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Crise econômica aproxima mulheres da quebrada de aplicativo de compras e afasta do supermercado

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A compra dos alimentos é feita pelo app com preços competitivos em relação aos mercados da quebrada, e a retirada dos produtos é feita posteriormente na casa de vizinhos credenciados como pontos de distribuição. Entenda essa nova forma de consumo nas periferias e favelas de São Paulo.

Giovanna Alves mostra um dos produtos que conseguiu comprar pelo aplicativo com uma diferença de preço 200% mais barato. (Foto: Renata Alves)

“Quando vi o aplicativo eu já gostei por causa dos valores, as coisas eram muito baratas”, conta Elvira Campos, 58, moradora do Jardim Kagohara, bairro da zona sul de São Paulo, que está usando o aplicativo Facily, solução de social commerce que incentiva os usuários a realizar compras coletivas de diversos produtos, entre eles estão itens de alimentação.

Através da criação de grupos formados por consumidores, que em sua maioria são mulheres que fazem a gestão financeira da casa, o app apresenta ofertas de produtos que chamam a atenção das usuárias, que frequentam o supermercado diariamente e conseguem fazer uma boa avaliação dos preços.

Outra moradora que tem usado o aplicativo por causa dos preços baixos em relação aos supermercados é Giovanna Alves, 20, vizinha da dona Elvira. Ela relata que economizou mais de 100% nas suas últimas compras no app.

“Eu lembro do sabão em pó que a gente comprou ele era de 500 gramas, e no mercado custa em média de sete a oito reais, e lá no aplicativo eu consegui comprar ele por 1,99”

Giovanna Alves é moradora do Jardim Kagohara, bairro da zona sul de São Paulo.

Em meio a alta da inflação que afeta diretamente os preços de produtos da cesta básica, a dona Elvira aproveita o Facily para economizar na compra de itens como arroz, leite e óleo.

“Eu lembro do sabão em pó que a gente comprou ele era de 500 gramas, e no mercado custa em média de sete a oito reais, e lá no aplicativo eu consegui comprar ele por 1,99. Nessa compra eu vi o preço do ovo também, pois agora o ovo está mais caro, e lá no Facily eu encontrei 30 ovos por 10 reais, só que eu fiquei com medo de comprar e estragar ou quebrar”, conta Giovanna.

Em meio à crise econômica que afeta muitos moradores das periferias, a jovem destaca que o app está ajudando muitas pessoas que não conseguem fazer compras no supermercado.

“Tem muitas pessoas que compra pelo aplicativo que não consegue ter a oportunidade de comprar em mercado normal pelo valor, então é muito bom para as pessoas que são mais necessitadas, que não consegue fazer a compra do mês e não recebe um salário inteiro no final do mês”, pontua.

Compra e entrega de produtos 

A única ponderação que ela faz em relação ao aplicativo é em relação a dificuldade para realizar os processos de compra e os pontos de distribuição que ainda precisam aumentar na quebrada.

“Como ele não é tão objetivo não é tão fácil usas, acho que umas pessoas que não sabe mexer com tecnologia não consegue comprar. E o fato de não ter muitos pontos de entrega também dificulta bastante se a pessoa tem dificuldade de se locomover”, avalia a usuária do app.

Embora os valores sejam bem atrativos, a dona Elvira que tem um ponto de distribuição concorda com Giovanna e conta que a entrega dos itens comprados ainda é um ponto a ser melhorado pelo app de compras coletivas.

“O ponto de entrega era aqui perto de casa, mas a mulher responsável pelo ponto desistiu, por isso eu quis pegar para mim. Eu falei: bom já que ela saiu, vou ver se eu coloco, já que minha casa é um ponto de entrega, meus produtos vêm para cá mesmo”, explica.

“A entrega não é rápida, para chegar no ponto tem produtos que levam de 15 a 30 dias”

Elvira Campos, 58, possui um ponto de entrega de produtos do aplicativo Facily.

