Home Blog Page 59

“É um orgulho representar nossa quebrada”, afirma Giba, paratleta morador de Carapicuíba

0

Após acidente de moto, o paratleta morador de Carapicuíba encontrou no esporte um caminho de possibilidades, e através do vôlei sentado constrói sua história e leva a quebrada em cada espaço conquistado.

Entre os dias 24 de agosto a 05 de setembro acontecem os Jogos Paralímpicos em Tóquio, e nessa edição dos jogos, o Brasil conta com 234 paratletas, sendo 26% da delegação brasileira paralímpica composta por paratletas de São Paulo, entre eles está Gilberto Lourenço da Silva, 42, conhecido como Giba, morador de Carapicuíba e atleta paralímpico desde 2007.

O esporte já estava presente na rotina de Giba desde antes dele se tornar atleta profissional. Seja na época que jogava futebol aos finais de semana, mas “nada de profissional”, como ele conta, ou de fato como profissional no vôlei sentado; o esporte é um acontecimento importante na vida do atleta paralímpico.

Hoje Giba joga profissionalmente na posição de ponteiro no vôlei sentado, representando a seleção brasileira desde 2007, onde já foi quatro vezes campeão no Parapan. O atleta começou na modalidade em 2006, três anos após o acidente que sofreu de moto na estação Antônio João, no município de Barueri.

“Minha história no esporte começou quando sofri um acidente de moto e vim perder a perna direita. Fui convidado por um colega chamado Carlinhos em 2006, aí comecei a treinar e disputei o Campeonato Paulista do mesmo ano e já recebi uma medalha de destaque”, conta Giba, relatando o início da carreira na modalidade do vôlei sentado.

“Após esse convite comecei a jogar como atleta Paralímpico. Tudo foi muito rápido, fui convocado para a seleção em 2007”

conta Giba.

Além do futebol, que tinha como momento de lazer aos finais de semana, antes do acidente e de se tornar atleta profissional, Giba trabalhava como motoboy. Atualmente se dedica exclusivamente ao esporte. “Hoje o vôlei é minha profissão sim, minha renda vem do bolsa atleta e uma pensão que fiquei com o acidente”, compartilha.

Giba faz parte do Club Athletico Paulistano e treina no Centro Paralímpico Brasileiro – Foto: arquivo pessoal

Atualmente o paratleta faz parte do Club Athletico Paulistano, clube localizado em Pinheiros, região oeste de São Paulo, e treina no Centro Paralímpico Brasileiro que fica na rodovia dos imigrantes.

Ele conta que não possui apoio de espaços esportivos no território onde mora: “Até hoje não consegui apoio nenhum da minha cidade. Nem com espaço para treinar, como apoio pela prefeitura”, afirma Giba, que também analisa a importância de ocupar espaços como as Paraolimpíadas sendo um paratleta da quebrada.

“Pra mim é um orgulho chegar nesses espaços e representar nossa quebrada.”

O tetracampeão do Parapan relata que os acessos são muito ruins para o paratleta Paralímpico. Segundo ele, o único lugar adaptado de forma correta é o Centro Paralímpico. “Na minha opinião falta patrocínio para que o atleta chegue ao topo, com isso temos que seguir dando o nosso melhor desse jeito mesmo”, afirma.

Entre Parapan, Mundial e Paraolimpíadas, o paratleta conta que foi um campeonato regional que mais o marcou na sua trajetória até aqui. “O campeonato que marcou pra mim foi o Paulista de 2006, porque ali senti que achei o meu lugar após o acidente”, relembra.

Ele continua abordando momentos marcantes da sua vida como paratleta e destaca uma partida em especial. “A partida que marcou minha vida foi o mundial de 2014, o Brasil tirou a equipe do Irã da final que não acontecia há 32 anos”, recorda Giba.

Além da importância para o território e de representar a quebrada, para Giba, o esporte é uma via de fortalecimento. “Foi através do esporte que consegui refazer minha vida, foi onde minha família viu também que eu tinha achado uma profissão e que não cairia em depressão. Ajudou muito na minha vida, minha família hoje tem eu como um ídolo”, compartilha o paratleta.

“Com tudo que já conquistei, a paraolimpíada é a medalha que falta e também ela é o espelho para o mundo ver como é jogar vôlei”, finaliza o ponteiro, que leva na memória títulos, lugares e espaços que conquistou e tem conquistado através do esporte.

Quebrada, quebradinha, vamos todos requebrar

0

Rap e funk, culturas periféricas, e ninguém vai nos tirar

Quermesse Acapulco Drinks na Favela Inferninho, Capão Redondo – Zona Sul – SP18 | Foto: DiCampana Foto Coletivo

Do micro ao macro, nossos ouvidos captam a essência da batida musical que ecoa nas vielas, avenidas e becos, e fica nítido que as periferias respiram música. Na infância, aprendemos muitas musiquinhas, utilizadas principalmente para nosso desenvolvimento com as palavras, auxiliando também as atividades motoras e até mesmo sociais.

“Ciranda, cirandinha

Vamos todos cirandar

Vamos dar a meia volta

Volta e meia, vamos dar”

Mais grandinhos, temos acesso a outros conteúdos: músicas mais complexas, com mais reflexão e por muitas vezes nem entendemos o que é dito, apenas imitamos os sons que estão sendo cantados.

Nesse momento, os ritmos se misturam: é forró no carro de som, é um funk na festa de aniversário do vizinho, o gospel no culto da igreja na esquina e o sertanejo vindo da nossa própria casa. Não vou entrar no mérito sobre a lei do silêncio, pois aprendemos a ser silenciadas desde sempre. Minha conversa aqui é sobre a música como cultura, mas é aí que começamos a ter nossas preferências, o que agrada ou não os nossos ouvidos.

Funk e rap são culturas de periferia, fato. Mas de onde vem tanto preconceito? Por vezes, a letra é o motivo para que o som não possa ser ouvido dentro de casa: “essa música é de bandido” ou “essa música fala muita besteira” são frases comuns vindas dos nossos familiares.

E quando a música é apenas a batida, qual é a desculpa? Eu não sou digno de dizer o que é “bom” ou “ruim”, até porque minha opinião é que essa divisão nem exista de verdade, o que me chateia é ver favelados influenciados externamente, não levando em conta a potência musical desses dois estilos musicais, levando artistas periféricos ao auge em pouco tempo, trazendo alegria no fone no busão lotado e anima aquele churrascão de domingo.

Tem funk consciente, funk proibidão, rap consciente, rap proibidão, basta saber o que nosso corpo e nossa mente está pedindo. 

Abra seus olhos e seus ouvidos para as sensações que esses estilos nos trazem, revolta, paixão, vontade de rebolar: se expressar, e se expressar é o que muitas vezes a juventude periférica não consegue fazer. Ninguém tem o direito de tirar a expressão de outra pessoa.

Quando criança, lá pelos 8 ou 9 anos, eu e um amigo de rua tínhamos o sonho de ser MC de funk, hoje meu sonho é que o funk e o rap se torne um Patrimônio Cultural Periférico. 


...

Editorial: O Baile da Dz7 é um patrimônio cultural da juventude periférica – Desenrola E Não Me Enrola

Os donos dos ‘olhos que condenam’, sejam eles representantes da sociedade civil ou membros do poder público, precisam urgentemente entender que esse baile funk se tornou um Patrimônio Cultural da juventude periférica.

Do Jardim Helena à Parelheiros: as tretas do acesso à internet móvel na quebrada

0

Acesso à internet precário e tardio faz parte do contexto das desigualdades digitais que afetam jovens moradores de periferias do extremo leste e sul de São Paulo.

Gustavo Ricardo teve seu primeiro acesso a internet aos 15 anos, após ganhar o primeiro celular dos seus pais. (Foto: Arquivo Pessoal)

O acesso à internet chegou à vida de Gustavo Ricardo, 23, morador do Parque Paulistano, bairro localizado no distrito do Jardim Helena, zona leste de São Paulo em 2012, ano no qual ele completou 15 anos, e como presente de aniversário ele ganhou dos pais o primeiro celular. A partir desse momento marcante, ele relata que começou a explorar o mundo digital.

