Home Blog Page 62

UmSoh online: trabalhando com música em tempos de pandemia

0

As pessoas que nos conhecem gostam de nos associar a um casal fofinho que fazem coisas legais, e confesso que é massa sermos vistos como referência de família e amor preto, mas trabalhamos muito para produzir letras, beats, vídeos e todo tipo de conteúdo para um dia chegarmos a um patamar estável, onde finalmente estaremos vivendo da nossa música.

Jordan Fields (Bixop) e Lena Silva

Para quem não sabe, BiXop e eu somos muito mais que um casal. Somos Umsoh, uma dupla que através da música, difunde cultura preta e entretenimento. As pessoas que nos conhecem gostam de nos associar a um casal fofinho que fazem coisas legais, e confesso que é massa sermos vistos como referência de família e amor preto, mas trabalhamos muito para produzir letras, beats, vídeos e todo tipo de conteúdo para um dia chegarmos a um patamar estável, onde finalmente estaremos vivendo da nossa música. Buscamos por esse reconhecimento.

Queremos que as pessoas conheçam a nossa história, o nosso corre juntos, mas que saibam que incentivando os trampos, com uma indicação, um comentário sincero, já nos fortalece como profissional e fortalece a comunidade considerando toda a equipe envolvida no processo de produção. Todo artista, principalmente o artista independente, investe o que não tem para que a sua arte chegue em algum lugar.

Antes da pandemia começar, fizemos um cronograma extenso para a finalização do álbum Longa Jornada” e as gravações de uma série de vídeos clipes que ficaram pela metade. Com a onda do covid-19 e a primeira quarentena em março de 2020, nos deparamos com a impossibilidade de fazer shows e qualquer outra coisa.

Passamos a observar mais as redes sociais para entender como reinventar nossas estratégias e promover uma live, fenômeno que tem recebido muito destaque desde o início da pandemia, ideal para incentivar as pessoas a estarem em casa vivenciando uma nova forma de se divertirem e a serem mais solidárias com o outro. 

Uma pesquisa realizada pelo Google, responsável pelo Youtube, mostrou que 85 milhões de brasileiros assistiram à lives de shows durante a quarentena. O formato de show transmitido de forma online teve grandes alcances e fez sucesso em meio a pandemia. Entre as dez lives musicais mais assistidas no Youtube, oito delas são de cantores brasileiros.

Pensei que seria uma boa organizar um show online para divulgar o álbum, mas antes eu assisti diversos lives show de rap, samba e sertanejo de todos os níveis, dos mais famosos aos artistas mais locais para entender melhor a dinâmica e fazer algo mais próximo a um show de verdade, levando ao público qualidade e informação.

Escolhi a data perfeita para falar e cantar sobre a vida, amor e resistência, 12 de junho de 2020, Dia dos Namorados. Solicitamos os serviços de transmissão stream com os parceiros @vulcams e tivemos a participação do @Quebradagroove com Jonatas Noh no trompete e na machine, e também utilizamos o espaço do Centro de Mídia com o apoio dos parceiros Desenrola e Não Me Enrola.

Eu pensei em um cenário básico, com algumas referências de livros, quadros e discos. Escolhi o figurino que combinasse com as cores e durante os diversos ensaios fomos acrescentando ideias coletivas que enriqueceram o espetáculo. 

Confira a live completa: 

O retorno foi positivo, tivemos a interação dos amigos e pessoas que nos admiram. Ficamos muito satisfeitos. Cogitamos a possibilidade de fazer uma live ao mês, porém o processo é trabalhoso e cá estamos, a quase um ano do nosso primeiro show live… espero que tenha deixado aquele gostinho de quero mais, pois estamos melhorando a nossa performance e nível de produção.

O poder das lives, o aumento de engajamento e a interação do mundo inteiro nas redes sociais, nos proporcionou conexões com pessoas que assistiram o vídeo clipe Black Is Back In Style que alcançou mais de 10 mil visualizações e passaram a acompanhar nosso trabalho.

Participamos de festivais e parcerias em projetos com produtores aqui no Brasil e nos Estados Unidos, muitas vezes sem nem precisar sair de casa, mas quando é necessário realizar algum trabalho externo, tomamos todos os cuidados usando máscara, álcool em gel e mantendo o distanciamento social.

Este ano, no Dias dos Namorados estaremos online lá no Instagram @UmSoh para trocar uma ideia descontraída com vocês sobre afeto, sinergia e também sobre o novo vídeo web com a canção “Pretty Song” que iremos lançar nos próximos dias no canal do YouTube UmSoh que inclusive, convido vocês a se inscreverem e apertarem o sininho de notificações, e a seguirem o nosso instagram @Somos_Umsoh para acompanharem as novidades que estão por vir.

Gratidão padre Jaime e padre Eduardo, educadores populares!

0

Padre Eduardo e padre Jaime, dois irlandeses de origem, dedicaram suas vidas a caminhar com os empobrecidos no Brasil. Se tornaram educadores populares, corporificando as palavras pelo exemplo de vida.

Padre Jaime e Padre Eduardo

A periferia sul de São Paulo durante décadas teve em sua defesa dois guerreiros de primeira hora: Padre Eduardo e padre Jaime, dois irlandeses de origem, dedicaram suas vidas a caminhar com os empobrecidos no Brasil. Se tornaram educadores populares, corporificando as palavras pelo exemplo de vida.

Pelo modo simples de viver e caminhar, Eduardo e Jaime usaram o corpo para conscientizar as pessoas, nos mais difíceis, arriscados e polêmicos momentos, lá estavam caminhando com o povo em busca de mudanças. Exemplos da práxis freiriana, assumiram uma fé engajada desde a década de 1970.

Assim, com os pés no barro ao lado povo, fizeram das igrejas as quais eram responsáveis, espaços de acolhida, de cuidado, de encontros, de formação e organização popular, como as Comunidades Eclesiais de Base, os Clubes de Mães, as Caminhadas pela Vida e Pela Paz, as Escolas de Cidadania, o Fórum Social Sul, e tantas outros trabalhos e lutas.

Participaram incansavelmente de atos e manifestações por melhorias sociais, por moradia, por transporte, pela democracia, por educação, pelo fim do genocídio, além do apoio aos movimentos sociais, a famílias, aos jovens e tantos outros grupos ou pessoas que frequentava ou procura a paroquia ou sociedade Santos Mártires.

Dessa forma, Jaime e Eduardo alteraram as realidades em que estavam inseridos, transformaram as periferias onde atuaram em espaço de luta e esperança. Nas localidades marcadas por violência, pobreza e incerteza, a presença desses dois irmãos de fé se tornava luz, porto seguro para muitos grupos, referência para movimentos e ativistas sociais.

A casa deles era a casa de tantas pessoas em situação de rua e violência, ponto de encontro de freiras, leigos e tantos outros que professavam outro credo religioso ou nenhum credo, centro de pesquisas e formulação de políticas públicas.

Agora, é chegada a hora de agradecermos a esses combatentes e deixá-los partir com a certeza de que realizam o melhor trabalho possível. Depois de quase 100 anos (soma dos anos de Jamie e Eduardo no Brasil) dedicados ao Brasil e ao povo periférico, eles decidiram voltar à terra de seus familiares.

Contudo, o legado deixado é enorme, milhares de pessoas atendidas nos equipamentos que eles ajudaram a levantar, dezenas de movimentos e fóruns que discutem e lutam pelos periféricos, centenas de leigos e lideranças políticas formadas na escola da vida e de luta de Jaime e Eduardo.