A moradora foi estratégica ao tomar a decisão de transformar a sua casa em um ponto de distribuição, no entanto, ela conta que vem lidando com problemas em relação a demora para a entrega dos produtos.

“A entrega não é rápida, para chegar no ponto tem produtos que levam de 15 a 30 dias, mesmo assim compensa”, afirma ela, apontando que uma alternativa para essa questão do tempo de entrega é comprar uma coisa que não esteja precisando no momento. “Você sabe que vai demorar, mas que vai chegar”, complementa.

Por dia, Elvira recebe em sua casa de dois a três pedidos fruto de compras realizadas no app, porém ainda não considera que o aplicativo visa beneficiar os moradores que disponibilizam as suas casas para fazer esse trabalho de distribuição no bairro.

“Ser um ponto de entrega não tem muita vantagem, é só para ser um ponto de entrega mesmo, para entregar pro povo, mas não tem vantagem nenhuma na verdade, mas para mim que compra os produtos fica mais fácil”, enfatiza.

Edinete Ferreira usa  o aplicativo constantemente para comprar produtos mais baratos em relação ás prateleiras do supermercado próximo a sua casa. (Foto Gerson Abad)

As comissões pelas entregas também desagradam a Elvira. “A gente não recebe desconto não, o que você compra é o que você paga, a gente ganha por entrega, cada entrega que eu faço eu ganho, mas é 10 centavos, 3 centavos, depende da entrega, o valor maior é 1 real, então é muito pouco o valor”, relata a moradora.

Mesmo com essas desvantagens que o aplicativo oferece, para pessoas que querem contribuir com a logística do aplicativo de compartilhamento de compras coletivas, Elvira enfatiza que a ideia de economia em produtos é muito vantajosa, principalmente por causa dos preços abusivos nos supermercados da quebrada.

“Os ponto de entrega é muito bom porque tem a agilidade de receber na porta de casa o produto que você compra, aí as pessoas vem aqui pegar o produto que elas compraram pelo aplicativo, que tem chegado aqui, estão elogiando o ponto de entrega, falando que é muito bom, que o atendimento é muito bom, ai todo mundo tá gostando, ai chega o produto e já lanço, ai as pessoas ficam sabendo que o produto chegou e já vem logo buscar, então é bem prático”, argumenta ela, fazendo um contraponto entre os outros fatores negativos do app.

Direito do consumidor

Segundo dados do Procon, as reclamações sobre a empresa criadora do app Facily aumentaram de maneira expressiva em 2021. No primeiro semestre de 2020 foram registradas cinco reclamações, mas no primeiro semestre deste ano o número subiu para mais de 11 mil reclamações.

Esse dado pode ser interpretado de muitas maneiras, mas o que a nossa reportagem identificou de fato foi que uma grande parcela de moradores das periferias e favelas estão recorrendo a este formato de compra coletiva, porque não é mais possível fazer a compra mensal nos supermercados.

“Eu comprei umas coisas pro Facily, as primeiras compras demoraram chegar, até cancelei e pedi estorno, e a segunda teve umas que cancelaram, por eles mesmo, agora fiz outro pedido, mas veio faltando produtos, eu pedi seis cremes de leite e só veio três”, relata Edinete Ferreira, moradora do bairro Parque Santo Amaro, na zona sul de São Paulo.

A experiência de Edinete com compras problemáticas no aplicativo e a demora para a entrega dos produtos incomodam a usuária, assim como foi relatado pela dona Elvira e pela jovem Giovanna, mas como o fato da economia de dinheiro tem pesado na gestão das compras de casa, ela acredita que compensa usar o app. “Tirando a demora, a principal vantagem é que as coisas são mais econômicas”, conclui.

Barreiras da Acessibilidade: a mobilidade de pessoas com deficiência na perspectiva de urbanista e engenheiro da quebrada

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 Na quarta reportagem da série Barreiras da Acessibilidade, conversamos com especialistas da quebrada sobre a mobilidade de pessoas com deficiência nas suas perspectivas.

