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O caipira também é periférico?

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Qualquer pessoa de quebrada em algum momento da vida já ouviu da família “deixa de ser caipira” quando a timidez era grande em ambientes desconhecidos. Esse é só um dos fragmentos de uma cultura que sobrevive estilhaçada entre becos e vielas, interiores e grandes centros, sustentando-se no meio urbano, na maioria dos casos, nos pequenos gestos, por isso é preciso ver para além dos preconceitos e das estigmas sociais para reconhecer essa cultura em nosso cotidiano. 

Preâmbulo histórico 

Antes de tudo se faz necessário dar alguns dados históricos importantes sobre a realidade brasileira para que possamos ter dimensão de como esse assunto é parte fundante da formação de nossa identidade. 

A primeira e talvez a mais importante é que o Brasil foi um país de maioria rural até meados de 1950, ou seja, nos transformamos numa nação majoritariamente urbana apenas 62 anos depois que formalizamos a “abolição da escravatura”. 

Outra informação importante é que até o início do século 20 não tínhamos natal como hoje, e nossa maior festa popular era a Folia de Reis, que na maioria dos casos começava no dia 25 de dezembro e se estendia até o dia 06 de janeiro, com o ritual da cantoria de casa em casa e a bênção dos 3 reis magos, neste dia uma criança da cidade era escolhida para libertar um preso, era uma celebração cristã e também pagã. 

A história do Papai Noel vermelho e da árvore nevada veio do norte, tradição trazida pelos filhos do baronato tupiniquim que iam estudar na europa e achavam chique manter essa performance no calor tropical, mesmo não fazendo sentido algum. A publicidade também contribuiu com a mudança a nível nacional, devido a uma campanha em larga escala da Coca-Cola em meados de 1920.  


Entre os valores culturais importados pelos jovens ricos da elite brasileira, alguns outros bens de consumo e bugigangas também vinham na mala, a primeira câmera filmadora e os primeiros aparelhos de projeção estão entre estes objetos, sendo o jovem ítalo-brasileiro Afonso Segretto o primeiro a produzir imagens da baía de Guanabara em 1898, assim como realizar as primeiras sessões de cinema na sala Paris no Rio, que passou a ser um ponto de encontro da sociedade carioca.

Afonso Segreto

Mas do que os primeiros filmes tratavam? Quem eram estes primeiros cineastas? 

Nosso cinema nasce caipira

Entre os pioneiros do cinema brasileiro destacam-se dois caipiras, Humberto Mauro, que realizou o clássico “Ganga Bruta” e o folclorista Cornélio Pires, que em 1924 fez o filme “Brasil Pitoresco”. Uma viagem sobre o Brasil rural e os hábitos das pessoas pobres dos diferentes biomas do país. 

De Tietê – SP para Pernambuco, passando por várias paisagens com as lentes voltadas para as tradições populares do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Alagoas. 

Assim como a escrita de Cornélio, suas imagens são carregadas de paixão e respeito pelas pessoas do campo e suas artesanias, sua cultura e vida social. Este mesmo pesquisador foi responsável pela gravação fonográfica das primeiras duplas caipiras, sendo o revelador de uma tradição até então pouco divulgada pela indústria musical da época. 

O mineiro Humberto Mauro também fez registros importantes da cultura popular, revelando cantigas e folguedos caipiras, assim como os hábitos das pessoas do interior de seu estado. 

Mário Peixoto é outro importante nome que revelou em seu único filme a paisagem caipira/caiçara. “Limite” de 1931 é um romance experimental ambientado no litoral de Mangaratiba-RJ, provocando reflexões sobre a passagem do tempo e a condição humana. 

Não podemos esquecer também de Ozualdo Candeias, um caminhoneiro que adorava andar a cavalo e fazer filmes, dentre as várias pornochanchadas que rodou na boca do lixo, fez o celebre “A Margem”, e também em 1986, o clássico “As belas da Billings”, gravado nas margens da represa na região do Grajaú, periferia da zona sul paulistana.

Ozualdo Candeias

Tá, mas afinal quem são esses tais caipiras e o que estes sujeitos de São Paulo, Minas e Rio tem a ver com a periferia e os periféricos? 

Agroboy, bandeirante, trabalhador do campo…

Talvez os dois maiores símbolos da identidade nacional sejam o malandro do samba e o caipira dos interiores, não à toa duas simbologias advindas das culturas de roça, em alguns lugares ligadas umbilicalmente, vide o samba de viola do recôncavo baiano, ou o cururu paulista, ambos parentes do samba de partido alto. 

O cinema, os quadrinhos, a literatura e as artes plásticas trouxeram inúmeras representações de grande abrangência destes personagens, todas tem muito sucesso até hoje, e carregam de forma mais ou menos estereotipadas, vários elementos da identidade nacional. 

Você deve lembrar do Zé Carioca, do Chico Bento, da Carmen Miranda, do tio Barnabé, do Macunaíma, do Jeca Tatu, da Iracema, entre outros. 