Dos principais ensinamentos desses mestres, fica que a prática religiosa que caminha com as questões sociais e políticas, salva vidas e transforma realidades, nos ensinaram também que a busca pela sociedade do bem viver exige diálogo entre grupos diversos, religiosos e não religiosos. Mas sem dúvida a maior herança deixada por eles, é a ESPERANÇA. Devemos continuar mantendo a chama da esperança acesa!

Portanto, a partida de Eduardo e Jaime nos traz a responsabilidade e o compromisso de darmos continuidade as lutas por eles assumidas durante décadas. Mais do que nunca, neste período de retrocesso dos direitos sociais que estamos vivendo, os ensinamentos desses mestres precisam prevalecer: conscientizar o povo, lutar com povo, colocar o pé no barro (“a cabeça pensa onde os pés pisam”, lembram), e ter ESPERANÇA.

Eduardo e Jaime, partam com a certeza de que vocês foram os melhores professores que podíamos ter tido, seguiremos a história, emanem energias de onde vocês estejam, continuaremos JUNTOS! Gratidão!

Viva padre Eduardo, Viva Padre Jaime, Viva a luta do povo Periférico!

Padre Eduardo e Padre Jaime junto a rede de cursinhos populares Ubuntu.

Rafael Cícero de Oliveira e Thaís Cizauskas

“Já aconteceu de acabar a luz”: a rotina do home office na quebrada

0

Morador da periferia de São Paulo compartilha as adversidades no seu dia a dia, como a instabilidade de internet, barulhos externos, má comunicação no ambiente virtual corporativo, e o cansaço psicológico, que impedem a possibilidade de construir uma rotina saudável de trabalho dentro de casa.

Patrick no momento do seu trabalho em casa (foto: Vania Silva)

Desde o começo da pandemia de covid-19, em abril de 2020, quando ela começa atingir os moradores das periferias e favelas, Patrick Silva, 24, morador do Parque Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, trabalha como agente de relacionamento no formato home office.

A maior parte da rotina do morador acontece dentro de casa, um local de trabalhando, no qual ele vive adaptando os pequenos cômodos como um escritório. Para ele, uma das principais vantagens de trabalhar em casa é a autonomia para gerir o tempo. “Em casa já é bem mais tranquilo você tem mais liberdade de fazer o que quiser, inclusive ficar no fone de ouvido, tomar café toda hora sem ter que precisar ir comprar, então em casa a gente tem mais liberdade, digamos assim”, afirma.

O tempo que Silva gastaria da sua quebrada até seu trabalho é de 45 minutos, e normalmente ele utiliza esse tempo para compor sua rotina, dando atenção às demandas de cuidado pessoal e tarefas domésticas, e com isso, ele consegue fugir do caótico trânsito de São Paulo.

“É bem tranquila, geralmente nas pausas eu ajudo arrumar as coisas de casa”, conta Patrick, que divide o espaço da casa com sua mãe. “Mesmo sendo um pouco pequeno acredito que tem um bom espaço, já a concentração é tranquila, às vezes eu acabo me distraindo um pouco, porém é bem tranquila”, explica o agente de relacionamento, que montou uma estação de trabalho na sua casa para fazer as tarefas diárias da empresa.

Um dos aspectos que ele julga negativo no home office é o aumento da circulação de pessoas nos finais de semana na viela ao lado da sua casa. Segundo o morador, conforme o número de pessoas aumenta, o barulho causado por elas impacta diretamente as reuniões de trabalho.

“Aqui na viela tem bastante movimentação, inclusive no dia de sábado né. No geral, a gente não tem muita reunião, mas quando tem barulho eu falo: ‘olha tá tendo um pouquinho de barulho aqui em casa e para não incomodar vocês eu vou deixar o áudio mudo e falar só quando for necessário”, revela.

Outro ponto que gera alguns impasses durante o home office é computador utilizado para realizar as tarefas de trabalho. Esse é um ponto importante lembrado pelo morador como um diferencial para ter êxito ou problemas inesperados no dia-dia. “Quando começou o home eles me mandaram um desktop, claro fiquei feliz e grato ao mesmo tempo, depois de um ano trocaram e o equipamento, que é bem abaixo do que eu esperava”, confessa Patrick.

A partir do momento que o equipamento foi trocado pela empresa, Patrick diz que a infraestrutura já deixou a desejar, forçando-o a se locomover até o escritório da empresa. Mas o computador não é a única motivação que já o levou até a empresa para trabalhar, a instabilidade da internet também já contribuir para gerar esse contratempo. “Já aconteceu de acabar a luz e eu tive que ir até lá, e se a internet deixa na mão eu posso ir até a empresa, e isso já aconteceu”. 

Ansiedade 

Para Silva, essa forma de gestão de pessoas que estão fazendo home office afeta diretamente a sua saúde mental. “Às vezes eles pedem para ficar até um pouco mais tarde para concluir as demandas, e eu fico, mas meu psicológico não quer, mas meu corpo quer, entendeu? Só que incomoda, porque fica doendo a vista, as costas doem um pouco de tanto ficar sentado o dia inteiro olhando para o computador”, revela o morador.

“Quando o nosso superior começa a cobrar demais eu fico um pouco desmotivado pela falta de empatia deles, e isso abala, porque fico preocupado em não entregar a minha meta no dia”, compartilha o morador, enfatizando que enxerga nessa virtualização do trabalho um aumento da cobrança de seus chefes.

Mesmo com esse impacto negativo nas questões físicas e mentais causadas pelo novo local de trabalho, Patrick considera que trabalhar dentro de casa o afasta do ambiente tóxico das relações desgastadas dentro da empresa. “Às vezes a gente não está bem com um determinado colega de trabalho e às vezes até com o próprio chefe”, confessa.

Ele finaliza a entrevista afirmando que gosta da liberdade de ir e vir ter uma rotina fora de casa, e enfatiza que o home office acaba sendo mais confortável para si, do que para a realização das tarefas de trabalho. “Eu gosto de sair, mesmo que seja a trabalho, pelo fato de ver alguns amigos na hora do almoço, comer fora, ir em algum lugar e dar risada, isso tudo é bem bacana. A única vantagem é que você não precisa ter que ficar toda hora falando com o seu superior”, conclui.

Pretos e a mais valia da vida: quais espaços estão prontos para nossa presença?

0

Ricardo Lima, jovem negro estudante na USP, sofria com bullying e racismo de colegas, docentes e da própria instituição. Seus pedidos de ajuda foram ignorados e no dia do suicídio nenhuma ação foi realizada para evitar sua morte. No dia 28 de maio, seus amigos realizaram um ato na USP em sua homenagem e cobrando providências em relação às práticas de racismo institucional dentro da universidade.

Ato em memória de Ricardo Lima, vítima de bullying e racismo institucional e se suicidou no dia 25 de maio de 2021. Foto de Felipe Dowson.

Terça-feira, 25 de maio de 2021, por volta do fim da tarde um estudante preto matriculado no curso de Geografia da USP morreu por suicídio dentro da residência estudantil daquela que ostenta o titulo de “maior Universidade da América Latina”. Ricardo Lima da Silva, era mais um estudante preto da Universidade de São Paulo, residia no Crusp, conjunto habitacional da Universidade localizado dentro do campus Butantã (Cidade Universitária).