Gustavo considera que as novas gerações de jovens moradores das periferias se conectam cada vez mais cedo com a web, uma história bem diferente da sua, que só começou aos 15 anos. “É até uma idade bem avançada, porque hoje em dia as pessoas têm acesso a internet desde pequeno e isso não foi uma realidade pra mim”, afirma.

Oito anos após ganhar o primeiro smartphone, ele conta que até hoje o celular é o seu principal meio de acesso à internet. Além disso, ele enfatiza que na região onde mora o acesso à internet não é amplo, e que muitas vezes os vizinhos recorrem uns aos outros, devido à falta de cobertura.

“Não é uma maravilha a conexão da internet por aqui”
 

Gustavo Ricardo, 23, morador do Jardim Paulistano, bairro localizado no distrito do Jardim Helena, zona leste de São Paulo.

“Não é uma maravilha a conexão da internet por aqui. Moro num bairro que gerações passadas ocuparam, então desde lá de trás todo mundo se conhece, se você tem uma relação de afinidade com o vizinho certamente ele vai te emprestar e te ajudar. Essa coisa de emprestar internet é muito comum, você passar a sua senha do wi-fi e o vizinho também passar a dele”, relata.

As experiências de Gustavo com o acesso tardio à internet também fazem parte da história de vida da estudante de moda Andressa Mafra, 22, moradora do Parque Alvorada, bairro localizado na periferia de Guarulhos.

Ela lembra com detalhes sobre quando acessou a internet pela primeira vez e como era o computador usado para acessar a rede. “Comecei a ter acesso a internet a partir dos meus 14 anos”, relata Andressa, relembrando o formato do computador que ela tinha em casa. “Na época era aquele computador enorme com a caixa atrás e depois disso que foi evoluindo para o telefone pra celular né.”

A estudante de moda ressalta que a partir do momento que ela começou a ter wi-fi em casa, o celular ganhou uma função fundamental na sua vida. “Até hoje o celular é o melhor veículo de comunicação pra mim, o que eu mais uso, é algo indispensável na minha vida.”

Davi Biaggioli sofre para estudar, pois tem dias que sua internet não tem nenhum mega de velocidade para acessar a web. (Foto: Coletivo ArquePerifa)

Esse cenário faz parte da rotina do estudante da área da tecnologia e morador de Parelheiros, Davi Biaggioli, 16. Ele conta que a chegada da internet no bairro faz parte de um cenário precário de idas e vindas.”Foi difícil a gente ter acesso à internet aqui, teve um tempo que tinha e depois não tinha mais”, conta o jovem.

Nesse processo, uma das formas do estudante de tecnologia acessar a internet foi por meio de modem móvel, um meio que trouxe muitos problemas com o passar do tempo. “A gente teve aquele pen drive, que é horrível e por volta de 2014 a gente teve internet, mas dependia do dia.”

A alternância da qualidade de sinal faz parte do cotidiano de Davi, que às vezes consegue acessar sites básicos para apoiar os estudos, mas em outros momentos fica sem sinal. “Num dia bom o acesso chega a seis megas, mas dependendo do dia é 1, 2 ou nenhum mega”, afirma.

A solução encontrada pelo jovem é pedir apoio para as irmãs que moram numa região central de Parelheiros, onde a qualidade de internet é melhor, devido aos comércios no entorno. “Minhas irmãs moram no centro e lá tem internet boa, não posso contar com a internet da minha casa, sabe? Se for algo que precise mesmo, tenho que sair de casa. Isso dificulta né, principalmente na pandemia.”

Dados desiguais 

Um estudo recente apontou o Jardim Helena como um dos 10 distritos de São Paulo com maior desigualdade digital no acesso à internet.

Esse é o cenário apontado pela Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações (ABRINTEL), que investigou a quantidade de antenas de celular nos distritos paulistanos por quantidade de habitantes.

Dos 135 mil habitantes do Jardim Helena, a região possui uma antena de célula para cada 8.440 pessoas usarem o sinal de telefonia móvel. O estudo mostra que o ideal é que uma estação de transmissão de sinal seja usada por no máximo 2.200 usuários.

Na região de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, há 335 pessoas para cada antena de celular. Ou seja, a abundância de antenas na região permite a distribuição de um sinal de internet móvel com muita qualidade para os usuários locais.

Na Região Metropolitana de São Paulo, 61% dos usuários residentes em áreas de baixa vulnerabilidade acessam a internet, por meio de celulares e computadores.

Já nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, 70% dos entrevistados usam exclusivamente o celular como interface de acesso à rede.

Esses dados pertencem às investigações realizadas na pesquisa TIC Domicílios 2019, publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).

“A gente tem que perceber que a desigualdade social também é replicada no mundo digital”

Toni Santos, educador de cultura digital e mestre em ciência da informação pelo CELAC-USP

Para Toni Santos, educador de cultura digital e mestre em ciência da informação pelo CELAC-USP, as desigualdades digitais fazem parte do cotidiano dos moradores das periferias na mesma medida de outras ausências de direitos sociais.

“A gente tem que perceber que a desigualdade social também é replicada no mundo digital, da mesma maneira que as periferias são maioria em desigualdade social com relação a tudo que a gente tem de bens e de necessidades básicas, desde saúde, educação, alimentação, transporte e qualidade de vida no geral”, analisa Santos.

Ele explica o analfabetismo digital é um dos produtos das desigualdades digitais a ser percebido e combatido no cotidiano dos moradores das periferias.

“A maioria das escolas públicas estão no ensino híbrido, e muitos estudantes não conseguem realizar as atividades online e por que? Existe um analfabetismo digital que faz com que esse jovem de maneira autônoma tenha dificuldade de acessar os aplicativos do estado e se expressar, se comunicar, fazer as atividades e tirar dúvidas”, argumenta o educador de cultura digital.

Educação e internet precária 

Com um olhar para o ecossistema de educação e formação de estudantes mais conectado com o ambiente escolar, a doutora em educação e escritora Juliana da Paz, moradora do Capão Redondo, afirma que é preciso explicar para a sociedade a diferença entre o acesso à internet e o acesso à educação.

“A escola é uma instituição que deveria proporcionar esse acesso à tecnologia e a internet, contudo, a escola pública ainda não consegue. Então nós temos muitas escolas onde a população acessa a educação, mas dentro desse currículo desenvolvido não há um acesso à tecnologia e a internet na escola”, explica Juliana, afirmando que deveria sim existir uma grade pedagógica para garantir acesso à internet e tecnologia como ferramenta educativa.

“A escola é uma instituição que deveria proporcionar esse acesso à tecnologia e a internet”

Juliana da Paz  é doutora em educação e escritora

O mestre em ciência da informação, Toni Santos, ressalta que o analfabetismo digital é um dos principais problemas gerados pela falta de políticas públicas para acesso à internet e tecnologia nas periferias.

“O analfabetismo digital faz com que as pessoas tenham um celular, e elas não utilizam nem 10% da capacidade desse celular, faz com que as pessoas tenham um equipamento para se comunicar e elas ainda gastem dinheiro com outras coisas. Faz com que as pessoas acreditem em fake news”, aponta o mestre em ciência da informação.

Ele finaliza, afirmando: “a gente precisa primeiramente criar e desenvolver processos de inclusão digital que sejam efetivos para impactar positivamente não só os jovens, mas os moradores das periferias como um todo”, conclui Toni. 

Plataforma de distribuição de notícias para periferias é lançada em SP

0

A partir de totens digitais instalados em comércios das periferias e favelas de São Paulo, organizações de jornalismo lançam solução de distribuição de notícias para impactar moradores de territórios periféricos.

