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“Ele desenhava muito bem”, diz tio de Gilberto, morador morto pela polícia na Favela da Felicidade

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Após a mídia tradicional classificar o morador Gilberto Amâncio como suspeito, o Desenrola entrevistou amigos e parentes para contar a trajetória de vida do tatuador e pai de família que morreu com 30 anos no mesmo dia do aniversário do seu filho. 

Gilberto Amâncio (foto arquivo pessoal)

Na última sexta-feira (14), Gilberto Amâncio, morador da Favela da Felicidade, localizada no distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, foi alvejado com seis tiros durante uma operação policial que aconteceu a poucos metros de distância da sua casa.

O morador estava passando por um beco quando foi surpreendido com seis disparos, realizados durante uma operação da polícia civil. A morte de Gilberto gerou grande comoção entres os moradores do bairro que conheciam a sua trajetória de vida e sabiam que ele nada devia para a justiça criminal.

Após o fato ocorrido, uma série de manifestações aconteceram nas imediações da Favela da Felicidade, território conhecido por abrigar uma série de movimentos sociais e culturais que atuam pelo combate às desigualdades sociais que afetam a população local.

Ao tomar conhecimento sobre a forma como a mídia estava noticiando o fato, rotulando Gilberto, como um suspeito, e por isso, essa seria uma justificativa da política ter disparado seis vezes em sua direção, o Desenrola apurou mais informações sobre a sua trajetória de vida, conversando com amigos e parentes do morador que morava na Favela da Felicidades há 30 anos.

Em respeito ao sofrimento da família, nossa equipe de reportagem preferiu não tentar contato com o pai, mãe e a esposa de Gilberto Amâncio. Fruto da nossa articulação investigativa e jornalística nas periferias, conseguimos conversar com Edmar Miranda Amâncio, 47, ajudante de cozinha e tio do morador morto durante a operação da polícia civil na Favela da Felicidade.

Ele foi o parente responsável por reconhecer o corpo do sobrinho e revela a quanto foi sombria e inesperada essa experiência. “Eu estava em casa almoçando quando eu recebi a notícia, que era para eu ir lá reconhecer um rapaz que tinham matado e parecia meu sobrinho. Foi um aperto, um sufoco, não sei nem como consegui, não tem nem como explicar o que eu vivi e senti nesse momento.”

Edmar diz que o choro de sofrimento é o único som que pode ser escutado na casa da família de Gilberto. Ele enfatiza que a mão do morador é uma das mais afetadas. “O que nós estamos passando aqui né, a mãe dele nem consegue falar, só está chorando desde ontem, ninguém tá conseguindo nem dizer nada, está realmente muito difícil”, diz.

Segundo o tio, Gilberto tinha um talento natural para desenhar e esse dom o levou a desempenhar a profissão de tatuador. “Ele ia fazer 30 anos, ele era tatuador, desenhava muito bem e mexia com isso né de tatuagem”. Ao terminar essa frase, Edmar começa a chorar. Nossa repórter dá uma pausa na entrevista para sentir se ele iria continuar com o depoimento.

Consciente da importância de contar a verdade sobre a trajetória de vida do seu Sobrinho, Edmar reforça: “Ele era ajudante de pedreiro também, aí ele começou a mexer com isso de tatuagem, tudo para sustentar a família dele”, revela ele, afirmando que Gilberto deixou um filho pequeno que fez aniversário no mesmo dia da sua morte.

Ao perceber o comportamento de vizinhos e amigos mais próximos, o tio de Gilberto, mais conhecido como Gibinha na Favela da Felicidade desabafa: “Todo mundo aqui está revoltado, não sabe o que faz, todo mundo da comunidade tá revoltado, ninguém aqui tá acreditando que isso aconteceu, do mesmo jeito que isso aconteceu com meu sobrinho, pode acontecer com todo mundo, com qualquer filho de outra pessoa.”

O medo da impunidade assusta o tio do morador, que insiste em dizer que a família só quer que a justiça seja feita. “Nós queremos justiça, e que esse policial se apresente e fale o erro que ele fez, porque policial que é policial não pode chegar atirando, tem que parar a pessoa, não tem que chegar atirando, não somos animais”, finaliza Edmar. 

“A mídia só tem colocado coisa ruim, mas quem vai contar e dizer quem ele era?”

Amigo de infância de Gilberto

Um amigo de infância de Gilberto, ou Gibinha como ele é conhecido pelos amigos e em seu território, nos conta quem é ele, seus sonhos e o que ele conseguiu acompanhar da vida de Gibinha. Para evitar ser perseguido por policiais, ele preferiu não revelar seu nome.

“O Gibinha é um moleque de periferia né, um moleque que foi privado de muitas coisas, há um tempo ele tinha comentado né, que estava muito feliz, ele tinha ido no mercado com a esposa e tudo, e ele disse que estava muito feliz que tinha sido a primeira compra que ele tinha feito em família”, revela o amigo de Gilberto.

O jeito carinhoso e sentimental de Gilberto fica como marcas e lembranças da amizade entre eles. “Quando a gente conversava e bebia ele chorava, ele era um menino sensível, ele tinha muitos sonhos, ele estava começando nas tatuagens, eu acredito que era o sonho dele isso, ele estava começando agora, ele ficava muito feliz quando encontrava na rua e falava dos desenhos, das tatuagens dele, ele fica bem feliz”, confidencia.

O sentimento de revolta comentado pelo tio Edmar também está presente nos pensamentos do amigo de Gilberto. “Eu estou numa revolta sabe, só quem conhece o Gibinha sabe, a revolta é muito grande”, conta ele, dizendo que o amigo de infância era uma pessoa do bem.

O amigo de Gilberto revela também que essa não é a primeira ação policial que deixa marcas nas famílias da Favela da Felicidade. “Há um tempo atrás teve uma chacina lá também e morreram uns amigos nossos, foi polícia também, e agora o Gibinha, a gente já tá cansado, da outra vez não teve nada, não teve justiça, e agora, cadê?”, questiona.

Segundo o amigo de infância, além de tatuador, Gilberto também trabalhava como ajudante de pedreiro. “Ele também era ajudante de pedreiro, batia uma laje, carregava uns sacos de cimento e era tatuador né, que era o sonho dele. Eu cheguei a comentar com ele dias atrás que o pessoal está falando que as tatuagens dele estão ficando muito boas, ele é trabalhador, pai de família.”

Após a morte de Gilberto, o amigo de infância enfatiza que andar pelos becos e vielas da Favela da Felicidade é um ato de coragem que impede ele até de visitar a família, com medo de ser alvo de abordagens policiais.

“Sempre tive medo, cansei de andar naquele beco ali, tenho medo até de visitar meus familiares, de sair de casa, o Gibinha morreu de dia, 13h da tarde, um dia que era calor, e lá onde ele foi morto tudo fica aberto, o movimento é grande, tem padaria, mercadinho, ali é muito movimentado, o que fizeram com ele não tem lógica, poderia ser qualquer um, não foi legitima defesa, legitima defesa com 6 tiros? Não tem lógica, isso é execução”, conclui. 

“se não tivesse a pandemia, era um horário que as crianças estavam saindo e chegando da escola, e aí como é que fica”

Articulador cultural da Favela da Felicidade

Um articulador cultural do bairro que dialoga com moradores, organizações sociais e poder público também foi ouvido pela nossa equipe de reportagem. O morador comenta que outros casos de violência policial já terminaram em execuções dentro da favela. “Em 2015 teve essa chacina, um pouco depois, tinha um pancadão próximo desse lugar onde o Gilberto foi assassinado, nessas batidas policiais de querer acabar com o pancadão no meio da madrugada, um frequentador do baile foi baleado na cabeça”, afirma.

Na ocasião, o articulador cultural contou que a polícia chegou ao local muito rápido após os tiros e não deixou os moradores socorrer as vítimas que ainda estavam vivas. “Alguns policiais ficaram rindo da situação, fora essas violências extremas que acabam nesses assassinatos, tem essa passagem da polícia com total desrespeito, que não leva ninguém, não faz nada, é só simplesmente uma vontade de maldade, de entrar na favela e achar que é um território que não tem lei e zoar as pessoas aqui.”

Segundo o morador, o que fica de mais revoltante no caso de Gilberto é saber que ele era uma pessoa sem nenhuma conexão com situações ilícitas. “Uma das maiores revoltas de todos nós é dessa condição de todo mundo conhecer o menino e saber que era uma pessoa que nem sequer usava uma droga ilícita, sabe? Era um menino que não estava envolvido com nada, entende?”, questiona ele.

Já com o semblante cansado e visivelmente abatido, o articulador cultural finaliza a entrevista ressaltando uma característica em comum com Gilberto que era o gosto pelo desenho. “Eu lembro que ele veio me mostrar um desenho, porque ele desenhava e eu desenho também e tal, e ele veio me mostrar um desenho que ele estava fazendo, que ele queria passar pra parede, para eu dizer o que eu achava sabe? Quando eu vi senti a pureza da pessoa, né… então isso não só por parte dele, mas também dos familiares, uma das famílias fundadoras da favela, e todos são trabalhadores, pessoas bem humildes. O Gilberto não merecia esse fim, de verdade”, desabafa.

A importância dos serviços de saúde voltados para população preta

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Para quem já conhece um pouco da história, sabe que o plano de extermínio contra a população afrodescendente se renova nos Estados Unidos e aqui no Brasil não é diferente.

Foto: Anderson Costa

Esses dias me deparei pensando: Eu saio de casa para acompanhar minha mãe ao médico, mas não tenho coragem de sair para cuidar da minha própria saúde. Só de pensar em pegar transporte público, ficar presa em longas filas de espera me causa ansiedade devido o contágio da Covid-19.

Minha mãe e eu fazemos exames de rotina uma vez ao ano para a prevenção de doenças. Já o maridão morre de medo e preguiça de ir ao médico. Quando ele fica doente ele consulta o doctor Google e fica paranoico com as coisas que lê, convicto que é o fim. Escrevi essa última frase rindo, mas na hora é tenso lidar com homem doente.

Eu sei que Jordan não é o único. De fato, homens vão menos ao médico por vergonha ou medo de serem vistos como fracos. Eles não têm iniciativa própria, só vão acompanhados e só procuram ajuda médica quando o sintoma já está bem avançado.

Uma pesquisadora da Universidade de Connecticut diz que os homens são socialmente educados para serem fortes e independentes. Ela diz que: “No caso dos homens, essas crenças contribuem para a ideia de que, para ser um ‘bom homem’, é preciso ser duro, corajoso e absolutamente auto suficiente. O problema dessas crenças é que criam barreiras para pedir ajuda, mesmo em face de doenças e lesões.”

Quando se trata do homem preto, ou melhor, da população preta, é impossível não levar em consideração o racismo institucional, já que a maioria dos médicos são brancos carregados de preconceitos e influências de teorias racialistas.

Falando dos brasileiros em modo geral, o que vemos atualmente, são pessoas indo cada vez menos ao médico ou deixando de fazer alguma consulta ou tratamento médico em função da covid-19 desde março de 2020, como aponta levantamento da empresa de pesquisas Demanda.

As crianças também se encontram vulneráveis pelos mesmos motivos. A farmacêutica GSK realizou recentemente uma pesquisa baseada em dados coletados em 8 países, ouvindo ao todo 4,9 mil responsáveis. Metade dos genitores entrevistados disseram que durante a pandemia, adiaram ou não compareceram na data prevista para aplicar a imunização contra a doença meningocócica, mesmo 94% considerando a vacina contra a meningite algo importante.

A Meningite é uma doença grave e rápida, uma infecção que se instala quando uma bactéria ou vírus, consegue vencer as defesas do organismo e ataca as meninges, três membranas que envolvem e protegem o encéfalo, a medula espinhal e outras partes do sistema nervoso central.