A condição que propicia uma situação limite como essa se sustenta em violências cotidianas que corpos pretes sofrem diariamente: racismo e necropolítica. Dessa maneira, são negados direitos básicos, levando a autodepreciação, segregação e a vulnerabilidade social. Não é à toa que a população preta e jovem é a que mais se suicida. 

Segundo dados do Ministério da Saúde, divulgados em 2019, a cada 10 jovens que se suicidam, seis são pretos. É importante salientar que esse índice vem crescendo ao longo dos últimos anos, enquanto que o suicídio entre pessoas brancas diminui.

O que leva uma pessoa a ceifar a própria vida se não um sofrimento e uma pressão impostas por uma sociedade doentia que moí vidas humanas? E que vidas são essas que têm suas mortes espetacularizadas, omissas e “insignificantes” para essa troca de valores que perpetua a mais valia da vida? As vidas pretas aparentam obter o menor dos valores. 

Dos gatilhos que nos rodeiam diariamente, aprendemos desde cedo a nos podar, pisar em ovos e estar sempre atentos conosco e ainda com o nosso ao redor. Talvez seja esse nosso “defeito de cor”: ter que suportar demais, ter que seguir suportando sem nos rebelarmos, não somos ensinados a reagir ao oposto dos algozes que seguem ensinamentos da normalidade sobre atacar nossos corpos e história.

Foto de Felipe Dawson

Ou quem sabe nosso “defeito de cor” é ser quem somos nessa estrutura racista. 

Me questiono o quanto Ricardo teve que suportar por ocupar um espaço de direito “democrático”. Mas que nossa ocupação, o simples fato, de ter ocupação preta gera desconforto na estrutura social do país que foi erguido por mãos de trabalho escravo. O fardo de ser racializado se junta ao fardo de ter que ocupar lugares. E isso vai para além do discurso de empoderamento. É sobre pararmos para avaliar quais os custos das nossas conquistas. Um título acadêmico não deveria custar a saúde mental e desconforto de ninguém. 

Estamos sempre no discurso de como população pobre e preta ter que ocupar e “ocupar” tudo e todos os espaços, mas que tal agora pensamos em ferramentas que possibilitem a permanência dos nossos nos espaços que queremos representatividade. A “ocupação” desses lugares e instituições sem o alicerce de políticas de inclusão e acesso (para além das cotas sociais), necessitamos de acolhimento, pertencimento, pois a “representatividade” de estar ocupando pode se tornar fardo ao nosso povo.

O nosso “defeito de cor” nem ao menos é nosso, é do racista que não se enxerga dentro e como reprodutor na manutenção da estrutura. 

Não temos dúvida que houve pura negligência com o aluno Ricardo por parte da USP e suas entidades representantes. Mais do que isso, houve racismo institucional, bullying e omissão de ajuda

Assim como o Ricardo, todas as pessoas racializadas e pobres que passaram ou que estão no meio acadêmico, já se depararam com a maneira que o racismo estrutural é perpetuado. Da burocracia à omissão, somos diariamente alvos das mais variadas formas de violência dentro dos espaços. 

O que nos choca é um espaço que se diz “intelectual e culto” não ser a maior e nem a melhor universidade se você for preto e pobre. O que vemos nesses espaços é um epistemicídio aliado à negligência. De que adianta as cotas raciais isoladas de uma política de permanência que assegure nossa saúde física e mental?

Não existe uso político desta tragédia que afetou nosso amigo Ricardo. Sabemos que a permanência de pessoas pretas e pobres dentro da universidade sempre será um ato político, assim como sua ausência será pauta reivindicatória entre nós! O que se discute aqui são questões para além do imediato como políticas de permanência estudantil, qualidade de vida e bem estar social, empenhadas à uma comunidade que vem sendo, historicamente, negligenciada.

Do Ricardo aos tantos jovens pretes e pobres das quebradas, frutos de cursinhos populares, fica nosso incentivo, força, alegria e preocupação com eles ao lutarem e ocuparem a tão sonhada vaga na faculdade pública. Que adotemos o uso das políticas públicas de permanência com maior seguridade para a cuidar dos nossos jovens sonhadores, que ingressam nesse sistema cheio de sonhos, desejos e vontades de mudar a estrutura.

Ao Ricardo e a todos os nossos mortos, desejamos que “Olorum os recebam, de braços abertos” e aos que ficam desejamos que as dores sejam curadas e que a luta por dias melhores não seja em vão.

Foto de Felipe Dawson

Como os trabalhadores da cultura de Heliópolis estão sobrevivendo à pandemia?

Estudo do Observatório De Olho Na Quebrada aponta que 84% dos artistas de Heliópolis tiveram seus trabalhos afetados pela pandemia em 2020. 

Com cerca de 200 mil habitantes, a Cidade Nova Heliópolis tem o histórico de ser uma das favelas mais antigas de São Paulo. Um dos seus principais legados para a configuração cultural da cidade está na formação do bairro constituído por famílias das regiões norte, nordeste e centro do país.

Uma das moradoras de Heliópolis que representa esse cenário de construção do bairro é Gabrielle Santana, 23, artista e educadora, que nasceu em Cuiabá, capital do Mato Grosso. Ela é conhecida dentro do território como MC Leona, uma das integrantes do grupo Crew Marretas do Hip Hop. A pandemia afetou negativamente a atuação profissional da moradora dentro do território. 

“Os shows marcados foram cancelados, os cachês não foram recebidos”

Gabrielle Santana é artista e educadora social.

“Os shows marcados foram cancelados, os cachês não foram recebidos. Trabalhei o meu lado artístico especificamente nas redes sociais. Como educadora, o trabalho dobrou, pois trabalhamos em home office e presencialmente com o horário reduzido, o que causou o aumento do nível de ansiedade e reflexões sobre saúde mental. Todos da minha área estão saturados e desgastados mentalmente, os celulares não estão aguentando o excessivo uso”, relata Santana.

A educadora atende jovens e crianças no Centro para Crianças e Adolescentes – CCA Mina, equipamento comunitário administrado pela UNAS, uma organização social atuante em diversos projetos de combate as desigualdades sociais em Heliópolis.

Atenta à importância de cobrar ações do poder público para apoiar os agentes culturais de Heliópolis durante a pandemia, a moradora enfatiza a sua participação no estudo realizado pelo Observatório De Olho Na Quebrada, iniciativa que atua na apuração de dados oficiais e produção de pesquisas para criar estratégias e políticas públicas para o combate à Covid-19.

Mc Leona foi umas das artistas da Favela de Heliópolis que foi afetada pela crise gerada pela pandemia nos agentes culturais do território. (Foto: Andreas Ciero)

“Acho extremamente importante essas pesquisas para levantarmos dados e entendermos o contexto que profissionais da cultura, assim como eu, estão vivendo nesse momento. Sabendo das necessidades, a resposta para os problemas se torna mais fácil”, acredita ela.

Ela enfatiza o papel do poder público para fornecer dados confiáveis nesse momento difícil da sociedade. “O Governo poderia facilitar o acesso à informação, diminuir as burocracias ou se disponibilizar a ensinar os artistas que não entendem esses processos e criar novos editais, ajudar o dinheiro a circular entre nós artistas também, que precisamos sobreviver.”

Desde 2020, o Observatório De Olho Na Quebrada vem realizando uma série de pesquisas dentro dos territórios periféricos. Uma dessas investigações aborda os impactos da pandemia nos trabalhadores da cultura de Heliópolis, uma das maiores e mais antigas favelas da cidade, localizada na divisa da zona sul com o lado leste do município.

