e o surgimento dessa categoria de escravização humana denominada em nosso tempo de trabalho informal, mas que nomeamos nos livros de história, de trabalho escravo.

Estamos visivelmente frágeis psicologicamente, doentes fisicamente e empobrecidos, parece o panorama de uma guerra, mas é a guerra que vive em nossas mentes, atravessa os nossos olhos e nos coloca em uma realidade fabricada.Tão difícil saber o que eu penso, ou o que foi criado para que pensasse sobre isso. Sim, confuso.Eu tento olhar da laje a realidade, andar nas ruas e encontrar pessoas, mesmo que ainda cheia de protocolos, vários criados por mim.Para mim a humanidade é a conexão humana, assim como a realidade é o que existe em sua totalidade.

Como humana, tenho necessidade de refletir sobre coisas que não geram lucro, que não são acontecimentos fantásticos, segundo os donos da notícia, mas são questões importantes sobre nossa vida e as formas de viver, esse texto é sobre pensar vida. O que você pensou sobre a vida hoje?

Reflita lendo o poema Sonâmbula.

Ergo a espada empunhada

com as duas mãos,

não alcanço as feridas

contidas na perna esquerda,

a poeira não assenta,

giro os pés em câmera lenta,

tem guerra contida

no chão que me aguenta,

tem vento, neblina, garganta seca,

sou toda espera,

Fecho os olhos vejo

aprumo a mira,

certeira.

Abaixo a guarda,

toco a ferida,

desabrumo o corpo,

abro os olhos,

vitória é pouco,

salivo,

Guerrilha.

Anabela Gonçalves 

“Estar só em casa é osso”: artista do Grajaú fala sobre o isolamento do homem trans na pandemia

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A segunda entrevista da série Relatos LGBTQIA+ mostra a história de Gustavo Revaneio, morador do Grajaú que compartilha a rotina sobre como é ser um homem trans na pandemia e relata como o isolamento social foi agressivo e gerou alguns impactos emocionais e psicológicos no seu cotidiano.

“Sou um homem trans, boyceta e pansexual”, define Gustavo Revaneio, 18, artista independente e comunicador, que mora do Jardim Mirna, bairro localizado no distrito do Grajaú, extremo sul de São Paulo. Durante a pandemia, ele afirma que o confinamento dentro de casa gerou uma série de impactos psicológicos que poderiam o ter levado a desistir de viver.

“Em uma visão mais psicológica é bem difícil pra gente estar trancado em casa e na maioria das vezes tendo contato apenas com as pessoas cis e heteronormativa”, afirma Revaneio, enfatizando que “em alguns dias e a disforia acaba sendo pior”.

Segundo o Manual de Transtornos Psiquiátricos para Profissionais da Saúde (MSD), a disforia de gênero se caracteriza pela identificação com o gênero oposto associada à ansiedade, depressão, irritabilidade e muitas vezes a um desejo de viver como um gênero diferente do sexo do nascimento.

Para o morador do Jardim Mirna, não estar em contato com os seus iguais da comunidade LBTQIA+ gerou uma forte crise emocional durante a pandemia. 

“Sair e ver pessoas como a gente é muito importante, se reconhecer no outro, ter referências. Estar só em casa é osso. Teve dias que só fiquei dentro do quarto apenas pensando e tentando me livrar dessas coisas que como eu disse não é meu, a disforia quem causa é a cisgeneridade. É um verdadeiro limbo entre dias bons e ruins”

Revaneio acredita que é importante se manter vivo, pois por mais difícil que pareça, pois a comunidade LGBTQ+ precisa resistir e se fortalecer com o apoio do outro. “Muitas pessoas se inspiram em nós e a gente nem sabe, vivo por isso, vivo pelos meus. E não sinto que seja a comunidade LGBTQ+ no geral. Vejo a população TRANS como a mais vulnerável.”

O artista independente ressalta que o apoio familiar fez toda a diferença ao longo dos últimos meses da pandemia em que ele ficou dentro de casa sem contato presencial com os seus amigos. “Eu sou muito privilegiado em poder ter diálogos com minha família. Muitos dos nossos estão morrendo na rua ou até mesmo dentro de casa e ver isso também é muito gatilho pra pensar em desistir, mas como eu disse acima preciso estar vivo”.

Antes pandemia de coronavírus, o território onde Revaneio reside no Jardim Mirna, extremo sul de São Paulo, era e é um ponto de autoafirmação da sua identidade. Ele conta que sempre estava em contato como o movimento cultural da região. 