A doença pode deixar sequelas como surdez, dificuldade de aprendizagem, crises de epilepsia e comprometimento cerebral. 

Foi assim que a minha mãe Marilene perdeu a audição aos 10 anos.  

O ano em que ela adoeceu bate certinho com a terrível epidemia de meningite que teve início em meados de 1971 no distrito de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, em plena ditadura militar. A doença se alastrou para outros estados devido a censura por parte dos militares e perdurou por anos levando a óbito milhares de brasileiros, em sua maioria pobres e negros. Até junho de 1977, ainda eram registradas altas incidências de morte.

O país já teve três surtos de meningite e minha mãe é sem dúvidas uma sobrevivente da pior epidemia na história do Brasil e hoje aos 61 anos ela aguarda a vacina contra a covid-19, porém, com um certo receio, desconfiando se a própria vacina aos invés de imunizar irá causar algum tipo de sequela por ter sido fabricada às pressas e provavelmente não foi amplamente testada. Além da possibilidade de aplicarem vacinas fora do uso de validade.

Esse é o dilema de muitos afro americanos nos Estados Unidos, que desconfiam de qualquer vacina devido ao contexto histórico racial.

Com o advento da escravidão, muitas pessoas pretas foram forçadas e usadas como cobaias para experimentos médicos. Os testes continuaram mesmo após a abolição. Como aconteceu com o caso Tuskegee no estado de Alabama entre 1932 e 1972. Um experimento cruel realizado pelo Serviço Público de Saúde dos EUA.

Foram usados como cobaias 600 homens cujo 399 portadores de Sífilis (doença sexualmente transmissível) e 201 saudáveis. Enganados de que tinham o “sangue ruim”, não tiveram informações sobre seu diagnóstico e não deram seu consentimento em participar do terrível experimento. No final do suposto “tratamento”, apenas 74 pacientes sobreviveram, 40 das esposas das cobaias haviam sido infectadas e 19 de seus bebês haviam nascido com sífilis. O objetivo do Instituto Tuskegee através deste estudo, era observar a evolução da doença, porém, livre de tratamento.

Para quem já conhece um pouco da história, sabe que o plano de extermínio contra a população afrodescendente se renova nos Estados Unidos e aqui no Brasil não é diferente.

Se uma mulher preta tem mioma, logo querem arrancar seu útero fora. A introdução da esterilização como forma de contracepção no Brasil ocorre a partir dos anos 1960 e 1970, expandindo-se fortemente nas duas décadas seguintes e hoje é defendida pelo atual presidente da República.

Políticas como está é direcionada às populações em vulnerabilidade social, majoritariamente negros e indígenas.

Hoje temos médicos especializados desenvolvendo pesquisas com um olhar humanizado voltado para a saúde do povo preto, como o Dr. Fleury Johnson, originário do Togo, hoje reside no Rio de Janeiro e atua no SUS como clínico geral.

Sugiro que conheçam também o Afro Saúde, um startup que desenvolve soluções tecnológicas em serviços de saúde para a comunidade negra.

Cuide dos seus mais velhos, dê uma atenção especial à sua mãe e sua família, mas não deixe de cuidar de si. 

Filme completo legendado sobre o caso Tuskegee – (Miss Evers’ Boys)

Lena Silva, do grupo UmSoh, lançou o single ‘Solidão Mãe’ que conta a história de sua mãe, Dona Marilene, que nasceu e cresceu na cidade de Jequié na Bahia. Com 10 anos de idade ela pegou meningite e perdeu a audição. Ela veio para São Paulo trabalhar como empregada, e passou por diversas violências no serviço. Mesmo não ouvindo e passando muito tempo sozinha ela faz de tudo para curtir a vida e manter a positividade. Este clipe conta sobre a realidade da mãe da Lena e também de muitas outras mulheres nordestinas.

Você Repórter da Periferia: novas oportunidades para 2021

Diante do momento que ainda estamos vivendo no Brasil com a pandemia da covid-19, buscamos um novo caminho para fortalecer a juventude da quebrada.

Primeiro encontro com todos os jovens da 1° edição do programa de inclusão produtiva Você Repórter da Periferia 2.0

Desde o início de 2020, com o avanço da covid-19 e as poucas medidas de enfrentamento do governo federal, diversas famílias, coletivos e projetos sentiram diretamente o impacto dessa pandemia e por aqui não foi diferente. Um desses impactos foi no nosso programa de formação, o Você Repórter da Periferia, projeto que realizamos desde 2014 e que já despertou interesse de mais de 400 jovens ao longo desses anos.

O cenário que continuamos vivenciando com essa pandemia ainda não nos permite realizar os encontros e vivências com os jovens pela cidade, no formato do Você Repórter da Periferia. Pois além da formação teórica, o programa possui uma imersão jornalística prática nas periferias de São Paulo. Esse é o momento no qual muitos jovens começam a descobrir as potências que existem em seus territórios e passam a enxergar seus bairros como espaços de produção cultural e econômica.

Continuamos seguindo as orientações da Organização Mundial de Saúde e dos órgãos de saúde do Estado e não iremos realizar a 7° edição do Você Repórter da Periferia, por se tratar de um projeto que possui como uma de suas principais características a troca e contato entre todos envolvidos, além das vivências que buscamos propiciar ao circular com esses jovens pela cidade.

Mas temos uma novidade: neste ano, convidamos 10 jovens das periferias de São Paulo, que já passaram pelas formações e vivências do Você Repórter da Periferia, para participarem da primeira edição do nosso programa de inclusão produtiva, o Você Repórter da Periferia 2.0.

Saiba mais: 

Você Repórter da Periferia 2.0 

O Desenrola e Não Me Enrola está realizando a 1° edição do Você Repórter da Periferia 2.0, um programa de inclusão produtiva no qual 10 jovens receberão uma bolsa auxílio, acompanhamento e formações para produzirem conteúdos para o portal de notícias e redes sociais do coletivo. Essa primeira edição iniciou oficialmente no dia 05 de maio e acontece até novembro deste ano, com jovens que concluíram o processo de formação e vivência em uma das edições anteriores do Você Repórter da Periferia.

Dentro desse período, os jovens já convidados pelo coletivo, irão atuar com produção de conteúdo em quatro frentes diferentes: texto, fotojornalismo, podcast e redes sociais. Além disso, o programa está dividido em duas etapas, sendo a primeira de maio a julho, uma formação com educadores em cada uma dessas frentes, e na segunda etapa, de agosto a novembro, o início da produção de conteúdo para o portal de notícias e redes sociais do coletivo.

Ao longo desse processo, os dez jovens irão participar das reuniões de pauta do Desenrola, além de sugerir, construir, apurar e produzir suas próprias pautas, com o apoio e acompanhamento dos integrantes do coletivo e também dos educadores que irão orientar a formação teórica.

Segundo Evelyn Vilhena, coordenadora do programa de formação Você Repórter da Periferia, essa é uma busca antiga do Desenrola que se concretiza de forma metodológica em 2021. “Conseguir trazer alguns jovens que passaram pela nossa formação e que se interessam em produzir conteúdo, na comunicação que acreditamos, que construímos e remunerá-los para isso, para nós é parte de muitos processos de aprendizado e crescimento do Desenrola”, compartilha.

O coletivo priorizou jovens que não estavam trabalhando ou com uma renda fixa todos os meses. “Fortalecer financeiramente esses jovens e isso aliado a um processo de trocas, formação e produção, principalmente em um momento como esse que estamos vivendo, impacta não apenas os jovens, mas também os núcleos e territórios em que estão inseridos”, afirma a coordenadora.

Os jovens são residentes de diferentes territórios periféricos, desde Osasco, região metropolitana de São Paulo, a Ferraz de Vasconcelos. Após o período de alinhamento sobre o programa com cada um, os dez jovens contactados pelo coletivo já participaram da primeira formação do programa no dia 05 de maio, de forma online. 

Foto da primeira formação do programa de inclusão produtiva Você Repórter da Periferia 2.0, no dia 05 de maio de 2021.

Luana Santos, 22, é uma das jovens que participa dessa primeira edição do programa. Ela é estudante de Rádio, Tv e Internet, moradora do bairro Jardim Casa Grande, em Parelheiros, zona sul de São Paulo e conta como foi receber o convite para participar do programa.

“Eu fiquei muito feliz pelo convite. É bom demais ser lembrada, ainda mais num curso que marcou muito a minha vida e me fez ter uma outra cabeça quando o assunto é a periferia e a minha quebrada. O Você Repórter foi um divisor de águas na minha vida e estou feliz demais de fazer parte do 2.0, as expectativas são as melhores. Espero ter a oportunidade de ter contato com outras pessoas da área, oportunidade de emprego e de crescimento profissional através dessa formação, estarei empenhada em dar o meu melhor!”

compartilha Luana.

Luana irá atuar na frente de podcast, ferramenta que nunca trabalhou e teve um rápido contato durante um curso, mas que acredita ser uma forma atual para disseminar informação. “Com a formação, acredito que posso atuar na área e me aprofundar mais sobre o assunto. Já trabalhei com som direto e sou apaixonada por som, acho o podcast uma maneira muito atual e bacana de passar informações no meio da correria do dia a dia. Estou ansiosa para aprender mais sobre o assunto”, conta.

Um dos jovens que irá atuar na frente de fotojornalismo é o Mateus Fernandes, 24, morador de Osasco, região metropolitana de São Paulo. Ele conta que já pensou em atuar com fotografia, atualmente estuda pedagogia e estava buscando um estágio presencial em educação infantil, mesmo não sendo o que queria de fato no momento.

“Não seria exagero dizer que o convite mudou meus planos, positivamente. Eu espero um impacto tão bom, ou até melhor, de como foi o VCRP 1.0 pra mim, que marque minha vida de uma maneira. E também espero que meu trampo possa ter algum impacto positivo também”, conta.

Mateus conta que há uns anos atrás tirava fotos de forma amadora, algumas até analógicas, e já pensou em trabalhar na área, com foto para casamento. Nunca seguiu a ideia, mas é algo que gosta e espera aprender ainda mais no Você Repórter da Periferia 2.0.

Para ele, formação aliado à produção de conteúdo é algo que falta em muitas áreas de ensino para os jovens, que têm maior oferta em áreas específicas e técnicas, e que faltam maiores opções na área de comunicação e artes, por exemplo.

“Quando eu estava no ensino médio e precisava de uma grana, eu vi que tinha alguns cursos no Senai que pagavam dessa maneira, formação junto com meio que um trabalho. Só que eram coisas mais de exatas, tecnológicas e não era algo que eu queria. Eu quase fiz curso de mecatrônica, mesmo sem vontade nenhuma, por causa dessa grana, mas no fim acabei não fazendo porque minha irmã conseguiu um emprego que ganhava melhor e permitiu isso.”

compartilha Mateus.

Já na frente de redes sociais, uma das jovens é a Samara Santos, 22, moradora do bairro Parque Fernanda, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Ela já trabalhou com conteúdo para as redes sociais em projetos pessoais e conta que sempre gostou, principalmente da interação do público com um projeto que ela acreditava muito.

“Neste momento será um desafio, na realidade, a forma de compartilhar informações nas redes sociais mudaram muito nos últimos meses. Estarei além de exercendo o que aprendi nos últimos anos, aprendendo a me comunicar com estas novas ferramentas”, compartilha Samara.

Para ela, os resultados das vivências teóricas e produções práticas ao longo dos próximos sete meses, irão possibilitar acesso a conhecimento e experiências que poderá utilizar não apenas durante o período do programa, mas também em outros momentos após a finalização do ciclo no Você Repórter da Periferia 2.0. 