A partir dos dados obtidos ao longo da pesquisa, os pesquisadores que fazem parte do Observatório de Olho na Quebrada visam ajudar a comunidade a lutar pelos seus direitos. O estudo foi realizado entre os meses de junho e julho de 2020, com o suporte de um formulário online e contou com a participação de 50 trabalhadores da cultura, dentre eles artistas, produtores, educadores, técnicos que residem em Heliópolis, entre os meses de junho e julho de 2020.

MDH – Marretas do Hip Hop (Foto: Andreas Ciero)

“É de grande importância ter pesquisadores dentro da própria quebrada, pois conhecemos e vivemos a realidade do território”

Leticia Avelino é pesquisadora do Observatório de Olho na Quebrada

Nascida no Piauí e moradora de Heliópolis desde os três anos, Leticia Avelino, 21, atua como educadora de dança de freestyle. Ela faz parte do grupo dos trabalhadores da cultura que enxergaram na pesquisa uma forma de entender os impactos invisíveis causados pela pandemia de covid-19 na economia da cultura local.

“A pesquisa é muito importante, ainda mais para mim que sou artista na quebrada, é uma pesquisa destinada para os próprios moradores e diversos outros lugares para buscar possíveis ajudas e oportunidades para quebrada”, define ela.

Outro morador de Heliópolis que participou do desenvolvimento da pesquisa é o artista Gabriel Feitosa, 19, o artista e pesquisador explica a proposta de trabalho do observatório no território. “Moro no Heliópolis. Enxergo ele como um bairro de luta. Sou pesquisador no projeto De Olho na Quebrada, aqui levantamos dados sobre a população daqui e temos o objetivo de manter a memória de Heliópolis viva. Usamos toda a arte que reverbera ao nosso redor, música, dança, grafite e poesia. Trabalhamos com e para a comunidade”, conta.

Feitosa cita novamente a escassez de dados dentro sobre a vida nos territórios periféricos e a partir disso, ela explica o tema da pesquisa. “Quis ajudar na criação da pesquisa porque sou artista. Um dos 84% dos artistas de Heliópolis que tiveram impactos em seu trabalho devido a pandemia, e não existe dados oficiais sobre isso, por isso resolvemos realizar uma série de pesquisas.”

Para o pesquisador, trabalhar com arte e cultura nas periferias e favelas significa ter que se virar, ter uma vida dupla, tripla, pois a arte exige dedicação total. “Para um morador de Heliópolis que tem que lidar com todas as adversidades viver de arte é difícil. A pesquisa fala sobre como os artistas periféricos estão sendo prejudicados na pandemia. Foi feita pra comunidade e pela comunidade pelo De olho na Quebrada.”

Além de educadora de dança, Letícia participou do processo de produção da pesquisa. Ela ressalta que um dos maiores legados da pesquisa é a participação de moradores da quebrada no processo de elaboração e execução.

“É de grande importância ter pesquisadores da própria quebrada, pois conhecemos e vivemos a realidade do território, assim sabemos o que precisa ser de mais atenção e o que pode ser criado para ajudar, e assim se baseia nossa ação de Heliópolis para Heliópolis”, afirma a pesquisadora, ressaltando que essa iniciativa pode inspirar outros agentes culturais de outras quebradas a fazer o mesmo pelo seu território.

Ela acredita que a pesquisa pode dar mais voz para as demandas de políticas públicas urgentes no território. “É com a pesquisa que damos voz para aquilo que precisa ser falado e mudado, como um grito de socorro mesmo, sobre nosso território e nos mesmos, não há registros, não há dados, por isso a pesquisa. Ela também traz o impacto da visibilidade, impacta que as pessoas sabem que há luta, que alguém está lutando por nós.”

“Vários artistas da região foram prejudicados, não conseguiram se sustentar”

Felipe de Oliveira é rapper conhecido no território como Arkano

“Sou preto com a família vinda lá de Minas Gerais. Utilizo da linguagem do Hip Hop como elemento, meu trabalho é pensado para adolescentes, jovens e adultos”, enaltece Felipe de Oliveira, rapper de 37 anos conhecido no território de Heliópolis como Arkano. Ele faz questão de enfatiza que mora na divisa com o distrito do Ipiranga e que a favela onde ele mora “historicamente importante para a cidade”.

Assim com outros agentes culturais que entrevistamos na reportagem, Oliveira sofreu um grande impacto na sua agenda de shows. “As contratações de shows caíram drasticamente por causa do fechamento dos espaços culturais e privados, como casa de shows e espaços relacionados com a arte e cultura. Meu trabalho artístico quebrou em mais de 90%. Vários artistas da região foram prejudicados, não conseguiram se sustentar, precisaram de auxílio, cestas básicas, tiveram que recorrer a solidariedade dos mais próximos, cenário muito triste”, relata.

O músico opina sobre como o poder público poderia apoiar os trabalhadores da cultura e fala sobre a lei Aldir Blanc, uma política pública de emergência cultural. “Reduzir a burocracia para acesso às verbas de recursos públicos emergenciais, muitas vezes é tanto documento a ser emitido e enviado que acaba por desestimular os artistas. E inda tem a lei Aldir Blanc no meio disso, que foi o mínimo que deveriam ter feito, acho que é melhor algum recurso do que nada, porém na minha visão, durante o período de maior necessidade dos artistas esse recurso não estava disponível ou era muito difícil para acessá-lo”, avalia.

Segundo o gestor e produtor cultural Gilson Marçal, 41, morador do Jardim Monte Azul no distrito do Jardim São Luís, zona sul da cidade, a Lei federal de Emergência Cultural Aldir Blanc veio para promover uma ajuda emergencial para artistas, coletivos e empresas que atuam no setor cultural e atravessam dificuldades financeiras durante a pandemia.

“Os eventos culturais foram as primeiras atividades a parar devido ao Covid-19, deixando no Brasil mais de um milhão de trabalhadores da cultura sem renda. O recurso vem do Fundo Nacional de Cultura (que tem três bilhões de reais) repassados aos Estados e Municípios de todo o Brasil. Cada Estado e Cidade precisou mandar um plano de trabalho para o Governo Federal e recebeu o recurso. São 3 linhas de apoio: 1) Renda de 600 reais para Trabalhadores e Trabalhadoras da Cultura / 2) Apoio a Espaços Culturais (subsídio) / 3) Editais, Prêmios e Chamadas Públicas”, explica o gestor cultural.

Para efetivação da Lei Aldir Blanc, o Estado é responsável por pagar a renda individual de 600 reais e lançar editais e a prefeitura local fica com a função de promover o apoio aos espaços culturais.

“No caso o Município ficou responsável pelos Apoios aos Espaços Culturais, o que é muito importante. Muitos destes espaços pagam aluguéis e contas que são pagas com os ingressos do público, do barzinho, dos produtos vendidos nos eventos. A lei fala em apoiar espaços físicos que têm CNPJ, Espaços Informais por meio de CPF, como também apoiar ‘teatro de rua e demais expressões artísticas e culturais realizadas em espaços públicos”, descreve Marçal.

A Prefeitura de São Paulo privilegiou no seu cadastro os Espaços Físicos com CNPJ, deixando de lado os Espaços Informais e Atividades que são realizadas em Espaços Públicos, como as Rodas de Samba, as Rodas de Capoeira, a Cultura Popular, as Artes de Rua e Eventos Tradicionais que ocorrem nas ruas dos bairros.