A Território da Notícia é fruto de uma parceria estratégica entre as iniciativas Periferia Em Movimento, Alma Preta, Desenrola E Não Me Enrola e Embarque No Direito. (Foto: Patrícia Santos)

A forma como as notícias produzidas por iniciativas de comunicação das periferias de São Paulo é distribuída está em transformação. A iniciativa é da Território da Notícia, que tem seu evento de lançamento marcado para a próxima terça-feira (24), a partir das 19h, em formato online.

A proposta nasceu a partir da parceria entre as iniciativas de comunicação Alma Preta Jornalismo, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito e Periferia em Movimento. A TN foi uma das iniciativas selecionadas pelo Desafio de Inovação Google News Initiative na América Latina em 2019.

Agora, os conteúdos jornalísticos dessas iniciativas de comunicação também serão acessados em pontos de grande circulação de público, conectando leitores online e offline por meio de totens digitais.

Conteúdos sobre a pandemia de coronavírus terão destaque nos totens digitais de comércios das periferias de São Paulo. (Foto: Patrícia Santos)

“A TN nasce para atravessar os caminhos de quem vive nas periferias. Não é possível ignorar a falsa democratização da internet e da informação. A desigualdade é estrutural e se renova sempre”, explica a jornalista Gisele Brito, umas das responsáveis pela gestão editorial do projeto. 

Segundo Brito,a distribuição desigual de infraestrutura e as limitações de renda e um certo analfabetismo digital existem e a Território da Notícia é uma solução para reduzir os impactas desse cenário. “O TN tenta contornar isso para promover o direito à comunicação, ou seja, para romper com a concentração da mídia”, enfatiza a jornalista.

Os totens digitais estão sendo instalados em pontos estratégicos nas regiões Leste, Oeste, Norte e Sul da capital. Além da distribuição de notícias, a TN adotou um modelo de negócio sustentável para as organizações de jornalismo, com um plano de monetização de conteúdo.

Ronaldo Matos, responsável pela gestão comercial, explica a importância da estratégia de veiculação de anúncios e de campanhas nas telas para o público e grupos empresariais locais.

“A Território da Notícia vai inovar e oferecer uma solução inédita no Brasil, que é você ofertar a possibilidade de ter um anúncio num território periférico dentro de um estabelecimento comercial, onde o anunciante vai entrar em contato com uma audiência estratégica para o negócio dele, seja um produto, um serviço ou uma política pública”, diz.

Lançamento

O lançamento na próxima terça (24) vai contar com a participação da escritora, cientista social e jornalista Bianca Santana e com da jornalista e co-coordenadora de comunicação e parcerias do Perifatec, Raphaela Ribeiro. A mediação será por conta de Thiago Borges, jornalista, também responsável pela gestão editorial da TN e co-fundador da Periferia em Movimento.

A atividade de lançamento será realizada a partir das 19 horas nas plataformas online da Território da Notícia, no Instagram e Facebook, e também no Youtube do portal Alma Preta.

Meninas enfrentam machismo em jogos online com criação de comunidades virtuais

0

Com suas habilidades de comunicação e técnicas de jogo, as jogadoras criam uma comunidade virtual mais receptiva para outras meninas que passam por ataques machistas durante os jogos.

Ana Luiza é uma dessas jovens que estão criando comunidades virtuais para combater o machismo durante partidas de Free Fire (Foto: Thais Siqueira)

Ana Luiza, 13, moradora do Parque America, no Grajaú, região sul de São Paulo, é um exemplo das pré-adolescentes que estão sempre antenadas com as novas tendências digitais de entretenimento. Uma de suas recentes descobertas são os jogos online, mais especificamente o jogo de ação e aventura do gênero Battle Royale, gênero de jogo que envolve estratégias de sobrevivência e combate entre vários jogadores.

“A primeira vez que eu joguei um jogo online foi o Among Us, que ele tava bem famoso na época, aí só depois veio o Free Fire”, conta Ana Luiza que acessa esse universo digital gamer pelo celular. Ela complementa dizendo que os jogos são um dos seus principais passatempo:”Eu gosto bastante de jogar free fire, quando eu não tenho nada pra fazer e eu to entediada”.

Uma das suas influências para começar a jogar free fire foram seus amigos de escola: “Eu comecei jogar free fire, por conta que, na escola, meus amigos falavam muito desse jogo, falavam que era muito bom, ai eu entrava na internet e falava muito desse jogo, e as pessoas ficavam loucas nesse jogo, ai um certo dia pensei, ‘porque não jogar?’, aí eu instalei e comecei jogar”, relata Ana.

Ana conta que recebeu críticas no início por não dominar muito as jogadas. “Maior dificuldade no início é de que você era muito julgada de não conseguir jogar direito, por causa da Skin do jogo, que são as roupas que seu personagem usa, por você não ter diamante, essas coisas, essa foi a maior dificuldade”, compartilha a jovem.

Para conseguir desenvolver suas habilidades no jogo, ela procurou referências assistindo outras mulheres jogando “porque elas tem um jeito melhor de explicar”, afirma Ana Luiza.

“Esse processo de aprendizagem foi bem difícil, porque eu fui julgada por amigos e aleatórios, que hoje já não são mais meus amigos, eu fui assistindo vídeos de pessoas que jogam free fire, eu fui treinando, porque tem lá o modo de treinamento, e acabou que deu tudo certo e hoje eu sou boa”, conta.

Ana Luiza conta que nota um aumento significativo de meninas durante as batalhas virtuais. “Eu vejo bastante meninas jogando, tem muito mais meninas jogando agora do que no início, no início tinha pouquíssimas, hoje já tem muitas”, afirma.

Ela diz que mesmo com o aumento de meninas nos jogos, ainda recebem repressão de outros garotos pelo seu gênero, principalmente quando começam a ligar o microfone e falar durante as partidas.

“Direto eu fico ouvindo essas coisas, não aconteceu comigo ainda, mas com algumas amigas minhas, e eu já vi também. Tem meninos que acham que as meninas não podem jogar, ficam falando pra elas que elas tem que lavar uma louça, varrer um chão, limpar uma casa que esse jogo não é pra menina”, conta Ana.

“Se isso acontecesse comigo iria ficar sem entender, pra ser sincera, eu sou meio sem paciência quando essas coisas acontecem, então eu iria discutir, até a pessoa ficar quieta na dele, entendeu”, relata Ana contando como reagiria diante de situações de machismo que vê amigas passando durante as batalhas virtuais.

Ela ainda conta que sua melhor resposta é “chamando para uma x1”, que no mundo gamer significa chamar para uma partida, e ganhando do adversário. “Eu iria responder numa partida, porque tem uns que que se acham melhor que os outros, fica chamando os outros de boot, então eu ia responder chamando ele pro x1, pra mim poder ganhar, obviamente”.

Incentivando outras meninas no universo gamer

A  jovem já entende que uma das questões para essas situações de machismo acontecerem é pela falta de representatividade de meninas no universo gamer, principalmente

meninas negras e periféricas, que não tem oportunidade de acessar essa cultura.

“Eu to querendo inclusive até começar um canal, pra poder mostrar eu jogando e quem sabe eu possa participar de torneio essas coisas”, conta Ana Luiza, que afirma também que sua principal motivação é inspirar outras meninas.

“Eu iria me sentir muito feliz, porque eu iria vê que eu estaria inspirando outras meninas a fazerem isso, a se mostrar”

Ela reflete sobre as diferenças que encontraria caso ingresse nesse cenário, que seria diferente de outras streamers que estão em alta nas redes atualmente. “O que seria diferente se eu tivesse um canal seria a qualidade de câmera, seria a cor da minha pele, seria o cenário, porque é bem diferente, seria diferente também porque eu não tenho um pc próprio pra jogar, mas dá pra jogar pelo celular, gravar a tela”, reflete Ana Luiza.

Uma das coisas que a jogadora mais se diverte é montando seu personagem, criando uma nova realidade no mundo virtual, colocando elementos da sua vida pessoal.