“Sempre busco estar em contato com meu território, fotografando eventos no Centro Cultural do Grajaú e em outros espaços culturais da quebrada. Para além dos eventos culturais, procuro também fotografar o território, fazer grafites e espalhar a minha arte, frequentando os ateliês dos coletivos e criando uma rede com quem está na cena cultural do Grajaú”.

“meu trampo , seja com foto, vídeo, pintura ou colagem é pensado no meu território, o Grajaú é meu país.”

Gustavo Revaneio

Em meio a tantas questões negativas causadas pelo isolamento social durante a pandemia, Revaneio compartilha uma notícia positiva, descrevendo sua experiência e descobertas em relação ao começo do tratamento hormonal. “Comecei faz um mês. Está sendo incrível. A cada dia estou podendo me conhecer melhor. É uma sensação indescritível”.

Ele não vê o tratamento hormonal como algo necessário para essa afirmação social do que é ser homem, mas ressalta que sempre teve vontade de ter essa experiência. 

“São apenas vontades que eu sempre tive e ver isso acontecendo com meu corpo me enche de felicidade. Ultimamente ando correndo atrás do Centro de Cidadania pra pessoas LGBTS em Santo Amaro, já que não tenho convênio particular. Lá eles oferecem psicólogo, acompanhamento para o tratamento hormonal e também auxiliam no processo de retificar o nome e o gênero”, finaliza. 

“Pra ser homem basta se sentir um” 

Gustavo Revaneio morador do Grajaú (Foto: Mei -Natália Miguel)

“A descoberta da minha sexualidade e identidade caminham lado a lado, um levou o outro e foi de uma forma bem lenta”, revela o jovem. Com 18 anos, a história de sua autoafirmação e descobertas sobre seu corpo e sua identidade de gênero são recentes, fato que faz o artista relembrar os momentos que mais o marcaram dentro desse processo de descoberta.

“Tive que me desprender de muitas coisas ensinadas desde criança, foi quando eu entendi que ser homem não está nada ligado com a ideia do ‘masculino’ e que são apenas construções da sociedade”, argumenta Revaneio, enfatizando que o conceito de gênero masculino pode ser ressignificado.

“Pra ser homem basta se sentir um, da sua forma e sem se basear em nada e nem ninguém. Cada ser é único e tem a sua individualidade e a sua forma de manifestar a sua orientação de gênero. Estereótipos foram criados e enraizados e precisamos todos os dias lutar contra essa construção”

Ao relembrar esses momentos de constantes descobertas, ele conta também como foi o diálogo em casa e os processos de relacionamento com a sua família. “No começo foi bem difícil a adaptação pra me chamar no gênero e nome que me identifico e até hoje é um processo para minha mãe e meu padrasto me chamar dessa forma”, relata.

Ele complementa ressaltando “quase sempre eles ainda erram, mas sempre que possível é conversado pra que não falte com o respeito”. Segundo Revaneio, tem dias que ele não está a fim de corrigir ou falar nada com seus pais. Isso é algo que já me machucou muito e tem dias que ainda dói bastante, porém com conversas e cuidado tem sido algo que tem melhorado com o passar do tempo”.

O jovem finaliza a entrevista afirmando que o diálogo com sua irmã de nove anos, ele só precisou falar com ela uma vez para ela entender o momento que ele estava passando. 

“Foi preciso apenas uma vez para dizer a ela como eu me identificava e como queria ser chamado pra que ela começasse a mudar a forma de me chamar e sempre que ela erra corrige. Quando estou mal é o que me ajuda a seguir, minha outra irmã de um ano também me chama de irmão, nunca me chamou de outra forma e é isso que nos dias ruins me ajuda a sentar, respirar, me acalmar e seguir”. 

Dos “bairros dormitórios” emanam sonhos pulsando por transformação

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Num país desigual como o Brasil, as periferias são resultado dos sonhos de milhões de migrantes em busca de uma vida melhor. Quem nunca ouviu esse relato de um parente próximo?  

Evento cultural realizado em Parelheiros, zona sul de SP. (Foto: Luara Angélica)

A intenção deste texto não é ser motivacional, mas falar sobre a importância das motivações – principalmente as coletivas. “Prelúdio”, canção de Raul Seixas, indica no próprio nome que o primeiro passo é sonhar. Mas, o que é sonho?

