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Baba Egbe Felipe Brito aponta relação entre tradições de matrizes africanas e a preservação ambiental

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Devido ao racismo direcionado às tradições de matrizes africanas, ainda existe dificuldade em reconhecer como esse conjunto de costumes e tradições ancestrais estão vinculadas à natureza e prezam pela preservação do meio ambiente, inclusive nos terreiros em regiões periféricas. 

“Essa relação se dá exatamente porque nós cultuamos divindades que representam aspectos vinculados aos recursos naturais, aos biomas e à diversidade que o meio ambiente nos oferece”, comenta Felipe Brito.

Felipe Brito é Baba Ẹgbẹ do Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba (Foto: arquivo pessoal)

Felipe é Baba Ẹgbẹ, que significa pai da comunidade e da sociedade, do Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba, localizado no bairro Chácara Mafalda, distrito de Água Rasa, na zona leste de São Paulo. Felipe mora no bairro Jardim Nova Poá, em Poá, município de São Paulo, é jornalista, mestre em políticas públicas e fundador do coletivo Ocupação Cultural Jeholu.  

“Quando tem um terreiro numa região periférica, essa é uma região petrificada, em que o córrego foi canalizado, está sujo, poluído ou o esgoto está a céu aberto. É um lugar que não tem rio, não tem cachoeira, as poucas árvores que existem são preservadas pela própria comunidade.”

Felipe Brito, Baba Ẹgbẹ do Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba.

Ele comenta que é nesse contexto, com a privação de áreas verdes e dos recursos naturais, que os povos de terreiro são afetados pelo racismo ambiental e pela falta da justiça climática, pois isso interfere diretamente nas práticas e nos hábitos das tradições de matrizes africanas. 

“As lideranças negras que estão nos conjuntos habitacionais, nesses bairros mais afastados têm que repensar como organizar suas tradições nesses espaços”, diz Felipe. Além disso, também há os alagamentos, racionamento de água, erosão, entre outros problemas relacionados ao racismo ambiental, que impactam na vida de todos que vivem nas periferias, inclusive os povos de terreiro.

Terreiros e periferias

“Você vai morar na periferia porque o metro quadrado é mais barato para você montar o seu terreiro e organizar a sua comunidade. Mas ao mesmo tempo você vai ter que se deslocar muito para fazer os seus ritos”, comenta Felipe. O Baba Ẹgbẹ conta que muitas áreas verdes próximas aos terreiros são propriedades privadas ou rodeadas por grupos violentos e intolerantes às tradições africanas.

“[Estamos falando] também de uma reinvenção na urbanidade. Quando você chega em uma casa de candomblé na cidade de São Paulo, você vai ver que parece uma pequena reserva de Mata Atlântica. Por menor que seja a casa, tem que ter a folha, porque senão a gente não tem o culto do Orixá e a presença dele.”

Felipe Brito, Baba Ẹgbẹ do Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba.

Preservação ambiental

Felipe ressalta que as tradições de matrizes africanas têm responsabilidade com o sagrado das folhas, pois representam a cura, a sacralização dos rituais que são vinculadas às divindades. Ele também destaca alguns exemplos de como essas tradições estão conectadas e dependem da preservação da natureza para a manutenção da própria existência.  

Felipe Brito no Ibece Alaketu Asè Ogun Mejeje, no bairro do Portão, em Governador Mangabeira -BA, com Mãe Bem de Oxoguiã. (Foto: arquivo pessoal)

“Dentro da tradição de Iorubá, muitas orixás como Iemanjá, Iansã e Oxum são veiculadas a rios. [No Brasil elas] são vinculadas ao oceano, mar, rios, lagoas, cachoeiras. Não preservar, não ter consciência, não utilizar os recursos naturais de maneira racional faz com que inevitavelmente nós tenhamos a inexistência da energia vital dessas divindades no culto delas”, ressalta.

A comunidade do Ilé Maroketu Àṣẹ Ọba adaptou as suas práticas para diminuir possíveis impactos ambientais. “A gente só utiliza alguidar, que é aquela vasilha de barro em que se deposita as oferendas no terreiro. Quando nós vamos depositar qualquer coisa fora, nós utilizamos a folha de bananeira, de mamona”. Felipe conta que as velas são acesas apenas no terreiro para evitar incêndios na mata e que instrumentos de plástico não são utilizados nos rituais.

“Existe uma perseguição em relação às tradições de matrizes africanas [que são apontadas] como poluentes do meio ambiente. [Em paralelo a isso] existem movimentos de conscientização dentro das matrizes africanas para que nós entendamos o nosso papel em relação ao meio ambiente”, afirma. 

O Baba Ẹgbẹ conta que é necessário considerar que o candomblé, assim como as demais tradições de matrizes africanas, passaram por processos de ocidentalização e embranquecimento, e que práticas que desconsideram e desrespeitam o meio ambiente são traços dessa colonização forçada.

Baba Egbe aponta relação entre tradições de matrizes africanas e a preservação ambiental
Celebração no Ilé Odẹ Maroketu Àṣẹ Ọba, que fica no bairro Chácara Mafalda. (Foto: arquivo pessoal)

Segundo ele, o que é posto como religiões de matrizes africanas é uma forma restrita e de apagamento das múltiplas tradições que existem, determinando apenas como religião as práticas e tradições que não dizem respeito somente à espiritualidade.

Além disso, as tradições de matrizes africanas englobam outras possibilidades de modo de vida e organização social, que têm como base visões de mundo fundamentadas na ancestralidade e nas culturas africanas, que destoam com o que é ocidental, branco e eurocêntrico. 

“Nós somos uma tradição infelizmente de resistência, [pois] se temos que resistir é porque algo nos oprime. Então essa interação de resistência diz respeito também a resistir preservando o meio ambiente, os recursos naturais que dão vida e forças às divindades nas quais nós acreditamos como herança cultural e ancestral africana no Brasil”, finaliza Felipe.