A música sempre foi um marcador fundamental da nossa formação como povo, o pesquisador Ivan Vilela, relatou em seu livro “Cantando a própria história: música caipira e enraizamento” que um processo importante da catequese dos jesuítas para com as populações indígenas foi a música, em especial a música de viola, sejam as violas portuguesas ou as violas de buriti dos nativos, as canções desse projeto colonial foram fundamentais para a aculturação produzida nesse período. 

No cinema nacional alguns filmes contaram essa história, “Desmundo” de Alain Fresnot é um deles e fala do processo das bandeiras e das primeiras cidades coloniais no Brasil. 

O bandeirante é o personagem central dessa narrativa, a escravização indígena e os hábitos culturais da urbe nascente. Outro filme importante é o “Brava gente brasileira”, de Lúcia Murat, que entre outras coisas mostra a complexidade do personagem bandeirante, que mesmo mestiço de brancos e indígenas era também quem favorecia a escravização e o estupro colonial. 

Não há dúvida que o caipira se transfigurou com o tempo e sofreu mudanças da leitura redutora e preconceituosa desenvolvida por Monteiro Lobato. 

Cornélio Pires, já citado aqui, era uma das pessoas com um olhar mais respeitoso para as tradições populares, em especial a cultura caipira. 

Vendo toda a produção de Mazzaropi e alguns filmes da Vera Cruz sobre as multifacetadas formas de ser caipira, era possível ver nas entrelinhas as presenças de elementos da vida rural nas periferias do capital, lembro aqui do “Corinthiano”, e do “Jeca Tatu”, filmes de Amácio Mazzaropi, que revelam já na segunda metade do século 20 a migração dos interiores para a “cidade grande”. 

Entre erros e acertos, Mazzaropi reformulou com competência os textos racistas e xenófobos de Lobato, acrescentando seu olhar e sua capacidade dramática para dar humanidade às gentes dos interiores.

Caipiras de quebrada

Eu morei em diferentes periferias da zona sul de São Paulo, Jd. Herculano, Piraporinha, Rio Bonito, Jd Primavera, etc. Meu pai em nenhum destes lugares, por mais dura que fosse a paisagem, nunca abriu mão de um fogão de lenha, talvez você lendo esse texto também saiba dizer outra miudeza sobrevivente na sua família das reminiscências da tradição. Uma pequena horta de fundo de quintal, uma paixão por um radinho de pilha, o amor cotidiano pelos cachorros e demais criações, a paixão pela viola, sabedoria na construção doméstica, etc.

Antônio Cândido que era um grande pesquisador da cultura caipira disse que com o roubo de terras no interior, a especulação imobiliária e a precariedade do emprego, muitos caipiras foram para as cidades, e com seu perfil, seu grupo étnico e seus hábitos culturais o lugar onde puderam estabelecer pouso foram as periferias.

Você já encontrou algum deles com certeza, tocando violão ou sanfona num buteco do bairro, num mutirão de casas no fundão, ou passando de charrete ou cavalo na rua onde mora. Já se perguntou quem cria as galinhas que botam os ovos do carro do ovo? 

Enfim, a lista é longa, assim como os estereótipos, amamos as festas juninas, mas não nos questionamos sobre a pintura do dente, a calça menor que a altura do corpo, os remendos de costura nas roupas, todas formas pejorativas advindas do peso da pobreza e das limitações provocadas pela memória da colonialidade. 

Este mesmo peso que apagou também a questão racial levantada em inúmeras músicas das duplas pretas e pardas desde os anos 50, já ouviu “Preto Velho” de Tião Carreiro? Ouso dizer que foi o Negro Drama da época. 

Falei tudo isso pra te dizer que tem um cinema caipira de quebrada sendo feito bem perto de você, mas muitas vezes você não chega a ficar sabendo. 

Destaco aqui o curta “Ainda restarão robôs nas ruas do interior profundo”, de Guilherme Ribeiro Xavier, filmaço gravado junto dos muleque zika de roça da cidade de Assis-SP, vencedor do grande prêmio do Júri de 2022 no Festival Internacional de Curtas da Kinoforum.

Neste mesmo ano fiz um curta doc chamado “Sobre Pardinhos e Afrocaipiras” lançado no festival In-Edit Brasil, parte desta minha pesquisa de muitos anos sobre o tema. 

Mote de uma importante leitura caipira do nosso cinema de quebrada, parte de um entendimento de quem somos que não aceita simplificações e cobra uma vida que nos reconecte com nossas raízes, sem nos congelar no tempo, vide Matuto S/A e Gabeu, expressões da cultura caipira no Rap e no sertanejo (ou queernejo como diz o mesmo), inovando com os pés na ancestralidade, pois ainda que o cimento tenha coberto quase tudo nas periferias, temos ainda o coração, essa terra fértil sedenta por novas sementes. 

Acredite!

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

PEC 45: Cientista Social analisa nova proposta na política de drogas e impacto nas periferias

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Assista e entrevista completa com a cientista social, Nathália Oliveira.

