Como os trabalhadores da cultura de Heliópolis estão sobrevivendo à pandemia?

Edição:
Ronaldo Matos

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Estudo do Observatório De Olho Na Quebrada aponta que 84% dos artistas de Heliópolis tiveram seus trabalhos afetados pela pandemia em 2020. 

Com cerca de 200 mil habitantes, a Cidade Nova Heliópolis tem o histórico de ser uma das favelas mais antigas de São Paulo. Um dos seus principais legados para a configuração cultural da cidade está na formação do bairro constituído por famílias das regiões norte, nordeste e centro do país.

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Uma das moradoras de Heliópolis que representa esse cenário de construção do bairro é Gabrielle Santana, 23, artista e educadora, que nasceu em Cuiabá, capital do Mato Grosso. Ela é conhecida dentro do território como MC Leona, uma das integrantes do grupo Crew Marretas do Hip Hop. A pandemia afetou negativamente a atuação profissional da moradora dentro do território. 

“Os shows marcados foram cancelados, os cachês não foram recebidos”

Gabrielle Santana é artista e educadora social.

“Os shows marcados foram cancelados, os cachês não foram recebidos. Trabalhei o meu lado artístico especificamente nas redes sociais. Como educadora, o trabalho dobrou, pois trabalhamos em home office e presencialmente com o horário reduzido, o que causou o aumento do nível de ansiedade e reflexões sobre saúde mental. Todos da minha área estão saturados e desgastados mentalmente, os celulares não estão aguentando o excessivo uso”, relata Santana.

A educadora atende jovens e crianças no Centro para Crianças e Adolescentes – CCA Mina, equipamento comunitário administrado pela UNAS, uma organização social atuante em diversos projetos de combate as desigualdades sociais em Heliópolis.

Atenta à importância de cobrar ações do poder público para apoiar os agentes culturais de Heliópolis durante a pandemia, a moradora enfatiza a sua participação no estudo realizado pelo Observatório De Olho Na Quebrada, iniciativa que atua na apuração de dados oficiais e produção de pesquisas para criar estratégias e políticas públicas para o combate à Covid-19.

Mc Leona foi umas das artistas da Favela de Heliópolis que foi afetada pela crise gerada pela pandemia nos agentes culturais do território. (Foto: Andreas Ciero)

“Acho extremamente importante essas pesquisas para levantarmos dados e entendermos o contexto que profissionais da cultura, assim como eu, estão vivendo nesse momento. Sabendo das necessidades, a resposta para os problemas se torna mais fácil”, acredita ela.

Ela enfatiza o papel do poder público para fornecer dados confiáveis nesse momento difícil da sociedade. “O Governo poderia facilitar o acesso à informação, diminuir as burocracias ou se disponibilizar a ensinar os artistas que não entendem esses processos e criar novos editais, ajudar o dinheiro a circular entre nós artistas também, que precisamos sobreviver.”

Desde 2020, o Observatório De Olho Na Quebrada vem realizando uma série de pesquisas dentro dos territórios periféricos. Uma dessas investigações aborda os impactos da pandemia nos trabalhadores da cultura de Heliópolis, uma das maiores e mais antigas favelas da cidade, localizada na divisa da zona sul com o lado leste do município.

A partir dos dados obtidos ao longo da pesquisa, os pesquisadores que fazem parte do Observatório de Olho na Quebrada visam ajudar a comunidade a lutar pelos seus direitos. O estudo foi realizado entre os meses de junho e julho de 2020, com o suporte de um formulário online e contou com a participação de 50 trabalhadores da cultura, dentre eles artistas, produtores, educadores, técnicos que residem em Heliópolis, entre os meses de junho e julho de 2020.

MDH – Marretas do Hip Hop (Foto: Andreas Ciero)

“É de grande importância ter pesquisadores dentro da própria quebrada, pois conhecemos e vivemos a realidade do território”

Leticia Avelino é pesquisadora do Observatório de Olho na Quebrada

Nascida no Piauí e moradora de Heliópolis desde os três anos, Leticia Avelino, 21, atua como educadora de dança de freestyle. Ela faz parte do grupo dos trabalhadores da cultura que enxergaram na pesquisa uma forma de entender os impactos invisíveis causados pela pandemia de covid-19 na economia da cultura local.

