Opinião

Dos “bairros dormitórios” emanam sonhos pulsando por transformação

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Num país desigual como o Brasil, as periferias são resultado dos sonhos de milhões de migrantes em busca de uma vida melhor. Quem nunca ouviu esse relato de um parente próximo?  

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Evento cultural realizado em Parelheiros, zona sul de SP. (Foto: Luara Angélica)

A intenção deste texto não é ser motivacional, mas falar sobre a importância das motivações – principalmente as coletivas. “Prelúdio”, canção de Raul Seixas, indica no próprio nome que o primeiro passo é sonhar. Mas, o que é sonho?

Essa palavra, com significado tão amplo, pode ser desde querer uma bola até ser jogador de futebol. Vai de almejar conhecer algum lugar, até o desejo de ser conhecido. Há muitas possibilidades…

Por mais que haja uma diversidade de ambições em cada indivíduo, o ato de sonhar sempre tem algo em comum: está atrelado ao desejo de crescimento, numa perspectiva para um futuro melhor. E o que isso tem a ver com a cidade? É que, para muita gente, o sonho ainda está distante, há pelo menos três conduções e duas horas da sua “goma”.

A problemática aqui não é o quão longe uma pessoa periférica queira chegar, mas, sim, a centralização das conquistas. A narrativa predominante reforça este imaginário centralizador, já que estão concentradas no mesmo lugar e para poucas pessoas as oportunidades para realizar seus desejos, isso porque, como tudo na sociedade, nossos objetivos também são fruto de construções sociais e de nossas experiências urbanas. 

“A prefeitura é a sala de jantar, a cidade é o jardim, e a favela é o quarto de despejo”

Carolina Maria de Jesus

 Eu, Laura, passei parte da minha infância na região metropolitana de São Paulo e, quando eu tinha nove anos de idade, minha família se mudou para Parelheiros, no extremo sul da capital. No ensino médio, eu me lembro de conversar com os amigos e termos uma afirmação semelhante: “Os nossos sonhos envolviam a necessidade de sair da periferia”.

Se sonhar implica almejar um futuro melhor, na nossa cabeça isso não seria possível num território com ausência e violência do Estado (discurso reafirmado diariamente sobre as regiões marginalizadas). Como disse Carolina Maria de Jesus: “A prefeitura é a sala de jantar; a cidade é o jardim; e a favela, o quarto de despejo”. A descrição da escritora sobre a configuração da cidade expõe a materialização da segregação socioespacial.

Num país desigual como o Brasil, as periferias são resultado do sonho de milhões de migrantes em busca de uma vida melhor. Quem nunca ouviu esse relato de um parente próximo? Se para Carolina, o motivo para lutar era a fome, para João poderia ser sair do aluguel e ter o direito à moradia, enquanto para José, é ficar menos tempo no transporte e poder trabalhar mais perto de casa, assim como para Teresa, é o anseio de voltar pra casa sem medo e para outro morador do extremo, é retomar os estudos.

Esse acúmulo de emergências do povo é responsabilidade do mesmo sistema que o culpabiliza pelas adversidades do crescimento desordenado da cidade, num discurso apoiado na informalidade em que sujeitos periféricos estão inseridos, seja na habitação, geração de renda, escolaridade e demais indicadores.

A questão é justamente a absorção dessa narrativa por parte da população: o que deveriam ser direitos, transformam-se em metas pessoais, baseadas no mito da meritocracia, em que privilégios supostamente são resultados de esforço individual. Mas “um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só”…

Ao passo que os territórios vão se modificando e proporcionando a estrutura necessária para seus moradores, tais como serviços básicos e infraestrutura, ou seja, enquadrando esses lugares na “formalidade”, a população mais pobre é empurrada cada vez mais para as extremidades, mas isto não significa que estas pessoas vivenciem a totalidade da realidade local.

O que se nota, ao invés disso, é que este território acaba caracterizado como “bairro-dormitório”, ou seja, quando a gente cumpre o conhecido “ritual”: sair pra trampar às 5h; chegar no serviço às 8h; só sair às 18h; pegar o transporte público sempre lotado pra chegar em casa às 21h; e dormir (se não levar em conta a jornada dupla materna). Em outras palavras, o único momento que uma grande parcela da periferia vivencia a periferia é nas sobras do trabalho, que é o meio para realizar os tais sonhos. 

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome” 

Carolina Maria de Jesus

As margens, que surgem do anseio por uma vida melhor permanecem se empenhando diariamente em realizar este mesmo objetivo. Mas, assim como há uma multiplicidade de sonhadores em cada canto, também existem alternativas descentralizadas de alcançar nossos sonhos.

Inclusive, ao territorializar nossa visão sobre a cidade e observá-la sob um outro ponto de vista, germinam inúmeras descobertas sobre nossas quebradas: por exemplo, a primeira escola do bairro que é fruto de uma construção popular; ou mesmo aquele samba que acontece todo fim de semana que alémde divertir a comunidade, arrecada alimentação para várias famílias; até o caso da Joana, que realizou o sonho de acessar a universidade e hoje alimenta outros sonhos, levando um cursinho comunitário pro seu bairro.

A Laura com 15 anos participou de um projeto que buscou conhecer e divulgar o seu território, conheceu pessoas e lugares com que se reconheceu e sentiu orgulho de fazer parte de um local que mesmo com tantos obstáculos, é composto por uma variedade de ações que envolvem justamente driblar as barreiras que separam a periferia dos seus sonhos – e isso só é possível a partir das motivações coletivas, porque “um sonho que se sonha junto é realidade”.

É sobre subverter a narrativa, mostrando que a periferia não é o problema, mas, na verdade, a solução. Historicamente foi das mãos marginalizadas que se ergueu cada construção da cidade e é do trabalho de corpos periféricos até hoje que ela se mantém.

Longe de querer romantizar este contexto, mesmo porque muitas das lutas que travamos só fazem sentido para que os próximos vivam outro mundo, no qual os “menó” tenham o direito de sonhar e realizar seus sonhos. Parafraseando novamente Carolina Maria “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome”, isso porque semelhante ao processo de cicatrização das feridas, a CURA é PELAS BORDAS. 

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