Essa palavra, com significado tão amplo, pode ser desde querer uma bola até ser jogador de futebol. Vai de almejar conhecer algum lugar, até o desejo de ser conhecido. Há muitas possibilidades…

Por mais que haja uma diversidade de ambições em cada indivíduo, o ato de sonhar sempre tem algo em comum: está atrelado ao desejo de crescimento, numa perspectiva para um futuro melhor. E o que isso tem a ver com a cidade? É que, para muita gente, o sonho ainda está distante, há pelo menos três conduções e duas horas da sua “goma”.

A problemática aqui não é o quão longe uma pessoa periférica queira chegar, mas, sim, a centralização das conquistas. A narrativa predominante reforça este imaginário centralizador, já que estão concentradas no mesmo lugar e para poucas pessoas as oportunidades para realizar seus desejos, isso porque, como tudo na sociedade, nossos objetivos também são fruto de construções sociais e de nossas experiências urbanas. 

“A prefeitura é a sala de jantar, a cidade é o jardim, e a favela é o quarto de despejo”

Carolina Maria de Jesus

 Eu, Laura, passei parte da minha infância na região metropolitana de São Paulo e, quando eu tinha nove anos de idade, minha família se mudou para Parelheiros, no extremo sul da capital. No ensino médio, eu me lembro de conversar com os amigos e termos uma afirmação semelhante: “Os nossos sonhos envolviam a necessidade de sair da periferia”.

Se sonhar implica almejar um futuro melhor, na nossa cabeça isso não seria possível num território com ausência e violência do Estado (discurso reafirmado diariamente sobre as regiões marginalizadas). Como disse Carolina Maria de Jesus: “A prefeitura é a sala de jantar; a cidade é o jardim; e a favela, o quarto de despejo”. A descrição da escritora sobre a configuração da cidade expõe a materialização da segregação socioespacial.

Num país desigual como o Brasil, as periferias são resultado do sonho de milhões de migrantes em busca de uma vida melhor. Quem nunca ouviu esse relato de um parente próximo? Se para Carolina, o motivo para lutar era a fome, para João poderia ser sair do aluguel e ter o direito à moradia, enquanto para José, é ficar menos tempo no transporte e poder trabalhar mais perto de casa, assim como para Teresa, é o anseio de voltar pra casa sem medo e para outro morador do extremo, é retomar os estudos.

Esse acúmulo de emergências do povo é responsabilidade do mesmo sistema que o culpabiliza pelas adversidades do crescimento desordenado da cidade, num discurso apoiado na informalidade em que sujeitos periféricos estão inseridos, seja na habitação, geração de renda, escolaridade e demais indicadores.

A questão é justamente a absorção dessa narrativa por parte da população: o que deveriam ser direitos, transformam-se em metas pessoais, baseadas no mito da meritocracia, em que privilégios supostamente são resultados de esforço individual. Mas “um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só”…

Ao passo que os territórios vão se modificando e proporcionando a estrutura necessária para seus moradores, tais como serviços básicos e infraestrutura, ou seja, enquadrando esses lugares na “formalidade”, a população mais pobre é empurrada cada vez mais para as extremidades, mas isto não significa que estas pessoas vivenciem a totalidade da realidade local.

O que se nota, ao invés disso, é que este território acaba caracterizado como “bairro-dormitório”, ou seja, quando a gente cumpre o conhecido “ritual”: sair pra trampar às 5h; chegar no serviço às 8h; só sair às 18h; pegar o transporte público sempre lotado pra chegar em casa às 21h; e dormir (se não levar em conta a jornada dupla materna). Em outras palavras, o único momento que uma grande parcela da periferia vivencia a periferia é nas sobras do trabalho, que é o meio para realizar os tais sonhos. 

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome” 

Carolina Maria de Jesus

As margens, que surgem do anseio por uma vida melhor permanecem se empenhando diariamente em realizar este mesmo objetivo. Mas, assim como há uma multiplicidade de sonhadores em cada canto, também existem alternativas descentralizadas de alcançar nossos sonhos.

Inclusive, ao territorializar nossa visão sobre a cidade e observá-la sob um outro ponto de vista, germinam inúmeras descobertas sobre nossas quebradas: por exemplo, a primeira escola do bairro que é fruto de uma construção popular; ou mesmo aquele samba que acontece todo fim de semana que alémde divertir a comunidade, arrecada alimentação para várias famílias; até o caso da Joana, que realizou o sonho de acessar a universidade e hoje alimenta outros sonhos, levando um cursinho comunitário pro seu bairro.