“Eu acho que vocês acreditam muito na gente e isso já é uma das melhores coisas que o VCRP [Você Repórter da Periferia] pode nos proporcionar. A gente vai poder usar com vocês mesmos o que vocês nos ensinaram tanto na primeira passagem do VCRP quanto agora. A formação vai além do VCRP, é uma semente que vocês plantam em cada um de nós. É um desejo nosso que vocês também acreditam e alimentam. Pretendo usar a formação para continuar plantando sementinhas por aí mesmo depois dessa experiência com vocês.”

afirma Samara.

Os conteúdos que serão produzidos pela Luana, Mateus, Samara e todos os outros jovens da primeira edição do programa de inclusão produtiva Você Repórter da Periferia 2.0 poderão ser acessados a partir de agosto deste ano, aqui no portal de notícias e também nas redes sociais.

Essa é pra minha mãe

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Hoje separo esse espaço para agradecer por todas as mães de quebrada e em especial a minha.

Da esquerda para a direita: Tio Josemar, tia Daguimar, avó Maria Marta, tia Socorro e mãe Maria. Foto: arquivo pessoal

Acho lindo como o calendário nos presenteia com muitas datas para se lembrar de algo. Às vezes passa batido, mas algumas são muito emblemáticas, como o dia das mães. E hoje separo esse espaço para agradecer por todas as mães de quebrada e em especial a minha.

Realidade em muitos lares, são elas que, por diversas vezes,são os pilares principais da família. Quer aprender sobre gestão? Só trocar ideia com elas, que fazem verdadeiros milagres com o dinheiro que entra em casa, “dando os pulos” para comprar comida, pagar as contas, comprar as roupas e ainda separar as brigas das crianças.

Muitas vezes essas mães só tem o tempo de ser mãe, não sobrando tempo para viver a própria vida, um tempo para ser só, pois tudo é em dobro, triplo, quádruplo… Como diria Emicida: pranto, de canto chorando, fazendo os outro rir”.

E o que falar da minha mãe? Bom, aí me faltam palavras. Sem dúvidas a minha maior inspiração. É essa “velhinha” quem me ensina a maior lição que se pode ensinar: amar todo mundo com gestos e não somente com palavras. Foi com ela que aprendi a perdoar, a escutar, a me orgulhar da minha trajetória e a ter fé na vida. “Profundo, ver o peso do mundo nas costas de uma mulher”.

Obrigado, mãe, obrigado vó e obrigado a Thais Siqueira por ter me acolhido e acolhido tantas outras filhas e filhos na família Desenrola.

Até meu jeito é o dela
Amor cego escutando com o coração a luz do peito dela
Descreve o efeito dela, “Breve, intenso, imenso”
Ao ponto de agradecer até os defeito dela
Esses dias achei na minha caligrafia a tua letra
E as lágrima molha a caneta
Desafia, vai dar mó treta
Quando disser que vi Deus
E ele era uma mulher preta

Música Mãe – Emicida

Enraizada na dança negra, Zona Agbara retrata vida de Tula Pilar em websérie

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A potência literária e a trajetória de vida da poeta e ex-empregada doméstica é transformada em performance de dança com transmissão ao vivo nas páginas de espaços culturais da cidade. 

Foto de Lua Santana

Intitulada “Pilares”, a websérie que retrata por meio da dança a vida e obra da poeta mineira Tula Pilar estreia neste mês e tem exibição virtual. A criação da websérie é realizada pelo grupo de dança negra contemporânea Zona Agbara e as intérpretes criadoras da companhia performam coreografias inspiradas na biografia da artista.

Dividida em três episódios temáticos, a websérie pode ser vista pelas páginas do Facebook e canais do Youtube do Centro de Referência da Dança, Casas de Cultura do Campo Limpo e Tremembé, Espaço CITA, Biblioteca Adelpha Figueiredo e da própria Zona Agbara até o dia 24 de maio. As apresentações são únicas e não ficarão disponíveis após o dia e horário programados.

Tula Pilar se inspirou na trajetória de Carolina de Jesus e, trocando “a vassoura pelo lápis”, se consolidou como uma das poetas negras contemporâneas de grande influência na literatura produzida nas periferias. Em 19 de abril deste ano, completou-se dois anos do falecimento da artista.

Além das performances, os episódios contam com entrevistas de familiares, amigas (os) e parceiras (os) de Tula Pilar. Entre as convidadas, estão: Suzi Soares, do Sarau do Binho – movimento literário que Tula participou ativamente, e Carmem Faustino, da editora Oralituras, que lançou uma antologia de Tula em 2019. Pedro Lucas e Dandara Pilar, filhos da artista, também participam da parte das entrevistas e orientam a pesquisa da websérie. 

Confira datas, horários e links de exibição da websérie 

Episódio 1 – Tula: corpo fogo, memórias da encruzilhada 

Dançado por Dina Maia e Letícia Munhoz, o episódio traz uma concepção coreográfica que narra a personalidade marcante de Tula, tendo a simbologia do fogo como elemento simbólico dos trajetos ancestrais de sua existência.

10 de maio, às 19h – Biblioteca Adelpha Figueiredo, acesse aqui.
11 de maio, às 19h – Centro de Referência da Dança, acesse aqui.

Episódio 2 – Tula: terra e ventre de cabaça 

Tula circulava pela cidade como vento, mulher que pulsava sua feminilidade com autonomia. Nesse episódio Rosângela Alves e Iolanda Costa dançam a liberdade de seus escritos, as dores, os amores e sua marca no cenário literário paulistano.

12 de maio, às 19h – Casa de Cultura Tremembé, acesse aqui.
13 de maio, às 19h – Casa de Cultura M’Boi Mirim, acesse aqui.
14 de maio, às 19h – Zona Agbara, acesse aqui.
15 de maio, às 19h – CITA, acesse aqui.
16 de maio, às 11h – Zona Agbara, acesse aqui.
16 de maio, às 19h – Zona Agbara, acesse aqui.
17 de maio, às 19h – Biblioteca Adelpha Figueiredo, acesse aqui.
18 de maio, às 19h – Centro de Referência da Dança, acesse aqui.
19 de maio, às 19h – Casa de Cultura Campo Limpo, acesse aqui.

Episódio 3 – Tula: A água da justiça 

No último episódio celebramos o legado de Tula, que é como água e escorre por diferentes espaços e territórios. Thais Dias e Evelyn Dayse dançam a representatividade feminina em todos os aspectos, destacando a sua maternidade, militância feminista e sua busca por justiça social.

20 de maio, às 11h – Zona Agbara, acesse aqui.
20 de maio, às 19h – Casa de Cultura Tremembé, acesse aqui.
21 de maio, às 11h – Zona Agbara, acesse aqui.
21 de maio, às 19h – Casa de Cultura M’Boi Mirim, acesse aqui.
22 de maio, às 18h – CITA, acesse aqui.
22 de maio, às 20h – Centro de Referência da Dança, acesse aqui.
23 de maio, às 19h – Casa de Cultura Campo Limpo, acesse aqui.
24 de maio, às 11h – Zona Agbara, acesse aqui.
24 de maio, às 19h – Biblioteca Adelpha Figueiredo, acesse aqui.

“Meu sonho era ter uma filha”, diz Elvira Gonçalves, migrante baiana moradora do Jardim Ângela

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Aos 68 anos de idade, a migrante baiana da cidade de Ibititá compartilha como dedicou parte da sua vida  para cuidar dos filhos e revela o trauma de perder uma filha aos 17 anos e mais tarde realizar o sonho de ter outra menina.  

A partir de um diálogo intimista, honesto e ancestral, o Desenrola faz um mergulho nas histórias das mulheres que colocaram no mundo os integrantes do coletivo. Uma delas é a dona Elvira Gonçalves de Matos, 68, moradora do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Ela é mãe de cinco filhos, dona de casa, avó de quatro netos e filha de pais camponeses que criaram 15 irmãos no município baiano de Ibititá, localizado na região da Chapada Diamantina.

Elvira conta que nasceu no distrito de Canoão, um povoado localizado na cidade de Ibititá, um território conhecido pela presença de rochas que represavam a água em épocas de chuva, formando pequenos açudes. A população local está estimada em 18 mil habitantes, segundo o último censo do IBGE.

“Irecê é a cidade mais próxima, é o lugar onde eu fui registrada. Nessa época não tinha cartório na cidade de Ibititá, pois ela era um arraialzinho, onde as pessoas moravam mais na roça”, conta a migrante nordestina.

As memórias da sua família na cidade de Ibititá remetem a uma lembrança turva dos seus avós, os quais ela já não lembra com muita clareza. “O nome da minha avó materna é Andreza e o meu avô é Roseno. Eles são pais da minha mãe, Florência Floripes de Matos. Já os meus avós por parte do meu pai, Pedro Floripes de Matos eu não vou conseguir lembrar porque eu não os conheci”, afirma.

Elvira resgata com ternura a memória afetiva que ela guarda sobre a fisionomia, cor e costumes da sua avó Andreza. “Eu só conheci a minha avó Andreza. Ela ficava o dia todo sentada numa almofada só batendo os bilros que fazia um barulho assim: ‘treco, treco, treco, treco’. Ela era fazendeira de birro, aquelas rendas que se usa para colocar em capa de sofá, roupas, toalhas, essas coisas assim”, relata.

Segundo a ex-moradora de Ibititá, a sua vó fazia as rendas para presentear membros da família, pois naquela época não havia possibilidade de vender os artigos de pano devido à falta de trabalho e renda no povoado, o que limitava bastante a circulação de dinheiro entre as famílias. 

Igreja Matriz Nosso Senhor do Bonfim de Ibititá. (Foto: Banco de Imagens IBGE)

“A minha mãe passava o dia todo no rio pescando

Elvira Gonçalves

Para a dona Elvira, falar sobre a sua trajetória é também valorizar a forma como a sua mãe ajudava o seu pai, para conseguir comida para os seus 15 irmãos, numa época, onde as principais fontes de alimento era fruto do cultivo de legumes, grãos, frutas, criação de galinha, porco e principalmente da pesca, uma fonte diária de alimento para a mesa de uma grande família baiana.

“A minha mãe passava o dia todo no rio pescando. Ela era pescadora”, relembra Elvira. Segundo ela, essa era uma forma da sua mãe apoiar Pedro Floripes, o seu companheiro, enquanto ele se dedicava a uma pequena roça, onde passava a maior parte do tempo em busca de cuidar da terra para ter uma boa colheita. “Meu pai plantava milho, feijão, abobora, melancia e batata”, descreve ela.

Quando a dona Elvira tinha 12 anos a sua mãe apareceu no povoado de Canoão com um peixe enorme, que segundo ela deu muito trabalho para ser capturado. “Uma vez ela pegou um Surubim que arrastou ela para dentro do rio e ela ficou com água até o joelho, mas ela conseguiu pegar o peixe que deu 12 quilos”, relembra.

A mãe da dona Elvira pescou mais ou menos até os 50 anos de idade. Tamanha era sua força de vontade de continuar ajudando o seu companheiro, que ela não deixou se levar pelo avanço da idade, e continuou fazendo o que mais gostava: pescar com linha e anzol na beira do Rio São Francisco.

Aos 85 anos, ela sofreu um acidente em sua casa na cidade de Ibotirama na Bahia, para onde ela se mudou após os filhos estarem maiores. Após a queda, ela fraturou a bacia e ficou com dificuldades para se mover, tendo que ficar internada durante muito tempo no hospital.

Após alguns meses de internação, os filhos que permaneceram na Bahia e que continuaram vivendo ao seu lado decidiram tirá-la do hospital, devido a suspeitas de maus tratos e a levaram para casa. E foi nesse processo que a mãe da dona Elvira faleceu em sua residência.