 Na série Barreiras da Acessibilidade, falamos com moradores das quebradas e contamos um pouco sobre como diariamente lidam com dificuldades no transporte público e com a falta de assistência necessária do poder público ligada às questões que impactam a vida de pessoas com deficiência.

Para falar sobre o aspecto da mobilidade urbana, chamamos para uma conversa a Ana Cristina, 29, moradora do Jardim Macedônia, na zona sul de São Paulo. Ana é arquiteta e urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e pesquisadora do Centro de Estudos Periféricos da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). 

Ela analisa o modelo de transporte público vigente na cidade de São Paulo e como impacta na locomoção de moradores das periferias e pessoas com deficiência.

“É interessante pensarmos na questão que o modelo de sistema do transporte público implementado em São Paulo, criou diversos terminais intermediários dividindo uma viagem em vários trechos e obrigando o passageiro a fazer várias trocas de ônibus em um único trajeto”, coloca a urbanista.

Ana Cristina aponta que isso foi feito com a justificativa de racionalizar o sistema. “Mas para nós moradores de bairro periférico, que somos os que mais usam o transporte público, é muito ruim porque nos obriga a fazer várias baldeações até chegar ao nosso destino. Isso sem falar da malha de metrô e trem que, de modo geral, quase não cobre as periferias”, analisa.

Ponto de ônibus da Praça Maruzan Dourado Silva – Cidade Ipava. (Foto: Flávia Santos)

Além das pontuações sobre o transporte público, a urbanista também ressalta sobre a mobilidade a pé pelos territórios, e aponta que legalmente o responsável pela conservação da calçada, é o proprietário do imóvel.

“No caso das periferias, muitas vezes o proprietário não tem como arcar com os custos dessa manutenção. Em contrapartida, a prefeitura não oferece nenhum tipo de apoio financeiro para isso”, coloca.

“Um outro ponto da escala micro são as condições de mobilidade dentro das favelas, a dificuldade de acessibilidade nas vielas”

aponta a urbanista Ana Cristina.

Calçada da Rua Ferrador – Cidade Ipava. (Foto: Flávia Santos)

De acordo com uma pesquisa feita pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), em agosto de 2021, as periferias possuem as piores calçadas do Estado de São Paulo.

Ana Cristina afirma que todas essas questões são ainda mais complicadas para os moradores de periferias que têm alguma dificuldade de locomoção. “Isso mostra a necessidade de políticas públicas urbanas que partam das reais demandas da população, que entendam a diversidade de formas de se deslocar pela cidade e que priorizem justamente quem enfrenta algum tipo de dificuldade”. 

“Uma cidade boa para as pessoas que têm algum tipo de deficiência, para as crianças e para as mulheres, é uma cidade boa para todos”.

conclui a arquiteta e urbanista Ana Cristina.

Rua Ferrador – Cidade Ipava. (Foto: Flávia Santos)

Ainda falando sobre a acessibilidade aos moradores da periferia, conversamos com o engenheiro e arquiteto Steffano Esteves, 29, morador da Cidade Ademar, zona sul de São Paulo, e pesquisador de problemas e soluções da cidade de São Paulo.

O engenheiro afirma que fazendo uma comparação das calçadas do Jardim Ângela até Santo Amaro, ambas na zona sul de São Paulo, ao andarmos pelas ruas, é possível perceber que a região de Santo Amaro é mais plana do que no Jardim Ângela, a existência de um desnível.

Segundo ele, isso provavelmente se deu pelo fato da região de Santo Amaro ter sido considerada importante na história, e por isso ter mais estruturas do que as redondezas do Jardim Ângela, onde ainda é difícil ter calçadas boas nas avenidas.  

“As ruas na periferia não foram pensadas para caber a calçada, foi pensada só para abrir um caminho ali. Virou a última prioridade depois que os moradores começaram a ter carro”

afirma Steffano.