Autocuidado

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Dentre todos os problemas que o povo preto, periférico e trabalhador enfrenta, na minha perspectiva, o mais complicado de se perceber é o autoconhecimento e consequentemente, o autocuidado, porque se olhar e entender o quanto temos o direito de receber cuidado, e que não seja só o estético. Onde precisamos entender que podemos nos ver e gostar do que vemos não só no espelho, mas principalmente de se olhar num espelho interior e gostar do que se vê e o que sente sobre si. Curar demasiadas feridas, que podem ser cuidadas e tratadas de diversas formas. Ainda precisamos quebrar diversos paradigmas.

O autocuidado está sendo uma palavra emergente. Podemos perceber que muito se tem falado sobre esse tema, mas porque agora, vocês já se perguntaram? E ainda assim, percebo que não compreendemos o seu real sentido prático na rotina diária. 

O que é o cuidado?

Ao longo dos anos que venho me dedicando a cuidar de pessoas, a resposta parece simples. Sou cuidadora, ou melhor, sou mulher, só por este fator já nasci com essa tarefa. Isso já está dado numa sociedade patriarcal e machista, e ainda mais racista, onde as mulheres e ainda mais mulheres pretas, não tem escolha, e vamos ao longo da jornada somando tarefas. 

Ser cuidadora não é valorizado, não é muitas vezes nem remunerado se assumimos essa tarefa dentro da família, e se ainda somos provedora, ou mães solos, a carga fica ainda mais pesada, pois muitas vezes sem o apoio necessário para ter um tempinho para si e sustentar esse tempo como muito necessário para nós, só paramos em algumas situações urgentes. 

Temos triplas jornadas, é tão extenuante que simplesmente priorizamos o outro. 

Quando temos tantas tarefas para cumprir, pessoas para cuidar, exige um tempo tão grande que não sobra quase nada para si e seguimos muitas vezes uma vida inteira só cuidando do outro e esquecendo de si. Para entender o que é autocuidado, o grande desafio é romper com essa lógica.

Voltando à questão: o que é autocuidado? É um conjunto de práticas que o resultado seria um equilíbrio, não só momentâneo, mas uma forma de se conhecer, olhar no espelho interior e sorrir de prazer consigo mesmo, reservar momentos de análise, práticas que lhe garanta saúde, paz, energia suficiente para se manter de pé, realizar nossas tarefas e consequentemente sentir prazer consigo mesmo pelo bem estar gerado e poder relaxar, sair desse ciclo esgotante e de grande adrenalina e tensão para dar conta da rotina diária.


Aí você pode me dizer que realiza alguns cuidados semanais, como disse anteriormente ligado a estética, ou para manter a forma, e isso é muito bom, isso também é um cuidado com a saúde física e emocional, mas será que isso é o suficiente? 

E aí pergunto: como você entende o que é um cuidado mais profundo sobre si mesmo? Ou acha tudo isso uma grande bobagem, porque entende que é capaz de dar conta da sua própria vida?

As práticas de cuidados com saúde mental através das psicoterapias e com o corpo, com as terapias holísticas que são medicinas tradicionais, vem nos ensinar e complementar esses cuidados básicos. Mostrar que o cuidado com corpo não é o suficiente, temos muito a aprender sobre nós, temos outros corpos, temos uma mente emocional, psíquica, energética, somos muito complexos, e aí mora o grande desafio desse cuidado, pois é tão amplo que colocar isso na vida prática, parece impossível, e eu digo não é, acredite!

Se ainda precisamos de mais, se sentimos que nosso emocional não anda bem, ando com raiva, me sinto sozinha, não saio do mesmo lugar, só corro, corro e nada anda, sou sempre perturbada em meus sonhos, durmo mal, tenho angústias e ansiedade, não consigo me sentir bem na presença de outras pessoas e quem dirá me abrir para que elas me ouçam.

Um dia desses ouvi uma pessoa no terreiro dizendo “nossa, antes de conhecer a terapia não sabia que seria tão importante, pois hoje não consigo mais viver sem”.
Outras participantes do Núcleo Obará sempre dizem “antes de conhecer as práticas integrativas não me conhecia, nem sabia o que era praticar uma meditação, falar de si mesmo era um grande desafio, pois não gostava de ser julgada, agora não sei mais viver sem este grupo.”

São diversas as formas de autocuidado que hoje podemos acessar, porém, temos que entender que o maior desafio é enfrentar nossos próprios medos e preconceitos. Entender que temos ferramentas internas para mudar a nossa conduta, comportamentos e avaliar melhor as escolhas e a forma que escolhemos para seguir em frente.

Ao ser convidada a fazer parte dessa coluna, ouvi a seguinte frase, você deve ter muito para falar”, ao afirmar que “nós não temos tempo para sermos nós mesmos, pois o sistema capitalista não nos permite nos conhecer”, e é sobre isso que estou falando aqui nessa coluna hoje.

Quando vamos ter tempo para nós, para respirar, para pensar, ser criativos, desenvolver nossos próprios projetos, escrever nossa própria história se estamos vivendo no automático, sem tempo e espaço para uma real auto descoberta, se conhecer realmente, ouvir sua própria história, saber como vai seu interior e saber de onde vem tanta pressa, tanta angústia, tanta dor e solidão. 

Temos que dar um primeiro passo. Um passo após o outro, sem perceber, já integramos vários cuidados e práticas que são naturais e não conseguimos mais viver sem, é maravilhoso.

Somos perseguidos por um processo externo que me parece tão adoecedor que nos separam em pedaços e depois nos dão pílulas mágicas para não sentirmos a dor, e assim seguimos, tomando muitas vezes doses altas de medicamentos para conseguir viver, porém, muitos de nós já estamos tão adoecidos, dependentes de algo para nos anestesiar, que deixamos quem somos para trás e seguimos sendo sombras do que um dia fomos, pois acreditamos tanto que temos que seguir em frente, sermos capazes de enfrentar tudo sozinhos, sermos tão fortes, que caímos nesse penhasco sem nos dar chance de sair desse buraco. 