PEC 45: Nesta terça-feira, 25 de junho, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira determinou a constituição de uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de drogas. O motivo de acelerar o processo surge em resposta à decisão do STF, que se mostrou favorável à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.

Nathália Oliveira, Cientista Social da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, ressalta a importância da decisão do STF, tomada nesta última terça-feira, 25 de junho, sendo aguardada há quase 10 anos para avançar.

“Os ministros reconheceram publicamente o racismo implícito na escolha da proibição e convocaram os demais poderes para novas interpretações sobre o tema. Esse resultado acontece no mesmo período em que enfrentamos um legislativo ultraconservador, que deve reagir a essa decisão através do endurecimento das leis de drogas, como é o caso da PEC 45. Por outro lado, a interpretação da Suprema Corte sobre esse assunto pode mobilizar setores que estavam em cima do muro sobre a pauta. Sabemos que esse primeiro passo terá reação no Congresso Nacional, aumentando o risco da aprovação da PEC 45. Sigamos atentas e mobilizadas para garantir essa vitória também nas ruas”.

16º ano da Marcha da Maconha na Avenida Paulista. Foto: Pedro Oliveira / Junho de 2024.

Pessoas negras são maioria entre presos por tráfico drogas. 86% dos réus processados é do sexo masculino, 72% tem até 30 anos, 67% possui baixa escolaridade e 68% são negros. É o que revelou uma pesquisa realizada em outubro de 2023, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.
Esses números evidenciam o impacto desproporcional da política de drogas sobre a população negra e periférica. Em entrevista ao programa do Desenrola Aí, a cientista social também destaca o impacto da Guerra às Drogas e da nova PEC 45 nos territórios periféricos.

“O combate ao tráfico de drogas tem cor e CEP. Basta olharmos o sistema carcerário para perceber que mais de 60% das pessoas presas são pobres, negras, de baixa escolaridade. Essas pessoas respondem com penas de privação de liberdade, muitas vezes altíssimas, desproporcional ao dano causado na sociedade”,

afirma Oliveira.

Impacto da PEC 45/2023: endurecimento das leis de drogas e repressão nas periferias

No Brasil, a Guerra às Drogas resultou em extermínio e encarceramento em massa da população negra, especialmente homens jovens e periféricos, colocando o país na terceira posição mundial em população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

16º ano da Marcha da Maconha na Avenida Paulista. Foto: Pedro Oliveira / Junho de 2024.

Segundo Nathalia, a inclusão da criminalização na Constituição para a posse e o porte de qualquer quantidade de droga, pode abrir precedentes para endurecer ainda mais as leis relacionadas às drogas, aumentando a repressão nas periferias e favelas, agravando o aumento do encarceramento em massa no país. Por isso, é de extrema importância o reconhecimento dos ministros sobre o racismo implícito na escolha da proibição do porte de maconha para uso pessoal.

Aprovado em abril deste ano no Senado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de droga, cita a necessidade de diferenciar traficantes de usuários. No entanto, a PEC não especifica como essa distinção será feita na prática. A proposta foi enviada e aprovada em 12 de junho, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e será analisada em comissão especial. Se aprovada, segue para o plenário.

Atualmente, a Lei de Drogas define que a distinção entre usuário e traficante é determinada pelo juiz, com base na quantidade de droga apreendida, sem especificar um limite exato. O juiz também considera o local, as condições da ação e as circunstâncias sociais envolvidas.

Sobre o Desenrola Aí

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

Para onde vai o lixo?

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Salve, salve galera, chegando hoje pra trazer um assunto mega importante, principalmente para nossa quebrada. Sabemos da importância de não descartar de forma irregular os lixos que produzimos e/ou entulhos ou madeiras de móveis que não usamos mais. Você sabe para onde vai todo esse lixo? 

A maioria do orgânico e materiais são despejados em uma área grande a céu aberto (mais conhecidos como lixões), localizados geralmente em regiões periféricas de cidades. Tem também os aterros sanitários. Nestes locais, o solo é preparado para receber o lixo orgânico que é colocado em camadas intercaladas com terra, evitando assim o mau cheiro, contaminação e a proliferação de insetos e ratos.

Então além dessas questões sabemos muito bem o que acontece na quebrada quando vem a chuva, juntando com esse descarte irregular de lixo.

Mas se pensarmos bem, a falta de saneamento básico e a dificuldade em lugares para acesso de coleta, dificulta mais ainda a vida da galera da quebrada, tendo lugares onde o caminhão de coleta não passa. 

As consequências com isso são enormes e a comunidade sofre quando vem as chuvas somadas com esses fatores e acaba que muitas casas são invadidas por água, acabando com todo bem material que as famílias lutaram uma vida para conquistar. 

Moradores de viela muitas vezes tem que se encaminhar até um certo ponto específico para colocar o lixo, geralmente em caçambas. Mas você já pensou quando faz uma obra, onde por aquele entulho? 

Muitos carros “cata bagulho” passam mais em bairros nobres, enquanto na quebrada que é onde precisa-se tanto, eles não passam. Faltando assim muito suporte com esse tipo de descarte dentre tantos outros. 