Já o seu pai, Pedro Floripes viveu até 114 anos. O registro de nascimento, bem como o registro geral do senhor se encontram em poder dos irmãos da dona Elvira que ainda moram na Bahia. Muitos parentes e amigos até hoje se encantam com o vigor físico e a longevidade do patriarca da família.

Casa de Taipa da região nordeste do Brasil. (Foto: Banco de Imagens IBGE).

Moradia e trabalho 

Na década de 60, período no qual a dona Elvira ainda morava em Canoão, na cidade de Ibititá, ela conta que a vida era muito difícil, e um dos principais aspectos desse cenário era a escassez de água potável. “Nesse tempo todo mundo morava na roça. A água era algo muito difícil para ter, pois era uma água salgada e suja”, conta.

A casa dos pais da dona Elvira era construída com Taipa, um formato de construção que ilustra a paisagem do nordeste brasileiro, também conhecido como pau a pique. Ela explica como era a construção. “Você arma a estrutura da casa com madeira, e nas paredes você amarra um monte de varas e depois começa a bater o barro nas paredes para preencher com a massa de barro de louça”, descreve.

Para ela, os 15 irmãos e os seus pais dormirem na casa de Taipa, o chão da casa era forrado com esteiras de palha e camas de varas, divididos em três cômodos: uma cozinha, uma sala e um quarto. “Lá em casa todo mundo fazia sua cama de vara se fosse preciso”, afirma.

Assim como a sua mãe que usava o rio São Francisco para pescar, Elvira também conseguiu o primeiro trabalho fora de casa levando roupas para famílias de Canoão na beira de velho chico. “Lá tinha as pedras e quando não tinha como usar essas rochas, a gente levava uma tábua larga, botava na beira do rio, molhava a roupa na água e passava sabão em pedra, aí a gente esfregava o sabão e batia as roupas na pedra para tirar as manchas. Eu ganhei dinheiro lavando roupas de outras famílias durante muitos anos”, relembra.

Com esse ofício de lavadeira, que ela considera a sua primeira profissão, Elvira conseguiu comprar as suas roupas, já que seus pais não tinham muitos recursos para manter os 15 filhos. Ela recorda que essa atividade era um meio de sobrevivência para muitas mulheres de Ibititá, que ocupavam a beiro do rio para fazer esse tipo de serviço.

“A beira do rio era tomada de mulheres, elas brigavam por um ponto para lavar roupa por que era muita gente, a areia do rio ficava branquinha de tanto sabão que escorria das roupas que eram estendidas nas margens do rio”, relata ela, afirmando que além do grande número de mulheres, a beiro do rio era dívida com uma série de barcos, como lanchas, vapor e canoas de pescadores.

A primeira filha 

Elvira conta que não tinha muitas opções de brincadeira na sua infância. O tempo livre era ocupado ajudando com os fazeres domésticos dentro de casa. Ela conta que a sua família havia decidido se mudar de Ibititá para morar na cidade de Ibotirama, outro município baiano localizado às margens do Rio São Francisco.

Foi nesta cidade que ela iniciou os trabalhos ao lado deu pai, ajudando no cultivo da roça. A essa altura, ela já estava com 16 anos. Nessa época, o machismo era algo comum na vida das famílias nordestinas, havia também uma naturalização de relações abusivas, conta ela.

Quando ela completou 17 anos teve seu primeiro filho, fruto de uma relação abusiva que ela teve com um morador da mesma cidade de Ibotirama. Ao nascer, a sua primeira filha permaneceu viva durante 5 dias, e faleceu dormindo ao lado da mãe, devido alguns problemas de saúde que ela apresentou logo após o parto. “Eu dormi e quando acordei eu vi minha filha sem vida, foi muito triste”, relata.

Numa época em que os equipamentos públicos de saúde eram de difícil acesso, a história de dona Elvira revela como a mortalidade infantil está totalmente ligada com a ausência do políticas públicas naquela época no nordeste.

“Eu tive a minha filha nas mãos de uma parteira. O meu cunhado ajudou a fazer o meu parto. Eu morava numa região chada ‘Mata’, que fica há umas 20 léguas de distância do centro da cidade de Ibotirama”, diz Elvira. Ao ser convertida, a distância de 20 léguas equivale a mais de 90 quilômetros.

Ela complementa afirmando que hoje, por mais problemas que o sistema de saúde tenha em São Paulo, cidade onde ela morada com a família, se a unha do pé dela doer, ou bem ou mal o médico irá atender ela, mas na região onde ela morava na Bahia até o hoje o sistema de saúde público de lá é ruim e ela vê muitos parentes vindo para cá se tratar de alguma tipo de doença.

Após ter essa experiência com 17 anos, Elvira passou a redobrar o cuidado para não entrar em novos relacionamentos abusivos. Uma das medidas foi ficar um bom tempo se cuidado e longe de relacionamentos.

Chegada em São Paulo 

Elvira se mudou para São Paulo em 1972, quando tinha 19 anos, para tentar construir a vida na cidade que na época estava em processo de urbanização dos bairros periféricos. À convite de um casal de amigos da sua mãe Florência, ela decidiu vir morar na cidadã em busca de trabalho. Para realizar esse feito, a sua mãe teve que vender uma porca, criada na roça pelo seu pai, para conseguir pagar a passagem de ônibus.

Com o apoio do casal de amigos da sua mãe que visitavam a Bahia em época de férias, e que já moravam no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, Elvira conseguiu uma casa para se hospedar durante um tempo e a partir de amizades que ela fez com amigos do casal surgiu a sua primeira oportunidade de trabalho.

Dona Ana, a mãe do Antônio Neguim, um antigo amigo da família de Elvira a abrigou e lhe apresentou pessoas que fazem parte do seu ciclo de amigos até hoje. Uma dessas pessoas é Antônia Camilo, que lhe ofereceu a primeira oportunidade de trabalho em São Paulo, para trabalhar como diarista numa casa de comerciantes no centro da cidade.

“Eu fui trabalhar de doméstica aonde a minha comadre Antônia era cozinheira. Ela arrumou esse trabalhou para eu lavar roupa e limpar o apartamento dessa família. E lá tinha um quarto só para a gente dormir em um beliche”, relembra Elvira. Arrumar a cama, lavar louça, varrer o chão, limpar vidraças e os banheiros, essas foram as principais tarefas dela num apartamento localizado na esquina das Alamedas Santos com a Jaú.

Durante a sua juventude, Elvira conta que não tinha como se divertir e comprar produtos de beleza para cuidar de si. Era uma época difícil e de dinheiro curto. “Produto de beleza ninguém tinha, porque o dinheiro era muito pouco para comprar, além disso, eu não conhecia ninguém em São Paulo, então eu não me divertia indo em bailes. A única coisa que eu conseguia comprar era um produto chamado Henê para passar no cabelo”, conta.

Elvira lembra que por conta das dificuldades financeiras, algumas soluções criativas e baratas eram usadas para cuidar do cabelo, como por exemplo, o uso de ferro quente para facilitar o penteado e o uso de bobes para deixar o cabelo cacheado.

Elvira teve a oportunidade de viajar para a Bahia em 2017 para matar a saudade da famílias que não via há muitos anos. (Foto: Marília Matos)

 A família

Elvira permaneceu nesse trabalho durante um ano. Nesse meio tempo, ela conheceu Domingos Camilo, irmão de Antônia, sua colega de trabalho. Domingos morava no mesmo bairro onde Elvira estava hospedada na casa dos amigos da sua mãe. Da amizade entre eles surgiu uma união que já dura 49 anos.

Para Elvira, construir uma família ao lado de Domingos foi uma benção, pois ela se sente muito feliz e emocionada ao falar do amor pelos filhos quatro filhos que teve com ele. No entanto, ela não esconde que deixou de cuidar de si em várias questões, uma delas é o acesso a educação, pois na sua cidade natal estudar não era uma possibilidade real e acessível para todos os moradores.

“Eu nunca fui à escola. Só depois de ter todos os meus filhos eu fui estudar no EJA. Quando eu era jovem os meus pais não me cobravam de ir à escola e eu também não tinha interesse, porque já ajudava em casa e trabalhava na roça”, afirma.

Segundo Elvira, o fato de não saber ler e nem escrever não a impediu de circular pela cidade, cuidar dos filhos e até mesmo se candidatar para outros postos de trabalho, mas o preço mais alto que ela pagou por não ter estudado foi a discriminação que sofreu trabalhando como empregada doméstica.

“Antigamente aqui em São Paulo as pessoas precisavam bastante de empregas domésticas. Era fácil conseguir emprego. A escolaridade não atrapalhava. Mas além de pagar pouco, elas desfaziam da nossa profissão, ainda mais porque éramos pobres e negras”, revela.

Elvira Gonçalves de Matos, 68, é moradora do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. (Foto: Ronaldo Matos/Arte: Flavia Lopes)

Os filhos 

Após ter o segundo filho Reginaldo, Elvira parou de trabalhar como empregada doméstica. O nascimento dele aconteceu no Hospital São Leopoldo, localizado na Avenida Santo Amaro, zona sul da cidade e já completou 39 anos desde então. A história dela em São Paulo para trazer uma nova criança ao mundo começa com a realização de um parto fórceps, procedimento realizado retirando o bebê puxando a sua cabeça com o uso de instrumentos metálicos.

“A minha recuperação do segundo parto foi tranquila, mas o meu filho teve que ficar um tempo no hospital, pois ele teve um machucado nos olhos devido ao parto”, conta ela, afirmando que para criar Reginaldo foi preciso parar de trabalhar, com isso, apenas Domingos, seu companheiro permaneceu empregado.

Ela conta que a criação do segundo filho foi tranquila, mas em uma época difícil na década de 80, onde seu companheiro ficou desempregado, e com isso, ela voltou ao mercado de trabalho, para apoiar financeiramente as despesas da família.

“Reginaldo já tinha uns cinco anos. Eu precisei voltar ao trabalho como empregada doméstica, pois a vida aqui em São Paulo era muito difícil porque o salário da gente era muito pouco, não dava para comprar muitas coisas, era só o básico”, relembra.

O terceiro filho dela foi Paulo, que nasceu dois anos depois de Reginaldo. Eles nasceram no início da década de 80, período em que eles construíram um barraco de madeira na Estrada Guavirutuba no Jardim Ângela.

O barraco coberto com telha Brasilit tinha dois quartos, uma cozinha, um banheiro e apenas uma janela. Neste espaço, essa família foi se proliferando até a chegada de mais dois filhos no final dos anos 80. Ronaldo nasceu em 1987 e Marília em 1988. Ter uma menina era um sonho de Elvira que ela alcançou na sua última gestação.

“Eu cuidava de todos os filhos do meu jeito. Eu me lembro que eu encontrei muitas pessoas boas que me ajudaram, inclusive nos hospitais quando eles ficavam doentes. No Hospital São Paulo, por exemplo tinha médicos excelentes nos anos 90 que viraram até meus amigos, e me atendiam super bem com meus filhos”, lembra.

Ela complementa afirmando que a Santa Casa de Santo Amaro foi outro equipamento de saúde onde a equipe médica ajudou muito no cuidado com seus filhos. “Os meus filhos Reginaldo e Marília tinham problemas de bronquite e inflamação na garganta, então eu sempre estava levando-os para o hospital. Eu lembro de três médicos que marcaram a minha vida que são os doutores Waldo, Lins e Gaspar que me tratavam muito bem na Santa Casa e cuidaram dos meus filhos que ficavam internados com crises de bronquite.”