Calçada da Rua Ferrador – Cidade Ipava. (Foto: Flávia Santos)

Steffano analisa que a atenção voltada para as avenidas é diferente, pois é um local mais movimentado e que fica mais exposto aos moradores, motoristas e aqueles que passam todos os dias por lá.

Ele conclui ressaltando que ainda precisa existir um olhar mais próximo voltado para situações como essas nas periferias, conhecer a cidade, andar pelas ruas, entrar nos lugares, utilizar os transportes públicos e ter contato com a real rotina dos moradores.

“O sentimento de circular pelo território, pegar busão, sentir como que é, ir para vários lugares, ajuda demais a ter uma perspectiva da nossa cidade”, finaliza o engenheiro.

Geradora de energia solar quer combater crise climática e econômica nas periferias de São Paulo

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Além de gerar outra cultura de consumo e produção de energia limpa, a iniciativa quer combater o gato e a inadimplência que não param de crescer entre os consumidores de São Paulo.  

As placas solares foram instaladas no telhado do Instituto Favela da Paz. (Foto: Raphael Poesia)

Combater ligações elétricas irregulares, a inadimplência, e promover a cultura de consumo e produção de energia limpa nas periferias e favelas são os principais objetivos da micro geradora de energia solar, instalada em julho de 2021, na sede do Instituto Favela da Paz, localizado no Jardim Nakamura, zona sul de São Paulo. A iniciativa foi desenvolvida pela cientista ambiental Graziela Gonzaga em parceria com o inventor e educador Fábio Miranda.

“Eu quero tornar viável o uso de placas solares para os moradores das periferias, porque eu também sou moradora da periferia, eu sei o que é as pessoas terem que usar gato ou pagar contas de luz altas”, afirma a cientista ambiental, moradora de Itaquaquecetuba, cidade da região metropolitana de São Paulo.

No estado de São Paulo 14,7 milhões de pessoas estão inadimplentes, segundo estudo do Serasa divulgado em agosto de 2021. O estado lidera o ranking com o maior número de pessoas endividadas do país. Neste cenário, as contas básicas como água e luz aparecem com uma fatia de 23,30% das dívidas que mais levam as pessoas à inadimplência no Brasil.

Segundo dados do Anuário de Energéticos por Município, publicado pela Secretaria Estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente em 2021, o estado de São Paulo tem 18 milhões de consumidores de energia elétrica cadastrados com a classificação de consumo residencial urbano. Deste montante, 8 milhões residem na Região Metropolitana de São Paulo e 4,7 milhões na capital. 

“A ideia é criar essa reflexão nas pessoas que esse formato de consumo consciente é uma tecnologia acessível”

Graziela Gonzaga é cientista ambiental e responsável por desenvolver o projeto da micro geradora de energia solar. 

A cientista ambiental teve a ideia ao observar a infraestrutura das ligações elétricas em casas localizadas em territórios periféricos por onde ela já passou. A partir desta percepção, ela contou com o apoio de três colegas de trabalho para participar de um desafio de projetos inovadores na Worley, empresa onde ela atua e foi contemplada com uma premiação de recursos materiais para viabilizar a ideia.

Durante o trajeto para colocar a iniciativa em prática, Graziela conheceu Fábio Miranda, músico, inventor e coordenador de sustentabilidade do Instituto Favela da Paz, ecovila onde ele trabalha há mais de 30 anos com práticas educacionais dedicadas a transformar a relação dos moradores locais com os recursos naturais disponíveis nas periferias e favelas.

“Eu vejo um grande potencial de crescimento da energia solar nas periferias, por isso a ideia é criar essa reflexão nas pessoas que esse formato de consumo consciente é uma tecnologia acessível”, acredita o inventor.

Além de vizinhos de Miranda que ficaram interessados em conhecer mais sobre o uso de placas solares, o pioneirismo chama a atenção também de especialistas no setor de energia solar.