Podemos nos conscientizar e melhorar nossos descartes, nos empenhar e focar em fazer a separação para reciclagem, podemos fazer nossa parte. Mas sabemos muito bem da falta de suporte e atenção dos governantes para esse aspecto nos bairros da periferia. 

Como podemos ver nos últimos acontecimentos as catástrofes sofridas, onde o povo de baixa renda que é o mais afetado, enquanto os governantes que poderiam tomar decisões assertivas para evitar isso se isentam e se abstêm ao longo de anos esperando o pior e sendo conivente com que acontece ao povo.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Qual a relação entre as escolas cívico-militares e o desmonte da educação pública? #28

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Nesse episódio falamos sobre a ampliação do projeto de escolas cívico-militares e de que forma a militarização das escolas se apresenta como um dos caminhos de ataque à educação pública. 

Para desenrolar esse papo, conversamos com a Nycolle Fernandes, estudante e integrante do movimento Afronte Secundaristas / Afronte SP, e com a Catarina Santos, especialista em Gestão Escolar, com mestrado na área de Educação e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre a Militarização da Educação no Brasil. 

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube.

Coletivo incentiva uso da bicicleta como opção de mobilidade e lazer nas periferias

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Segundo dados da pesquisa Viver em São Paulo: Mobilidade, realizada pela Rede Nossa São Paulo junto com o Instituto Cidades Sustentáveis e o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), em 2023, o tempo médio gasto diariamente para fazer todos os deslocamentos na cidade, através do transporte público, era de 2h26.

Esse é um dado vivenciado por muitas pessoas, principalmente em territórios periféricos, como é o caso da Josivete Pereira, conhecida como Jô, que passou a considerar o uso da bicicleta para se locomover, a princípio por uma questão financeira, mas também pelo tempo de locomoção na cidade.

Jô Pereira, moradora do Rio Pequeno, é presidenta da União de Ciclistas do Brasil e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada. (foto: Yuri Vasquez)

“A gente precisa ter tempo pra gente, só [temos] tempo para o trabalho. A gente se desloca, trabalha e volta. Não pode ser só isso”, coloca Jô Pereira, que é educadora física, moradora do bairro Jardim Ester, no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, presidenta da União de Ciclistas do Brasil, atuante na Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, e uma das fundadoras do coletivo Pedal na Quebrada. 

A ciclista aponta que qualidade de vida e lazer se relacionam com as questões de mobilidade urbana. Ela coloca que o uso da bicicleta nas periferias não se dá apenas no aspecto da obrigação ou escassez, que pode ser usada para brincar e em exercícios físicos.

“A mobilidade ativa, tanto a pé quanto de bicicleta, e o transporte público dependendo dos horários, são maneiras com as quais a gente pode estar somando ganhos nessa mobilidade. Isso é importante para repensar as cidades”, diz Jô. 

Pedal na Quebrada

O Pedal na Quebrada é uma iniciativa criada em 2018, pela Jô Pereira, junto da Jezz Rodrigues e Angela Maris, que moram em Itaquera, e pela Tati Souza, que é de Guaianazes, ambos territórios localizados na zona leste de São Paulo. 

Coletivo incentiva uso da bicicleta como opção de mobilidade e lazer nas periferias
Angela Maris, Jô Pereira, Tati Souza e Jezz Rodrigues formam o coletivo Pedal na Quebrada. (foto: arquivo pessoal).

Formado por três educadoras físicas e uma educadora infantil, as ações do coletivo circulam por diferentes regiões. A principal atividade tem sido retomar as reais histórias dos territórios, a partir do conhecimento de quem veio antes e de quem o habita no momento, isso se dá através da poesia e do ciclismo na atividade que Jô se refere como Pedalada Política, proposta pelo coletivo. Ela explica que o objetivo é “falar da nossa historicidade, dos corpos negros e indígenas na cidade, só que no olhar do pedal”.

“Não é um passeio ciclístico, é uma pedalada política, artística e principalmente afetiva, porque é para a gente se colocar na história e se colocar no presente”. A ciclista conta que essas pedaladas são realizadas com alguém do território, e previamente é feito um mapeamento do percurso que tem entre 10 e 20 km. 

Pedalada noturna no município de Mogi das Cruzes, em São Paulo. (foto: Jezz Rodrigues)
Pedal no distrito de Belém, com o projeto ‘Poesia urbana sobre rodas’. (foto: Yuri Vasquez)

O coletivo também promove oficinas de mecânica e de pedal, que além do aprendizado prático estimulam o desenvolvimento da autonomia, da construção coletiva e provocam questões de identidade e subjetividade das pessoas que participam.

Como exemplo, Jô cita um grupo de pedal formado por incentivo das ações do coletivo, após uma oficina que realizaram na Casa Anastácia, um Centro de Defesa e Convivência da Mulher que atende mulheres vítimas de violência doméstica. 