Ao avaliar os impactos da pandemia nos trabalhadores da cultura, Marçal lembra que os governo federal e municipal realizaram diversos ataques ao setor cultural bem antes da pandemia chegar com forças às periferias.

“Não tinha como prever ou evitar, mas se tivéssemos uma política cultural forte, que desse conta de apoiar o setor neste momento de crise, o estrago poderia ser menor. O Governo Federal ataca a arte e a cultura de forma verbal e de forma prática, com a extinção do Ministério da Cultura e a redução do orçamento. Quando olhamos para a Cidade de São Paulo não é muito diferente, o orçamento da Cultura foi cortado na Cidade e no Estado. No caso da Cidade, o Programa VAI 1 e 2, a Semana do Hip Hop, o Programa Vocacional, PIA (iniciação artística) tiveram seu orçamento reduzido e diminuíram seus atendimentos”, analisa.

O produtor enfatiza sua análise explicando o contexto dos trabalhadores da cultura neste momento. “Apesar da execução da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, os trabalhadores da cultura seguem em situação crítica, de alta vulnerabilidade e sem perspectiva de retomada das atividades culturais presenciais”.

Para contextualizar sua visão política e analítica sobre a situação dos trabalhadores da cultura, Marçal cita alguns números que demonstram sua preocupação com o setor. “Muitas casas de shows grandes e pequenas estão fechando. Só nos seis primeiros meses da pandemia 900 mil trabalhadores formais e informais perderam seus empregos e renda. Uma pesquisa do Itaú Cultural em novembro de 2020 revela que metade dos trabalhadores especializados em cultura perderam seus postos no último ano. O setor tem promovido ações para ajudar os trabalhadores da cultura e segue articulado à expansão e criação de Leis Municipais de Emergência Cultural, agora estaduais e municipais, para que seja possível promover mais uma nova ponte deste momento crítico até um controle da pandemia”, finaliza. 

Produção de lives vira campo de trabalho de coletivos culturais da quebrada

0

Demanda por pessoas qualificadas para produção de transmissões ao vivo em plataformas digitais aumenta nas periferias de São Paulo, devido ao fato de os coletivos culturais da cidade migrarem suas atividades artísticas para o ambiente online.

Registro tirado durante as oficinas (foto Acervo movimento cultural Ermelino Matarazzo)

Em Ermelino Matarazzo, território periférico da zona leste de São Paulo, a ocupação Cultural Mateus Santos, um espaço cultural independente organizado pelo Movimento Cultural Ermelino Matarazzo, reúne em uma única rede mais de cinquenta coletivos culturais.

Desde o começo da pandemia de coronavírus na capital, eles têm feito uma série de ações para aproximar os moradores da região do entretenimento produzido pelos artistas independentes e grupos artísticos locais. A internet se tornou uma das principais ferramentas a ser decifrada para gerar essa interação.

Uma das primeiras ações realizadas pela rede de coletivos foi a campanha “Internet Solidária”, iniciativa que incentivou os moradores de Ermelino Matarazzo a criarem uma rede de wifi comunitário, colocando todas as senhas e o nome da rede como ‘fiquememcasa’, como uma tentativa de diminuir os efeitos do isolamento social, oferecendo acesso para vizinhos quem não tem condições de contratar um plano de internet.

“Logo quando começou a pandemia eu tive esse start que tudo ia ir pro virtual, aí eu comecei a fazer umas lives por aqui, ninguém aqui na ocupa é formado em audiovisual, ai a gente começou bem precário, com celular, tentando conectar o celular na mesa de som”, conta Gil Douglas, 36, morador do Ermelino Matarazzo e articulador cultural no Movimento Cultural Ermelino Matarazzo.

É do articulador cultural a iniciativa de pôr a mão na massa e aprender a mesclar uma série de conhecimentos e vivências para aprender na prática a produção de lives, iniciativa ousada que deu origem a criação de um estúdio de transmissões ao vivo dentro da Ocupação Cultural Ermelino Matarazzo, espaço usado para apoiar artistas independentes e grupos artísticos locais a divulgar o seu trabalho nas redes sociais.

“A gente montou um estúdio para lives aqui na ocupa, a princípio com equipamentos emprestados”, explica Douglas, afirmando que o fato dos artistas e coletivos atuarem no formato de rede com cerca de 50 coletivos facilitou o processo de pegar emprestado os equipamentos necessários que dariam vida ao estúdio.

“Pega luz de um, câmera de outro, tripé de um, e aí a gente montou um estúdio live”, completa o agente cultural. Segundo ele, foram necessários três meses para adquirir um domínio das ferramentas digitais e dos equipamentos mais técnicos.

“Com três meses a gente já estava dominando um pouco essas ilhas de corte, mandando áudio legal e trampando com três câmeras”, descreve Douglas. Ele aponta que já foram realizadas 180 transmissões ao vivo dentro do estúdio que começou de maneira improvisada durante o primeiro ano de pandemia no Brasil, mas que hoje já oferece formações para outros moradores da região de Ermelino Matarazzo aprender a produzir lives.

“Esse ano muito por conta das dúvidas vários coletivos do bairro mandaram mensagem pra gente perguntando: que câmera que eu compro, qual você me indica, como que vocês captam o áudio?”, relata o agente cultural, que é hoje desempenha uma série de funções como produtor de streaming.

Após receber uma série de perguntas, a ocupação resolveu fazer uma semana de formação chamada ‘Semana do Zero Live’, voltada para moradores que são integrantes de outros coletivos culturais, que visam se aprofundar no processo de produção de uma live.

Esse treinamento incluiu o aprendizado sobre formatos de lives, manuseio de ilhas de edição, utilização de múltiplas câmeras, técnicas de som, cabeamento de equipamentos e manuseio de software de transmissão ao vivo.

Registro tirado durante as oficinas (foto Acervo movimento cultural Ermelino Matarazzo)

A integrante do coletivo literário Sarau dos Mesquiteiros Melissa da Silva, 21, é uma das moradoras da Ermelino Matarazzo que aproveitou a formação para melhorar a qualidade das lives durantes as apresentações do Sarau. “Foi muito importante essas oficinas, porque eu tinha muita dificuldade em saber como fazer lives com qualidade, é muita informação e equipamentos necessários e que não se acha fácil, então quando eles fizeram essas oficinas de como fazer uma live do zero foi de extrema importância, agora eu tenho o conhecimento necessário pra fazer uma boa live”, conta.

Melissa diz que o coletivo no qual ela atua precisou se atualizar para sobreviver no universo digital em meio a esse momento da pandemia, onde não há mais encontros presenciais. “No começo foi um desafio, pois estávamos acostumados com a apresentação em palco, então tivemos que aprender a lidar com as lives, fazendo apresentações mais individuais e não em conjunto”, explica.

Um dos principais desafios da articuladora cultural foi utilizar os equipamentos para captar um som com qualidade. “Eu tive dificuldade em captar áudio para as lives, no nosso sarau a gente costuma usar instrumento de percussão, e pra fazer esse som sair junto com a voz é o que acho mais difícil, tem que ter os equipamentos certos”, aponta ela.

Nas oficinas da Ocupação Cultura Mateus Santos, ela conseguiu sanar essas dificuldades. “Eles ensinaram quais equipamentos necessários e como montar isso tudo, como testar e mostraram equipamentos mais simples e em conta, e equipamentos mais complexos, e mais de um caminho de como fazer isso”, revela.