Dedicada a cuidar dos filhos, Elvira conta que nunca conseguiu ter tempo e oportunidade para se divertir ou ter um lazer, a dedicação sempre foi com as crias. “Não existia diversão. Desde quando eu cheguei em São Paulo eu nunca fui em um baile, parque ou restaurante. Para não dizer que eu não saia, eu costumava ir em festas de família, como almoços de final de semana e aniversários.”

“Eu gostava muito de comer galinha matada na hora, aquelas galinhas velhas que vendia na granja. Essa era uma comida simples e barata que eu fazia às vezes e toda a minha família gostava, quando iam na minha casa aos finais de semana”, diz Elvira, contando sobre uma das suas únicas lembranças de almoços em família que ela preparava.

Ela enfatiza que antigamente, as famílias mais pobres não tinham muita opção de diversão e até para fazer uma comida diferente em casa era difícil, devido aos altos preços dos alimentos e o baixo salário, que não sobrava para fazer esses tipos de atividades em família.

Toda encantada, Elvira segura Miguel no colo, o seu quarto neto. (Foto: Ronaldo Matos)

Sonhos 

Os momentos de alegrias para Elvira são baseados no nascimento dos seus filhos, em especial, ela destaca o nascimento da filha Marília. “Como a minha primeira filha morreu, o meu sonho era ter outra menina e eu tive a Marília, isso foi muito importante na minha vida”, revela ela, com um sorriso no rosto e olhos lacrimejando.

A autonomia financeira é outo ponto marcante na vida de Elvira. Segundo ela, em um determinando momento da sua vida ela começou a coletar latas de alumínio na rua, para vender no ferro velho, em busca de ter seu próprio dinheiro, para comprar as coisas que ela gosta. A dependência financeira do marido ganhou um peso maior, após ela estar mais madura e com os filhos criados.

“Eu vivia catando latinha na rua, mas eu nunca passei fome. Eu não queria ficar em casa deitada e dormindo, eu gosto de ter o meu próprio dinheiro, ser independente, para comprar as coisas que eu gosto de comer e para ajudar nas contas de casa”, justifica.

Elvira catou latinhas dos 61 a 64 anos.Ela parou de fazer a coleta de reciclagem para vender após conseguir ter o benefício do INSS que assegura a ela ter um salário-mínimo por mês. O acesso ao benefício veio quando ela completou 65 anos, e contou com apoio dos filhos que não moravam mais na mesma casa que ela, para realizar o procedimento burocrático de solicitação.

Se ela pudesse voltar no tempo, uma das coisas que faria diferente seria uma dedicação maior ao trabalho, já que boa parte da vida foi dedicada a cuidar da casa e dos filhos. “Se eu pudesse voltar no tempo eu teria trabalhado mais, eu ainda tenho vontade de trabalhar, porque viver dentro de casa só dormindo é muito chato, não que hoje eu aguente trabalhar, pois tenho muitos problemas de saúde, mas seria bom ter trabalhado mais para ter uma casa melhor e poder ajudar meus filhos.”

Com 68 anos e uma série de problemas de saúde, ela luta para se manter viva, consumindo remédios para retardar e controlar o impacto das doenças que ela adquiriu ao longo da vida. “Eu tenho diabetes, pressão alta, tiroide e colesterol alto. Eu faço tratamento para todas elas e tomo remédios controlados.”

Um dos sonhos da migrante baiana era ter a oportunidade de voltar na Bahia para rever os irmãos e parentes que ela tinha pouco contato. “Foi uma benção de Deus. Se eu morrer hoje eu vou tranquila, porque o meu sonho era rever meus irmãos e irmãs que estão vivos. A única tristeza que guardo é o fato de meus irmãos mais velhos terem morrido e eu não tido a oportunidade de ver eles antes”, relata.

Com um semblante já emocionado ela revela o sentimento que tem pelos filhos: “Os meus filhos é tudo o que eu tenho na vida. Eles são os meus pés, braços, olhos, é tudo o que eu tenho”, define ela. A ligação com os filhos refletes no sonho de futuro que Elvira tem em relação aos seus netos. “Eu quero viver um pouco mais para eu ver meus netos crescer e receber eles em casa para eu cozinhar para eles e a gente passar um dia inteiro juntos”, finaliza ela.

Esse perfil faz parte do conteúdo da semana do dia das mães, onde compartilhamos um pouco das histórias das mães dos integrantes da equipe do Desenrola e Não Me Enrola. Além de tantas outras coisas, Elvira Gonçalves é mãe de Ronaldo Matos, editor do Desenrola.

Do Ceará para São Paulo, Silene Alves se redescobriu e continua sonhando com o futuro

Entre chegadas e partidas, foi em São Paulo que Silene fixou morada e hoje se redescobre dentro da costura e faz planos para seu futuro.

Silene Alves Ferreira, 53, nasceu em Ibiapina, no norte do Ceará, é moradora do Rio Pequeno na zona oeste de São Paulo, local onde mora há mais de 30 anos. Ela já atuou dentro de uma ONG que auxilia mulheres com câncer de mama, trabalha como balconista na mesma empresa desde que chegou na cidade e nos últimos meses redescobriu seu talento como costureira.

Ela conta que cresceu junto com os pais e teve uma juventude de muito trabalho. Ela também conta que sempre teve o sonho de viajar e conhecer outros Estados: “Meu pensamento era viajar, ir para Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, queria estudar, ser alguém na vida. A gente estudava até a terceira série só, daí pra frente não tinha condições de continuar, mas eu sonhava alto.” 

“Eu tinha vontade de ser professora, cheguei até dar aulinhas, ensinando o ABC, a cartilha da alfabetização para uns meninos de lá”

Durante a adolescência, Silene estudava a noite e durante o dia trabalhava na roça: “A roça que eu falo significa plantação de milho, feijão, café. A gente trabalhava também no cafezal apanhando café, chegava até a capinar mato, tudo isso para ajudar meu pai, ajudar em casa, e a noite a gente estudava”, relembra Silene.

Ela conta que teve uma juventude boa, e compartilha sobre seus divertimentos nessa época, período também da sua primeira gravidez. “Minha juventude, foi muito boa, a gente era muito preso né, mas saímos muito para os forros, dançava muito, eu amava um forró, ainda amo, namorava muito, e foi aí nessa juventude com essas festas, que eu comecei a namorar. Um namoro forte, me apaixonei pela primeira vez, acabei engravidando sem casar e tive a minha primeira filha”, compartilha.

A primeira gravidez trouxe mudanças para Silene, e também a realização de um sonho através da primeira filha: “Com a gravidez dela [primeira filha], eu tive que romper os meus sonhos, tinha 19 anos, tive que parar com tudo que eu queria, daí pra frente me inspirei em ser mãe, e o engraçado é que foi ela que realizou um sonho meu. O meu sonho era ser professora, e ela chegou a realizar esse sonho meu, hoje ela é uma professora formada pela universidade pública, e eu tenho muito orgulho disso, ela realizou meu sonho”, afirma Silene.

Ela conta que não gosta de ficar parada e procura estar sempre em movimento: “Eu amo ir para rua, para o trabalho, me sinto muito mal em ficar em casa, tenho uma rotina que eu sempre trabalhei desde meus 12 anos, e eu gosto de trabalhar, se eu fico em casa, não consigo ficar parada, eu gosto de passear, ajudar as pessoas.”

Em 2018, Silene passou por um tratamento de câncer de mama e afirma que esse momento a fez mudar muito: “Comecei a olhar muito mais pra mim e a fazer muito mais as coisas por mim, aí conheci a ONG ‘Amor e Mechas’, que faz perucas para mulheres. Aí comecei a ajudar a recolher cabelo, a incentivar as pessoas a doarem, a conversar com outras mulheres que estavam passando pelo o que eu passei”, afirma. 

“Gosto de dançar meus forros, me faz muito bem, é onde me sinto mais viva também, onde me lembro da minha juventude, me divirto muito, isso é o pouco do que eu sou, é isso que me faz bem, quem eu sou.”

Costura como herança 

A costura tem uma grande relação com uma herança familiar para Silene. Segundo ela, sua família tem o DNA de costura, desde sua avó, tias, mãe, até as suas irmãs: “A maior referência é uma irmã minha, que foi uma costureira de mão cheia, a melhor que eu já pude conhecer, ela que fazia minhas roupas. Eu tinha uma ideia de roupa mais diferente, e ela fazia tudo, e no meu tempo o que a gente aprendia com os pais, era costurar ou bordar, eu sou desse tempo ainda”, compartilha Silene, que pegou pela primeira vez em uma máquina de costura quando tinha 13 anos, e em 2020, durante a pandemia da covid-19, voltou a ter contato com a costura.

“Quando a gente ficou em casa, eu estava desesperada, não conseguia ficar parada, não podia sair, eu já estava ficando aperriada de só cozinhar e arrumar a casa, aí minha filha comprou umas máscaras de tecido, eu olhei para elas e fiquei: ‘eu vou fazer essas máscaras para nós e para ajudar quem não pode comprar’. No outro dia, fui em uma loja e comprei TNT, e comecei a costurar na mão, depois pedi a máquina de costura de uma amiga emprestada”, conta Silene que não sabia mais nem colocar a linha na agulha e contou com a ajuda da sobrinha.

“Daí para frente fui tomando gosto por fazer máscara, doei muita máscara, e hoje eu tenho minha própria máquina que eu ganhei, e eu amo costurar. É como disse pra minha filha uma vez, se eu tivesse tido condições de estudar e desenvolver isso, eu seria uma bela de uma estilista.”

Hoje Silene consegue ter uma renda a partir das máscaras que costura e também tem uma rede de apoio que a ajuda. “Hoje faço máscara para vender e consigo tirar um dinheirinho fazendo máscara, ainda dou na igreja, e tem muita gente que me ajuda, ganhei uma amigona por causa da minha filha, que me ajuda comprando tecidos mais barato no centro, isso me ajuda muito e eu consigo fazer mais e mais pra ajudar outras pessoas também, porque é um momento que temos que nos ajudar, não tem jeito”, afirma Ferreira.

Para ela, voltar a costurar depois de quase 40 anos a fez lembrar muito de sua irmã, que já faleceu: “Quando eu estava tentando colocar a linha na agulha que eu não conseguia, e fiquei apavorada, lembrei muito de quando eu tentava pegar na máquina da minha irmã, ela não deixava a gente nem se aproximar, mas quando ela saía, eu ia direto na máquina dela para costurar”. Ela completa a memória: “Inclusive quando eu peguei essa máquina agora, depois de quase 40 anos, ela veio muito forte na minha memória, e aquele pensamento tão positivo que eu tinha dela, reclamando da gente pegar na máquina, e eu pensando nela, e falando que ia conseguir por a linha na agulha, e em pensamento pedindo ajuda dela, falando ‘me ajuda minha irmã, que eu preciso aprender a colocar essa linha na agulha para doar máscara’, aí logo depois eu consegui, consegui e chega eu senti ela comigo, e dali pra frente e não parei mais”, conta Silene.

Silene Ferreira voltando a costurar.

O caminho até São Paulo 

Silene conta que o seu sonho era viajar e que até o momento de chegar para morar em São Paulo, viveu um tempo em outros dois estados. “Eu morei um tempo na casa de uma parenta em Brasília, e depois eu fui para o Rio [de Janeiro] com a minha filha mais velha atrás do pai dela que tinha ido para lá atrás de trabalho, e eu era muito nova”. Silene conta que foi para o Rio de Janeiro com sua sogra, para se encontrar com o pai de sua filha e que chegou a morar com ele por um tempo.

“Eu tinha uma irmã em São Paulo, que ela tinha vindo bem antes de eu sair de lá, mas ela nunca mais deu notícia, ela tinha praticamente sumido, a gente falava com marido dela, mas não falava com ela, aí um dia muito desgostosa dessa relação com os pais dos meus filhos, vi que ele não queria nada com nada, descobri que estava grávida do segundo filho, e eu pensei ‘se eu ficar aqui vai ser só sofrimento'”, conta Silene que resolveu ir atrás de sua irmã, com sua filha mais nova e grávida do segundo filho.