Participar de discussões acadêmicas é mais uma das movimentações da iniciativa. “Entrar dentro das estruturas de educação para decolonizar esse assunto [da mobilidade urbana], porque ele é bem colonizado”. Classe, raça e gênero são temas presentes quando se trata da viabilidade do uso de bicicletas e o Pedal na Quebrada também desenvolve suas atividades a partir dessas abordagens ao abrir espaço para rodas de conversas antes das oficinas práticas.

Políticas públicas

A regulamentação do uso das bicicletas e dos demais veículos, como bicicletas elétricas, ciclomotores, entre outros, para que eles utilizem as vias ao invés das calçadas, por exemplo, é apontada por Jô como uma forma para evitar acidentes.

“A gente está lutando por mais espaço dentro das vias, da ‘carrocracia’ e para isso a gente tem que ganhar mais espaço também para o pedestre”.

Jô Pereira, Presidenta da União de Ciclistas do Brasil, integrante da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada.

Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, a bicicleta é considerada um veículo de propulsão humana, e por isso pode ser usada na via, tendo direitos e deveres resguardados pela lei.

Jô afirma que a diminuição da velocidade dos veículos motorizados é uma das providências a serem tomadas para viabilizar não só a locomoção com bicicleta nas cidades, mas para diminuir os sinistros com veículos de modo geral. Ampliar a malha cicloviária na cidade, tendo como foco as periferias, também é uma das prioridades reivindicadas.

“Pensar a cidade e as políticas públicas também nessa visibilidade de como respeitar a pluralidade das pessoas estarem nos mesmos espaços com seus direitos garantidos. [Precisamos] de olhares [na] construção política para periferias e falar: ‘Opa, precisamos aumentar a malha cicloviária nas periferias’. Tem aumentado? Tem. Com tanta pressão tem funcionado, mas ainda está muito lento”, coloca a cofundadora do Pedal na Quebrada. 

Vivência Bike Trial, projeto do Dia do Desafio pelo Sesc 14 Bis. (foto: arquivo pessoal).

As necessidades para viabilizar a locomoção com bicicleta nas periferias ainda são muitas, e Jô coloca que a organização em coletivos para elaborar projetos políticos tem sido a estratégia adotada para alcançar melhorias. 

“Quem mais pedala é a periferia, isso é muito bom e positivo, só que a gente precisa de segurança para todo mundo [com] qualidade, não é só pintar [uma faixa]”, compartilha Jô, que também afirma sobre a facilidade do uso de bicicletas em bairros centralizados ocorrer por conta do investimento destinado para esses locais.

A educadora coloca que as discussões sobre políticas públicas de mobilidade urbana precisam acontecer também nas periferias para que moradores desses territórios possam ter a possibilidade de participar.

“[Precisamos de] mais de nós falando, não pode ter tão poucas representações assim, porque somos muitos, tem que ampliar mais essa discussão, porque não é uma discussão só da bicicleta, é uma discussão da cidade”, menciona Jô, que ressalta sobre o voto nas eleições interferir diretamente nesse planejamento urbano.

Será que sabemos o quê a juventude quer? 

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Bom, não é de hoje que o tema juventude acumula local de pauta em diversos grupos, instituições ou em falas governamentais, porém é perigoso o movimento de definição sobre o que as juventudes esperam sem um devido olhar acerca das vivências, territórios e outras questões primordiais pro debate.

Quando pensamos “jovem” o que ecoa em nossa mente? Que vamos ensiná-lo a viver? 

A ideia do jovem como um indivíduo para ser simplesmente ensinado é preocupante e carrega consigo inúmeras limitações, espera-se aqui que o jovem corresponda a quem irá conduzir ou ensinar, e na maioria das vezes não é esse o movimento que irá ocorrer.

Muitas vezes falamos sobre acolhimento e empatia, mas esse exercício não é fácil e o local de escuta também é um local de esforço, inclusive para lidar com os conflitos de ideias. E que bom que as ideias não são iguais! Que bom que existem conflitos geracionais, isso enriquece os debates. O aprendizado também nos exige que possamos aprender a conflitar.

Trago aqui o respeito pelo passar dos anos, pelas mudanças geracionais que precisam ser levadas em conta, as demandas mudam ou às vezes são reivindicadas de outras formas. Eu não dou local de fala a ninguém, assim como ninguém deu ele a mim. Eu posso e devo falar quando sinto que me convém! A voz do jovem não é doada, é dele. 

O protagonismo não pode ser podado, me entristece quando vejo que o debate ainda está focado no que definimos que seria bom para a juventude e não em criar meios da própria juventude elaborar o que deseja (inclusive porque existem diversas juventudes). Para existirem ambientes verdadeiramente acolhedores, primeiro precisamos repensar sob quais prismas nos constituímos, como tocamos as instituições, pesquisas e associações.

Esse texto começou a ser escrito ano passado, após inúmeros desconfortos e confrontos que me levaram a questionar se realmente queremos locais de diálogo ou não. Parece que ainda é turva a ideia de que o diálogo traz consigo um certo desconforto, de certo, o outro não é aquilo que esperamos, e que bom para nós…que sorte amadurecer! Nós também estamos nesse lugar, o tempo inteiro.