Mas podemos e temos sim como reverter essas questões, darmos chances de sermos cuidados, de nos cuidar e a partir de práticas diárias, muitas delas pequenas, acessíveis e naturais, para que possamos sair do automático. 

Darmos chances de curar nossas feridas através do amor, do afeto e desenvolver nosso potencial, nos reservar uns minutinhos de descanso e criatividade, sermos mais felizes, pois temos direitos, temos desejos, mas quais são eles tão possíveis de serem vividos?

Deixo aqui uma questão para falarmos numa próxima sessão.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Xenofobia no Brasil: Crime previsto por lei ainda atinge imigrantes refugiados e nordestinos

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No Brasil, a Xenofobia é crime previsto na Lei 9.459, de 1997, mesmo diante disso, esse tipo de violação atinge principalmente a população nordestina e imigrantes refugiados, que ao migrar para outras regiões sofrem os mesmos preconceitos.

Em entrevista ao Desenrola Aí, o jornalista venezuelano e imigrante refugiado, Carlos Escalona explica como a Xenofobia pode se manifestar de diversas formas, desde atitudes discriminatórias até violência física e verbal contra pessoas, nordestinas e imigrantes refugiadas.

“As pessoas associam a xenofobia apenas a quem vem de fora, mas esquecem que também existe uma xenofobia interna. Morando oito anos aqui em São Paulo, percebi que também existe uma xenofobia interna, com as pessoas que vem do nordeste, pelo jeito de falar, pelo jeito de vestir, são condutas que as pessoas vão normalizando e acham que é normal, mas não é normal, é xenofobia também”. Ressalta Carlos Escalona.

Sobre o Desenrola Aí

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

Articuladores políticos apontam impactos do racismo em candidaturas de pessoas negras

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Assim como o racismo permeia a sociedade como um todo, ele também está presente na política e reflete na candidatura de pessoas negras quando se trata do acesso a cargos institucionais de liderança, é o que afirma Nazaré Cruz. “O partido é a sociedade. Tudo que tu vivência aqui, tu vai vivenciar dentro do partido também, [inclusive] as desigualdades”.

Moradora do bairro Terra Firme, periferia localizada no distrito D’água, em Belém, no estado do Pará, Nazaré é militante do movimento negro e feminista, mãe, historiadora, de religião de matriz africana, e atualmente trabalha como diretora de assistência social.

Nazaré ressalta que a política não é um lugar pensado para as pessoas negras, o que influencia na pouca representatividade. “A dificuldade de pessoas negras e de mulheres negras, principalmente, se dá [porque] não somos as prioridades de investimento dos partidos”, menciona.

Articuladores políticos apontam impactos do racismo em candidaturas de pessoas negras.
Nazaré Cruz pretende disputar as eleições de 2024 como candidata a vereadora ou como vice-prefeita (Foto: arquivo pessoal)

Desde 2007, a diretora de assistência social é filiada ao PT e se candidatou duas vezes: a primeira para o cargo de vereadora em 2020, e em 2022 como titular de chapa em uma campanha coletiva para deputada estadual.

“Não estamos falando de representatividade se tem uma pessoa negra e 300 parlamentares homens brancos e de meia idade. Se na população brasileira somos 56%, o mínimo que se esperava é que tivéssemos uma representação semelhante ou próxima a esse número nos espaços de tomadas de decisão e [isso] não acontece ainda.”

Dú Pente, co-fundador da Juventude Negra Política.

Ivan Santos, conhecido como Dú Pente, é do bairro Bonsucesso, no distrito de Barreiro, periferia de Belo Horizonte. Pós-graduado em Ciência Política, Dú Pente teve duas experiências como candidato a vereador: em 2016, em um mandato coletivo que elegeu Áurea Carolina, a primeira vereadora negra de Belo Horizonte, e em 2020, com uma candidatura convencional.

Dú Pente é do bairro Bonsucesso, na periferia de Belo Horizonte, onde fundou a organização Juventude Negra Política. (Foto: arquivo pessoal)

“Estas identidades, negro, periférico, gay, pobre trazem camadas de violências simbólicas, sistêmicas e físicas que estão para além do cotidiano e que se reproduzem no nosso espaço institucional político”, coloca Dú Pente, que atualmente não é filiado a nenhum partido.

Em busca de soluções para lidar com os entraves e demais vivências que acumulou em sua trajetória política, em 2019, Dú Pente co-criou a Juventude Negra Política (JNP), uma organização da sociedade civil que tem o objetivo de promover a educação cívica e democrática no fortalecimento da democracia na América Latina, numa perspectiva antirracista.

Representatividade

A falta de recursos é o principal obstáculo apontado por Nazaré e Dú Pente na consolidação das candidaturas de pessoas negras. “Candidaturas de homens e mulheres negras em todos os partidos são as que menos recebem recurso e apoio para poder se desenvolver”, aponta Dú Pente.

Equipe da Juventude Negra Política, uma organização da sociedade civil. (Foto: arquivo pessoal)

Ele comenta que os partidos políticos estão preocupados com a propaganda da representatividade e não investem os recursos necessários para que pessoas negras e periféricas sejam eleitas. “Pouco importava, na prática, as questões relacionadas à representação para além do discurso”, menciona Dú Pente sobre sua experiência quando candidato.

“Nós não temos os sobrenomes das famílias tradicionais da política, nós somos cidadãos comuns, pessoas do povo e queremos disputar esse espaço também por entender que esse é o espaço do povo e ele precisa ser representado, já que a gente diz que tá numa sociedade democrática, essa representação precisa ser democrática.”

Nazaré Cruz é historiadora e atua na política partidária desde 2007.

Tanto a Nazaré quanto Dú Pente colocam que o financiamento é necessário para fazer campanha e que isso é indispensável quando se trata de candidaturas de pessoas negras e periféricas. 