Após dominar esse importante conjunto de técnicas para produção de lives, ela conta que o Sarau Mesquiteiros conseguiu manter uma rede de apoio para pessoas que estavam em isolamento social, lidando com questões de saúde mental. “Contribuiu muito pra gente se sentir mais próximo das pessoas, para mostrar que estamos juntos nesse momento difícil de distanciamento e que essa é uma forma de amenizar a distância”, conclui.

Religião ou tradição: temores e vivências do paternar

0

Desde pequeno, meus pais não impuseram uma religião, pude conhecer o catolicismo, budismo, umbanda e até bruxaria, mas uma coisa eu percebia e não entendia nelas, uma necessidade de re-ligar.

Foto: Roger Cipó

Eis então uma família preta: desde pequeno, meus pais não impuseram uma religião, pude conhecer o catolicismo, budismo, umbanda e até bruxaria, mas uma coisa eu percebia e não entendia nelas, uma necessidade de re-ligar. A palavra religião vem do latim: religare, reconectar-se, ir de encontro com algo perdido, refazer um caminho…

Sempre me sentia conectado, ligado, tão integrado ao divino, nos meus sonhos, sensações, intuições e escutas. Fui até crismado, mas nunca entendi o culto da culpa e do pecado, da confissão, de ter alguém, homem, como minha conexão com o divino (se toda natureza à minha volta tinha como feminina).

Questionava o padre na igreja: se D’us é onipresente, onipotente e onisciente; se Ele está em tudo, é tudo e sabe de tudo, então Ele é cada partícula do universo, mesmo a lataria de um carro, então Ele sou eu, você, “o ar que eu respiro”, como diria Alberto Caeiro: 

[…]Mas se D’us é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.[…]

Alberto Caeiro

Então, mesmo quando vi e ainda hoje vejo pessoas tendo o Candomblé pra si como religião, isso não me acessa, não me mobiliza, pois meu entendimento, e a cada dia é maior, é de que estamos falando de uma tradição, um jeito de viver, um conhecimento oral, ancestral, passado de pessoa a pessoa, que permeia a forma como acorda, organiza sua casa, desenvolve seus pensamentos, se alimenta, se projeta no mundo; sendo esse um movimento de nutrição, de uma relação com o divino sagrada, profana, constante, entremeada, consciente e inconsciente.

A mão que se levanta na hora exata em que uma pedra é jogada pelo pneu de uma bicicleta, a pessoa que cruza seu caminho, lhe pedindo auxílio, bem naquele dia que irá tomar uma decisão ou fazer algo necessário.

Eu sou daqueles que acreditam que ando sempre com Exu, não só um pai, um guardião, mas um amigo, conselheiro, fiel em todos os momentos, orientando, resguardando, ensinando com todos os seus milênios de existência a nos movimentar sobre essa terra.

E mesmo dizendo isso e só depois de dizer tudo a cima, isso tem um peso, um peso que me faz refletir quase sempre: porque ronda um temor e uma imposição sobre o educar de nossas crianças na tradição de matriz africana?

Quando levo a cria pra dormir Oxum, Ogum, Exu e Iemanjá estão sempre presentes, nas cantigas, na intenção, na prosa com eles de que nutram, resguardem e orientem esse crescer. Dizem que Oxum acompanha todas as crianças até os 7 anos, que Exu, Ogum e Iemanjá, por toda nossas vidas.

Quando acordo é um conversar com as plantas, agradecer e pedir licença a Agé “ewe o ewassa”. Quando o vento vem forte, sou desses que grita Eparrei Oyá, Oraieieo na chuva fina e em vários momentos de vitória, Kao meu pai, quando ronca o trovão no céu. E pode se ouvir Malik gritando junto, mas o que ele mais grita é Oxum, do seu jeito gostoso de ouvir… Oraieie o….

Mas aí tu pensa: como será a escola? Será que conseguirei dar estrutura pra ele tirar de letra? Não se abalar? Como a família vai lidar se assim fizer sentido pra ele seguir a vida?

Porque a norma que está posta é que o normal é ser cristão e o demais é escolha. Quantos casos absurdos de denúncia de maus tratos e cativeiro não ocorreram, desrespeitando o que deveria ser tão comum quanto espalitar os dentes… e nesse momento alguém grita: comum!?

Pois é. O que há de comum em nós de famílias pretas, tendo nossa matriz em África se orientar por preceitos e crenças colonizadoras, que antes de qualquer coisa matou para se fazer valer?

Ainda hoje o processo de genocídio dos povos originários é um projeto a todo vapor, pois talvez um estar ligado seja, pra quem entendeu, um lugar de outra relação com a terra, com todo o sistema que nos compõe, pois eu, nascido com Orixá, carrego em mim as rochas, a terra, as aguas, o ar e é simples pensar sobre isso. O alimento que minha mãe ingeriu, o ar que ela respirou, foi como esses elementos que chegaram em mim e permanecem em mim.

Então o que há de estranho em ensinar meu filho a reverenciar, amar e zelar as folhas, as águas, o ar, a terra e toda miríade de manifestações da natureza? Ensinar ele que a palavra dele, os atos dele e a forma com que ele irá caminhar na vida, irá a todo instante afetar a ele e ao meio. Ta aí a sociologia não é!? “Somos produto do meio.”

Essa semana minha mãe chegou do mercado com as compras e lá estávamos em sua casa, depois de pular o muro, havia folhas de acelga em cima da mesa para guardar. Malik foi até o saquinho e beijou a folha. Outras vezes, ele pega uma folhinha e brinca de benzer, bem dizer, diriam que ele não entende, mas uma coisa, nesses dois movimentos ele entende: estamos falando de amor, estamos falando de carinho, zelo, cuidado, afeto, dengo, honrar. Pode não ter palavras ou a capacidade de expressá-las nesse momento, por completo, mas se alegra, sorri e expressa seu carinho.

Enfim, são tantos elementos que pela tradição só torna ainda mais graciosa a vida e nos ajuda a compreender.

Malik desde pequeno não gosta que mexa na cabeça dele, hoje já está mais aberto, mas ainda sim, lavar a cabeça dele no banho é um processo que tem de ser feito com muito cuidado e carinho, para que ele não se irrite, assuste ou se entristeça. E na tradição a cabeça é sagrada, não é mesmo qualquer um que pode tocá-la, e ver ele assim, em suas primeiras semanas e permanecer assim dois anos depois, me faz refletir e aprender todo dia. 

E com isso, com carinho, respeito e reverência eu banho esse rei, irmão, amigo de jornada que chamo às vezes de filho!

Ultrapassamos o limite: esse é o balanço da crise que vivemos

0

Tudo é muito mais complexo do que um parágrafo pode explicar em um texto de coluna, mas o que precisamos entender é que o passado se alia ao futuro para construir um cenário.

Guavirutuba, Jardim Ângela zona sul de São Paulo – Foto: @menino_do_drone

Mo igbá ori mi

Eu saúdo minha Cabeça!

Mo igbá olá obirin àgbá

Eu saúdo as Mulheres Anciãns com Honras!

Pois tudo no mundo se dá a partir de nossas cabeças e das mulheres que nos antecederam.