Compreendi a partir das observações que fiz, que precisamos conversar sobre o por quê trazemos jovens para alguns ambientes e se estamos dispostos a comportar a presença deles, com suas diferentes trajetórias, vivências, olhares, opiniões e vulnerabilidades. Não basta eles estarem lá, é necessário que haja troca.

Talvez ao esperar que as respostas das juventudes sejam padronizadas ou que há um só caminho, nos limitamos. 

E quando falamos da atuação institucional, por vezes criamos ambientes onde os jovens estão sempre como atores secundários, mesmo que digamos que são eles que desenvolvem os projetos, não são eles a ganharem voz, poder de escolha e reconhecimento.

Não sabemos o que a juventude quer!

Se partirmos da ideia de que existem diversas juventudes, não sabemos o que a “juventude” quer, não existe uma resposta pronta (aqui não estou falando sobre pesquisas já feitas, dados já coletados, entre outros), nesse texto estou discorrendo sobre a nossa ausência de auto reflexão quando nos colocamos num lugar de definição, já que sabemos que as pautas mudam e as urgências mudam para cada território e cada juventude.

Toda a minha escrita é focada em repensar caminhos, e ao meu ver não existe a construção e continuidade dos caminhos sem a participação ampla e ativa das juventudes.

Não acredito na obrigatoriedade dos papéis, ou seja, você é jovem, logo é obrigado a buscar protagonismo, a se movimentar etc. Ao meu ver, existem múltiplos fatores que levam uma pessoa aos lugares onde ela se afiniza, mas especificamente, eu afirmo que não é papel meu transferir minha identidade para o outro para que ele seja o que eu desejo.

Contudo, vejo uma responsabilidade em permitir que esses ambientes sejam confortáveis para todas as pessoas, que estejam abertos ao protagonismo jovem e que aprendam a construir novos olhares. 

Vladimir Maiakóvski
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“Generalizar todos como bandidos é criar fábrica de monstros”, diz ex-detento e empreendedor social

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Assista a entrevista completa em nosso canal no YouTube.

A Lei de Execução Penal brasileira determina que ao longo da pena, para pessoas privadas de liberdade, deve-se proporcionar condições para a reintegração social. No entanto, em entrevista ao Desenrola Aí, Erick Soares, egresso do sistema prisional, enfatiza a ausência dessas condições, durante e após o cumprimento da pena, dificultando o retorno dos ex-detentos à sociedade e acentuando os desafios e preconceitos enfrentados no processo de ressocialização.

“Um dos maiores obstáculos que encontrei foi o preconceito da sociedade. O preconceito está em todos os lugares e torna extremamente difícil se reintegrar no mercado de trabalho. Uma passagem pela justiça limita você. Não consegue um empréstimo, não consegue um financiamento, e ao procurar emprego, pedem atestado de antecedentes criminais, o que complica ainda mais.” Destaca Erik.

O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de países com a maior população carcerária, com mais de 832 mil pessoas privadas de liberdade. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 2016, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgada no 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, revelou que 57% da população brasileira acredita que “bandido bom é bandido morto”, 34% discordam da afirmação, 6% neutros e 3% não souberam responder.

“O preconceito está estampado em todos os lugares. Muitas pessoas que passaram pelo sistema prisional querem uma oportunidade, mas não conseguem. Você colocar todo mundo na mesma caixinha, todo mundo como bandido, você vai criar uma fábrica de monstros”. Conclui Erik.

Longe do sistema carcerário, Erik Soares encontrou recomeço como empreendedor social, palestrante em escolas públicas, Fundação Casa e como ator, contracenando em séries como “Sintonia” e “DNA do crime”, da plataforma de streaming da Netflix.

Sobre o Desenrola Aí

Empreendedor Social, Erick Soares e a jornalista Thais Siqueira durante a gravação do Desenrola Aí. (Maio 2024). Foto: Pedro Oliveira. 

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

Cofundador da Juventude Negra Política aponta invisibilidade de homens negros na política

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Ivan Santos, conhecido como Dú Pente, cofundador da Juventude Negra Política (JNP), afirma que articulações políticas e institucionais para lidar com os desdobramentos do racismo, quando prioriza apenas o gênero, acaba invisibilizando os homens negros. Para ele, “homens negros no Brasil são colocados, quando conveniente, como homens apenas”.

Dú Pente, articulador político e cofundador da Juventude Negra Política.
Dú Pente é cofundador da Juventude Negra Política e foi candidato a vereador em 2016 e 2020. (Foto: arquivo pessoal)

Dú Pente é do bairro Bonsucesso, localizado no distrito de Barreiro, periferia de Belo Horizonte, e é pós-graduado em Ciência Política, com MBA em Gestão de Projetos. O articulador coloca que as barreiras que existem desde a sobrevivência de homens negros nas periferias até as dificuldades que a população negra têm de acesso à educação, são circunstâncias que interferem na presença dessas pessoas na política.

Dú Pente, articulador político e cofundador da Juventude Negra Política.