“Eu também gosto de colocar muito a realidade nos personagens, ela tem um pinguim, mas tem outros pets também que eu tenho. Agora que eu coloquei essa roupa, eu não pensei em nada também, eu só quis combinar look, mas geralmente eu coloco um cabelo black cacheado que eu tenho, eu coloco uma roupa assim, mas boa sabe, eu gosto de mostrar um pouco da realidade assim que eu vivo”, compartilha a jovem dizendo que reproduziria as vestimentas de sua personagem na sua realidade fora das telas

Personagem da Ana Luiza no Free Fire (Imagem: Reprodução)

Outra jovem que se diverte no universo gamer é Kauane Vitória, 12, moradora da Vila Rubi, na Cidade Dutra, zona sul de São Paulo. Ela joga free fire há muito tempo, tanto que nem lembra exatamente como começou, mas afirma que já é muito boa.

Ela conta que costuma jogar mais com meninos porque eles falam mais: “Jogo sim com microfone ligado direto pra mim tentar fazer amizade nova, jogo faz tempo, eu não tenho muito amiga menina, tenho mais menino, porque menino fala, menina não fala muito”, relata Kauane.

Ainda assim, a jovem relembra uma situação de machismo que enfrentou: “Eu tava numa partida jogando, nao sei o que aconteceu, que eu só morria, tipo assim, tem vez que eu to boa, tem vez que tô fraca, tem vez que to mais ou menos, os meninos falaram assim, ‘vai lavar a louça, vai dobrar a roupa, vai lavar roupa, aqui não é seu lugar de menina’ e ficaram fazendo bullying”, afirma Kauane.

Ela conta que mesmo quando encontra meninas nas partidas, diz não se identificar tanto com elas.”Sinto sim muita falta de ter mais meninas, mas quando encontro meninas, as meninas são tudo metida”, afirma.

“Eu acho assim, se as meninas não falarem mais no free fire, os meninos têm mais possibilidade de ganhar sim”

Para conseguir falar mais e em mais espaços virtuais, a jovem fez um canal no Youtube e está esperando bater mil inscritos para começar a fazer lives e vídeos jogando. “Eu mesma que edito, eu mesma faço meus vídeos, eu mesma faço tudo, capa, tudo é eu que faço mesmo”, conta a jovem.

Ela também afirma que seu processo de aprendizagem acontece de forma intuitiva com as ferramentas de edição. “Eu não vi nenhum tutorial, ninguém me falou nada, eu baixei o aplicativo e fui tentando lá, fui tentando é consegui”, afirma.

A jovem conta que a falta de equipamento a impede de seguir produzindo conteúdos mais focados em jogos para seu canal. “Se eu postasse vídeo assim no meu canal, eu ia fazer live jogando, por isso eu quero dois celulares, porque to esperando ter outro celular pra fazer essas coisas assim, eu gostaria de fazer live ou então gravar um vídeo”, finaliza.

“Jaraguá é meu lugar de paz na cidade”, diz Jessica Cabral sobre ser mulher, preta e bissexual na quebrada

0

Jéssica Cabral compartilha suas vivências enquanto mulher, negra, periférica e bissexual na série Relatos LGBTQIA+, e conta também como a quebrada acolhe sua existência.  

A auxiliar de limpeza e articuladora cultural Jessica Silva Cabral, 22, nasceu no Jaraguá, zona noroeste da cidade, mas mora há 13 anos no bairro de A.E Carvalho, localizado no distrito de Itaquera, na zona leste de São Paulo. Jéssica foi uma das articuladoras do Projeto Sancas, ação de lazer e cultura no território.

“A minha participação nesse projeto veio para eu entender que sou também uma base para quebrada, para entender minha identidade aqui, hoje em dia todo mundo que passa por mim, fala, ‘ah, eu já fiz o projeto e tal’, foi muito legal poder construir algo aqui dentro”, compartilha.

A articuladora conta que, no momento, seu principal foco é trabalhar e passar um tempo com sua namorada. “Sou uma jovem pobre, que tá sempre no corre de não se lascar, determinada, focada em fazer dinheiro, ganhar dinheiro. Minha vida é trabalhar, e agora que eu namoro, é trabalhar e ficar com a minha namorada”.

Atualmente ela mora com a mãe, o padrasto e o irmão: “Nossa convivência é bem cada um na sua. A gente gosta de ver novela juntos, e de final de semana tomar uma, a gente não tem muito essa coisa de fazer refeições juntos, ou esperar um ao outro para jantar, mas somos unidos da nossa forma, cada um no seu quadrado”, relata.

Jéssica conta que começou a perceber sua sexualidade através de uma música que ela ouviu e que seu entendimento enquanto mulher bissexual veio em torno dos 12 ou 13 anos de idade. “Foi quando eu comecei a me interessar, foi quando meu corpo começou a mudar e ter vontade de estar com outras pessoas”, afirma. 

“Nessa época eu lembro bem que eu virei pra mim mesma e fiquei ‘nossa eu acho que eu gosto de meninas e meninos’. Eu lembro que vi na TV a música ‘meninos e meninas’, e aí fiquei ‘putz, eu sou assim mesmo’. E foi isso que me marcou, que eu lembro de pensar já naquele momento sobre essa sexualidade.”

Jessica Cabral

Jessica relembra que com 13 anos falou para sua mãe sobre o que estava sentindo em relação a sua sexualidade, mas na época sua mãe não entendia muito bem e considerava que era coisa de indeciso.

“As pessoas leem os bissexuais enquanto confusos né, eu sofria muito bullying na escola, não tinha autoestima nenhuma, sempre achei que os meninos não iam se interessar por mim, então eu escolhi as meninas, e disse que era lésbica, fiquei dos 13 aos 19, e atualmente eu tenho uma liberdade muito maior dentro da minha casa”,

Ela conta que já conversou com sua família sobre sua bissexualidade, já namorou homens e mulheres que apresentou para a família e hoje tem o respeito deles. “Tem um entendimento, acho que as conversas e eu entender eles também implicou muito para que as visões deles sobre minha sexualidade mudassem também, mas hoje consigo dizer em casa que não sou indecisa, é uma escolha, e nós bissexuais existimos”.

Nascida em Jaraguá, ela afirma que o lugar que se sente segura na cidade é na quebrada. “Eu me sinto segura lá na casa da minha avó no Jaraguá, onde eu gosto de estar. Um lugar que me traz memórias de infância, que me traz tranquilidade, que me traz conforto e muita segurança”. 

“Acho que aquela quebrada lá no Jaraguá é meu lugar de paz na cidade, onde consigo ser eu sabe, me encontro comigo lá.”

Jessica Cabral

Jessica afirma que ser uma mulher preta e bissexual na cidade passa desde a fetichização desses corpos, aos estigmas criados diariamente.

“Ser lgbt na cidade de São Paulo é um inferno, é uma fetichização sem fim, tudo gira em torno do que você faz ou deixa de fazer com os gêneros que você se relaciona, com homens ou mulheres, tudo acaba se resumindo a relação sexual, ainda mais que tem os estigmas da mulata exportação e da negra raivosa”, afirma Jéssica que sente apontamentos desde colocações como “uma negona dessas ficando com mulher”, até alguma fala que se posicione, onde surgem mais comentários: “olha lá a sapatão falando, essa é mesmo”. 

(Foto: Bruna Ferreira)

“A quebrada em si me respeita, me acolhe, mas fora dela, eu sou só mais uma pessoa querendo chamar a atenção. Como a sociedade enxerga uma pessoa preta LGBT? Como pessoas que querem chamar atenção e existe uma invalidação das nossas sexualidades, gêneros, estilos, gostos, é perturbador”

Jessica Cabral

Cuidados e construções de laços durante a pandemia 

Jéssica começou a namorar durante a pandemia da covid-19. Ela conta que possuem uma ótima relação com a família uma da outra. “Todas as vezes que eu fui visitar minha sogra sempre fui muito bem recebida, muito bem acolhida, respeitada, e acredito que a mesma coisa se faz aqui em casa”, afirma. 