Segundo o engenheiro elétrico Rodrigo Poppi, profissional que acompanha o desenvolvimento do mercado de energia solar no Brasil desde 2011, a iniciativa é a primeira experiência nesse campo no Estado de São Paulo e a segunda no Brasil. Ele também é o responsável pela implantação da micro geradora.

A primeira iniciativa em território nacional é a Revolusolar, organização social criada em 2015 que realiza instalações de energia solar nas favelas do Rio de Janeiro e oferece cursos de capacitação profissional e oficinas para moradores da favela da Babilônia.

Foram necessários quinze dias úteis para a micro geradora de energia ser homologada pela Aneel. (Foto: Paulo Araújo PackDrone)

Homologação

A micro geradora de energia solar foi projetada para produzir em média 900 quilowatts por hora mês, o suficiente para atender mensalmente as quatro casas que fazem parte do Instituto Favela da Paz, impactando mais de 20 moradores do local. A expectativa é que a conta de luz referente ao mês de outubro não tenha custos.

Foram necessários quinze dias úteis para a micro geradora de energia solar da quebrada ser homologada pela Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, mas o processo pode levar até 30 dias segundo a legislação brasileira.

A homologação inclui a certificação de geração de energia e um relógio específico para medir a produção, consumo e distribuição de energia de volta para a rede elétrica da concessionária.

A documentação técnica necessária para obter a homologação junto à Aneel foi elaborada pelo engenheiro elétrico Rodrigo Poppi, responsável por coordenar a instalação da geradora de energia solar no Instituto Favela da Paz.

Ele afirma que o sistema está operando no formato Ongrid, uma modalidade de geração de energia solar que é conectada ao sistema de distribuição da Enel.

O engenheiro explica que neste sistema a geradora capta os raios solares, transforma em energia elétrica, supre a demanda total de consumo do imóvel, armazena a energia excedente e devolve para a rede da concessionária e tudo isso acontece graças ao dimensionamento correto das placas solares.

“A gente analisa o quanto a pessoa consome de energia em um ano, levando em consideração o município onde a pessoa mora, pois, cada cidade do Brasil tem uma irradiação solar diferente. Em seguida, realizamos a orientação e posicionamento das placas para melhor aproveitamento de geração de energia”, diz o engenheiro elétrico.

Encargos 

Desde o aumento da tarifa de energia elétrica para 52% adotado em junho pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), fruto da crise hídrica que motivou a implantação da bandeira vermelha de patamar 2, moradores das periferias e favelas vem enfrentando dificuldades para continuar pagando em dia a conta de luz.

No mês de agosto, enquanto Miranda estava aguardando a implementação final da micro geradora de energia solar, o inventor conta que recebeu uma conta de luz no valor de quase um mil reais, fato que causou um grande susto, pois ele nunca havia pagado um valor tão alto.

“Essa conta do mês de agosto é uma coisa que a gente não conseguiu entender até hoje. Eles (Enel) falam que a gente teve um consumo muito alto de energia, que é praticamente o dobro do que a gente está acostumado a consumir”, relata o inventor, lembrando que o não pagamento desta conta poderia inviabilizar o funcionamento da geradora de energia solar.

A solução para não ficar inadimplente com a Enel foi buscar o parcelamento da dívida. Segundo a Enel, o motivo para a conta vir tão alta é o fato do consumo de Miranda ter ultrapassado o consumo de 200 quilowatts por hora, com isso, a concessionária acrescenta uma alíquota de ICMS de 25% em cima do valor total da conta de luz residencial. Residências com consumo inferior a 90 quilowatts por hora são isentas do pagamento de ICMS. 

Veja Tabela de Encargo aqui.

A micro geradora de energia solar foi projetada para produzir em média 900 quilowatts por hora mês. (Foto: Raphael Poesia)

Energia compartilhada 

Segundo a Aneel, uma casa de família de baixa renda com quatro moradores consome em média de 100 e 150 quilowatts por hora de energia. Com base nesses dados, o engenheiro elétrico Rodrigo Poppi propõe a seguinte avaliação de investimentos para moradores como a Queila instalar uma usina de energia solar de pequeno porte em sua casa.