A colocação de Dú Pente dialoga com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que indica sobre 83% dos mortos pela polícia em 2022, no Brasil, serem negros, pobres e periféricos, 76% deles eram jovens entre 12 e 29 anos.

Gênero e raça

Dú Pente aponta que é necessário a articulação entre pessoas negras para além do gênero, com o objetivo de lidar com as manifestações de racismo que também estão presentes nas esferas institucionais e políticas.  

“Há uma estratégia da branquitude que é sugerir que se homens pretos ocuparem ou estiverem nesses espaços [políticos de poder] estarão tirando o lugar das mulheres negras”, coloca Dú Pente, que menciona não existir essa intenção entre os homens negros. “É importante que nós, homens pretos e mulheres pretas também dialoguem e não caiam nessa cilada”, pontua.  

Ele comenta que essa estratégia da branquitude se dá pela forma que as questões de gênero foram inseridas através do feminismo europeu, a partir de uma origem eurocêntrica, em uma lógica em que homens e mulheres brancas se priorizam quando se trata de questões raciais. 

“[O feminismo] é importado para um continente que foi colonizado, multirracial, com outras origens e esse parâmetro acaba contaminando algumas percepções. Então, esse entendimento de que homens pretos e mulheres pretas acabam tendo certa rivalidade nesses espaços é mais uma estratégia da branquitude, por que ao fim quem se beneficia? Quem continua recebendo os maiores recursos? Não são as mulheres negras”, coloca Dú Pente, que já teve duas experiências como candidato a vereador.

“O mulherismo africana é a quebrada”, afirma pesquisadora sobre a presença do movimento nas periferias.

“O mulherismo africana é a quebrada”, afirma pesquisadora sobre a presença do movimento nas periferias

Os projetos da instituição Juventude Negra Política têm foco jovens negros e periféricos. (Foto: arquivo pessoal)

Conforme o Censo de 2022, quase 56% dos brasileiros são negros. Diante disso, Dú Pente coloca que é necessário que a população negra no Brasil esteja nos espaços de tomada de decisão, e que isso não deve ocorrer pela presença de mulheres negras em detrimento de homens negros, ou vice-versa, mas pela lógica de que as pessoas negras representam a maioria da população brasileira. 

Dú Pente, articulador político e cofundador da Juventude Negra Política.

Dú Pente coloca que homens negros têm as suas próprias particularidades, e que por isso, não deveria ser categorizados como um homem branco, pois não têm os mesmos privilégios. Ele ressalta que as desigualdades entre homens negros e brancos existem e devem ser consideradas.

“Os maiores índices de assassinados por arma de fogo [e] de pessoas que morrem por não ter acesso à saúde básica preventiva são homens negros. Os que mais têm câncer de próstata e morrem por [isso] são homens negros, os mais encarcerados são homens negros”, exemplifica.

Ele também aponta que a discussão sobre organização política de homens negros no Brasil é tida como uma manifestação de machismo, e destaca que não se opõe ao feminismo, mas que a discussão feminista branca e eurocêntrica colocada para tratar questões raciais é problemática.

Estratégias

O articulador comenta que criou um grupo com outros homens pretos, em Belo Horizonte, para dialogarem sobre masculinidades negras e nesse processo percebeu como os papéis sociais que são atribuídos aos homens negros são limitantes e estereotipados, inclusive dentro dos partidos políticos. “Tem umas limitações sobre os nossos corpos, nossa identidade, como a gente deveria ser e quando a gente não corresponde as pessoas se chocam”, pontua.

Criar uma organização do terceiro setor foi a alternativa que Dú Pente encontrou para atuar na política fortalecendo a democracia. Isso se deu através de projetos que promovem a educação de jovens negros, para que eles possam ter mais autonomia na construção da cidadania e para que também estejam preparados para liderar. “Racismo a gente vai deixar para quem criou focar mais nele”, diz o articulador político.

Equipe e participantes da Juventude Negra Política (Foto: arquivo pessoal)

A Juventude Negra Política (JNP), organização que é cofundador, foi criada em 2019, com o objetivo de promover a educação cívica e democrática no fortalecimento da democracia na América Latina, através de uma perspectiva antirracista, tendo como foco jovens negros e periféricos.

Dú Pente ressalta que não dá para existir racismo com democracia, e que o trabalho da JNP não é assistencialista, e sim um trabalho que busca a emancipação estratégica do povo preto. “Os manos pretos e as manas pretas têm que caminhar lado a lado, e tem que estar os dois dentro desses lugares, porque nós fazemos parte um do outro, nós somos uma comunidade”, finaliza.

Prefeitura fechou serviço de aborto legal no Cachoeirinha: o que a gente tem a ver com isso?

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Juro que queria começar essa coluna com um texto divertido, mas não vai ser dessa vez. Vamos dar partida com um assunto chato mesmo: em dezembro de 2023, a Prefeitura de São Paulo fechou o serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo.

Todo mundo deve saber que o aborto é criminalizado no Brasil, exceto nos casos de risco de vida à gestante, anencefalia (quando o feto não tem cérebro) e em caso de estupro. Vale dizer que qualquer ato sexual com menores de 14 anos é estupro, e isso significa que TODAS as meninas que engravidam antes dos 14 anos têm direito ao aborto legal. 

