Opinião

Prefeitura fechou serviço de aborto legal no Cachoeirinha: o que a gente tem a ver com isso?

O fechamento do serviço de aborto legal no Hospital Cachoeirinha é um ataque aos direitos das meninas e mulheres negras, pobres, periféricas da capital e do país inteiro.
Por:
Shisleni de Oliveira-Macedo

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Juro que queria começar essa coluna com um texto divertido, mas não vai ser dessa vez. Vamos dar partida com um assunto chato mesmo: em dezembro de 2023, a Prefeitura de São Paulo fechou o serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo.

Todo mundo deve saber que o aborto é criminalizado no Brasil, exceto nos casos de risco de vida à gestante, anencefalia (quando o feto não tem cérebro) e em caso de estupro. Vale dizer que qualquer ato sexual com menores de 14 anos é estupro, e isso significa que TODAS as meninas que engravidam antes dos 14 anos têm direito ao aborto legal. 

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Uma centena de hospitais no país são cadastrados para realizar aborto legal, o que já é muito pouco, considerando o tamanho do país e o número de violências sexuais. Contudo, segundo o Projeto Vivas, organização que acolhe quem precisa abortar, apenas cerca de 40 hospitais seguem realizando abortos no país e somente 5 hospitais oferecem o serviço na capital.

Para dar uma ideia do problema

Foram mais de 67 mil estupros registrados em 2022, ou seja, um a cada 8 minutos, enquanto, no país inteiro, são realizados em média 1800 abortos legais por ano. Hoje, 96% dos municípios não possuem um serviço de aborto legal e alguns estados têm apenas um ou mesmo nenhum.

Ainda assim, a Secretaria Municipal de Saúde não apenas fechou o serviço em São Paulo, que não tinha denúncias de irregularidades, como também copiou o prontuário de mais de 200 pacientes. O prontuário é protegido por sigilo e só poderia ter sido acessado com autorização judicial ou expressa da própria paciente, o que não foi o caso. Esse acesso pode configurar crime de quebra de sigilo médico e está sendo investigado pela Polícia Civil. 

Enquanto isso, duas médicas estão sofrendo sanções disciplinares no Cremesp, por terem realizado o seu trabalho como pede a lei: garantindo o direito ao aborto. Um cenário de terror.

O primeiro argumento da Prefeitura era de que o fechamento seria para zerar a fila de endometriose, sem nunca apresentar esses dados. Em 2023, o Hospital Cachoeirinha realizou uma média de 9 procedimentos de aborto por mês, 119 no total, e foi o hospital que mais realizou abortos na capital. 

Que fila é essa que vai ser zerada com 9 procedimentos mensais, em uma cidade de 12 milhões de habitantes? Se está faltando leito para cirurgias, não é descobrindo um direito que não pode esperar, para supostamente cobrir o outro, que se resolve o problema.

Há mais um agravante no caso do Cachoeirinha: este era um dos poucos hospitais no país que acolhia interrupções acima de 20 semanas. 

Você pode querer saber quem são as pessoas que precisam de um aborto de semanas avançadas no Brasil, né? Pois são todas aquelas que tiveram vários direitos violados antes: crianças e adolescentes vítimas de abuso (em que a violência e a gravidez só vão ser descobertas quando a barriga já cresceu); mulheres em situação de violência doméstica, cárcere privado e/ou precariedade extrema; pessoas com pouco acesso a informação, que nem sabiam da existência do aborto legal; quem teve o acesso negado em outro hospital e quem mora em cidades/estados que não têm serviços de aborto legal e precisou peregrinar por semanas até achar um hospital que a acolhesse.

As pessoas precisam de abortos em semanas avançadas porque o Estado foi negligente ao não garantir o acesso nas semanas iniciais. 

São os direitos de mulheres e meninas negras, pobres e periféricas que estão sendo atacados pela Prefeitura de São Paulo e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo com o fechamento do serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha e a perseguição às medicas.

Para concluir, é importante dizer que o aborto é sempre um procedimento médico com menos risco que um parto e que qualquer hospital com estrutura de maternidade poderia realizar. 

Cerca de 90% dos abortos (legais ou não) são realizados no primeiro trimestre de gestação e, se a pessoa tiver em boa saúde, com acesso a saneamento, orientação e a quantidade de medicamentos corretas, pode ser feito com medicamentos em casa.

Ou seja, seguindo as orientações da OMS e da FIGO, não há justificativa plausível para que apenas alguns poucos hospitais possam realizar abortos e a maior parte deles poderia ser oferecido por uma UBS, sem a necessidade de ocupar leito hospitalar. 

Existe inclusive uma excelente cartilha Aborto legal via telessaúde que explica tudo direitinho, criada pela Anis – Instituto de Bioética, a Rede Médica Pelo Direito de Decidir e o Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia.

Aborto é uma questão de saúde pública, não de direito criminal. Deveria ser livre, legal e gratuito para todas que dele necessitam.

A restrição do acesso ao aborto é um projeto político reacionário, que coloca em risco a vida e a saúde de meninas, mulheres e pessoas que gestam pobres, pretas e periféricas e diante do qual até governos supostamente progressistas – como o atual Governo Federal – têm feito a egípcia.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

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