“A gente precisa de recurso para pensar na sobrevivência de um candidato que faz campanha o dia inteiro e não pode trabalhar. Como que a pessoa se mantém? Um cara da quebrada, periférico, sem herança, sem grana, ele precisa de uma remuneração mínima”, exemplifica Dú Pente.

Dú Pente foi candidato a vereador em 2016 e 2020. (Foto: arquivo pessoal)

Nazaré menciona que candidaturas de pessoas brancas geralmente recebem apoio até antes do período eleitoral, e mesmo quando não se elegem são projetadas para as próximas eleições ocupando espaços de decisão e poder. “A gente percebe isso nas composições dos governos nas pós-eleições. É só você verificar quem vira secretário, quem vira presidente”, comenta.

Transparência e autodeclaração

Atualmente, as campanhas eleitorais são feitas a partir do financiamento público. Segundo Nazaré, a situação melhorou se comparado ao contexto em que os financiamentos eram privados, feitos por empresas. No entanto, isso não acabou com as desigualdades existentes. Ela também comenta que o financiamento específico para candidaturas de pessoas negras viabilizou uma presença maior desses corpos na disputa das eleições. A historiadora conseguiu financiamento público através do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) quando se candidatou.

“É importante registrar que nem todo mundo consegue acessar esse recurso porque a distribuição fica por conta da direção do partido. Ele tem que dar um percentual, mas isso não obriga que dê para todos os candidatos. Então [nem] todas as candidaturas negras ou de mulheres vão acessar o recurso”, explica Nazaré.

Dú Pente comenta que não existem critérios objetivos de como internamente esses recursos serão distribuídos, o que contribui para que o racismo se faça presente nessa distribuição dos recursos. A autodeclaração de pessoas negras para obtenção de recursos é outro ponto que o cientista político coloca a necessidade de fiscalização e regulamentação para que não fique a critério da subjetividade de quem está no poder das instituições.

Nazaré faz parte da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN). (Foto: arquivo pessoal)

“Depois da luta organizada dos movimentos negros do Brasil para que houvesse uma distribuição equânime dessa cota do fundo eleitoral para candidaturas negras, teve esse fenômeno da autodeclaração de pessoas que nunca se identificaram como negros antes e têm um fenótipo [em que] o privilégio racial os acolheu a vida inteira [e] passaram a se beneficiar desse fundo”, coloca Dú Pente.

Apesar dos avanços, a permanência de pessoas negras na política é um processo por vezes solitário e atravessado por violências. Dú Pente cita como exemplo o crime político que assassinou Marielle Franco, em 2018.

Nazaré e Dú Pente apontam que se organizar em coletivo é uma estratégia indispensável para lidar com o racismo e seus desdobramentos dentro dos espaços políticos. “Uma das estratégias é permanecer na militância com os movimentos sociais. Ninguém consegue chegar a lugar nenhum sozinho e [nem] fazer esses enfrentamentos sozinho”, ressalta Nazaré.

No Fluxo das opressões

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Tomada 1 – O conflito

Era para ser só mais uma celebração do lançamento de um trabalho audiovisual feito com muita luta na periferia do extremo leste de São Paulo, festa de favela com exibição do filme, comes e bebes e baile funk com MCs convidados para agitar a rapa, porém a polícia militar do governador Tarcísio e sua tropa da moralidade tinha outros planos. 

No programa Brasil Urgente o enfadonho Datena bradava a manchete: “Polícia militar barra baile funk… onde o crime organizado vende drogas e álcool para menores, etc”, passa a bola para o tenente Reis que do local do evento complementa: “Hoje teria programado para região de Cidade Tiradentes e Guaianases um evento cultural para ‘supostamente’ realizar o lançamento de um filme chamado Fluxo… eles maquiam a atividade como evento cultural, mas nós sabemos que nesse tipo de festa existe venda de drogas, armas e veículos roubados, por isso interrompemos antes de começar”.

O discurso midiático foi esse, mas a PM informou ainda que eles também não tinham autorização da subprefeitura, o que de fato era real, porém, o que não foi informado é que o local onde o evento aconteceria já é um tradicional ponto de festas de rua e onde acontece também semanalmente o conhecido “Baile do Céu”, que nunca havia sido interrompido pela polícia ou pela fiscalização da prefeitura à cerca de autorização ou algo do tipo. 

A pergunta que fica é: por que então neste dia especialmente a PM decidiu intervir? 

Tomada 2 – O protagonista 

Para entender melhor essa questão é importante ouvir o ocorrido pela voz do próprio diretor do filme e organizador do evento Filipe Barbosa, e entender também do que trata a narrativa do seu trabalho audiovisual e dos demais filmes que seriam exibidos no dia.

Filipe Barbosa tem 28 anos, é cria da Cidade Tiradentes e um amante e pesquisador da cultura funk, muito reconhecido na sua quebrada, atualmente estuda na UFRJ Comunicação Social e Rádio/Tv, onde também desenvolve uma iniciação científica. 

Aliás, a ideia de realizar o filme Fluxo saiu destes lugares onde Filipe transita sempre refletindo e celebrando suas raízes como homem negro e periférico da cena funk paulistana. Como ele já produzia uma série de imagens nos bailes onde curtia com seu bonde, a inquietação de produzir algo que pudesse potencializar a memória da cultura local e fortalecer o legado do movimento era algo que sempre o intrigou.

Foi em um laboratório de roteiro de ficção da faculdade que o instigou a produzir um curta metragem, sendo um romance que misturando elementos documentais, também conclamasse o acervo que Filipe já tinha em sua bagagem. Depois de muitos ‘nãos’ em editais e linhas de financiamento, ele decidiu que faria o filme mesmo sem recurso. 