Ela conta como chegou em São Paulo: “Vim para São Paulo, eu não conhecia nada, só tinha o endereço do serviço do meu cunhado, aí chegando aqui, comecei a trabalhar nessa empresa que eu trabalho hoje, com 5 meses de grávida, escondi a gravidez para não ser mandada embora e trabalhei grávida até o dia que ele nasceu, e trabalho nessa empresa até hoje”, relata Silene.

Hoje com três filhos, Silne conta como foi a gravidez de cada um deles e o que encontrou nesse caminho: “Na minha primeira gravidez, a gravidez da Marina, eu tinha 19 anos, eu não tinha noção nenhuma do que tava passando, o que que era aquilo, eu tinha muitos sonhos, mas eu também queria ser mãe, ser dona de casa, ter um marido do meu lado para constituir família”, compartilha.

“Eu fiquei feliz com a minha gravidez, mas não casei, eu passei por cima das honras da minha mãe, do meu pai, fui morar na casa da minha sogra, que foi uma pessoa maravilhosa, foi um anjo na minha vida, que me acolheu com braços abertos, foi quem me ajudou muito, e isso foi minha gravidez dos 19 anos.”

Um dos primeiros registros de Silene Ferreira em São Paulo.

Na sua segunda gravidez a costureira passou por mais mudanças. “A segunda gravidez, do meu filho do meio, o Rafael, meu único menino, foi mais turbulenta. Eu estava no Rio, vim parar em São Paulo, eu tinha que correr para trabalhar, eu já tinha uma menina, tive que esconder essa gravidez até o dia que nasceu, por causa se eu não tivesse escondido não teria arranjado trabalho, trabalhei até o dia que ele nasceu, ele nasceu em casa, não deu nem tempo de chegar no hospital, minha irmã que cortou o cordão umbilical, foi algo mais conturbado mesmo”, relata Silene.

Já na última gravidez, da terceira filha, Ferreira conta que foi um processo diferente dos outros dois: “A da minha filha caçula, a Vitória, eu já era mais velha, o pai dela também, e a gente se juntou de novo, com a ideia dessa vez construir a família que queríamos e falamos lá atrás, a ideia era se juntar e criar esses três filhos, e eu me sentia muito orgulhosa de estar grávida e estar com o marido do lado, então isso era minha felicidade, mas tudo acabou indo por água abaixo, não conseguimos ficar juntos, e ele foi embora, me deixando com esses três filhos para criar, sozinha, e hoje estão aí enormes, crescidos e são meu maior orgulho”, afirma.

Ela conta que se sente feliz sendo mãe e que se pudesse voltar, teria tido mais filhos. “Eu me inspirei em ser mãe, e fui e sou, não sei se boa, porque é como diz, a gente quer ser uma mãe tão boa, quer proteger os filhos de tudo, acaba sendo uma mãe ruim, porque ensina eles coisa que às vezes eles tem que aprender só, de tentar ser tão boa, e sempre proteger acaba sendo ruim para eles mesmos”, ela finaliza: “eu me sinto uma mãe muito feliz, tenho três filhos maravilhosos que eu amo muito, se voltasse atrás não seria mãe só de três mas de seis, que eu me sinto muito feliz em ser mãe”.

Silene também conta de onde partiu sua inspiração para ser mãe, sobre como a sua criação e a sua mãe foram suas referências. “Eu me vi na minha mãe, a minha mãe é uma mãe até hoje com os 86 anos dela, era uma mãe que só ela, naquele tempo as coisas era tudo difícil, mas mesmo assim ela era uma mãe acolhedora, ela queria que os filhos tivesse tudo ali ligado a ela”, conta.

Ela também conta que se espelhou em seu pai e em outras mulheres: “o meu pai era um marido muito bom, e um pai maravilhoso, ele também foi quem me inspirou muito, quem eu carrego dentro de mim pra sempre, e outras mulheres que passaram na minha vida desde que eu cheguei aqui, me inspiraram muito, as madrinhas dos meus filhos, às minhas irmãs, todas mulheres que passaram por muito, foram muito fortes e me deixaram muito forte também”, compartilha.

Para Silene, a pandemia afetou a convivência com seus filhos de uma forma boa e o isolamento mudou essas relações: “A gente teve uma convivência bem mais forte do que quando antes da pandemia, porque antes era do serviço pra casa e de casa pro serviço. Saía de férias, quando eu saia de férias elas estavam trabalhando, então a gente nunca tinha tido essa convivência tão longa como foi agora”.

Futuro 

Silene afirma que o que ela mais fez e faz por ela mesma é passear e viajar: “Eu sai de férias e viajei, sozinha. Viajei. Isso eu fiz por mim, eu falei: ‘não vou levar filho, vou fazer por mim, maravilhoso’. Outras férias que tirei também, viajei de novo, passei uma semana numa praia aí deserta, também muito boa, só eu”.

Segundo ela, foi um tempo que tirou para si. “Eu falei: ‘é eu que vou fazer isso, é pra mim, vou viajar’. Andei no mar, andei de navio, andei de barco, me senti uma pessoa maravilhosa, que eu tava fazendo pra mim, pra minha felicidade, se eu pudesse viajava muito, hoje é uma coisa que eu priorizo muito é sair, conhecer os lugares, eu amo viajar, espero que em breve eu possa viajar mais, conhecer o Brasil, que aqui tem muito lugar bonito, pretendo conhecer todos”, conta Silene.

Ela finaliza contando sobre seus sonhos e o que almeja para o futuro. “Então, hoje eu tô com 53 anos, daqui mais 3 anos eu me aposento, o que eu vejo no futuro? É ter uma aposentadoria com saúde pra que eu possa curtir essa aposentadoria, não quero mais trabalhar com fé em deus, quero curtir minha aposentadoria, viajando, cuidando dos meus netos quando precisar, ficar mais em casa cuidando da minha casa, sem ter essa preocupação de sair todo dia de manhãzinha pra trabalhar, apesar que eu gosto muito, mas é isso que eu me vejo no futuro”. 

“Ter minha aposentadoria e curtir minha aposentadoria do jeito que todo mundo deveria curtir a aposentadoria, que a gente trabalha tanto, se gasta tanto, então quando a gente percebe esse dinheirinho, mesmo que seja pouco, tendo a ajuda dos filhos dá pra gente curtir uma coisa melhor. Então eu me vejo no futuro assim, e será assim, eu espero”, finaliza.

Esse perfil faz parte do conteúdo da semana do dia das mães, onde compartilhamos um pouco das histórias das mães dos integrantes da equipe do Desenrola e Não Me Enrola. Além de tantas outras coisas, Silene Ferreira é mãe da Vitória Guilhermina, repórter da equipe do Desenrola.

Rede de bancos comunitários cria moeda digital para comércios das periferias

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Visando fomentar o fortalecimento da economia local, a Rede Paulista de Bancos Comunitários investe em tecnologia para modernizar sistema de atuação dentro das periferias e favelas

Empreendedora exibe adesivo que informa o e-dinheiro como forma de pagamento digital (Foto: Rede Paulista de bancos comunitários)

“Banco comunitário é uma associação de pessoas que se juntam para criar alternativas ao sistema financeiro tradicional”, explica Hamilton Mendes, 58, coordenador da Rede Paulista dos Bancos Comunitários. A iniciativa de consolidar a atuação de uma rede faz parte de um movimento de bancos comunitários que visa investir na digitalização de serviços para fortalecer a atuação dessas organizações nas periferias e favelas.

Hamilton destaca a importância de criar um sistema financeiro alternativo, mesmo ciente que já existe o sistema tradicional. “O sistema financeiro está baseado no lucro, então tudo que você faz em um banco sempre gera lucro ao banqueiro. O problema dos bancos é que eles concentram o maior poder político e econômico que o país tem”.

O coordenador da Rede de Bancos Comunitários enfatiza que o objetivo dos bancos populares geridos por moradores, por meio de uma associação é a ativação e circulação de renda em bairros de favelas e periferias.

Segundo ele, o sistema financeiro alternativo visa beneficiar e atender as necessidades dos moradores de acordos com suas condições socioeconômicas. “O banco comunitário pode emitir uma moeda local, essa é uma das ferramentas que o banco comunitário utiliza, além dos juros baixíssimos de 0 a 2 %, quando emprestam dinheiro a alguém”, afirma.

Hamilton complementa que o banco comunitário pode contribuir para uma desburocratização no acesso ao empréstimo, ofertando baixas taxas de juros em relação ao sistema financeiro tradicional. Ela ainda ressalta sobre a estratégia de emitir sua própria moeda para ativar a economia local.

“Fazer com que essa atividade econômica do bairro gere dinheiro para o bairro, você só pode usar essa moeda social para o bairro, isso fortalece a economia local”.

 

Moeda digital

Em busca de modernizar o sistema de atuação e gestão dos bancos comunitários, a Rede criou uma moeda eletrônica que atua com a mesma lógica da moeda social. “A gente criou um sistema de pagamento alternativo pelo celular, e por isso a gente deu o nome de e-dinheiro, para usar esse pagamento na comunidade através do celular, pois é mais seguro e higiênico, então é preciso aprender a usar o e-dinheiro no celular, ele é um sistema muito prático”, descreve Hamilton, apontando as soluções de pagamento que a rede busca oferecer por meio dos bancos comunitátios, para agilizar e democratizar os pagamentos via celular com menos encargos e taxas de juros.

“isso ajuda muita gente, tanto no consumo, pra você comprar uma comida, comprar um gás de cozinha, comprar alguma coisa que você precisa com urgência, como também para você montar seu próprio negócio cooperativo ou negócio individual, para você montar uma lojinha na sua casa, ou um brechó, uma costura, ou uma loja de bolo, ou produzir e vender marmitex”, diz o coordenador, citando uma série de serviços e produtos que podem ser consumidos ou desenvolvidos com o apoio de empréstimoa do banco comunitário.

Junto com a solução do e-dinheiro, a rede de bancos comunitários apresenta também a e-vaquinha, uma vaquinha eletrônica que recebe doações, por meio da moeda social eletrônica, sendo a única plataforma existente no Brasil, que oferece esse tipo de operação de financiamento coletivo.

Outra ação da rede de bancos comunitários é a e-lojinha, loja virtual que vende produtos de comerciantes dos territórios onde atuam organizações de bancos comunitários e que aceitam como forma de pagamento a moeda social.

“O conjunto desses instrumentos e ferramentas é no sentido de fortalecer o uso da moeda eletrônica, é fantástico a gente ter um sistema de pagamento pra usar por internet, ao mesmo tempo que tem um sistema de compra pela internet, que no período da pandemia é muito importante”, conta o coordenador.

 Um dos projetos da rede é um curso de capacitação totalmente online que a própria organização vem desenvolvendo para formar pessoas para montar um banco comunitários. A formação possui conteúdos organizados em módulos, onde cada aula tem uma duração média de três horas.

“A gente vai fazer esse primeiro esforço para levar essa formação, a fim de incentivar e apoiar essas formações em suas comunidades, que pode ser eventualmente uma formação presencial, mas também procurando uma solução para essa dificuldade de inclusão digital que é um problema muito sério”, Conta Hamilton sobre suas expectativa com a capacitação de futuros proprietários de banco comunitários.

Ele não esquecendo o problema do acesso ao mundo digital dentro dos territórios periféricos. “Eu acho que nós temos que pensar nessa solução juntos, inclusive usando os bancos comunitários como uma forma de financiamento de antenas de distribuição de sinal, de compra coletiva para sinais de telefonia para oferecer gratuitamente para os estudantes, essa é a natureza do banco comunitário, essa deve ser a tendência dos bancos comunitários da periferia”, avalia.