“A pesquisa é muito importante, ainda mais para mim que sou artista na quebrada, é uma pesquisa destinada para os próprios moradores e diversos outros lugares para buscar possíveis ajudas e oportunidades para quebrada”, define ela.

Outro morador de Heliópolis que participou do desenvolvimento da pesquisa é o artista Gabriel Feitosa, 19, o artista e pesquisador explica a proposta de trabalho do observatório no território. “Moro no Heliópolis. Enxergo ele como um bairro de luta. Sou pesquisador no projeto De Olho na Quebrada, aqui levantamos dados sobre a população daqui e temos o objetivo de manter a memória de Heliópolis viva. Usamos toda a arte que reverbera ao nosso redor, música, dança, grafite e poesia. Trabalhamos com e para a comunidade”, conta.

Feitosa cita novamente a escassez de dados dentro sobre a vida nos territórios periféricos e a partir disso, ela explica o tema da pesquisa. “Quis ajudar na criação da pesquisa porque sou artista. Um dos 84% dos artistas de Heliópolis que tiveram impactos em seu trabalho devido a pandemia, e não existe dados oficiais sobre isso, por isso resolvemos realizar uma série de pesquisas.”

Para o pesquisador, trabalhar com arte e cultura nas periferias e favelas significa ter que se virar, ter uma vida dupla, tripla, pois a arte exige dedicação total. “Para um morador de Heliópolis que tem que lidar com todas as adversidades viver de arte é difícil. A pesquisa fala sobre como os artistas periféricos estão sendo prejudicados na pandemia. Foi feita pra comunidade e pela comunidade pelo De olho na Quebrada.”

Além de educadora de dança, Letícia participou do processo de produção da pesquisa. Ela ressalta que um dos maiores legados da pesquisa é a participação de moradores da quebrada no processo de elaboração e execução.

“É de grande importância ter pesquisadores da própria quebrada, pois conhecemos e vivemos a realidade do território, assim sabemos o que precisa ser de mais atenção e o que pode ser criado para ajudar, e assim se baseia nossa ação de Heliópolis para Heliópolis”, afirma a pesquisadora, ressaltando que essa iniciativa pode inspirar outros agentes culturais de outras quebradas a fazer o mesmo pelo seu território.

Ela acredita que a pesquisa pode dar mais voz para as demandas de políticas públicas urgentes no território. “É com a pesquisa que damos voz para aquilo que precisa ser falado e mudado, como um grito de socorro mesmo, sobre nosso território e nos mesmos, não há registros, não há dados, por isso a pesquisa. Ela também traz o impacto da visibilidade, impacta que as pessoas sabem que há luta, que alguém está lutando por nós.”

“Vários artistas da região foram prejudicados, não conseguiram se sustentar”

Felipe de Oliveira é rapper conhecido no território como Arkano

“Sou preto com a família vinda lá de Minas Gerais. Utilizo da linguagem do Hip Hop como elemento, meu trabalho é pensado para adolescentes, jovens e adultos”, enaltece Felipe de Oliveira, rapper de 37 anos conhecido no território de Heliópolis como Arkano. Ele faz questão de enfatiza que mora na divisa com o distrito do Ipiranga e que a favela onde ele mora “historicamente importante para a cidade”.

Assim com outros agentes culturais que entrevistamos na reportagem, Oliveira sofreu um grande impacto na sua agenda de shows. “As contratações de shows caíram drasticamente por causa do fechamento dos espaços culturais e privados, como casa de shows e espaços relacionados com a arte e cultura. Meu trabalho artístico quebrou em mais de 90%. Vários artistas da região foram prejudicados, não conseguiram se sustentar, precisaram de auxílio, cestas básicas, tiveram que recorrer a solidariedade dos mais próximos, cenário muito triste”, relata.

O músico opina sobre como o poder público poderia apoiar os trabalhadores da cultura e fala sobre a lei Aldir Blanc, uma política pública de emergência cultural. “Reduzir a burocracia para acesso às verbas de recursos públicos emergenciais, muitas vezes é tanto documento a ser emitido e enviado que acaba por desestimular os artistas. E inda tem a lei Aldir Blanc no meio disso, que foi o mínimo que deveriam ter feito, acho que é melhor algum recurso do que nada, porém na minha visão, durante o período de maior necessidade dos artistas esse recurso não estava disponível ou era muito difícil para acessá-lo”, avalia.