Anabela Gonçalves

Todos os dias existe a luta pelo território em nossas vidas, sendo território qualquer espaço definido e delimitado a partir das relações de poder. Essa luta imprime sobrevivência e permanecer. Luta pelo meu território, corpo contra os desmandos do Estado e da moralização da vida e o domínio machista, luta pelo território indigena, espaço de quem fomos, somos e nossa ciência, luta pelo território quilombola, nossa origem e resistência entre terreiros, ocupações, comunidades e favelas. A invasão de Pindorama, nosso território é uma marca de nascença de nosso povo, vozes de gritos à beira da praia, grande calunga que trouxe.

Aqui nesse pedacinho de África, nessa terra indigena, o tempo é Orixá. Foram tantas passagens importantes nesses últimos dias, que fica difícil escrever como todos os povos originários dessa terra se movimentaram sobre temas importantes.

O abril indigena trouxe a terra como discussão central no que diz respeito a luta indigena pela preservação do planeta, dos territorios sagrados para as 305 etinias presentes no Brasil, a demarcação dos territorios como chave para luta contra o garimpo ilegal e o desmatamento da agropecuaria, sendo dia 19 de abril um dia de luta para população indigena em todo o Brasil.

Celebramos o dia da Terra, 22 de abril, com a carta manifesto dos povos originários publicada pela Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Em contrapartida, vimos a polícia federal (Funai) abrir um inquérito contra a liderança indigena, Sônia Guajajara, por suas denúncias contra a ineficiência do governo federal em combater a pandemia nos territórios indígenas, o que consideramos perseguição política, o que vem ocorrendo com frequência no atual governo.

O que há de errado com essa gente, que se emociona com o sol em um dia de chuva, que se envolve com o barulho do vento. Talvez meu povo do qual não faço mais parte, pudesse me dizer, porque sou o que sou. Mas eu não estou na aldeia e nem na Nigéria onde a cultura do povo iorubano se assemelha aos cultos de matriz africana no Brasil, estou no meio, entre, caminho, não sou chegada, nem partida. Essa é a tortura da mestiçagem, essa possibilidade de escolha, onde nem todas as peças que se encaixam vem do mesmo quebra cabeça na constituição do individuo, uma negraindigena, uma Afro amerindia.

Assim como os povos indigenas o movimento negro também se levanta contra a ineficiencia do governo em combater o vírus, como sua necropolitica, disfarçada de luta contra o trafico de drogas, que assola violentamente as comunidades com exterminio. Chegamos em maio de luto pela Chacina do Jacarezinho (RJ), entre tantas outras perdas que tivemos.

Minha geração não viu uma guerra no Brasil, mesmo sabendo que essa cidade já foi cenário de uma batalha tenentista. Essa guerra silenciosa que remonta mortes e fome, tem assolado nossas vidas de forma violenta. As mudanças econômicas, políticas e sociais que vem ocorrendo para fortalecimento do capitalismo durante essa crise que se inicia em 2008. A pandemia agrava o que já seria a pior década em mais de um século, segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a economia brasileira encolheu 4,1% em 2020.

Sabemos que a crise brasileira tem um pé atolado no super estímulo ao consumo e não a produção, desde de sua origem histórica, somos um tradicional fornecedor de matérias primas, baseado em commodities. Nesse sentido, o crescimento do PIB – Produto Interno Bruto em 2010, 7,6% com as políticas de isenção de impostos para eletrodoméstico, carros e construção não foi suficiente para deter a onda que se formava. Em 2015, o PIB chegou a 3,8% e a presidenta Dilma foi responsabilizada por uma questão histórica da cultura econômica brasileira.

Tudo é muito mais complexo do que um parágrafo pode explicar em um texto de coluna, mas o que precisamos entender é que o passado se alia ao futuro para construir um cenário.

O neoliberalismo brasileiro começa com o governo Collor de Mello, e se consolida com a chegada de Fernando Henrique Cardoso, desde então a política é redução do investimento público e privatização de empresas estatais. Ficamos tão dependentes e fragilizados que a única forma de democratizar a educação foi com a participação do capital privado.

O que isso tem haver com o cenário atual, a manutenção e o avanço no ritmo de produção de vacinas está diretamente relacionado com a dependência de importação do ingrediente farmacêutico ativo (IFA), que vem da China. Não produzimos o IFA, portanto, é óbvio que os países originários do insumo só vão liberar sua patente depois de toda sua população imunizada, “pouca farinha, meu pirão primeiro”, como diria minha mãe.

Para a luta contra o desmatamento, vale o mesmo, enquanto o mercado brasileiro estiver voltado para exportação de insumos, mais cresce o ganho com a exportação de soja, carne, entre outros produtos, quanto mais ilegal o négocio, menos imposto se paga e mais se ganha, com um governo que favorece o neoliberalismo e seu avanço, chegamos ao maior número de mortes de lideranças indigenas em 11 anos e maior número de invasão de territorios indigenas.

Ser flecha em tempos de bala não é fácil, agir no mundo e transformá-lo sem ferir suas crenças ancestrais requer muita presença em tudo que se faz, porém estar presente o tempo todo é muito cansativo. Como resistir aos encantos da lua, seja na minha ancestralidade yorubana ou indigena, que tem em si a magia da força da criação, sendo ela Ósùpá ou îasy, mesmo em outra língua indigena que seriam inumerável a possibilidade de nomes que ela teria, eu nunca me livraria de ser tomada pela sua presença no céu, nem pelas estrelas e sua magia de amplidão que o escuro traz em lugares que podemos vê-las.

Não poderia deixar de me envolver profundamente com fogo ou de acreditar nos invisíveis. Mesmo com toda modernidade isso ainda me arrebata mais. Tudo que importa exige tempo, diminuir o ritmo, vivenciar o momento e comungar com a terra.

Segundo dados da ONU, somos hoje 83 milhões de mulheres na América Latina fora do mercado de trabalho, menos segregação no mercado de trabalho, igualdade de remuneração e aguardando vacina para todes. Estamos no nosso limite, esse é o balanço da crise, estamos sem renda, saúde e segurança, aqui chegamos a mais um domingo do dias das mães, onde as mercadorias, não dão conta de esconder a fratura exposta por essa pandemia.

Animador de festas reinventa profissão com videochamadas para crianças

0
Na pandemia, o animador de festas infantis José Luís faz de 5 a 10 videochamadas por dia com crianças da cidade de Suzano.
Vestido de super heróis, como o Homem- Aranha, ele usa o WhatsApp para aconselhar crianças a se cuidar na pandemia.

Antes da pandemia José Luís Fernandes, 28, morador do Jardim São Bernardino, localizado no município de Suzano, trabalhava como animador de festa se fantasiando de super-heróis, porém com as medidas de isolamento da covid-19, ele ficou sem opções de trabalho e renda.

Ao ver os boletos chegarem, José começou pensar em algumas alternativas para usar seu talento como animador de festa para conseguir sobreviver durante a pandemia.  Ao perceber que muitas crianças estão em casa sem poderem ir à escola, tendo as telas do celular com uma das suas maiores fontes de entretenimento, o morador optou por improvisar, e se conectar com essa turminha do barulho, por meio de videochamadas no WhatsApp.

“A videochamada eu já vi outras pessoas que fazem, mas eu vi em outros estados como no Rio de Janeiro, mas não tem muito né, aqui pra São Paulo ninguém faz, só eu que faço né”, conta Fernandes.

Por se caracterizar como um personagem que a criança deseja, e conversar com ela durante 10 minutos, os pais acabam investindo no trabalho do animador de festas. Os valores variam de acordo com a complexidade para usar e adquirir a vestimenta dos super-heróis.