“O investimento é de 10 a 12 mil reais. O principal custo está nos equipamentos, com gasto de sete mil reais. Já o serviço de instalação pode variar entre três e cinco mil reais”, explica o engenheiro.

O que torna essa conta ainda mais atraente para os moradores das periferias e favelas são as linhas de crédito que existem hoje em diversos bancos, com parcelas que variam de 60 a 120 meses para quitação do financiamento.

Segundo o engenheiro elétrico especializado no setor de energia solar, o valor financiado sai bem mais barato do que pagar uma conta de luz mensal, mesmo levando em consideração a taxa de juros cobrado por cada instituição financeira.

“A gente enxerga a energia solar como parte da solução para gerar renda e trabalho nas favelas”

Camila Nascimento é coordenadora da Associação Brasileira de Energia Solar (ABSOLAR).

Oferecer formação técnica para os moradores de territórios populares e difundir informação sobre formas de financiar e implantar esse sistema de produção e consumo de energia são fatores importantes listados por Camila Nascimento, coordenadora da Associação Brasileira de Energia Solar – ABSOLAR no Rio de Janeiro, para inserir as periferias e favelas no promissor mercado da energia solar no Brasil.

“Qualificando a mão de obra nesses bairros para o processo de instalação de equipamentos, a gente enxerga a energia solar como parte da solução para gerar renda e trabalho nas favelas”, ressalta a coordenadora da ABSOLAR, lembrando que o setor criou em 2020 mais de 200 postos de trabalho por dia.

A facilitação de acesso ao financiamento de equipamentos, como placas solares para instalação de micro geradoras é outro fator lembrado por Nascimento que torna essa tecnologia acessível às famílias de baixa renda.

A coordenadora da ABSOLAR destaca que hoje a energia solar contribui com apenas 1,9% de participação na matriz energética brasileira, e mesmo com essa tímida colaboração, ela enxerga um grande potencial de crescimento para enfrentamento da crise econômica e hídrica no Brasil.

“Quando a gente olha o Brasil tendo que importar quase 5% de sua energia consumida de outros países, pagando caro por essa energia, e a luz solar participando bem pouco dessa matriz enérgica, a gente consegue ver o potencial de crescimento, porque o sol está aí acessível para todos, pois é muito simples fazer o uso dessa energia para gerar eletricidade”, conclui.

“Mês passado eu não liguei o fogão”: valor do gás muda rotina alimentar nas periferias

Com o valor do gás de cozinha afetado pela inflação, famílias precisam mudar não só os alimentos consumidos antes do aumento nos preços, mas também a forma de prepará-los. 

Com o aumento do valor do gás, virou rotina cozinhar no fogão à lenha sempre que Audryn e a família conseguem. (Foto: Vinicius Mikolaeski)

Chegando a custar mais de R$100 em algumas cidades da grande São Paulo, o aumento no valor do gás de cozinha transforma a rotina alimentar e traz mudanças sociais na conjuntura de diversos lares. É o caso das famílias de Sônia Maria e Audryn Miriam, que desde a disparada do valor, recorreram ao fogão a lenha para cozinhar.

No início da pandemia do coronavírus, Audryn Miriam, 22 anos, se mudou para a casa do pai Alexandre, no bairro Veloso, em Osasco, região metropolitana de São Paulo. Como era ele que comprava o gás, Audryn fazia o máximo para economizar e passou a mudar a sua rotina alimentar, como parar de fazer bolos com tanta frequência, em média uma vez por semana, pois ficavam muito tempo no forno.

Segundo dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP), o preço médio do botijão de gás aumentou quase 30% aos consumidores desde o começo do ano de 2021. Por conta do valor abusivo que não parava de subir, Audryn começou a fazer o máximo para evitar a utilização do fogão e ter que comprar outro botijão. O último, comprado no início da pandemia, havia custado R$85. 