A Laura com 15 anos participou de um projeto que buscou conhecer e divulgar o seu território, conheceu pessoas e lugares com que se reconheceu e sentiu orgulho de fazer parte de um local que mesmo com tantos obstáculos, é composto por uma variedade de ações que envolvem justamente driblar as barreiras que separam a periferia dos seus sonhos – e isso só é possível a partir das motivações coletivas, porque “um sonho que se sonha junto é realidade”.

É sobre subverter a narrativa, mostrando que a periferia não é o problema, mas, na verdade, a solução. Historicamente foi das mãos marginalizadas que se ergueu cada construção da cidade e é do trabalho de corpos periféricos até hoje que ela se mantém.

Longe de querer romantizar este contexto, mesmo porque muitas das lutas que travamos só fazem sentido para que os próximos vivam outro mundo, no qual os “menó” tenham o direito de sonhar e realizar seus sonhos. Parafraseando novamente Carolina Maria “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome”, isso porque semelhante ao processo de cicatrização das feridas, a CURA é PELAS BORDAS. 

Escola humaniza o ensino de programação para jovens das periferias

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A partir da leitura e vivência dos jovens das periferias e favelas de São Paulo, escola de programação pensada por moradores da quebrada tem como um dos seus diferenciais ensinar programação de maneira humanizada e não tecnicista.

Victória usa o computador da mãe para ter melhor aproveitamento das aulas de programação (Foto: Murilo Roberto)

A Mais1code é uma escola de programação que vem trazendo novas metodologias pedagógicas e didáticas para adaptar as vivências de alunos quebrada ao ensino de linguagens de programação. Ensinar eles a codificar seus sonhos através de algoritmos é um dos principais propósitos da escola.

Uma das alunas da Mais1code é Victória Silva, 20, graduanda do sexto semestre do curso de moda. Ela é moradora de São Mateus, periferia da zona leste de São Paulo. Devido a pandemia, ela está com a família em Serrana, cidade do interior de São Paulo. Ela conheceu a Mais1code, por meio do curso de inglês da PLT4WAY, um projeto que oferece bolsa de estudos 100% gratuita para jovens e adultos da periferia, a cada três alunos pagantes.

“Eu tenho um projeto de ir pra Austrália em 2022, e trabalhar com programação é uma coisa que gera uma oportunidade no mundo todo né, como eu fico de olho nessas coisas de intercâmbio, principalmente na Austrália, é uma área que não precisa ter um inglês avançado, ai eu falei: é minha oportunidade de entrar em um país e já ter um emprego”, explica a estudante, afirmando que o domínio da linguagem de programação em sua vida poderia abrir portas para realizar seus projetos pessoais.

A estudante relata que no seu imaginário sobre o futuro nunca conseguiu incluir a possibilidade de ser uma profissional de programação. “Nunca imaginei que eu iria me interessar por isso”, comenta Victória, ressaltando que existe uma distância entre a linguagem computacional e as vivências de uma jovem da periferia.

Esse cenário só mudou quando ela visualizou uma comunicação que falou diretamente com ela e seus sonhos. “Quando a mais1code lançou a proposta eles colocaram: ‘a primeira mulher programadora’. Isso foi uma chamada muito forte também, incentivando jovens da quebrada, principalmente mulheres, a entrar nesse ramo. Eu falei: ‘wow’, realmente isso é pra mim! aí foi que se concretizou todo o interesse”.

A Mais1code tem uma metodologia de ensino chamada ‘Peer to Peer’, que significa um para um, onde aluno terá acesso a um professor voluntário, para realizar uma ou duas aulas por semana e suporte diário da equipe da escola de programação.

Os jovens interessados podem fazer o cadastro gratuitamente através do site para participar de formações focadas em linguagens de programação, banco de dados e design.

“Programar abri um universo né”, ressalta a estudante, abordando que um dos maiores diferenciais que contribuíram para ela expandir seu universo de conhecimento sobre tecnologias mais complexas, foi a metodologia de ensino, onde ter um mentor particular auxiliou na melhor compreensão dos termos e diminuiu suas dificuldades.

“Às vezes a gente fica duas horas e ainda é pouco, porque é muita coisa, um mentor para cada pessoa é maravilhoso, porque ele te dá total atenção”

Durante o processo de aprendizagem, uma das principais barreiras encontradas por Victória é a compreensão de termos técnicos que ela não está muito acostumada no seu cotidiano. “Minha maior dificuldade é gravar né, absorver todos os códigos, tem alguns que eu já fui absorvendo porque uso muito”, diz a estudante.

Ela acredita que neste aspecto do processo de aprendizado, a didática que seu mentor formulou para ela abriu caminhos estratégicos para que ela consiga desvendar a linguagem computacional. “Praticamente tudo é em inglês, só que o Gabriel sempre traduz pra mim, e é mais fácil de gravar conforme a gente vai usando”.

“Você olha para um site, e você não imagina que tudo aquilo são números, códigos, e forma uma site”, compra ela, após colocar em prática algumas técnicas vivenciadas em aula. “Através de números eu fiz meu primeiro site, bem simplesinho, mas você olha assim, é um site”, descreve Victória.

Todos os projetos pensado por ela ao longo do curso são voltados para uma das suas paixões: a moda, e assim já pensa em prototipar e programar seu próprio e-commerce.

Embora a moradora de São Mateus já esteja pensando em formas de conectar sua profissão com a sua paixão pela moda, o acesso a equipamentos como um notebook de qualidade ainda é um impedimento para ela sonhar cada vez mais alto.

Hoje, ela utiliza o notebook da sua mãe, que está morando no interior de São Paulo durante a pandemia. Por conta das dificuldades para acessar um computador com boas configurações, Victória relembra que teve muitas dificuldades para baixar alguns programas essenciais para usar no curso de programação. “Não tava conseguindo baixar alguns programas e eu fiquei mais ou menos duas semana sem ter aulas”, conta.

Diante deste cenário, Victória se preocupa também com o momento relativo ao final da pandemia, quando ela voltará para sua quebrada. “Quando eu voltar pra São Paulo eu não sei como eu vou fazer”, afirma ela, fazendo uma referência a dificuldade de acesso a um bom computador para auxiliar nos estudos. 

“Uma programação com linguagem de quebrada é uma linguagem humanizada”

por  Diogo Bezerra

Um mês foi o tempo necessário para os fundadores da escola de programação Mais1code Diogo Bezerra, 27, morador do Jardim Brasil, localizado na periferia da zona leste e Tauan Matos, 26, morador do Tucuruvi, zona norte, tirar sua ideia do papel, elaborar e dar forma a escola de programação, que atualmente tem 24 mentores e 24 alunos. Em outubro, o projeto abrirá novas turmas para expandir sua rede de jovens atendidos.

A ideia de construir uma escola de programação voltada para alunos da quebrada e que se comunique com a quebrada surgiu a partir de uma inquietação de Diogo Bezerra, criador da PLT4WAY, onde estuda Victória. Ele presenciou o interesse de um jovem da sua rede de alunos pedir referências de cursos de programação. Após esse momento, ele passou a pesquisar e entender que a pedagogia e a cultura de ensino dos cursos de programação não dialogava com a cultura de um jovem da periferia.

“Eu fui atrás pra saber se havia alguma coisa e só encontrei nos grandes centros”, conta Bezerra, afirmando que a partir deste momento ele entendeu que o conhecimento de programação ainda não estava disseminado em sua quebrada e em tantas outras. “Eu não acredito que é pra nós, não tem nem comunicação pra nós aqui, querendo chegar até nós”.

A partir dessa inquietação de não pertencimento de um jovem de quebrada na área de tecnologia, ele juntou com outros amigos e sócios e resolveram criar sua própria escola de programação, onde a comunicação é voltada para seus alunos, a partir da suas próprias vivências. “Nós somos o nosso público alvo entendeu, isso facilita muito na comunicação, no jeito que nós falamos”.

Mesmo com a promissora ideia da escola de programação Mais1code prometendo transformar a vida de muitos jovens nas periferias e favelas, os empreendedores que a criaram relatam que uma das suas maiores dificuldades é a falta de acesso dos alunos à infraestrutura, como acesso à internet e notebook.

“Nós temos aí jovens que não tem condições, tem jovens que às vezes tem internet, mas não tem computador, aí é outro processo que trabalhamos aqui na Mais1code, pra ajudar esse jovem”, explica Tauan, citando que umas das medidas tomadas pela equipe, visando que os alunos não fiquem sem aula pela falta de equipamento, é a articulação de doações de notebook, porém devido a pandemia essas doações tornaram-se ainda mais difíceis. “Esse momento é um pouco complicado, porque tira a oportunidade desse jovem que não tem internet nem computador”.

A preocupação que os fundadores tiveram para trazer acessibilidade de equipamentos para o aluno assistir a aula é a mesma em relação ao processo de aprendizagem, onde eles conseguiram entender que ter apenas um mentor seria o melhor caminho para ampliar o desenvolvimento e a compreensão dos termos técnicos entre os alunos.