O maior público são as mulheres chefes de família

“Atualmente o pedido de crédito tem sido a nossa maior procura devido ao aumento de desemprego, as pessoas de alguma forma necessitam fazer algo para manter a família. E o maior público são as mulheres chefes de família”, conta Maria do Carmo Rodrigues, 67, coordenadora do Banco Tonato, localizado no Jardim Tonato, na periferia do município de Carapicuíba.

Marica do Carmo mora no mesmo bairro onde atua dentro de um banco comunitário. Durante a pandemia, ela sentiu o crescimento pela procura de crédito na região e a redução do fundo de reservar financeiras do banco. “Aumentou a procura de crédito, mas também diminuiu o fundo, como a gente tá sem fazer nenhum evento ficou mais difícil o fundo e as mulheres é quem procura mais”, relata Rodrigues. Ela conta que antes da pandemia, a maior parte da renda que compõe o fundo da organização vinha de eventos feitos no território de maneira, e esse recurso é utilizado principalmente para realização de empréstimos.

Maria do Carmo explica como é o processo de avaliação e aprovação de empréstimo no banco comunitário. “Essa pessoa vem e nos procura, ai o agente de crédito vai lá na casa dela para fazer uma avaliação, depois dessa avaliação o agente de crédito tem um grupo que se chama Kak, aí a gente passa essa ficha pra esse grupo para eles avaliarem se a gente deve passar esse crédito para pessoa ou não”.

Mesmo com um processo fácil para aprovação de crédito, a alta demanda impediu o banco de atender todos os moradores do território que o procuraram, essa situação gerou a necessidade de criar um sorteio para destinar o empréstimo aos moradores.

Os valores dos empréstimos normalmente giram em torno de 100  a 300 reais. “A maior finalidade é para comprar materiais para iniciar seu próprio negócio com venda de bolo ou salgados. Em alguns casos são pedidos para comprar o gás ou alimento”, revela a coordenadora.

Para Maria do Carmo, a modernização proposta pela Rede de Bancos Comunitários vai aumentar a possibilidade de os bancos aumentarem a sua receita e fortalecer o seu fundo de empréstimos. “Além de ajudar na divulgação também vai aumentar o fundo, e dá para a gente atender um maior número de famílias que vai procurar os bancos comunitários”, conclui. 

Rita de Cássia: uma trajetória de muitas transformações

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Com uma trajetória de vida marcada por dores e muitas conquistas, ela conta como algumas mulheres apoiaram e marcaram sua juventude e a experiência de ser mãe.

Rita de Cássia, 42, nasceu e passou boa parte da sua infância no Rio Pequeno, distrito da zona oeste de São Paulo, mas ao longo dos anos morou em alguns bairros, como no Jardim das Rosas, no Capão Redondo. Aos 17 anos, com a chegada da primeira filha e do casamento, se mudou para Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, onde mora atualmente. Já foi ajudante de serviços gerais, vendedora, operadora e fiscal de caixa, e hoje é supervisora de atendimento em uma empresa de comercialização de aparelhos eletrônicos.

Na sua infância morou com sua mãe e seus seis irmãos. Rita se lembra que onde morava, ainda no Rio Pequeno, a princípio era um terreno grande de sua vó, com vários barracos, um deles era o da sua mãe. Cresceu junto com muitos primos e tios que moravam no mesmo quintal, e afirma que foi uma infância boa, e o que mais se lembra são as partes legais. 

“Me marcou bastante, foi uma infância bem gostosa, porque eu fui criada com todos os meus primos, tias, todos morando na mesma rua, no mesmo quintal. Então foi o que mais me marcou, as brincadeiras com meus primos”

Ela conta também que em alguns finais de semana sua família se reunia para ouvir música, dançar, tomar uma bebida e enquanto isso aproveitava a rua com seus primos: “A gente criança tinha a liberdade de poder brincar na rua nessa época enquanto eles ficavam se divertindo lá na sala, a gente tava correndo na rua, brincando de pega-pega, de pula-pula, de esconde-esconde. Às vezes a gente entrava lá no meio da sala também para dançar junto com eles”, recorda.

Mesmo guardando para si as partes boas da infância, ela conta que também tem uma parte de dificuldade nesse período, onde sua mãe precisava cuidar de sete filhos praticamente sozinha.

“Eu me lembro que me marcou muito também quando a gente às vezes não tinha um pão para comer de manhã cedo, e aí minha mãe fazia um bolinho de farinha com água e sal para gente poder comer de manhã. Quando às vezes ela ia nas padarias pedir pão amanhecido pra gente poder ter um pão para comer de manhã cedo. Quando ela ia no Ceasa pegar lá o resto da feira pra gente poder ter uma verdura pra poder comer”, compartilha Rita citando os momentos bons e ruins que teve na sua infância, e reforça que guarda para si as partes boas.

Já na adolescência, Rita passou um período morando com a avó, e uma de suas memórias da juventude é da época dos bailes e da galera que andava junto e saía aos finais de semana. Ela conta que trabalhou e estudou muito, e teve uma adolescência boa, onde conseguiu aproveitar muito, mesmo casando e tendo engravidado cedo.

“Eu não podia ir muito [aos bailes], era um pouco proibido, eu só podia ir se meus irmãos mais velhos fossem, senão eu não poderia ir. E aí pra poder sair às vezes, aos domingos para curtir um pouquinho do baile, no salão, a princípio eu mentia para minha vó. Eu dizia que ia para o shopping, mas na verdade eu ia para o salão para poder aproveitar um pouco, porque eu era um pouco presa, nem tanto pela minha vó, mais pelo meu pai que era muito machista, tinha uma mente muito fechada e era muito rígido”, conta Rita.

Ela relembra que nessa época, por volta de 1992, tinham grupos que faziam disputa de dança nos bailes, e se reuniam para treinar os passinhos para o baile. “Tinham aquelas competições de vários grupos. O pessoal comprava a roupa parecida, era meio que uniforme para se destacarem, mostrar que cada um era de um grupo diferente. Era muito gostoso”, lembra Rita.

Assim como muitos jovens, principalmente das periferias da cidade, na sua adolescência, Rita trabalhava, estudava e em parte da sua juventude passou a se dedicar ao atletismo.

Seu primeiro emprego foi aos 11 anos em uma loja de artesanato perto do local onde morava. “A minha mãe ainda morava no Rio Pequeno, e aí ela era sozinha praticamente para criar sete filhos, e aí ela tinha arrumado um emprego para mim do lado de casa, que era um localzinho que tinham alguns hippies que faziam artesanatos, e aí ela arrumou pra mim poder limpar mesmo. Varrer, lavar banheiro e aí aos pouquinhos eles foram me ensinando a fazer alguns artesanatos para ajudar também”, conta.

Depois disso Rita seguiu trabalhando em uma papelaria, passou por uma empresa que fabricava fita cassete e continuou estudando. “Nessa época também eu trabalhava de dia e estudava à noite, e aí teve um período que eu ingressei no atletismo através de uma professora minha de educação física. Isso mais ou menos quando eu tinha uns 12 ou 13 anos. Eu meio que intercalava escola, trabalho e treino”. Ela conta também que com o tempo não conseguia mais trabalhar, pois estava buscando focar no treino, então passou a estudar de manhã e treinar a tarde.

O esporte e a escola como canal de oportunidades e descobertas

Na adolescência, Rita chegou a fazer atletismo na USP, oportunidade que conseguiu através de uma professora, na escola EMEF Brasil-Japão, no Rio Pequeno, que levou os alunos para uma seleção. Rita foi uma das selecionadas nessa peneira e começou a treinar no CEPEUSP – Centro de Práticas Esportivas da USP.

Esse contato com o atletismo aconteceu por meio da professora de educação física, Fátima. “Antes de entrar na USP, essa professora de educação física, que foi muito importante para que eu ingressasse nessa área de atletismo, ela levava a gente para competir, para fazer competições interescolares. E aí ela que corria atrás de tudo, que levava a gente, mas a gente normalmente competia por São Paulo mesmo”, conta Rita, ressaltando a importância do apoio da professora nesse período.

Rita conta da vez que foram competir em Rio Claro, uma competição estadual, e nessa época estava morando com seus avós. Ela conta que os avós davam o básico e essencial e sua mãe sempre buscava levar uma muda de roupa e material escolar quando precisava.

“Fui classificada para participar desse campeonato estadual, ela [professora] que bancou a minha viagem, inclusive, eu nem tinha a roupa adequada para poder competir, porque o correto é ter roupas de esporte, uma calça de moletom no mínimo, um tênis, e eu não tinha. Eu lembro que arrumei a minha mala toda empolgada pra ir competir, mas eu não tinha a roupa adequada, e aí quando chegou lá no local, ela foi e me cedeu algumas roupas dela pra eu poder participar da competição, porque eu não tinha”, lembra Rita.

Durante três anos Rita conseguiu participar de competições e se empenhar no atletismo. Ela parou de treinar aos 16 anos, período em que sentiu bater forte a necessidade de ajudar financeiramente dentro de casa. Como não era federada pelo clube, não recebia na época o salário mínimo que era pago aos federados, recebia um auxílio para o transporte e alimentação, e suporte nos custos das viagens para competições em outras cidades.

Com o fim do patrocínio que a USP recebia de uma empresa na época, alguns atletas foram cortados, e ela estava entre eles.

“Eu tive que optar, ou continuar treinando ou sair do treino e ir trabalhar. E como eu tinha encerrado contrato na USP, eu tinha a opção de ir para outro clube para poder fazer uma peneira e começar treinar, mas aí tinha encerrado o contrato”, ela completa: “A Xerox que era uma empresa grande, que nessa época patrocinava a USP, deixou de patrocinar, e aí eles tiveram que parar o treino de algumas pessoas, cortar o contrato com algumas pessoas e eu estava no meio, mas eles incentivaram a gente a procurar outro clube, Clube Pinheiros, por exemplo, pra gente poder continuar”, conta Rita que após três anos no atletismo, deixou de treinar aos 16 anos, mas continuou estudando e voltou a trabalhar.

Rita de Cássia – Foto: Acervo pessoal / Arte: Flavia Lopes

Cuidando de si: a criação de novos caminhos e possibilidades 

Um ano após parar com o atletismo, Rita se casou e engravidou da primeira filha. Nesse período se mudou de vez para Carapicuíba, onde morou por um tempo com a mãe, Dulcineia Augusta, até construir sua casa no espaço do terreno que recebeu de sua mãe.

Após se casar e mudar de cidade, ficou quatro anos dedicado a cuidar da casa e dos filhos: “Quando eu casei que eu vim para Carapicuíba, fiquei quatro anos sem trabalhar, sem estudar, fiquei quatro anos dedicada realmente à família, aos meus filhos, marido, casa. Até que eu decidi retomar a minha vida, a minha vida de trabalho. E aí depois de quatro anos de casada, minha filha mais velha estava com 4 anos, meu filho com 3 anos e eu voltei a trabalhar”, conta Rita.

Ao voltar a trabalhar, Rita desempenhou diversas atividades, desde auxiliar de serviços gerais a fiscal de caixa. Mas foi principalmente a partir de um emprego no qual ficou durante nove anos, de 2004 a 2013, e das diversas funções e cargos que passou a ter na empresa, que sentiu a necessidade de voltar a estudar e aumentar suas possibilidades de atuação.