Segundo o gestor e produtor cultural Gilson Marçal, 41, morador do Jardim Monte Azul no distrito do Jardim São Luís, zona sul da cidade, a Lei federal de Emergência Cultural Aldir Blanc veio para promover uma ajuda emergencial para artistas, coletivos e empresas que atuam no setor cultural e atravessam dificuldades financeiras durante a pandemia.

“Os eventos culturais foram as primeiras atividades a parar devido ao Covid-19, deixando no Brasil mais de um milhão de trabalhadores da cultura sem renda. O recurso vem do Fundo Nacional de Cultura (que tem três bilhões de reais) repassados aos Estados e Municípios de todo o Brasil. Cada Estado e Cidade precisou mandar um plano de trabalho para o Governo Federal e recebeu o recurso. São 3 linhas de apoio: 1) Renda de 600 reais para Trabalhadores e Trabalhadoras da Cultura / 2) Apoio a Espaços Culturais (subsídio) / 3) Editais, Prêmios e Chamadas Públicas”, explica o gestor cultural.

Para efetivação da Lei Aldir Blanc, o Estado é responsável por pagar a renda individual de 600 reais e lançar editais e a prefeitura local fica com a função de promover o apoio aos espaços culturais.

“No caso o Município ficou responsável pelos Apoios aos Espaços Culturais, o que é muito importante. Muitos destes espaços pagam aluguéis e contas que são pagas com os ingressos do público, do barzinho, dos produtos vendidos nos eventos. A lei fala em apoiar espaços físicos que têm CNPJ, Espaços Informais por meio de CPF, como também apoiar ‘teatro de rua e demais expressões artísticas e culturais realizadas em espaços públicos”, descreve Marçal.

A Prefeitura de São Paulo privilegiou no seu cadastro os Espaços Físicos com CNPJ, deixando de lado os Espaços Informais e Atividades que são realizadas em Espaços Públicos, como as Rodas de Samba, as Rodas de Capoeira, a Cultura Popular, as Artes de Rua e Eventos Tradicionais que ocorrem nas ruas dos bairros.

Ao avaliar os impactos da pandemia nos trabalhadores da cultura, Marçal lembra que os governo federal e municipal realizaram diversos ataques ao setor cultural bem antes da pandemia chegar com forças às periferias.

“Não tinha como prever ou evitar, mas se tivéssemos uma política cultural forte, que desse conta de apoiar o setor neste momento de crise, o estrago poderia ser menor. O Governo Federal ataca a arte e a cultura de forma verbal e de forma prática, com a extinção do Ministério da Cultura e a redução do orçamento. Quando olhamos para a Cidade de São Paulo não é muito diferente, o orçamento da Cultura foi cortado na Cidade e no Estado. No caso da Cidade, o Programa VAI 1 e 2, a Semana do Hip Hop, o Programa Vocacional, PIA (iniciação artística) tiveram seu orçamento reduzido e diminuíram seus atendimentos”, analisa.

O produtor enfatiza sua análise explicando o contexto dos trabalhadores da cultura neste momento. “Apesar da execução da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, os trabalhadores da cultura seguem em situação crítica, de alta vulnerabilidade e sem perspectiva de retomada das atividades culturais presenciais”.

Para contextualizar sua visão política e analítica sobre a situação dos trabalhadores da cultura, Marçal cita alguns números que demonstram sua preocupação com o setor. “Muitas casas de shows grandes e pequenas estão fechando. Só nos seis primeiros meses da pandemia 900 mil trabalhadores formais e informais perderam seus empregos e renda. Uma pesquisa do Itaú Cultural em novembro de 2020 revela que metade dos trabalhadores especializados em cultura perderam seus postos no último ano. O setor tem promovido ações para ajudar os trabalhadores da cultura e segue articulado à expansão e criação de Leis Municipais de Emergência Cultural, agora estaduais e municipais, para que seja possível promover mais uma nova ponte deste momento crítico até um controle da pandemia”, finaliza. 

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