“Facilita muito o desenvolvimento dele e a chance de aprender, o que faz ele se identificar muito mais rápido, do que se tivesse num grupo de pessoas de diferentes níveis. Ele ou ela ficaria frustrado por ta nessa área e não conseguir aprender no mesmo nível que o amiguinho”, acredita Diogo, um dos fundadores do projeto.

Para a dupla de amigos e empreendedores que criaram a Mais1code, a metodologia de ensino da cursos de programação precisa ter uma linguagem que possibilita uma leitura de quebrada que eles se identifiquem. “Uma programação com linguagem de quebrada é uma linguagem humanizada”.

Para eles, a leitura do pensamento computacional de quebrada pode fazer com que esses alunos das periferias e favelas decodifique melhor os espaços territoriais onde convivem através deste tipo de conhecimento.

Os efeitos geracionais das revoltas nos Estados Unidos

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Qual foi o resultado de algumas das maiores rebeliões raciais dos anos de 1960 nos Estados Unidos?

Foto Reprodução do Documentário “Black Wall Street”, um massacre de centenas de negros nos EUA.

Os Estados Unidos posicionaram-se no poder após a segunda guerra mundial, antes disso era muito significativo, mas não era a potência mundial que se tornou. Derrotar as potências do eixo e salvar o “mundo democrático” deu ao país não apenas domínio militar e financeiro sobre o mundo, mas também promoveu igualdade, moralidade e como viver em uma sociedade civilizada.

O país sempre tentou manter essa imagem no exterior, enquanto os afro-americanos sempre conheceram Estados Unidos muito menos civilizados. É por isso que os líderes do movimento pelos direitos civis dos anos 1950 e início dos anos 1960 usaram táticas diferentes para mostrar ao mundo como a América era hipócrita.

Não foram violentos, não resistiram nem revidaram contra o pastor alemão, nem contra a agressão da polícia, nem contra as mangueiras de incêndio potentes que foram usadas contra os manifestantes. As imagens funcionaram, mostraram ao mundo uma realidade diferente, na qual ninguém pensava desde os 100 anos em que os negros estavam livres da escravidão naquela época. Pessoas ao redor do mundo ficaram chocadas e começaram a notar.

No entanto, a próxima geração não queria usar a mesma abordagem, os jovens durante a década de 1960, na época do meu pai, eram muito mais radicais. Estes foram os Baby Boomers, a primeira geração nascida após a segunda guerra mundial e muitos deles foram para o norte do país em áreas como Nova Iorque , Filadélfia, Detroit e Chicago, onde tem uma diferença na forma que os brancos racistas agem contra os pretos.

Essa geração viu tudo o que aconteceu por anos com os país deles e também a luta pacifica que os lideres no movimento de direitos civis adotaram no sul e cansaram de ver o pacifismo sendo utilizado para combater violência.

Confira um pouco de registros históricos da memória negra americana no documentário “Black Wall Street”, um massacre de centenas de negros nos EUA.

Estávamos nascendo nas cidades do norte. Essas cidades do norte tinham os mesmos problemas que as do sul, mas tinham trabalho nas fábricas e um tipo de organização diferente do sul. No sul, se você não se afastasse quando um homem branco caminhava em sua direção, você poderia morrer arrancado de sua casa no meio da noite e levado para uma área arborizada e enforcado, inúmeras mulheres e homens negros foram mortos assim, brutalmente por qualquer motivo,esses crimes eram naturalizados, os brancos não eram punidos.

Isso significa que no sul não havia muitas rebeliões raciais como no norte. Essas rebeliões no norte, principalmente na década de 1960, foram causadas por uma série de fatores. A número um foi a integração racial.

Se você estudar a história dos Estados Unidos, saberá que houve duas grandes migrações diferentes de afro-americanos que se mudaram para o norte após a escravidão. Antes da segunda grande migração, muitos brancos nunca tinham visto negros e logo eles estavam se mudando para os mesmos bairros.

Quando isso aconteceu, o resultado foi o que chamamos de “vôo branco”. Os brancos venderam suas casas por um dinheiro muito baixo e se mudaram para novas cidades chamadas “subúrbios”, que estavam sendo construídas ao redor das grandes cidades, onde criaram bairros agradáveis com uma alta qualidade de vida, “o sonho americano”, pois a qualidade dos bairros que deixaram continuava a declinar e decair, e embora a maioria dos residentes agora fosse negra, a força policial permaneceu branca e tão racista quanto a polícia do sul que era filha da klu klux klan.