“A gente senta junto para beber e conversar, tenho a intimidade também de ter levado ela na casa da minha avó sabe, que foi a casa que eu fui criada, e toda a minha família, avó, tios, primos, adultos, crianças, evangélicos, macumbeiros adoram muito ela, e tem um boa relação com a gente junta”.

Jessica Cabral 

A moradora da zona leste acredita que por terem iniciado a relação durante a pandemia, aumentou o laço familiar. “O engraçado é que acaba sendo um namoro lgbt a moda antiga sabe, onde o casal frequenta a casinha uma da outra, almoça com a sogra, e acho que por ter começado essa relação bem na pandemia e por sermos mulheres periféricas, isso aumentou muito o laço familiar”

Assim como a pandemia afetou muitos corpos pretos, periféricos, pobres e lgbtqia+, o de Jessica também foi afetado. Ela conta que sua rede de apoio é sua família e amigas da quebrada: “São pessoas que estão por mim, somos as mulheres dos corres, correndo todo dia de um b.o”.

Ela conta que sua saúde mental foi afetada, e que muitas pessoas da sua família pegaram covid, entre eles seu avô, que não resistiu. “É muito difícil perder alguém assim, estamos todos aqui bem sentidos ainda, meu psicológico está bem ruim, e estou tentando trabalhar na positividade, na fé, estou em um momento de reflexão”, afirma.

Jessica fala que “a vida não mudou muito para quem está aqui”, que trabalha presencialmente durante a pandemia, e não parou em momento nenhum: “Só diminui quando a busca por faxinas deram uma parada também, mas o medo de contaminar alguém de perto sempre esteve comigo né, desde o começo, eu sigo tomando cuidado e com as precauções necessárias, máscara, álcool em gel, distanciamento máximo que der, porque não tem como ser o estipulado né”.

Mesmo com todo cenário da pandemia, Jéssica diz que tem que olhar para o futuro e tenta enxergar algo bom, apesar de muitas perdas.

“De acordo com meus planos pra ficar bem mesmo eu preciso voltar a fazer meus projetos, ajudar de novo na quebrada, a ajudar as pessoas daqui a terem outras perspectivas, preciso de conseguir um emprego melhor, que ganhe mais, preciso viver mais a vida sem ser só no trabalho, ou então mudar de país mesmo, talvez ir para Europa”, finaliza. 

O acesso ao celular precisa virar política pública

0

Nesse tempo histórico, o acesso ao celular não pode definir quem vive e quem morre. Quem acessa serviços públicos ou quem é excluído por eles.

Estudante do Cursinho Popular Ubuntu

Estudantes de escolas públicas não conseguem acessar o ambiente de ensino remoto, mães chefes de família dividem o celular com filhos entre trabalho, estudos e entretenimento, bancos e casas lotéricas registram diariamente uma série de aglomerações formadas por moradores das periferias e favelas que não conseguem pagar suas contas, por meio de plataformas digitais ou receber o pagamento de benefícios sociais do governo.

Esse é o cenário de milhões de brasileiros e brasileiras que em sua maioria dão forma a estética cultural, social, econômica e política do cotidiano de territórios periféricos espalhados por todo o Brasil.

Desempregados, atuando no mercado de trabalho informal, dependentes de recursos governamentais para garantir a alimentação básica na mesa ou totalmente excluídos de qualquer forma de geração de trabalho e renda. Essas são características macroeconômicas que definem a cara dessa população brasileira que tem se tornado alvo da desigualdade digital.

São muitos os cenários que apontam o celular como um divisor de águas na vida de milhões de brasileiros. O impacto é ainda mais profundo na vida da população preta, pobre e periférica, moradora de territórios onde o acesso a internet ainda é um gargalo estruturante para se conectar com o mundo digital.

Produzida pelo IBGE e divulgada no início da 2020, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC), apontou que a cada quatro brasileiros que têm acesso à internet, três usam o celular como principal aparelho para acessar a web.

Num contexto regional, a pesquisa TIC Domicílios 2019 publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) mostrou que as famílias que moram em áreas de maior vulnerabilidade social na Região Metropolitana de São Paulo usam o celular como principal ferramenta de conexão com a internet.

Na Região Metropolitana de São Paulo, 61% dos usuários residentes em áreas de baixa vulnerabilidade acessam a internet, por meio de celulares e computadores, já nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, 70% dos entrevistados usam exclusivamente o celular como interface de acesso à rede.

Desde a chegada da pandemia de covid-19 no Brasil, já se passaram 16 meses, e esse cenário apontado nessas pesquisas que antecedem o período pandêmico, marcado pelas medidas sanitárias de isolamento social, crescimento de crises políticas e econômicas, provavelmente se intensificou, gerando novos danos severos, não somente ao direito da inclusão digital, mas sim, o direito à vida.

Em alguns contextos bem pontuais, aplicações móveis que visam o impacto social em massa da população estão cada vez mais levando em consideração o baixo consumo de memória e de pacote de dados dos aparelhos, ampliando desta forma o número de pessoas beneficiadas por esse tipo de configuração em seus smartphones.

Porém, é preciso se ater ao contexto da fome, das situações de extrema pobreza que afetam os moradores das periferias e favelas. Como manter o uso de um celular de forma contínua quando o armário da cozinha não tem um saco de arroz ou de feijão? Vender o celular na loja de assistência técnica da quebrada para muitas pessoas é uma solução rápida e paliativa para conseguir uma quantia suficiente para comprar mantimentos para dois, três ou até mesmo um dia para a família.

Por outro lado, ter um celular na pandemia significa também ter um meio de se comunicar com parentes, amigos, instituições públicas, trabalho e ações solidárias, responsáveis por garantir a sobrevivência de muitos moradores das periferias e favelas nesse período.

Para participar de uma ação solidária é necessário realizar um cadastro em núcleos comunitários de doações para garantir que cada morador será comunicado sobre a data, local e horário das doações de alimentos, kit de higiene e marmitex.

Mas como ser beneficiado por essas ações se muitas famílias tiveram que desfazer dos seus celulares para comprar comida? Como os articuladores comunitários conseguem atingir os moradores que estão incomunicáveis?

Esse é um praticamente invisível que passou desapercebido por governos e empresas durante todo o período de maior tensão da pandemia de covid-19. As organizações sociais, coletivos, movimentos sociais e líderes comunitários lidaram com essa situação a todo instante e sentiram na pele o nível da desigualdade digital nas periferias.

O acesso ao celular não pode definir nesse tempo histórico quem vive e quem morre. Quem acessa serviços públicos ou quem é excluído por eles, mas as próximas pesquisas mostraram como isso aconteceu e poderá continuar acontecendo, a menos que estudos demográficos sejam colocados em prática para embasar a construção de políticas de Estado para reduzir os danos gerados pela pandemia.

É hora das Empresas e Governos escutarem a sociedade civil e repensar a sua maneira de fazer política pública. O futuro de milhões de moradores das periferias e favelas, pessoas que constroem a história desse país depende dessa colaboração.

Rede contra o genocídio luta contra impunidade da violência policial nas periferias

0

Iniciativa organizada de maneira territorial em diversos bairros e cidades da Região Metropolitana de São Paulo oferece apoio jurídico às vítimas de violência policial nas periferias. 

Ação cultural em memória ao Lucas na favela do amor, Santo André, Vila Luzita. 

A partir da escuta e do diálogo feito com familiares de vítimas de violência policial dentro das periferias e favelas de São Paulo, a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio vem desde 2017 buscando de forma organizada realizar a proteção de moradores que sofrem violações de direitos praticados pelo Estado brasileiro.

“Através da informação e da coletividade dentro da quebrada, a gente busca se proteger desse estado genocida, buscando os cuidados na perspectiva de reduzir os danos diante dessa pandemia. É um trabalho coletivo”, afirma Márcia dos Santos, articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo.

É como esse olhar de coletividade que Márcia, migrante nordestina de Alagoas, estudante de psicologia na Universidade Cruzeiro do Sul, reflete sobre o direito à vida nos territórios periféricos.