Uma centena de hospitais no país são cadastrados para realizar aborto legal, o que já é muito pouco, considerando o tamanho do país e o número de violências sexuais. Contudo, segundo o Projeto Vivas, organização que acolhe quem precisa abortar, apenas cerca de 40 hospitais seguem realizando abortos no país e somente 5 hospitais oferecem o serviço na capital.

Para dar uma ideia do problema

Foram mais de 67 mil estupros registrados em 2022, ou seja, um a cada 8 minutos, enquanto, no país inteiro, são realizados em média 1800 abortos legais por ano. Hoje, 96% dos municípios não possuem um serviço de aborto legal e alguns estados têm apenas um ou mesmo nenhum.

Ainda assim, a Secretaria Municipal de Saúde não apenas fechou o serviço em São Paulo, que não tinha denúncias de irregularidades, como também copiou o prontuário de mais de 200 pacientes. O prontuário é protegido por sigilo e só poderia ter sido acessado com autorização judicial ou expressa da própria paciente, o que não foi o caso. Esse acesso pode configurar crime de quebra de sigilo médico e está sendo investigado pela Polícia Civil. 

Enquanto isso, duas médicas estão sofrendo sanções disciplinares no Cremesp, por terem realizado o seu trabalho como pede a lei: garantindo o direito ao aborto. Um cenário de terror.

O primeiro argumento da Prefeitura era de que o fechamento seria para zerar a fila de endometriose, sem nunca apresentar esses dados. Em 2023, o Hospital Cachoeirinha realizou uma média de 9 procedimentos de aborto por mês, 119 no total, e foi o hospital que mais realizou abortos na capital. 

Que fila é essa que vai ser zerada com 9 procedimentos mensais, em uma cidade de 12 milhões de habitantes? Se está faltando leito para cirurgias, não é descobrindo um direito que não pode esperar, para supostamente cobrir o outro, que se resolve o problema.

Há mais um agravante no caso do Cachoeirinha: este era um dos poucos hospitais no país que acolhia interrupções acima de 20 semanas. 

Você pode querer saber quem são as pessoas que precisam de um aborto de semanas avançadas no Brasil, né? Pois são todas aquelas que tiveram vários direitos violados antes: crianças e adolescentes vítimas de abuso (em que a violência e a gravidez só vão ser descobertas quando a barriga já cresceu); mulheres em situação de violência doméstica, cárcere privado e/ou precariedade extrema; pessoas com pouco acesso a informação, que nem sabiam da existência do aborto legal; quem teve o acesso negado em outro hospital e quem mora em cidades/estados que não têm serviços de aborto legal e precisou peregrinar por semanas até achar um hospital que a acolhesse.

As pessoas precisam de abortos em semanas avançadas porque o Estado foi negligente ao não garantir o acesso nas semanas iniciais. 

São os direitos de mulheres e meninas negras, pobres e periféricas que estão sendo atacados pela Prefeitura de São Paulo e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo com o fechamento do serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha e a perseguição às medicas.

Para concluir, é importante dizer que o aborto é sempre um procedimento médico com menos risco que um parto e que qualquer hospital com estrutura de maternidade poderia realizar. 

Cerca de 90% dos abortos (legais ou não) são realizados no primeiro trimestre de gestação e, se a pessoa tiver em boa saúde, com acesso a saneamento, orientação e a quantidade de medicamentos corretas, pode ser feito com medicamentos em casa.

Ou seja, seguindo as orientações da OMS e da FIGO, não há justificativa plausível para que apenas alguns poucos hospitais possam realizar abortos e a maior parte deles poderia ser oferecido por uma UBS, sem a necessidade de ocupar leito hospitalar. 

Existe inclusive uma excelente cartilha Aborto legal via telessaúde que explica tudo direitinho, criada pela Anis – Instituto de Bioética, a Rede Médica Pelo Direito de Decidir e o Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia.

Aborto é uma questão de saúde pública, não de direito criminal. Deveria ser livre, legal e gratuito para todas que dele necessitam.

A restrição do acesso ao aborto é um projeto político reacionário, que coloca em risco a vida e a saúde de meninas, mulheres e pessoas que gestam pobres, pretas e periféricas e diante do qual até governos supostamente progressistas – como o atual Governo Federal – têm feito a egípcia.

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Serviços de saneamento básico na onda das privatizações #27

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Na onda do “privatiza que melhora”, o episódio aponta a relação entre saneamento básico com a saúde e habitação. Abordamos os reflexos da privatização dos serviços de água e esgoto na qualidade de vida da população, e também falamos como a lógica do saneamento enquanto negócio afeta o bolso do trabalhador.

Chegam com a gente nesse episódio Helena Maria, do Sindicato dos trabalhadores em água, esgoto e meio ambiente do estado de São Paulo (Sintaema), e também a Renata Furigo, coordenadora geral do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS).

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube.