Tomada 1 – O conflito
Era para ser só mais uma celebração do lançamento de um trabalho audiovisual feito com muita luta na periferia do extremo leste de São Paulo, festa de favela com exibição do filme, comes e bebes e baile funk com MCs convidados para agitar a rapa, porém a polícia militar do governador Tarcísio e sua tropa da moralidade tinha outros planos.
No programa Brasil Urgente o enfadonho Datena bradava a manchete: “Polícia militar barra baile funk… onde o crime organizado vende drogas e álcool para menores, etc”, passa a bola para o tenente Reis que do local do evento complementa: “Hoje teria programado para região de Cidade Tiradentes e Guaianases um evento cultural para ‘supostamente’ realizar o lançamento de um filme chamado Fluxo… eles maquiam a atividade como evento cultural, mas nós sabemos que nesse tipo de festa existe venda de drogas, armas e veículos roubados, por isso interrompemos antes de começar”.
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O discurso midiático foi esse, mas a PM informou ainda que eles também não tinham autorização da subprefeitura, o que de fato era real, porém, o que não foi informado é que o local onde o evento aconteceria já é um tradicional ponto de festas de rua e onde acontece também semanalmente o conhecido “Baile do Céu”, que nunca havia sido interrompido pela polícia ou pela fiscalização da prefeitura à cerca de autorização ou algo do tipo.
A pergunta que fica é: por que então neste dia especialmente a PM decidiu intervir?
Tomada 2 – O protagonista
Para entender melhor essa questão é importante ouvir o ocorrido pela voz do próprio diretor do filme e organizador do evento Filipe Barbosa, e entender também do que trata a narrativa do seu trabalho audiovisual e dos demais filmes que seriam exibidos no dia.
Filipe Barbosa tem 28 anos, é cria da Cidade Tiradentes e um amante e pesquisador da cultura funk, muito reconhecido na sua quebrada, atualmente estuda na UFRJ Comunicação Social e Rádio/Tv, onde também desenvolve uma iniciação científica.
Aliás, a ideia de realizar o filme Fluxo saiu destes lugares onde Filipe transita sempre refletindo e celebrando suas raízes como homem negro e periférico da cena funk paulistana. Como ele já produzia uma série de imagens nos bailes onde curtia com seu bonde, a inquietação de produzir algo que pudesse potencializar a memória da cultura local e fortalecer o legado do movimento era algo que sempre o intrigou.
Foi em um laboratório de roteiro de ficção da faculdade que o instigou a produzir um curta metragem, sendo um romance que misturando elementos documentais, também conclamasse o acervo que Filipe já tinha em sua bagagem. Depois de muitos ‘nãos’ em editais e linhas de financiamento, ele decidiu que faria o filme mesmo sem recurso.
“Inicialmente pensamos em fazer só com o dinheiro do nosso bolso mesmo e gravar com celular, mas durante o processo do filme foram surgindo parceiros para ajudar, a gente conseguiu apoio de uma locadora de equipamentos e a coisa foi rolando.” (Filipe Barbosa)
Tomada 3 – Fluxo, da quebrada para o mundo
Como é muito comum na lógica do cinema de quebrada, uma rede de solidariedade foi se formando em torno do filme de Filipe e ele não só conseguiu gravar e contar com grandes atores, como também angariou dinheiro com uma vaquinha que permitiu tratar som, imagem e finalizar o trabalho com qualidade de cinema, o que permitia uma distribuição a nível internacional do trabalho, que teve sua estréia no festival Lift-Off by Global Network em Londres – UK.
No Brasil, em São Paulo, o filme teve sua pré-estréia no aniversário de São Paulo (25 de janeiro), em parceria com a Spcine em uma mega sessão no Vale do Anhangabaú com toda equipe do filme e mais de 1000 espectadores.
Nesse mesmo período o filme também ganhou a votação do júri popular no festival Tela na Quebrada, recebendo inclusive uma premiação em dinheiro. E foi essa grana que facilitou a realização do evento, além da habitual coletividade e parceria de artistas do funk e demais moradores da região, afinal faltava o filme ser exibido no território que foi filmado, estreitando o diálogo com a quebrada onde o projeto nasceu.
Filipe conta que planejou um evento muito especial, onde além de seu curta seriam exibidos outros dois filmes, um documentário histórico chamado “Funk na CT” sobre os pioneiros do estilo ostentação na Cidade Tiradentes e uma outra ficção “Neurótico e consciente” sobre a cena funk na baixada santista, depois da sessão haveria debate com uma das lideranças do movimento de mães de Paraisópolis, Maria Cristina Quirino, que tem a história de seu filho ligada umbilicalmente com o filme Fluxo, que em sua camada documental mostra imagens do massacre perpetrado pela polícia em Paraisópolis.
Tomada 4 – Plot Twist
Esse é o ponto de virada naquele discurso inicial da PM sobre a autorização.
O evento vinha sendo planejado desde janeiro, logo após o sucesso da exibição no Anhangabaú a própria subprefeitura da CT procurou Filipe, mas a burocracia e a falta de diálogo não facilitaram a concretização da parceria no aniversário de 40 anos do bairro.
No dia anterior ao evento, o palco de madeira que existia foi removido por fiscais da subprefeitura, que alegaram risco por conta do evento que aconteceria no dia seguinte, naquele mesmo dia o time de produção se articulou para que o baile que já acontecia pudesse acontecer.
E naquela sexta o baile aconteceu, com a finalização do evento, caminhões começaram a chegar para a montagem do evento “Fluxo das relíquias”, toda a pré – produção foi realizada sem nenhuma interferência, mas pouco tempo depois dos primeiros preparativos chegam os primeiros carros da PM, e ao longo do dia foram chegando mais e mais, e a mídia e os fiscais da subprefeitura.
Ou seja, nunca foi questão de autorização alguma, mas sim o tema e a divulgação de dados alarmantes do Massacre de Paraisópolis, em que os 31 policiais que foram julgados permanecem na rua, agindo da mesma forma arbitrária em seus incontáveis casos isolados, escolhendo sempre os bairros mais distantes do centro e as pessoas de pele mais escuras para cometer abusos sobre o manto da lei, enquanto criminalizam a arte e alegria dos moradores de favela.
Filipe Barbosa é parte de uma nova geração do cinema negro e periférico mais munida de informação e mais preparada para enfrentar esses desafios tão antigos, quanto perversos, o que une seu cinema as diversas experiências históricas do audiovisual de quebrada é o comprometimento com sua cultura e seu bairro.
Filipe diz que realizará novamente o evento, esses percalços não impedirão a carreira do filme e os importantes debates que ele desperta.
Quantos antes de nós lutaram e sofreram para que tivéssemos câmeras e outras ferramentas que permitem que contemos nossa própria história, por nossa própria perspectiva?
No início do filme Fluxo a voz ancestral de Beatriz Nascimento responde: “É preciso imagem para recuperar a identidade”, ou seja, outras imagens e culturas precisam coexistir no espaço público, nas telas e na vida de modo geral, a luta é para que nossa arte e nossas identidades não sejam o alvo preferido da violência de estado, ou tratada como algo menor, e sim, respeitada e valorizada em sua enorme potência.
Fluxo – O Filme | Trailer Oficial
Daniel Fagundes é cineasta, educomunicador e poeta. Coordena a Escola de cinema periférico IbiraLab, é integrante do Coletivo Sarau da Roça e sócio fundador da Caramuja – Pesquisa, Memória e Audiovisual.