“Inicialmente pensamos em fazer só com o dinheiro do nosso bolso mesmo e gravar com celular, mas durante o processo do filme foram surgindo parceiros para ajudar, a gente conseguiu apoio de uma locadora de equipamentos e a coisa foi rolando.” (Filipe Barbosa) 

Tomada 3 – Fluxo, da quebrada para o mundo 

Como é muito comum na lógica do cinema de quebrada, uma rede de solidariedade foi se formando em torno do filme de Filipe e ele não só conseguiu gravar e contar com grandes atores, como também angariou dinheiro com uma vaquinha que permitiu tratar som, imagem e finalizar o trabalho com qualidade de cinema, o que permitia uma distribuição a nível internacional do trabalho, que teve sua estréia no festival Lift-Off by Global Network em Londres – UK. 

No Brasil, em São Paulo, o filme teve sua pré-estréia no aniversário de São Paulo (25 de janeiro), em parceria com a Spcine em uma mega sessão no Vale do Anhangabaú com toda equipe do filme e mais de 1000 espectadores. 

Nesse mesmo período o filme também ganhou a votação do júri popular no festival Tela na Quebrada, recebendo inclusive uma premiação em dinheiro. E foi essa grana que facilitou a realização do evento, além da habitual coletividade e parceria de artistas do funk e demais moradores da região, afinal faltava o filme ser exibido no território que foi filmado, estreitando o diálogo com a quebrada onde o projeto nasceu. 

Filipe conta que planejou um evento muito especial, onde além de seu curta seriam exibidos outros dois filmes, um documentário histórico chamado “Funk na CT” sobre os pioneiros do estilo ostentação na Cidade Tiradentes e uma outra ficção “Neurótico e consciente” sobre a cena funk na baixada santista, depois da sessão haveria debate com uma das lideranças do movimento de mães de Paraisópolis, Maria Cristina Quirino, que tem a história de seu filho ligada umbilicalmente com o filme Fluxo, que em sua camada documental mostra imagens do massacre perpetrado pela polícia em Paraisópolis.

Tomada 4 – Plot Twist 

Esse é o ponto de virada naquele discurso inicial da PM sobre a autorização.

O evento vinha sendo planejado desde janeiro, logo após o sucesso da exibição no Anhangabaú a própria subprefeitura da CT procurou Filipe, mas a burocracia e a falta de diálogo não facilitaram a concretização da parceria no aniversário de 40 anos do bairro. 

No dia anterior ao evento, o palco de madeira que existia foi removido por fiscais da subprefeitura, que alegaram risco por conta do evento que aconteceria no dia seguinte, naquele mesmo dia o time de produção se articulou para que o baile que já acontecia pudesse acontecer. 

E naquela sexta o baile aconteceu, com a finalização do evento, caminhões começaram a chegar para a montagem do evento “Fluxo das relíquias”, toda a pré – produção foi realizada sem nenhuma interferência, mas pouco tempo depois dos primeiros preparativos chegam os primeiros carros da PM, e ao longo do dia foram chegando mais e mais, e a mídia e os fiscais da subprefeitura. 

Ou seja, nunca foi questão de autorização alguma, mas sim o tema e a divulgação de dados alarmantes do Massacre de Paraisópolis, em que os 31 policiais que foram julgados permanecem na rua, agindo da mesma forma arbitrária em seus incontáveis casos isolados, escolhendo sempre os bairros mais distantes do centro e as pessoas de pele mais escuras para cometer abusos sobre o manto da lei, enquanto criminalizam a arte e alegria dos moradores de favela. 

Filipe Barbosa é parte de uma nova geração do cinema negro e periférico mais munida de informação e mais preparada para enfrentar esses desafios tão antigos, quanto perversos, o que une seu cinema as diversas experiências históricas do audiovisual de quebrada é o comprometimento com sua cultura e seu bairro. 

Filipe Barbosa – Foto: arquivo pessoal

Filipe diz que realizará novamente o evento, esses percalços não impedirão a carreira do filme e os importantes debates que ele desperta. 

Quantos antes de nós lutaram e sofreram para que tivéssemos câmeras e outras ferramentas que permitem que contemos nossa própria história, por nossa própria perspectiva?

No início do filme Fluxo a voz ancestral de Beatriz Nascimento responde: “É preciso imagem para recuperar a identidade”, ou seja, outras imagens e culturas precisam coexistir no espaço público, nas telas e na vida de modo geral, a luta é para que nossa arte e nossas identidades não sejam o alvo preferido da violência de estado, ou tratada como algo menor, e sim, respeitada e valorizada em sua enorme potência.

Fluxo – O Filme | Trailer Oficial
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Como pensar em relações de trabalho dignas e com direitos garantidos? #26

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No episódio #26 do Cena Rápida te convidamos a refletir sobre quem lucra com a exploração de trabalhadores que não conseguem ter uma vida além do trabalho.

Nesse episódio você vai escutar o Rick Azevedo, do Movimento Vida Além do Trabalho, e o Cleberson Pereira, pesquisador do Centro de Estudos Periféricos, sobre a necessidade de relações de trabalho dignas e com garantias de direitos.

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube.

Iniciativa promove transformação socioambiental no bairro do Jardim Colombo

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No Jardim Colombo, bairro que pertence ao distrito do Butantã, na zona oeste de São Paulo, desde 2017, Ester Carro, 29, junto da comunidade local, mobiliza o Fazendinhando, criado com o intuito de gerar transformação territorial, cultural e socioambiental na região. Ester é arquiteta e urbanista, mora em Paraisópolis, mas nasceu e cresceu no bairro do Jardim Colombo.

Ester Carro é idealizadora do Instituto Fazendinhando, arquiteta, urbanista e cresceu no bairro Jardim Colombo. (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)

“A primeira casa que eu morei ficava de frente para um lixão. Eu sentia o que é morar em frente a um lixão e não poder deixar a sua porta aberta, porque senão entraria ratos e baratas em casa, [tinha] o cheiro ruim também, mas ao mesmo tempo era um espaço [onde] a gente brincava”, relembra Ester. 

Essa foi uma das vivências que deu origem ao primeiro projeto do Fazendinhando, que transformou um local que era utilizado para descarte de lixo, em um parque, que foi nomeado pelos moradores como Fazendinha.