“Cada território tem o seu modo de funcionar, sua cultura, seu jeito e chegando aqui na zona leste, eu constatei o tamanho de vulnerabilidades que existem no local, e uma delas é perceber que o território de São Mateus é construído através de ocupações, ocupações que nesse tempo de pandemia cresceram bastante”, define ela.

A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio tem um formato de atuação territorial que inclui os moradores no processo de discussão sobre as violências cometidas pelas forças de poder do Estado, gerando uma série de conexões territoriais que atraem também novos articuladores que se formam politicamente nesses espaços de diálogo. E foi assim que a moradora de São Mateus conheceu o grupo de defensores de direitos.

“Eu conheci a Rede através da Katiara, uma das coordenadoras, em uma reunião que ela veio participar aqui em São Mateus. Eu achei muito importante e fundamental que também tivesse aqui no território essa rede ativa, porque diante das violências que ocorrem no território como um todo, é de grande importância que tivesse alguém que pudesse representar essa comunidade dentro da rede, e ter esse suporte através desse articulador para a comunidade”, relembra. 

Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio marca presença em manifestação para defender o direito à vida. (Foto: Repórter Popular)

Violação de direitos 

A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio segue obtendo uma demanda de trabalho que não para de crescer, devido ao constante acontecimento de casos de violência do Estado. As situações de violência policial perseguem os moradores das periferias que estão dentro de suas casas, andando nos becos e vielas ou curtindo momentos de lazer nos bairros onde vivem.

É nesse cenário que Maria Edjane Lacerda, 38, se envolveu pela primeira vez com a Rede e se tornou uma articuladora do seu bairro, na zona sul. Ela é moradora do Capão Redondo e atua como gerente de serviços do SASF Capão Redondo III.

Após ver o filho da agente de saúde Simone Nascimento, 37, moradora do Parque do Engenho e mais dois jovens serem detidos e presos pela polícia militar enquanto jogavam futebol em uma quadra dentro de uma escola na mesma rua em que moram há mais de 20 anos, Edjane decidiu se mobilizar e encontrar caminhos para combater aquela injustiça.

Simone descreve que eram cerca de nove horas da manhã, quando houve um assalto de uma carga próximo da sua casa. Neste momento, a polícia estava atrás dos indivíduos que cometeram o crime, enquanto o seu filho estava com os amigos jogando bola na quadra da escola.

“A polícia entrou na escola e todos estavam lá, quando eles viram os jovens lá, eles começaram a atirar para cima, e eu escutei isso lá do meu trabalho. Aí os meninos começaram a correr por conta dos tiros, e aí nessa hora alguns conseguiram sair pelo outro lado da rua, meu filho e mais dois amigos se esconderam atrás da escola, aí o helicóptero os encontrou e lá foi forjado né”, relata a mãe de uma das vítimas.

Segundo ela, os policiais ficaram perguntando: ‘onde que tá a carga?’, ‘onde que está a carga?’, e os jovens sem saber do fato que estava acontecendo, pois tinham acabado de chegar na quadra, foram algemados e levados para a delegacia.

“São três jovens no bairro onde eu moro, com as famílias muito próximas, amigos dos meus filhos né? Então eu passo a acompanhar e articular com essas famílias em busca de justiça pela prisão indevida dos filhos dessas mulheres”, enfatiza Maria Edjane, sobre o trabalho que vem desempenhando com apoio da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio.

Edjane explica que acompanhou o processo desde o começo e o resultado do julgamento dos jovens saiu recentemente. “No decorrer desse processo que durou de novembro de 2020 até agora saiu a absolvição oficial dos meninos na última sexta-feira saiu”, conta ela, apontando um final feliz com a sua colaboração para criar um mecanismo de defesa dos jovens, presos injustamente pela polícia. 

Os atos são uma forma também de levar informação aos moradores das periferias que marcam presença nesses espaços de manifestação popular. (Foto: Leandro Godoi)

Acesso à informação 

A partir de cartilhas que informam como deveria ser a abordagem policial, elaborada pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, é realizado um trabalho de educação política com moradores dos territórios periféricos, para explicar o significado de termos como o juvenicídio e o genocídio.

“Esses materiais são distribuídos nos atos ou nas ações que a gente faz na comunidade, num diálogo muito claro e objetivo, de forma que qualquer pessoa compreender”, afirma a articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio

Mas as ações de conscientização sobre os direitos civis da população preta e periférica não param por aí. A iniciativa também leva denúncias para o Ministério Público. “Nós solicitamos reuniões com o Ministério Público, somos atendidas em reuniões, direcionamos casos para as denúncias, cobramos do Ministério Público as respostas, já emitimos documentos sobre a câmera que fica alojada na roupa do policial, que não pode e não deve estar desligada”, conta Edjane.

Fruto desse trabalho de acompanhamento dos casos de violência policial, a Rede produziu e emitiu um documento para Secretaria de Segurança Pública, informando e solicitando que se policiais utilizam a câmera desligada, ele precisa assinar um termo de culpabilização diante dos seus atos.

Essa foi uma das estratégias encontradas para cobrar respostas do Ministério Público e da Secretaria de Segurança Pública sobre ações efetivas contra os policiais que cometem abusos de poder durante as abordagens.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou que em julho deste ano não houve registro de mortes por violência policial nas operações dos 18 batalhões da Polícia Militar de São Paulo, onde os policiais utilizam as câmeras corporais. Ao todo são 3 mil câmeras que fazem o registro de áudio e vídeo das abordagens.

“Para nós é inadmissível que um policial execute um jovem na comunidade e ele permaneça rondando essa comunidade, ele causa medo, ele causa terror e aí a gente já solicitou inclusive um projeto de lei pra que esses policiais possam ser afastados desses territórios, já que muitas vezes eles não são afastados do seu cotidiano profissional, que eles possam, pelo menos, não estar no território onde eles cometeram esses assassinatos”, conclui Edjane

“O desânimo é muito grande”: pandemia afeta motivação de estudantes do Jardim Aracati

Além da falta de motivação dos estudantes, o ensino remoto impôs uma série de desafios para uma mãe de 9 filhos que estão em fase escolar. Em alguns casos, os professores tentam dar algum estímulo, já em outros, é a tecnologia quem os deixa na mão.

Richalyson de 12 anos e Rebeca de 11, são filhos de Patrícia Paulo de Oliveira.

Os filhos de Patrícia Paulo de Oliveira, 37, moradora da Cidade Ipava, um dos bairros que fazem parte do Jardim Aracati, território localizado no fundão da M´Boi Mirim, zona sul de São Paulo, foram impactados de maneira severa e negativa pela plataforma de aprendizagem de ensino remoto. Ela é mãe de 10 crianças, sendo que nove deles são estudantes de escolas públicas da região.

Ela relata que tem acesso à internet, mas que não possui um computador em casa para auxiliar os filhos durante esse período longe da sala de aula, considerando que o tablet disponibilizado pela prefeitura de São Paulo, segundo ela, não se mostrou tão eficaz quanto o esperado.

“Deram o tablet para as crianças, mas pelo menos pra mim aqui está dando problema, não funciona, não entra o código, não faz nada. Já levamos na escola, disseram que era pra fazer ‘isso e isso’, mas mesmo assim não resolveu. Pra mim está a mesma coisa, não mudou nada”, desabafa Patrícia.

Durante a pandemia, a mãe dos estudantes conta que a escola ajudou com algumas cestas de alimentos para as famílias, mas as mães só ficaram sabendo por que uma mãe passava a informação de que estavam distribuindo os alimentos.

“Eles deram o cartão Alelo e as cestas básicas, e isso ajudou bastante, mas de estudos eles não falavam nada, não ligavam, se a gente não fosse atrás não ia saber de nada. Eles não avisam nada pra gente. Daí pediram os números de celular para montar o grupo no zap e até agora nada também”, conta Patrícia.

Mesmo com tantos problemas enfrentados por Patrícia, como mãe de nove filhos estudantes, ela termina sua fala com um olhar de esperança por dia melhores em meio a tantos desafios. Acho que também muita gente aprendeu nessa pandemia, trabalhar, pensar, estudar, ajudar as pessoas que precisaram, mesmo com tantas perdas.”