“Foi até isso que me incentivou a voltar a estudar, a fazer faculdade, porque a empresa dava oportunidade para crescer, mas ali você tinha que ter pelo menos o ensino médio, a faculdade para poder alcançar novos horizontes”, ela complementa:

“Foi quando eu voltei a estudar com objetivo de crescer dentro da empresa, estar em outros setores, e meu objetivo era ir para área financeira que é algo que eu gosto, até por isso que queria muito fazer ciências contábeis, mas acabei fazendo gestão financeira. Mas foi lá aonde realmente voltou meu interesse em voltar a estudar, pensando em crescer dentro da empresa”, compartilha.

 “Voltar a estudar, por exemplo, foi algo que eu fiz por mim e que foi muito importante.”

Ela lembra que em 1997 ia fazer o primeiro colegial, mas acabou trancando. Chegou a iniciar o primeiro colegial, que hoje é o ensino médio, mas depois que casou foi para Carapicuíba e acabou trancando a matrícula. “Eu só fui voltar a estudar, acho que em 2010, por aí, que eu voltei, fiz o EJA, concluí o EJA e em 2013 eu entrei na faculdade. Foi algo que eu fiz por mim realmente, que foi essencial e fundamental, muito importante para mim, mesmo eu não tendo concluído a faculdade, infelizmente”.

Atualmente atuando como supervisora de atendimento, Rita conta que chegou até o último semestre de Gestão Financeira, mas precisou trancar devido a problemas de saúde. “Parei no último semestre, porque eu tive um problema na coluna, onde fiquei impossibilitada de me movimentar, não tinha condições de pegar transporte, de ir até a faculdade. Cheguei até ir na faculdade para conversar com as pessoas lá responsáveis pelo curso para ver se tinha alguma forma de finalizar, porque eu tava no finalzinho, lembro até que era mais ou menos outubro, novembro, já estava terminando o último semestre e eu queria concluir de toda forma”.

Ela acrescenta: “Não queria ter trancado sem concluir, porque eu sabia que ia ser difícil pra mim voltar, mas eles disseram que não tinha jeito realmente, que o ideal seria eu trancar e retornar depois que estivesse com a saúde restabelecida”, coloca Rita, que hoje atua como supervisora de atendimento em uma empresa de comercialização de aparelhos eletrônicos.

A importância da força, apoio e referência de outras mulheres durante sua vida 

Ao longo desses anos, Rita teve algumas mulheres como referência e que também te deram apoio em diversos momentos. Desde sua mãe e sua avó, até a sua professora de educação física, e a mãe de uma amiga que a deixava dormir em sua casa quando precisava sair cedo para alguma competição de atletismo.

Sua mãe, Dulcinei Augusta, é uma das suas principais referências de mãe e mulher para ela: “A minha mãe sempre foi muito guerreira. Sozinha naquela época para criar e sustentar sete filhos, não foi fácil. Se hoje não foi fácil, naquela época foi muito menos. Mesmo assim, mesmo diante de tanta dificuldade a gente tinha ali de manhã cedo nem que fosse bolinho com farinha e com água para comer de manhã cedo, a gente tinha um pão amanhecido para comer, a gente tinha pelo menos uma fruta ali que já não estava tão boa para alguns, mas pra gente já fazia nossa felicidade. Minha mãe sempre foi muito guerreira”, compartilha Rita sobre sua mãe que faleceu em 2014.

Ela também traz sua avó como uma figura de referência: “Que também teve bastante filhos e eu passei boa parte da minha infância e da minha juventude também, então são as duas que são referências”.

Rita de Cássia com sua mãe Dulcineia Augusta e sua avó Cícera Maria, no dia de seu noivado em março de 1994. Foto: Acervo pessoal

Além de sua mãe e avó, outra mulher foi importante para Rita na sua juventude, foi sua professora de educação física, Fátima, na época em que estudava na EMEF Brasil-Japão. Foi a partir daí que passou a se dedicar durante um período de sua vida ao atletismo, e participou de competições em outras cidades.

Nessa mesma época do atletismo, também teve uma outra mulher que passou pela sua vida que foi um canal de apoio e acolhimento: a mãe de uma amiga, Dona Leda. Era uma período em que estava treinando no Rio Pequeno e morando em Carapicuíba. Quando precisava viajar para competir e estar às 6 horas da manhã na USP, o trajeto de Carapicuíba para chegar até a universidade era mais complicado.

“Nessa época eu tinha uma amiga chamada Luciana, que era mais ou menos bem de vida e ela tinha uma casa enorme, grandona, e aí a mãe dela deixava eu dormir lá. Eu dormia às vezes lá na sexta-feira ou no sábado, dependendo se a competição era na sexta ou sábado, e aí saía cedinho para competir”, conta Rita.

Ela completa relembrando quando saía cedo para competir e dormia na casa da mãe de uma amiga: “Essa fase eu me lembro muito bem da dona Leda que me acolhia lá quando eu precisava ir competir no final de semana e eu estava morando aqui em Carapicuíba. Ela sempre tinha lá um quartinho reservado para eu dormir, eu levantava de manhã cedo na ponta do pé pra não ter que incomodar ninguém, e aí ela já tinha deixado café da manhã prontinho pra mim. Me acolheu muito, me ajudou muito nessa fase também”, relembra Rita.

O processo de se tornar mãe 

Para Rita de Cássia, ser mãe é algo que transforma, um amor indescritível. Ela conta que sempre se via sendo mãe, que era algo que sempre quis muito. Não pensava se seria mãe aos 17, aos 30 ou 40 anos, apenas imaginava que queria ser mãe.

Mas para ela, a parte que não é tão boa nesse processo, independente de ter sido mais jovem ou mais velha, é a maior responsabilidade pelos filhos que fica para a mulher: “A mulher, principalmente quando eu engravidei, quando eu tive filhos, acaba tendo que abdicar de muitas coisas. Na minha época ainda muito mais do que hoje”.

Ela afirma que alguns anos atrás, o compartilhar das responsabilidades de cuidados com os filhos era um pouco diferente: “Hoje ainda os homens são muito mais parceiros, companheiros, eles dividem a responsabilidade dos filhos, da criação, do cuidado, do ter que levantar de madrugada para trocar, de ter que levantar de madrugada para amamentar. Quando eu casei não, então eu tive que abdicar de muita coisa”, aponta Rita.

Ainda assim, a gravidez mesmo sem ter sido planejada, foi algo importante e bom, segundo ela: “Quando eu fui fazer o exame, eu fui no posto de saúde pegar o resultado, a enfermeira veio me falar o resultado, ela veio com uma cara de pesar, com uma cara de tristeza, pensando ‘nossa, uma menina tão jovem, já grávida’. Achando que eu ia cair em desespero, mas na verdade foi o oposto, eu comecei a sorrir, fiquei tão feliz, não pensei em nada, nenhuma consequência de como dizer para minha vó, ou mais do que dizer para minha vó, como dizer para o meu pai, eu só conseguia sorrir e ficar feliz”, conta Rita.

Ela também afirma que não pensou nem nas consequências, mas a descoberta a fez querer ser cada vez mais forte. “Cair e levantar cada vez mais, me dava força para poder sempre quando acontecia alguma coisa ruim, que não dava certo, passar pela dificuldade, porque você tira força de onde você não tem pelos seus filhos. Muda tudo, pelo menos para mim. Você descobre realmente o real sentido da palavra amor, o real sentido da vida, é uma coisa muito boa, apesar de não ser fácil”, reflete.

Ela afirma que sua infância, adolescência e juventude influenciaram nas decisões e escolhas que fez para sua vida e na construção de quem é hoje. “Hoje eu vejo que a pessoa que eu sou é muito resultado de tudo que eu passei na minha vida, sejam as coisas boas ou as coisas ruins. As coisas boas porque eu procurei manter e as coisas ruins que eu tirei como lição para não fazer igual, pra não repetir e ser diferente. O que eu sou hoje é muito resultado de tudo o que eu vivi”, afirma.

Para o futuro Rita já tem uma imagem do que deseja.

“Daqui alguns anos eu me imagino no meu sitiozinho, aposentada, criando minhas galinhas, cuidando da minha horta. Com os meus netinhos indo lá final de semana me perturbar.”

Mas ressalta: “Mas antes disso, eu imagino eu aqui com os meus netinhos, ainda aqui em Carapicuíba, porque vai demorar alguns anos para eu conseguir meu sítio e para me aposentar. Mas antes disso ainda me imagino aqui em casa, com a casa cheia, com meus filhos, meu genro, minha nora, meus netos. Me imagino dessa forma”, finaliza Rita.

Ser mãe sempre foi um desejo de Rita. Mesmo com as grandes mudanças que aconteceram em sua vida com a chegada de seus dois filhos, sua trajetória não se resume no capítulo em que se tornou mãe. Terminou os estudos, ingressou no ensino superior, hoje é supervisora de uma equipe, e ao longo da sua caminhada descobriu e passou por várias rotas, com perdas e grandes conquistas.

Esse perfil faz parte do conteúdo da semana do dia das mães, onde compartilhamos um pouco das histórias das mães dos integrantes da equipe do Desenrola e Não Me Enrola. Além de tantas outras coisas, Rita de Cássia é mãe da Evelyn Vilhena, jornalista e integrante da equipe do Desenrola.

Uma carta para minha mãe, vítima de Covid-19

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 Esta carta é uma singela homenagem de Ana Luiza à sua mãe como forma de demonstração do seu amor e carinho, revelando que para o amor não existem barreiras, nem mesmo as que separam o plano físico do espiritual.

Com o dia das mães chegando, muitos filhos e filhas, assim como mães, espalhadas pelo mundo irão reviver a dor da perda de suas maiores referências na vida. Muitas dessas mães,  estavam trabalhando, buscando trabalhar, cuidando da casa e focando no bem mais precioso para cada uma: os seus filhos.

A pandemia interrompeu o sonho de diversas mulheres e seus filhos que por conta da pandemia, partiram muito cedo, e não puderam acompanhar o crescimento, participar da felicidade, tristeza, dar aquele colo com um aconchego que somente uma mãe consegue proporcionar, além de poder participar o máximo possível da vida dos seus filhos.

São filhos e filhas de diversas idades, crenças, raças e classe social, que não conseguiram dar aquele abraço, fazer uma surpresa e participar daquele almoço especial do Dias das Mães tão esperado no ano. São mais de 400 mil vidas ceifadas pela falta de medidas governamentais para conter o avanço da pandemia de coronavírus que cresce cada vez mais no Brasil.

A ausência da vacina para imunizar a população em larga escala é uma das medidas governamentais que poderiam salvar milhares de vidas, entre elas, a de muitas mães que deixaram seus filhos de maneira precoce, vítimas de complicações causadas pela covid-19.

Hoje, vamos publicar a carta da Ana Luiza Alves, adolescente de 12 anos, que perdeu sua mãe, Fabiana Alves Siqueira, 45 anos, em outubro de 2020, para a Covid-19. Fabiana era mulher negra, pedagoga, mãe solo de dois filhos: Ana Luiza e Julio Cesar de 25 anos. Uma mulher cheia de conquistas, sonhos e afetividade.

Ana Luiza ao lado de sua mãe, Fabiana Siqueira Foto: Acervo Pessoal 2019, Fabiana/Arte: Flavia Lopes

Esta carta é uma singela homenagem de Ana Luiza à sua mãe como forma de demonstração do seu amor e carinho, revelando que para o amor não existem barreiras, nem mesmo as que separam o plano físico do espiritual. E que todos os filhos e todas as mães que passaram por essa triste perda por conta da pandemia, possam de alguma forma serem abraçados e que essas lembranças estejam guardadas num relicário e dentro dos seus corações.

Ana Luiza ao lado de sua mãe, Fabiana Siqueira, durante a celebração de seu aniversário de 12 anos em maio de 2020 Foto: Acervo pessoal 2020, Fabiana / Arte: Flavia Lopes