Ester Carro, arquiteta e urbanista.

Ester conta que foi após Chico ficar doente e não ter mais condições de cuidar do local, que a área passou por um período de degradação. “As pessoas começaram a jogar muito lixo e esse lixão estava prejudicando a comunidade, porque a Fazendinha não é um espaço isolado, ela fica praticamente no centro do Jardim Colombo e com muitas casas no entorno”, comenta Ester, que ressalta o apoio e a inspiração em seu pai, Ivanildo de Oliveira, líder comunitário na região, ter sido fundamental na criação do projeto. 

Transformação cultural e socioambiental

“Nós realizamos os primeiros mutirões em dezembro de 2017, foram mais de 40 caminhões que saíram com lixo do local, e quando foi julho de 2018, nós fizemos o primeiro festival de arte do Jardim Colombo, na Fazendinha”, conta Ester.

Jardim Colombo
O parque Fazendinha, antes da mobilização social, era um local de descarte de lixo. (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)

No início, parte da população desacreditava na transformação do lixão em parque. A urbanista relata que apenas o argumento ambiental não era o suficiente para acabar com o descarte de lixo inapropriado e foi através da cultura, da arte e das atividades contínuas no local, que a confiança e a mobilização dos moradores foi conquistada.

“O festival foi um sucesso, porque a gente conseguiu trabalhar com cultura e mostrar para comunidade: ‘olha aqui vai ser um lugar onde os seus filhos vão brincar’. A partir do momento que você tem essa transformação cultural no território, que você tem essa participação da comunidade, eles começam a olhar o espaço com outros olhos”, afirma Ester.

IV Festival Fazendinhando (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)

Além dos festivais, o local recebe atividades mensais. “Tem rodas de conversa com as mulheres, têm distribuições, principalmente em datas comemorativas, temos oficinas, workshops, eventos, um playground, algo que não tinha dentro da comunidade”, pontua Ester. Ela menciona que os próprios moradores também realizam eventos no parque.

O parque Fazendinha foi inspirado no Parque Sitiê, um projeto que transformou um antigo lixão em uma área verde, na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, realizado por Mauro Quintanilha. Mauro, assim como outras pessoas de fora e da comunidade, estiveram presentes no início do projeto e participaram da construção e do processo de mobilização no território.

A Fazendinha se tornou uma área pública, pertencente à Secretaria de Habitação, no âmbito municipal, que atualmente é a responsável por concluir as obras do parque. “Nós conseguimos, depois de uma luta muito grande que [a Fazendinha] fosse inserida no projeto de urbanização”, conta Ester.  

A urbanista coloca que as periferias, dentro de um contexto amplo, são invisibilizadas no planejamento urbano da cidade, assim como o bairro do Jardim Colombo era uma favela esquecida, e que esse cenário só mudou depois que o projeto repercutiu na mídia.

Ester Carro, arquiteta e urbanista.

Pertencimento e orgulho

Os moradores da região estão inseridos na construção e manutenção do parque, e compõem de forma ativa e de diferentes maneiras as atividades que acontecem no local.

“Na própria construção da Fazendinha, nós tivemos a participação dos moradores, principalmente de jovens, e temos, por exemplo, fotógrafos que são da comunidade, artistas, grafiteiros. Desde a coordenação de alguma ação que vai ser realizada no espaço, até a construção da Fazendinha [os moradores estão presentes]”, exemplifica Ester.

O parque Fazendinha é um dos poucos locais de lazer e área verde na região do Jardim Colombo. (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)

As crianças são prioridade nas atividades realizadas no local. Segundo Ester, ter um espaço em que elas possam brincar é um dos impactos positivos que o parque proporciona na qualidade de vida na região. O local possui playground e área verde com espaço para correr.

Outros aspectos de melhorias apontados pela Ester se relacionam com a saúde pública, o acesso a uma área verde e de lazer. “Na parte cultural, acaba beneficiando a comunidade também, porque ela traz oportunidades para os talentos da comunidade”, comenta a urbanista.  

Além de um espaço verde, com diversas atividades, a iniciativa trouxe outros reflexos na vida dos moradores da região. “Eu acho que pertencimento tem muito a ver com o orgulho, e o que vejo nos moradores é esse orgulho com a área”, analisa Ester.

Abandono paterno: “Os homens não tem prejuízo social por não assumirem seus filhos”, diz antropóloga

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Assista a entrevista completa em nosso canal no YouTube.

No Brasil, 11 milhões de mulheres criam seus filhos sozinhas, é o que aponta a pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, referente ao ano de 2022. Em entrevista ao Desenrola Aí, a antropóloga Alessandra Tavares explica como o abandono paterno pode ter impactos significativos no desenvolvimento emocional e social das crianças, além de gerar sobrecarga emocional e financeira para o responsável pelo cuidado da criança, geralmente as mães.

Enquanto muito se discute sobre a sobrecarga enfrentada pelas mulheres, há uma lacuna nas conversas e avanços sobre a responsabilidade, ou irresponsabilidade, dos homens na reprodução humana. Dados do Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) revelam que, em 2023, houve 172.450 casos de pais ausentes.

Biologicamente, os homens têm a capacidade de conceber com múltiplas parceiras em um curto espaço de tempo, enquanto as mulheres e pessoas que gestam levam até nove meses para uma única gestação. No entanto, historicamente, a responsabilidade pelo controle da natalidade e a prevenção da gravidez recai sobre as mulheres e pessoas que gestam.

“Quem deixou de falar com um amigo porque ele não assumiu o filho que teve? Ninguém. A gente vai para o samba, conversa e lida como se isso não fosse uma enorme violência. É um comportamento aceitável. O homem não tem prejuízo social por conta de não assumir os próprios filhos e todas as responsabilidades a ele associadas”.

Ressalta, Alessandra Tavares.
Antropóloga, Alessandra Tavares e a jornalista Thais Siqueira durante a gravação do Desenrola Aí. (Abril 2024). Foto: Pedro Oliveira. 