Richalyson de 12 anos e Rebeca de 11, são filhos de Patrícia e sentem dificuldade para acessar o tablet oferecido pela escola.

Izabela Aquino, 17, moradora do Cidade Ipava, que está no terceiro ano do ensino médio e prestando vestibular para biomedicina. A  jovem apresenta relatos importantes sobre a rotina do ensino remoto. Ela estuda na escola estadual Maria Petronila Limeira dos Milagres Monteiro, que segundo a jovem, já foi considerada uma referência entre as escolas de Santo Amaro.

Ao comentar como tem sido a rotina de assistir as aulas na plataforma de ensino remoto, a estudante denuncia a falta de professores em diversas disciplinas da escola. “Até hoje, muitas turmas do Petrô ainda estão sem professor de matemática, biologia e português, e isso já está se tornando normal, não ter professor de muitas matérias.”

Izabela também reforçou sobre a quantidade de estudantes da escola dela que precisaram deixar de se empenhar nos estudos para se inserirem no mercado de trabalho, pois passaram a ser responsáveis para pagar as contas dentro de casa durante a pandemia, alguns até sozinhos, pois os pais foram demitidos dos seus respectivos trabalhos.

“Diante da pandemia que afetou a todos, mas principalmente as periferias, muitos dos meus colegas tiveram que parar de estudar para começar a trabalhar, nisso os professores viram que de 36 alunos, somente três ou quatro assistiam às aulas”

comenta a jovem.

Outro relato marcante da estudante é o processo de reprovação de alunos provocado pelas faltas nas aulas. 50% dos alunos da minha turma mudaram de turno, alguns acabaram repetindo de ano por causa de emprego, e outros mesmo sem realizar as atividades foram aprovados pelo Conselho”, diz Izabela.

Além desse cenário, ela conta que pelo menos 60% da turma dela entre meninos e meninas, desenvolveram ansiedade, por terem medo de não conseguir concluir o ano letivo. Segundo Izabela, o impacto da pandemia e do ensino remoto foi muito significativo e fez com que muitos jovens perdessem a vontade de estudar.

Izabela Aquino, 17 anos, estudante do 3º ano do ensino médio e se preparando para prestar vestibular para Biomedicina.

Quem também compartilha dessa opinião é o educador Paulo Soares Borges, professor da rede estadual há mais de dez anos, e que trabalha atualmente ministrando aulas tanto no ensino fundamental, quanto no ensino médio de uma escola do Jardim Aracati.

Paulo cita muitos exemplos diante dessa realidade, enfatizando a difícil rotina e não evolução dos jovens periféricos. Mesmo a escola realizando algumas ações para compensar o tempo perdido, as devolutivas de atividades curriculares são muito pequenas. Segundo ele, falar com estudantes sobre vestibular e mercado de trabalho deixou de ser um tema para se motivar em sala, para tratar questões de saúde emocional com os alunos.

“Temos trabalhado a questão da saúde socioemocional, trabalhando com eles através de vídeo chamadas em grupo, para ver se conseguimos fortalecer os estudantes. O desânimo é muito grande”, pontua ele.

O educador acredita muito no potencial dos jovens de quebrada e lamenta o crescimento do desestímulo notado no olhar dos alunos, onde muitos deixaram de se preocupar e procurar saber dos estudos. E aqueles que decidem ir ao método híbrido, vão apenas para socializar, mas não com intuito de estudar.

De acordo com a pesquisa que ganhou o nome de “Perda de aprendizagem na pandemia”, publicada em 2021 e realizada pelo Instituto Unibanco e pelo Insper, apenas 36% dos estudantes de escola pública conseguiram se inserir no método de ensino remoto, e a perda no desempenho acadêmico nas disciplinas essenciais (matemática e língua portuguesa), mesmo estabelecendo o modo híbrido e dinâmicas para recuperação de notas, sempre foi maior que 65%.

Neste momento, onde o acesso à internet tem uma clara interferência na vida de professores e alunos, está sendo discutida a aprovação da Lei nº 9.610/98, que garante acesso à internet nas escolas públicas de todo o país.

O presidente Jair Bolsonaro havia vetado em março a primeira versão da lei, mas o projeto voltou a ser discutido e está em processo de regulamentação. Ao ser executada, a lei destinará 3,5 bilhões de reais do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações para os estados brasileiros executarem em seus orçamentos.

Para analisar esse cenário, o Desenrola entrevistou Kátia Alves, professora de educação infantil e diretora de produção cultural. Ela é graduada em pedagogia com especialização em Gestão da Educação Pública pela UNIFESP e integrante do Coletivo Territorialidades de Campo Limpo, que pensa e discute a importância dos territórios educadores.

Kátia pontuou os parâmetros da pandemia, que chega aos estudantes da rede pública agregando e evidenciando a precarização histórica do ensino nas periferias. Como, por exemplo, salas superlotadas, a falta de recursos pedagógicos e humanos nas escolas e com a necessidade de estudar remotamente, surgem problemas como a falta de equipamentos, como computadores com acesso à internet de qualidade, condições estruturais para estudarem em casa.

“Muitos não têm se quer uma mesa com cadeira que possa usar para o estudo”, afirma a pedagoga. Ela enfatiza que no mesmo aspecto das dificuldades dos estudantes estão os desafios dos colaboradores docentes em desenvolver o seu trabalho de forma remota sem os investimentos tecnológicos necessários juntamente com uma formação para uso das ferramentas.

“A entrega de tablet para os estudantes demorou a chegar e a democratização do acesso à internet se quer está sendo discutida como política pública. Como se sentir motivado ao estudo remoto, com falta de equipamento, internet de qualidade e local adequado para o momento de estudo?”, questiona Kátia.

Home office gera rotina exaustiva para mães das periferias de Osasco

Com ou sem o apoio dos seus parceiros, elas relatam a rotina de trabalhar, fazer comida, lavar roupa, estudar e ainda cuidar sozinha dos filhos. E escancararam uma realidade: toda maternidade é solo. 

Durante o expediente, Nathalia Jacob coloca um tapete no chão junto com as brinquedos favoritos da filha para poder se concentrar no trabalho. (Foto: Monique Caroline)

O coronavírus e o home office trouxeram demandas que não estavam presentes na rotina de mães moradoras de Osasco. Esse é o caso da analista de recursos humanos, Nathalia Tittz, 28 anos, moradora do Jardim Bela Vista, em Osasco, e mãe de Sophia. Em março de 2020, ela recebeu a notícia de que a pandemia iria paralisar as atividades da empresa e o serviço passaria a ser remoto.

Recém-separada do companheiro e com uma filha de 1 anos e 6 meses, uma nova jornada se iniciaria: voltar para a casa dos pais e conciliar o home-office com os cuidados de Sophia.

Mesmo com a grande mudança de rotina, a Analista diz que estar dentro ou fora de um relacionamento, não foi um dos maiores impactos nesse período:

“Para ela (a filha), foi bem complicado. Para mim já não, porque normalmente os cuidados do filho sempre ficam para mãe, não tem meio a meio”

enfatiza.

A maior transformação que Nathalia teve foi a adaptação para o novo modelo de emprego. Ter a ajuda dos pais Isaura e Valdemir, e da irmã Aline, dentro da rede de apoio, foi muito importante para esse processo.

No entanto, as dificuldades são presentes: “Tem dia que eu tenho que sentar ela no meu colo, colocar o fone de ouvido nela, fone de ouvido em mim e tentar prestar o máximo de atenção possível no trabalho”, comenta.

Sophia participa da maioria das reuniões de trabalho junto com a mãe. (Foto: arquivo pessoal/Nathalia Tittz)

Durante o ano de 2019, ela conseguia reservar um tempo maior para se dedicar aos estudos dentro da área de atuação e até sair com os amigos. Após o decreto da pandemia no Brasil em março de 2020, as coisas mudaram e o isolamento social fez com que ela se sentisse mais cansada. 