Essa mistura criou o ambiente que culminou na rebelião da raça urbana moderna que temos visto nos últimos 60 anos. Mas qual foi o resultado de algumas das maiores rebeliões racial daquela época?

Eu carrego o sobrenome Fields, nasci na cidade de Newark, em New Jersey, muitas partes dessa cidade foram destruídas em 1967 durante a rebelião. Muitos de nossos bairros foram destruídos e, com a saída de todos os brancos, não houve mais investimento na cidade.

Muitas das fábricas fecharam e, na época em que nasci não havia muitas coisas positivas que as pessoas estavam dizendo sobre Newark, New Jersey. Com oportunidades econômicas limitadas, muitos jovens residentes começaram a vender drogas e formar gangues, com mais dinheiro das drogas vieram mais armas e guerras de gangues que ainda persistem até hoje.

É um fato que as rebeliões em muitas das maiores cidades dos Estados Unidos por um longo período pioraram de muitas maneiras as condições dos afro-americanos. Não é muito popular falar sobre os efeitos negativos das rebeliões dos anos 1960 e de todas as outras coletivas, como você pode ver o espírito da rebelião violenta ainda está muito vivo.

As rebeliões que aconteceram nos últimos meses são muito diferentes, pois estão em um momento de conectividade online, onde as pessoas recebem informações rapidamente e todo o mundo saiu às ruas protestando. Tenho minhas suspeitas se foi só para conseguir sair de casa durante a quarentena, mas isso é outra história.

Recentemente, em meio a tudo o que aconteceu com George Floyd e o clamor público, vi muitos posts escritos por brasileiros dizendo que os brasileiros não saem às ruas e não destroem seus próprios bairros como os norte-americanos fazem. Pensei comigo mesmo, as pessoas que estão dizendo isso provavelmente não têm ideia das consequências, do verdadeiro impacto e o custo futuro que essas violentas rebeliões causam na sua vida e na sua comunidade, porém nada muda em relação ao racismo estrutural.

“A pandemia fez o medo se tornar presente no meu dia a dia”, afirma moradora do Jardim Peri

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Confira a primeira entrevista da série Relatos LGBTQIA+, na qual o Desenrola vai mostrar os impactos físicos e mentais causados pela pandemia de coronavírus na rotina de moradores de territórios periféricos da cidade de São Paulo.

Há seis anos, Grazielia Pereira, 28, moradora do Jardim Peri, bairro localizado no distrito da Cachoeirinha, zona norte de São Paulo, saiu da sua cidade natal, em Presidente Tancredo Neves no interior da Bahia, com o objetivo de se desprender das privações que sua cidade causava em seu corpo negro e na sua identidade sexual lésbica.

Hoje ela prefere não se rotular para entender suas afetividades de forma livre. No entanto, a estudante de jornalismo foi intensamente afetada pela pandemia de coronavírus, tendo a sua liberdade e a saúde física e mental afetada diretamente pela dificuldade de transitar e viver a cidade.

“A pandemia fez com que o medo se tornasse elemento presente no meu dia a dia. Saio todos os dias para trabalhar, trabalho como atendente de telemarketing, e todo dia é recorrente o pensamento que eu voltarei para casa infectada”, conta Pereira.

Dentro do município de São Paulo há apenas três Centros de Cidadania LGBTI+ com sede fixa. Esses espaços públicos têm o objetivo de desenvolver ações permanentes no combate à homofobia e o respeito à diversidade sexual para moradoras e moradores que são lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulher transexual, homem trans e intersexual.

Para quem mora nas periferias da zona leste da cidade, a única opção de atendimento é a unidade Laura Vermont, localizada em São Miguel Paulista. O outro equipamento público é o Luana Barbosa dos Reis, que tem sua sede na Casa Verde, na zona norte. O último Centro de Cidadania LGBTI+ em São Paulo é o Edson Neris, que fica em Santo Amaro, zona sul.

Além das sedes com endereços fixos, a prefeitura de São Paulo percorre a cidade oferecendo esses serviços à população com quatro Unidades Móveis de Cidadania LGBTI+. Mas uma pergunta importante que atravessa a vida da moradora do Jardim Peri é o fato se em ao cenário das desigualdades sociais agravada pela pandemia de coronavírus, esses serviços chegaram até a quebrada para atender os moradores dos territórios periféricos?