“Eu comia muita comida congelada, porção de comida pronta, macarrão pronto… comia bastante mesmo. No mês passado, inclusive, eu não comi nenhuma comida de forno, eu não liguei o fogão”

diz Audryn.

Em outubro deste ano, ela saiu do emprego em que trabalhava e ficou desempregada. Com o aumento de todas as contas em casa, como água, luz, internet, alimentação e o gás de cozinha, ela decidiu voltar para a casa da mãe, Patrícia, em Cotia, também na região metropolitana de São Paulo.

Patrícia Mikolaeski, 47 anos, mãe de Audryn, é dona de casa e realiza trabalhos pontuais com organização. Ela já tinha um fogão a lenha no espaço externo de casa, mas que não usava com tanta frequência. Com o aumento no valor do gás, essa dinâmica mudou e atualmente, a maioria dos alimentos são preparados no fogão a lenha, o que faz o gás de cozinha render em média 4 meses.

Gás inflacionado

O economista Alex Barcellos, explica os motivos que fazem com que o gás aumente abusivamente o valor em tão pouco tempo. No Brasil, o gás de cozinha é repassado pela Petrobras, pois o combustível fóssil é o principal elemento. São três esferas que implicam no valor do botijão: o lucro dos investidores, o preço de operação da distribuição e os impostos estaduais.

Como parte da Petrobras foi vendida, os investidores, principalmente do exterior, visam o lucro em cima do valor do gás. Dessa forma, a Petrobras já faz o repasse com o valor de operação e lucro embutido para os distribuidores.

Os distribuidores (o ponto de entrega, o mercadinho ou caminhão), adicionam o custo de operação para a entrega do botijão até a casa das pessoas. Por exemplo: o valor do combustível do caminhão que entrega o gás. E por último, são adicionados os impostos que cada governo estadual impõe sobre aquele botijão.

Assim como em Itapevi e Cotia, o gás na cidade de Osasco está custando R$100. (Foto: Monique Caroline)

“Um botijão de gás que custa R$100, vamos entender que na operação, a Petrobras repassa a R$50. O operador/distribuidor, cobra R$35 da operação naquele ponto de venda na sua quebrada, e aí a gente complementa com mais R$15 que seriam de impostos”, exemplifica o economista Alex.

Ele expõe que uma das alternativas para baixar esse valor, seria uma política do governo federal realizando uma intervenção. Isso não acontece pois com a privatização, a Petrobras possui outros proprietários e investidores estrangeiros donos de grandes capitais. Dessa forma, o governo não intervém para manter boas relações com os investidores.

Além de todas as esferas econômicas que o preço implica na vida de uma família periférica, o economista qualifica como problema gravíssimo a precarização da qualidade alimentar, como é o caso de Audryn, ao consumir produtos congelados e comidas prontas. 

“O aumento do consumo dos produtos industrializados, produtos práticos, que você utiliza água ou somente um forno micro-ondas, também tem sido observado como um grande problema na qualidade de comida dessas pessoas que não conseguem ter o gás em um preço mais favorável a ser utilizado”

expõe o economista.

A “SEVIROLOGIA” DO FOGÃO À LENHA 

 Para Patrícia, o fogão a lenha não é tão prático como o gás para cozinhar, pois mesmo que ventilado, deixa um cheiro muito forte no ambiente, suja muitas panelas e demora um pouco mais para ascender. Ainda assim, para ela, a comida fica mais saborosa.

“Agora eu tenho usado bem mais, antes eu só usava final de semana. Agora faço arroz e feijão pro almoço e janta. […] Não é uma saída de praticidade, é uma questão de gosto”, comenta Patrícia.

Apesar de não ser uma saída de praticidade, Audryn e a família optam por usar o fogão à lenha sempre que podem. (Foto: Vinicius Mikolaeski)

A dona de casa Sônia Maria, 54 anos, moradora de Itapevi, também recorreu à utilização de um fogão à lenha improvisado pelo marido José Santos, na laje de casa. Antes do fogão a lenha, o gás rendia em torno de um mês, custando R$100.