Hoje, “falta pique” por conta da intensidade de todos os cuidados que acontecem dentro de casa. “A gente tem que ser professora, a gente tem que ser mãe, a gente tem que ser dona de casa e chega no final do dia, a gente não dá conta de quase nada”, relata ela.

Rosimeire Bussola, psicóloga especialista em saúde da família e integrante do coletivo PerifAnálise, focado em atender moradores periféricos e democratizar o acesso aos atendimentos clínicos, conta que as consultas cresceram na pandemia, mas as queixas de exaustão e dificuldades maternas permaneceram no mesmo patamar.

“A periferia já vivia os efeitos da pandemia em certa medida e as mulheres periféricas também. O desemprego, as dificuldades de acessar vagas em creches, escolas e ter as crianças em casa… A gente percebia que essas coisas já aconteciam”.

Analisa a psicóloga.

Para Nathalia, o aumento da carga de trabalho foi significativo, mas ela conseguiu enxergar aspectos positivos, como a economia do tempo gasto para ir até o serviço, ficar parada no trânsito e se arriscar pela contaminação. Além de acompanhar o crescimento da filha e aumentar os laços entre as duas.

Atualmente, a Analista anseia em não voltar para o escritório: “Mãe se habitua a tudo, se habitua ao momento, passa um tempinho que a gente fica com dor de cabeça e estressada, mas uma hora a gente se habitua aquilo”, afirma.

O lado b do home office 

Essa é uma situação presente também na vida de Nathalia Jacob, 22, que também mora no Bela Vista, região de Osasco. Ela trabalha com atendimento em telemarketing, é mãe da Eloah de 3 anos e não quer voltar ao presencial pela praticidade; o que não anula as dificuldades para conciliar o emprego com a maternidade.

Com as creches ainda fechadas, Nathalia Jacob precisa trabalhar e dar atenção para a filha ao mesmo tempo. (Foto: Monique Caroline)

Ela mora junto com o companheiro, Leonardo Pignatari, 23. Ele possui 3 empregos: trabalha como motoboy autônomo em uma doceria de tarde, à noite faz entregas para uma lanchonete de cachorro-quente e faz bicos consertando computadores e videogames.

Por conta da rotina do companheiro impactada pela tripla jornada de trabalho, todos os cuidados com a filha e tarefas domésticas permanecem com ela e foram transformados com o home office: “É uma bagunça. É difícil para a Eloah entender que eu tive que trazer o meu trabalho para dentro de casa”, conta ela.

Foto: Monique Caroline

Para Thaiz Leão, mãe de Vicente de 8 anos, co-fundadora do projeto “Segura a Curva das Mães” e do Instituto Casa Mãe que visam mapear mulheres em vulnerabilidade social e custear gastos com a alimentação e necessidades básicas, é justamente por ter que dar conta de tudo, que o conceito de maternidade solo não se limita apenas às mães que não estão dentro de um relacionamento, ela se expande para todas.

“A maternidade é solo e a gente vive num espectro de maior ou menor cuidado, maior ou menor apoio” 

relata a especialista. Para ela, até quando existe a presença de um companheiro, não necessariamente esse espectro se altera para uma relação de maior apoio e cuidado.

Os motivos para essa relação não se alterar, são amplos. Geralmente ligados ao mercado de trabalho como no caso de Nathalia, ou por questões estruturais que envolvem o “papel” da mulher e do homem na sociedade. “Se cobra da mulher se responsabilizar por ele também”, expõe Thaiz.

Um levantamento feito pelo IBGE em 2019, aponta que as mulheres gastam em média quase 11 horas a mais por semana que os homens em tarefas domésticas.

Dados de 2021 endossam as desigualdades sociais relatando que mulheres ricas (que pertencem ao grupo equivalente a 20% da população brasileira de maior renda) gastam em média 18 horas por semana cuidando de outras pessoas ou realizando afazeres domésticos.

Enquanto isso, as mulheres que estão entre os 20% de menor rendimento, dedicam 24 horas semanais a essas mesmas atividades.

A estratégia de Nathalia para otimizar o tempo, é preparar o almoço enquanto conversa com o cliente. (Foto: Monique Caroline)

Outro impacto que a atendente teve, foi psicológico. Trazer o trabalho para casa trouxe também mais frustrações. “Antes você saia da empresa e deixava os seus problemas lá. Agora, como você deixa? O estresse que eu ficava eu acabava descontando no Leonardo, não tendo paciência com a Eloah”, relata.

Impactos psicológicos 

Problemas psicológicos para lidar com essas transformações foram recorrentes na adaptação de Thamires Rodrigues, 20 anos, professora de inglês e moradora do bairro Jardim Roberto, em Osasco. Mesmo sem filhos, ela desenvolveu Síndrome de Burnout, um distúrbio ligado à exaustão pelo excesso de trabalho.

“Eu trabalhava de segunda a segunda e quando eu não estava trabalhando, eu estava pensando em trabalho”

relembra Thamires, que precisou fazer tratamento terapêutico para enfrentar o problema.

Por conta da síndrome, ela acreditava que o home office seria impossível. Agora, enxerga uma possibilidade maior de rendimento e vantagens ao levar em consideração o tempo gasto no transporte e o alcance de pessoas. “Parece muito mais prático, tanto para minha rotina quanto para os meus alunos”, diz.

Com a pandemia, Thamires saiu da escola de inglês que trabalhava e começou a dar aulas por conta própria. (Foto: arquivo pessoal/ Thamires Rodrigues)

Assim que conseguiu lidar melhor com o problema, os abismos que separam a realidade de Thamires com Nathalia Tittz e Nathalia Jacob, ficaram mais transparentes: sem ter que cuidar de outra pessoa, todo o tempo livre que sobra do serviço, é para cuidar integralmente de si.

As realidades relatadas pelas moradoras estão presentes também nas pesquisas do Google. Segundo dados da plataforma Google Trends, houve uma ascensão de procura pela palavra “autocuidado” em julho de 2020. Pela primeira vez em cinco anos, o termo teve um pico de 90 pontos. Isso demonstra que por conta do isolamento social, as pessoas procuraram se informar sobre o assunto. Após mais de um ano da pandemia, em julho de 2021, a palavra ainda varia com picos de 90 pontos.

Ao fazermos um recorte para o estado de São Paulo, as pesquisas e assuntos relacionados mostram que essas pessoas também procuraram se informar sobre: cuidados pessoais, saúde, educação à distância e até cursos sobre autocuidado.

Fazer um chá, sentar e esperar ele ficar pronto com calma, é algo possível dentro da rotina de Thamires. Para ela, autocuidado não está relacionado à estética, está ligado a desacelerar e quando possível, aproveitar algum momento fora de casa, já que atualmente, o lar remete ao trabalho.

A realidade das mães é um pouco diferente. Para Nathalia Tittz, infelizmente esse autocuidado não é possível. Sair é bem complicado e se divertir em casa também, por conta do cansaço.

Para Nathalia Jacob, sair sozinha com os amigos é raro desde o nascimento da Eloah e realizar alguma tarefa cotidiana com calma é difícil. Para elas, fazer algo para si de forma desacelerada como lavar o cabelo ou assistir uma série, é no momento que as filhas dormem.

Danielle Braga, psicóloga e integrante do PerifAnálise, conta que para algumas mulheres foi possível trazer o trabalho para dentro de casa, pois já era cotidiano de certas realidades.

“Para as mulheres periféricas, não tem uma grande divisão ser mãe, trabalhadora e doméstica. Está tudo num balaio só, nas costas delas”

comenta a psicóloga.

Ela diz que o home office já era uma cultura histórica na vida das mães moradoras de periferia, mas não com esse termo, pois a própria palavra estrangeira se torna excludente. A psicóloga exemplifica essa realidade ao relembrar a trajetória das costureiras, por exemplo. Que adotaram essa profissão para poder ficar em casa, cuidar dos filhos e dar conta de tudo.