Jardim Peri, periferia da zona norte de São Paulo (Foto: Grazielia Pereira)

“Gostaria de dizer que está tudo bem, mas a verdade é que está bem complicado”

Grazielia Pereira

“Gostaria de dizer que está tudo bem, mas a verdade é que está bem complicado, sempre me cobrei muito para me manter sã, e agora me percebo ruir pouco a pouco, tenho me sentido insegura principalmente sobre o futuro, e sobre minha rede de apoio, eu sou meu próprio apoio, sempre foi assim”, define.

Um dos serviços oferecido pelo Centro de Cidadania LGBTI+ é o apoio psicológico e de serviço social, no entanto, Pereira não teve como acessar esses serviços essenciais neste momento da pandemia, devido ao protocolo de isolamento social.

Mas como ela mesma ressalta, espaços de lazer e cultura são bem escassos no bairro onde mora, contudo, os espaços públicos de saúde como as Unidades Básicas de Saúde (UBS) estão cumprindo um papel importante de atender a população LGBTI+ mesmo nesse momento de pandemia. “Gosto muito de morar aqui. O Jardim Peri não é um bairro de difícil acesso, mas no que diz respeito à cultura e lazer não tem muito que oferecer. Sei que aqui tem a UBS e que ela dá assistência para pessoas trans em tratamento hormonal, eles direcionam as pessoas para médicos especialistas”.

A ida e volta para o trabalho vem se tornando um martírio no seu cotidiano, no entanto, essa rotina ainda impacta a constante discussão sobre a autoafirmação da identidade de Grazielia, que para além do fato de ser, também passa por uma série de situações sobre a forma como é enxergada pela sociedade. 

Grazielia Pereira considera o fato de ser negra mais um estigma em meios aos preconceitos da sociedade (Foto: Amanda Barbosa)

“Fazer parte da comunidade sendo negra é carregar mais uma estigma”

Grazielia Pereira

Grazielia Pereira, 28, moradora do Jardim Peri, bairro localizado no distrito da Cachoeirinha, zona norte de São Paulo (Foto:Amanda Barboza)

Neste contexto, a questão racial se torna mais um ponto disparador na sua vivência na cidade. “Fazer parte da comunidade sendo negra é carregar mais uma estigma e também uma alvo maior para situações de preconceito, discriminação e silenciamento. Não é mais fácil ser uma mulher negra dentro da comunidade LGBTQIA+, dentro dela também vivenciamos a solidão e o preterimento. Mulheres negras nunca são as escolhidas nem mesmo por outras mulheres”.

Mesmo diante desses desafios, Pereira segue reafirmando suas origens e faz questão de ressaltar que segue batalhando para sobreviver numa cidade áspera como São Paulo. “Eu sou aquele clichê bem conhecido: uma nordestina batalhando muito para sobreviver em São Paulo. Desde que cheguei aqui moro na parte norte da cidade. Apesar de ainda não viver como eu gostaria aqui, tenho uma história de infância e adolescência de muitas privações e ainda não consigo desassociar isso da minha terra natal, por isso sigo firme na decisão de viver nesse lugar, aqui eu enxergo um horizonte, e isso é o que me atrai e me mantém viva”.

Grazielia relembra que já entrou em crises de identidade. Uma delas ocorreu durante o processo de descoberta da sexualidade e compartilha algumas memórias que mais a marcaram sua trajetória. “O que mais me marcou foi uma conversa que tive com mainha, falei para ela que estava namorando uma garota, foi também a primeira vez que ela disse que me ama. Pode parecer estranho para pessoas que cresceram ouvindo isso dos pais, mas na minha família falar de amor era quase um tabu”, revela.

Após essa experiência de troca de afeta com sua mãe, a moradora do Jardim Peri recorda a importância deste acontecimento na sua vida afetiva. “Isso abriu portas para um sentimentalismo que eu ainda não tinha vivenciado com minha mãe, e hoje é mais frequente ela falar que me ama. É importante falar que meus pais são casados. Não mencionei o meu pai porque nunca conversamos sobre isso, a dinâmica da nossa família é que mainha é a porta-voz de tudo, então foi ela quem falou com ele sobre meu namoro e todo o resto. Ele e eu nos falamos pouco, mas isso sempre foi assim”.

Ela finaliza afirmando que ser não heterossexual é um grande desafio numa sociedade com tantos preconceitos a serem vencidos, como na sua cidade de origem. “A heterossexualidade é compulsória em nossa sociedade. E isso é fato, porém nascer e crescer em uma cidadezinha do interior torna isso muito pior. Então eu demorei muito para entender que eu não me encaixava nesse molde social que o homem nasceu para mulher”.