Sobre o Desenrola Aí

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

Aumento da temperatura global afeta rotina de famílias nas periferias de São Paulo

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O calor extremo, notável principalmente em territórios vulnerabilizados, como as periferias, é evidenciado no relatório publicado pela Organização Meteorológica Mundial – a agência climática da ONU, ao apontar que 2023 foi o ano mais quente na Terra desde que se tem registro. Constatação vivenciada por diversas famílias que moram nas periferias, e que, em 2024, seguem sendo afetadas pelo calor intenso e pelas demais consequências da crise climática.

Fabiana Calixto, 42, moradora do bairro Vila Flávia, no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo.
O calor intenso tem afetado o bem-estar e a saúde da Fabiana e de sua família. (foto: Viviane Lima)

Além do cansaço, Fabiana, que é designer de sobrancelhas, menciona que o calor extremo também afeta a saúde de uma de suas filhas que tem bronquite. “O calor deixa ela bastante atacada, com a respiração lenta”, conta. Para amenizar a situação, Fabiana passa pano na casa durante o dia e antes de dormir para deixar o ambiente mais fresco e também para diminuir a quantidade de poeira que aumenta nos dias quentes.

O mal-estar em dias de alta temperatura também é uma queixa da Vera Lúcia dos Santos, 53, que mora na favela do Sapé, no distrito do Rio Pequeno, localizado na zona oeste de São Paulo. “Eu tenho muito calor devido a minha menopausa também. É um calor insuportável, toda hora tem que tomar banho”, compartilha.

Vera teve um infarto aos 38 anos e um AVC (Acidente Vascular Cerebral) em 2021, desde então o calor afeta diretamente a sua saúde. “Sinto um mal-estar, tontura, às vezes eu tenho umas pontadas no peito, mas é da rotina mesmo, né? Eu tomo remédio para pressão também. Estou me cuidando, vou fazendo o que eu posso, mas é difícil”, pontua.

Vera tem questões de saúde que se agravam quanto está calor, mas para garantir sua fonte de renda ela trabalha exposta ao sol. (foto: Viviane Lima)

A moradora do Sapé é líder comunitária e geralmente trabalha como cuidadora de idosos, mas está desempregada e para garantir a fonte de renda da família, no momento, atua no programa de distribuição de camisinhas, pelo SAE (Serviço de Assistência Especializada), do Butantã. Em ano eleitoral, ela também trabalha distribuindo panfletos nas ruas. Em ambos trabalhos Vera fica exposta ao sol para além dos horários indicados pelo Ministério da Saúde, que é antes das 10h e após às 16h.

“Eu saio de manhã e só chego lá para às 15h. E se [as camisinhas] acabar mais cedo, eu venho em casa e pego outra remessa, e aí tem dia que vou levantar, que quase não aguento”, comenta Vera. 

Usar boné, carregar uma toalhinha para secar o rosto, passar protetor solar e beber bastante água é o que Vera faz nos dias quentes em que sai para trabalhar. “Aí eu vou parando nos bares. Eu sou bem tratada, tá? Eu ganho um suco, ganho água”, conta Vera.

Recomendações

Enquanto líder comunitária que tem acesso à realidade de outras pessoas da comunidade, Vera comenta que nem todo mundo que mora nas periferias consegue seguir as recomendações do Ministério da Saúde sobre os cuidados necessários nos dias de extremo calor, como manter hidratação, passar protetor solar, fazer refeições leves, entre outras.

“Nem todo mundo tem orientação”, afirma Vera, e acrescenta que nos territórios em que ela transita, os idosos são os mais afetados pela falta de orientação e de cuidados.

Confira as orientações do Ministério da Saúde para períodos de calor intenso.

A líder comunitária conta que o consumo de alimentos in natura como frutas, verduras e legumes, sempre foi parte da rotina alimentar de sua família. “Eu crio os meus filhos e netos com bastante verdura, pode não ter a carne, mas verdura e legumes não faltam”, conta.

A dinâmica com relação à alimentação é semelhante na casa de Fabiana, que investe no consumo de alimentos saudáveis, como a laranja, para manter a família hidratada. “Bebemos bastante água, bastante suco também que eles gostam, eles têm acesso a algumas frutas”, menciona.

O hábito de usar protetor solar é algo recente para Fabiana, mas o cuidado com as crianças, com relação a isso, é maior. “Assim que pego as crianças na escola já passo protetor”, pontua Fabiana.

Filhos de Fabiana na escola. (foto: arquivo pessoal)
Filhos de Fabiana na escola. (foto: arquivo pessoal)

A irritabilidade dos pequenos, de quatro e cinco anos, nos dias mais quentes, é perceptível, segundo a mãe. “A gente procura oferecer bastante água. [Quando] chega da escola já toma banho”, conta Fabiana. “Eu comprei uma piscina grande, aí a gente monta, enche e ela fica aí uns dois, três dias para poder aliviar [o calor] também”. A piscina é instalada no cômodo de entrada da casa, que também é o ambiente de trabalho da Fabiana.

Moradia

Fabiana concentra seu trabalho como designer de sobrancelhas e as demandas com as crianças em um mesmo espaço, na sua casa, que possui três cômodos. Ela menciona que o espaço é pequeno para que as crianças possam circular e brincar, e que a escola em tempo integral, das 7h às 15h, ajuda nesse sentido. Ao todo, moram quatro pessoas no local.

Fabiana mora com os três filhos em uma casa de três cômodos pequenos, onde também é o seu local de trabalho. (foto: Viviane Lima)

A casa de Fabiana tem poucas e pequenas janelas, o que dificulta a ventilação. A designer de sobrancelhas afirma que isso é comum nas periferias onde as casas são construídas sem orientação com relação à engenharia. “Quando tiver mais condições, eu quero colocar janelas maiores”, conta.

