O calor extremo, notável principalmente em territórios vulnerabilizados, como as periferias, é evidenciado no relatório publicado pela Organização Meteorológica Mundial – a agência climática da ONU, ao apontar que 2023 foi o ano mais quente na Terra desde que se tem registro. Constatação vivenciada por diversas famílias que moram nas periferias, e que, em 2024, seguem sendo afetadas pelo calor intenso e pelas demais consequências da crise climática.
“Tem sido cada dia mais penoso. Nesse calor excessivo, eu não funciono muito bem, sinto muito cansaço. Limito o que eu tenho que fazer [na rua], [mas] eu tenho que sair para buscar as crianças [na escola], às 15h, que é um horário que está bem quente. Eu sempre achei horrível andar de guarda-chuva no calor, mas confesso que já faz parte do meu dia a dia.”
Fabiana Calixto, 42, moradora do bairro Vila Flávia, no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo.
Além do cansaço, Fabiana, que é designer de sobrancelhas, menciona que o calor extremo também afeta a saúde de uma de suas filhas que tem bronquite. “O calor deixa ela bastante atacada, com a respiração lenta”, conta. Para amenizar a situação, Fabiana passa pano na casa durante o dia e antes de dormir para deixar o ambiente mais fresco e também para diminuir a quantidade de poeira que aumenta nos dias quentes.
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O mal-estar em dias de alta temperatura também é uma queixa da Vera Lúcia dos Santos, 53, que mora na favela do Sapé, no distrito do Rio Pequeno, localizado na zona oeste de São Paulo. “Eu tenho muito calor devido a minha menopausa também. É um calor insuportável, toda hora tem que tomar banho”, compartilha.
Vera teve um infarto aos 38 anos e um AVC (Acidente Vascular Cerebral) em 2021, desde então o calor afeta diretamente a sua saúde. “Sinto um mal-estar, tontura, às vezes eu tenho umas pontadas no peito, mas é da rotina mesmo, né? Eu tomo remédio para pressão também. Estou me cuidando, vou fazendo o que eu posso, mas é difícil”, pontua.
A moradora do Sapé é líder comunitária e geralmente trabalha como cuidadora de idosos, mas está desempregada e para garantir a fonte de renda da família, no momento, atua no programa de distribuição de camisinhas, pelo SAE (Serviço de Assistência Especializada), do Butantã. Em ano eleitoral, ela também trabalha distribuindo panfletos nas ruas. Em ambos trabalhos Vera fica exposta ao sol para além dos horários indicados pelo Ministério da Saúde, que é antes das 10h e após às 16h.
“Eu saio de manhã e só chego lá para às 15h. E se [as camisinhas] acabar mais cedo, eu venho em casa e pego outra remessa, e aí tem dia que vou levantar, que quase não aguento”, comenta Vera.
Usar boné, carregar uma toalhinha para secar o rosto, passar protetor solar e beber bastante água é o que Vera faz nos dias quentes em que sai para trabalhar. “Aí eu vou parando nos bares. Eu sou bem tratada, tá? Eu ganho um suco, ganho água”, conta Vera.
Recomendações
Enquanto líder comunitária que tem acesso à realidade de outras pessoas da comunidade, Vera comenta que nem todo mundo que mora nas periferias consegue seguir as recomendações do Ministério da Saúde sobre os cuidados necessários nos dias de extremo calor, como manter hidratação, passar protetor solar, fazer refeições leves, entre outras.
“Nem todo mundo tem orientação”, afirma Vera, e acrescenta que nos territórios em que ela transita, os idosos são os mais afetados pela falta de orientação e de cuidados.
Confira as orientações do Ministério da Saúde para períodos de calor intenso.
A líder comunitária conta que o consumo de alimentos in natura como frutas, verduras e legumes, sempre foi parte da rotina alimentar de sua família. “Eu crio os meus filhos e netos com bastante verdura, pode não ter a carne, mas verdura e legumes não faltam”, conta.
A dinâmica com relação à alimentação é semelhante na casa de Fabiana, que investe no consumo de alimentos saudáveis, como a laranja, para manter a família hidratada. “Bebemos bastante água, bastante suco também que eles gostam, eles têm acesso a algumas frutas”, menciona.
O hábito de usar protetor solar é algo recente para Fabiana, mas o cuidado com as crianças, com relação a isso, é maior. “Assim que pego as crianças na escola já passo protetor”, pontua Fabiana.
A irritabilidade dos pequenos, de quatro e cinco anos, nos dias mais quentes, é perceptível, segundo a mãe. “A gente procura oferecer bastante água. [Quando] chega da escola já toma banho”, conta Fabiana. “Eu comprei uma piscina grande, aí a gente monta, enche e ela fica aí uns dois, três dias para poder aliviar [o calor] também”. A piscina é instalada no cômodo de entrada da casa, que também é o ambiente de trabalho da Fabiana.
Moradia
Fabiana concentra seu trabalho como designer de sobrancelhas e as demandas com as crianças em um mesmo espaço, na sua casa, que possui três cômodos. Ela menciona que o espaço é pequeno para que as crianças possam circular e brincar, e que a escola em tempo integral, das 7h às 15h, ajuda nesse sentido. Ao todo, moram quatro pessoas no local.
A casa de Fabiana tem poucas e pequenas janelas, o que dificulta a ventilação. A designer de sobrancelhas afirma que isso é comum nas periferias onde as casas são construídas sem orientação com relação à engenharia. “Quando tiver mais condições, eu quero colocar janelas maiores”, conta.
O apartamento em que Vera mora abriga quatro pessoas e é bem movimentado. A líder comunitária tem sete filhos e alguns netos costumam visitá-la e às vezes também dormem por lá. Vera menciona que nos dias de calor extremo, mesmo estando em casa, sente incômodo. “Você fica inquieta, a casa está cheia, é aquele calor. A gente usa muito ventilador, eu coloco aqui na sala e assim a gente vai se virando”, coloca.
O uso constante do ventilador é algo em comum entre as duas famílias, o que também reflete no gasto com energia elétrica. “O ventilador fica ligado 24 horas, a gente dorme com ventilador ligado, porque se não, parece que não tem ar”, comenta Fabiana.
Fabiana compartilha que o consumo, a conta de água e energia aumentaram na casa dela. “Há 5 anos, eu gastava em torno de R$ 50 por mês de luz e de água. Hoje em dia eu gasto R$ 150 por mês [em cada conta]”, diz.
Vera aponta que chega a pagar, por mês, uma média de R$ 250, tanto de água, como de energia elétrica. “E olha que eu não tenho muita coisa ligada. [O que] fica ligado é só a geladeira e a minha televisão”.
“Imagina você pagar uma conta de R$ 250 [a] R$ 270. Você já fica [pensando]: ‘poxa vida falta 20’. [Precisa] arrumar para ir lá e pagar”, comenta a líder comunitária sobre o aumento nas contas que interfere diretamente na vida financeira, principalmente na realidade de pessoas como Fabiana e Vera, que são trabalhadoras informais e sustentam sozinhas suas famílias.