Os personagens mais pedidos pelas crianças são o Hulk, Batman, Capitão América e Mickey, essas fantasias custam 20 reais, já o Homem-Aranha custa 10 reais.

“Tem criança que faz xixi na cama, e a mãe pede minha ajuda pra dar uns conselhos” 

José Luís, animador de festas que mora em Suzano

“A diferença dos preços dos heróis é que o homem aranha é mais fácil de fazer, agora o Hulk, Batman, Capitão América e o Mickey são mais difíceis, pois dá mais trabalho e precisa de duas pessoas para me ajudar a se vestir”, justifica José Luiz, demonstrando como ele cobra os preços pelas videochamadas.

Com o seu trabalho em alta, ele revela que já chegou a fazer 10 videochamadas. “Tem dias que eu faço 10, tem dias que faço 5, tem dias que faço duas videochamadas”, afirma o animador de festas, contando que muitos pais chegam até eles em busca de um diálogo diferenciado com seus filhos, visando auxiliar as crianças nas tarefas diárias, que muitas vezes os pais não conseguem entrar em acordo com os filhos.

“Nas videochamadas eu já conversei com muita criança, até com criança especial, criança que não come comida, não obedece, tem criança que faz xixi na cama, e a mãe pede minha ajuda pra dar uns conselhos”, revela.

Para mostrar como o seu cotidiano de trabalho e realização de videochamadas é diverso, o morador de Suzano relata uma história que já vivenciou durante uma conversa com uma criança. “A história mais legal é de um menino que não tomava remédio para a garganta, ele estava com a garganta inflamada, estava ruim, aí eu liguei pra ele vestido de Homem-Aranha falando que tinha que tomar o remédio para ficar forte, pra ele me ajudar a lutar com os vilões, aí ele foi lá e tomou o remédio, tomou o remédio na mesma hora”, diz Luís.

Atualmente o animador divulga seu trabalho e obtém seus contatos por meio de conteúdos que ele mesmo produz e posta em seu perfil no Facebook, mas ele conta que enfrenta constantemente o desafio da internet de baixa qualidade, quando o tempo está chuvoso em Suzano.

“A videochamada não é minha única renda não, eu também faço festa infantil, só que festa infantil está meio devagar”, revela ele, fazendo uma referência para o impacto da pandemia na sua atividade profissional.

Ele finaliza enfatizando o seu amor pela profissão de animador de festas infantis. “Eu gosto é de trabalhar com festa infantil e com heróis, eu gosto mais desse trabalho do que outros empregos que eu já tive”, conclui.

Funk: o problema é ser da favela

0

Funk é cultura, expressão, política, arte e as vozes de muitos jovens de quebrada. Se existe alguma preocupação real sobre os malefícios do funk, antes precisaremos falar sobre os malefícios da fome.

Real Parque – Zona Sul, SP/18 – Foto: DiCampana Fotocoletivo

Sabemos que o funk está presente na realidade da periferia há muitos anos e divide opiniões sobre suas influências e se elas seriam boas ou ruins. Mas o funk é sem dúvidas uma das formas mais claras de expressão da vida na favela, além de chamativo e envolvente para os jovens que desde cedo se sentem atraídos a escutar e dançar o ritmo.

Quando falamos em funk é comum se esperar um questionamento sobre ele ser cultura ou não, mas se cultura é hábito, costume e crença de povo ou grupo, o funk sem dúvidas é cultura. Aí outra pergunta seria “ele é uma cultura boa?”

Vamos lá, não existe cultura boa ou ruim, mas quando ouvimos pessoas falarem algo de negativo no funk seria sempre por ele conter muita sexualização, além de falar sobre drogas e armas. Contudo músicas do universo POP que fazem muito sucesso possuem conteúdo explícito muitas vezes, porém, não são produzidas por quem já é marginalizado cotidianamente, o jovem periférico.

A sexualização é ruim? Sim. Sem dúvidas, o funk ainda possui muitas problemáticas, mas o ponto dessas problemáticas não são o funk e sim a ausência de políticas públicas voltadas para jovens.

Bom reafirmar que o problema não é o funk, mas quem o produz. Devemos lembrar que ritmos como o samba já sofreram ataques diretos do governo, não era sobre o ritmo, era sobre quem o tocava, a população negra e pobre e o governo com suas políticas de embranquecimento que deixaram seus resquícios perpetuados na história governamental do país racista e desigual em que o pobre só pode trabalhar.

As políticas públicas são de escolha do governo e é ele que decide se determinado projeto ou ação irá ser aplicado ou vale a pena ser aplicado. Então por que o governo não pensa em alternativas para os jovens que não sejam marginalizá-los? Porque é de interesse do governo que esses jovens estejam às margens da sociedade e sempre sejam colocados com imagens violentas, o fim deles de acordo com esse contexto é a cadeia ou a morte, não porque cometeram crimes, mas sim porque nasceram na favela.

Então a raiz do problema seria a falta criar de outros contextos dentro da periferia com menos violência, e mais educação, saúde, lazer? Sim, o funk não é um problema e sua linguagem traz uma história, cada funk está dentro de uma narrativa, mas todo funk é funk. Nesse sentido não existe divisão de funk bom ou ruim, são apenas narrativas diferentes para uma música com batida única.

Enquanto pessoa que ama arte e principalmente música eu sempre afirmo que nunca encontrei algo que se compare ao funk brasileiro de favela, é realmente um ritmo que deve e precisa ser valorizado enquanto herança cultural dos nossos. E sempre oriento a quem critica o funk uma longa análise de letras de músicas de outros países que são para o público jovem e identificar diferenças tão absurdas assim (não existem).

Funk é política então? 

Sim, tudo é política. O funk passou por vários momentos que envolviam discussões como acesso a cidade e lazer, podemos relembrar os ‘rolezinhos’ para falar sobre isso ou até mesmo os bailes de favela. O funk une esses jovens enquanto expressão cultural e de reafirmação dos corpos favelados na cidade, um grito da juventude que também merece se divertir, que a partir do funk também cantam experiências que dão força a outros jovens…

“Ô vitória chegou,
Deus abençoou, o barraquinho de madeira, os buraco da telha, ele já tampou (amém)…”

MC Lipi, Vitória Chegou

É através do funk que muitos jovens conseguem a oportunidade de viver da arte, é também com o funk que os jovens das periferias se expressam, e se há coisas que a sociedade dita como negativas são frutos da própria relação da sociedade com esses jovens. As discussões que ressurgiram sobre o funk ser cultura ou não só demonstram que nada aprendemos sobre mudanças sociais e transformações, tampouco sobre juventude e suas expressões.

“Vem chupando no talento, meu grelinho de diamante.
Vai, vai meu grelinho de diamante.”

Mc Baby Perigosa, Grelinho de diamante

O funk é uma forma de introduzir temas como empoderamento feminino, liberdade e desigualdade. Também de falar de duras realidades com outras perspectivas, com novos olhares e novas formas de lidar. Isso é política, política da cultura que veio da favela e tem que ser valorizada como tal.

Funk é cultura, expressão, política, arte e as vozes de muitos jovens de quebrada.

Se existe alguma preocupação real sobre os malefícios do funk, antes precisaremos falar sobre os malefícios da fome.

“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é… E poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem seu lugar…”

Cidinho e Doca/ RAP da felicidade