O apartamento em que Vera mora abriga quatro pessoas e é bem movimentado. A líder comunitária tem sete filhos e alguns netos costumam visitá-la e às vezes também dormem por lá. Vera menciona que nos dias de calor extremo, mesmo estando em casa, sente incômodo. “Você fica inquieta, a casa está cheia, é aquele calor. A gente usa muito ventilador, eu coloco aqui na sala e assim a gente vai se virando”, coloca. 

O uso constante do ventilador é algo em comum entre as duas famílias, o que também reflete no gasto com energia elétrica. “O ventilador fica ligado 24 horas, a gente dorme com ventilador ligado, porque se não, parece que não tem ar”, comenta Fabiana. 

Fabiana compartilha que o consumo, a conta de água e energia aumentaram na casa dela. “Há 5 anos, eu gastava em torno de R$ 50 por mês de luz e de água. Hoje em dia eu gasto R$ 150 por mês [em cada conta]”, diz.

Vera aponta que chega a pagar, por mês, uma média de R$ 250, tanto de água, como de energia elétrica. “E olha que eu não tenho muita coisa ligada. [O que] fica ligado é só a geladeira e a minha televisão”.

“Imagina você pagar uma conta de R$ 250 [a] R$ 270. Você já fica [pensando]: ‘poxa vida falta 20’. [Precisa] arrumar para ir lá e pagar”, comenta a líder comunitária sobre o aumento nas contas que interfere diretamente na vida financeira, principalmente na realidade de pessoas como Fabiana e Vera, que são trabalhadoras informais e sustentam sozinhas suas famílias.

Sorriso negro: festival celebra a felicidade como revolução e potência do povo negro

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Com o tema “Felicidade é a nossa revolução”, a 22ª edição do Festival Feira Preta reuniu pessoas de diferentes regiões de São Paulo, do Brasil e até de outros países, no Parque do Ibirapuera. Ao longo dos três dias de programação, o evento exaltou a potência que o sorriso negro carrega.

Adriana Barbosa, idealizadora do Festival Feira Preta.

A programação do Festival evidenciou a prosperidade no trabalho de pessoas negras no entretenimento, na moda, nas tecnologias, nas artes e em outras áreas, e mostrou que os fazeres das populações negras também se fortalecem através do ato de sorrir.

O que faz você sorrir?

Essa foi a pergunta feita para algumas pessoas que passaram pelo festival, e ela trouxe a tona diferentes tipos de felicidades que fazem parte dessa revolução do povo negro.

Josué Matos, 28, é de Salvador, mas mora em São Paulo, no bairro da Bela Vista, há 6 anos.

“A felicidade sou eu mesmo e também ver a evolução da galera preta, isso me faz sorrir bastante. [Eventos como o Festival Feira Preta] ajudam muito, porque a gente vê muita gente feliz e emocionada, por ter outras pessoas pretas também, diversas pessoas em um propósito só. Ver pessoas sorrindo faz outras pessoas sorrirem, é compartilhação de sorriso.”

Luiza Maria Paiva, 75, mora na zona sul de São Paulo, no bairro e distrito de Santo Amaro. 

“A felicidade de estar bem na vida. Eu com 75 anos vivendo o que eu estou vivendo hoje, [e] o que eu estou vendo hoje, é muito bom. Estou vendo muito jovem feliz, vendo a minha raça levantando, tendo mais valor, apesar de ainda ter muito preconceito e racismo, a gente tem que lutar no dia a dia. [A felicidade faz parte dessa luta], cada dia é uma coisa que você conquista.”

Denise Ayres, 41, mora no bairro e distrito Vila Leopoldina, na zona oeste da cidade de São Paulo.

“O que me faz sorrir é poder acordar todo dia e ver o meu filho cada vez mais esperto, cada vez mais inteligente, cada vez mais argumentador, isso me deixa muito feliz.”

Denise conta que seu trabalho também é um motivo de felicidade. “Tenho a sorte de trabalhar só com coisas que eu gosto. As minhas profissões, porque eu não tenho só uma, elas me fazem feliz. A Fulelê, que está aqui na Feira Preta, me faz muito feliz, contar história para as crianças, poder apresentar para elas diversas literaturas que fazem parte da cultura afro-brasileira também tem me deixado muito feliz.”

Toalá Antônia Marques, 33, mora no bairro de Itaquera, que pertence ao distrito de Itaquera, na zona leste de São Paulo.

“O que me faz sorrir é o senso de justiça, é o meu filho, o meu progresso, o progresso da minha família, é eu estar perto de pessoas que eu amo. Eu sou mãe, então o que me faz sorrir é o Antônio. Porque o Antônio é a personificação do futuro que vai dar certo. Quando eu olho para ele e vejo ele vendo a minha história como referência, sei que o futuro [dele] vai ser melhor do que vivi até aqui.”

Cinthia Gomes, 44, mora no bairro Bela Vista, na cidade de Jundiaí, em São Paulo. 

“Meu sorriso tem diversas fontes e expectativas. O que me faz sorrir hoje é o meu filho, por ele ser um deficiente intelectual e ele traz diversos sorrisos. Todo dia eu venço uma barreira, esse é o motivo do meu sorriso, cada vez que eu venço uma barreira meu sorriso abre, e eu sou uma pessoa extremamente sorridente.”

Haron Isaac Gomes, 10, filho da Cinthia Gomes, mora no bairro Bela Vista, na cidade de Jundiaí, em São Paulo. 

“Meus animais, minha família e todos os dias que eu consigo acordar. Eu sou de Jundiaí e também sou autista.”

Júnior Matias, 30, mora no bairro Aricanduva, pertencente ao mesmo distrito, na zona leste de São Paulo.

“Muitas coisas [me fazem sorrir], a liberdade, minha família, música principalmente. Eu trabalho com música nas redes sociais. Então a possibilidade de participar de festivais que me possibilita conhecer novos artistas, principalmente artistas da comunidade negra, é muito importante e também me faz sorrir bastante.”