Mesmo cortando os alimentos que utilizavam muito gás, como bolos e carnes, o preparo do almoço e janta faziam com que o botijão acabasse logo. Isso fez com que o marido, que é pedreiro, criasse um fogão a lenha, ao pegar uma lata de tinta vazia, encher de cimento e colocar uma chama de fogão.

“Ele foi criativo. É muito bom, a água ferve rapidinho e a comida é outro sabor. O arroz é tão gostoso. Quando você tá cozinhando os vizinhos que passam já ficam: ‘ai que cheiro gostoso de comida'”, conta Sônia sobre a experiência.

Sônia e a família utilizam o fogão à lenha improvisado que o marido fez principalmente aos finais de semana (Foto: arquivo pessoal)

Assim como Patrícia e Audryn, Sônia e a família não gastam comprando lenha, pois encontram muita madeira perto da região em que moram. Ela diz que além do fogão à lenha, também gosta de cozinhar no fogão a gás, e fora o preço do botijão, tem que economizar em tudo, por conta do preço abusivo dos alimentos também.

“Eu ia ao mercado duas vezes por mês, a gente comprava carne e frango, fazia a compra de mistura por um mês. Agora não dá mais, agora eu diminui bastante porque aumentou demais. A asinha de frango que eu comprava era R$10 reais e agora tá R$25, tá muito caro aqui”, enfatiza Sônia.

O economista Alex apelida de “sevirologia”, a forma como a população periférica se “vira como dá” e inventa outros caminhos para viver dentro da forte crise econômica que o Brasil enfrenta. Ele enxerga como um grande risco ambiental, social e de segurança individual e coletiva o cozimento dos alimentos à lenha.

“É terrível saber que hoje a gente tem todas essas questões ligadas a essa necessidade do gás mais caro. Se você pensa em comunidades com densidades demográficas maiores como moradias populares, muitas das vezes corre um risco de incêndio, tem diversos problemas relacionados”

analisa o economista.

Alex ressalta que esse cenário é apenas um dos reflexos de um sistema de desenvolvimento que não se faz igualitário a todos. “Se esse é o sistema que é pra gente acreditar como sistema de desenvolvimento, que consegue levar a oportunidade através da meritocracia pras famílias, é um sistema que vive no Mundo Mágico de Oz, porque ele não está trazendo isso”, finaliza.

A educação e suas mirações

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Estamos em outubro, tudo nesse mês me leva a pensar em educação. Mesmo quando penso em crianças, penso que passamos o maior período da infância na escola, como esse momento é divisor de águas na nossa trajetória de aprendizado e conhecimento do mundo.

Aniversário de 27 anos do ECA no CEU Guarapiranga. (Foto: Júlia Cruz)

Na escola, eu me tornei a Bela, mesmo não tendo um nome duplo, a pronúncia, mesmo na escola, supera qualquer regra de escrita. Bela não é um apelido fácil de se carregar na infância pelo peso semântico e histórico que essa palavra tem, pois, ou você é Bela, ou você é piada.

Em uma escola completamente misógina, existe um comportamento esperado das meninas, essas experiências se tornam um grande complexo, pois, na escola também aprendemos sobre os padrões de beleza e suas cargas. Quando a escola não trata do convívio, de suas identidades e relações, essas questões sociais parecem questões pessoais, que não tem relação com política, cultura, geografia e história.

Sentimos um desligamento constante entre o conhecimento transmitido e nossa vida cotidiana, repleta de desafios e contradições presentes na formação de um ser humano.

Contudo, é importante considerar, que entre esse desligamento, entre o conhecimento e a prática, sempre havia aquele professor que fazia uma ponte entre a realidade e o conceito, ali atento, entregava um livro, fazia uma fala ou simplesmente apoiava uma iniciativa. Esses professores foram minha inspiração.

Eu, como menina periférica, estive amplamente tutelada pelo Estado, estive em creches e outros espaços de formação, como Centro de Juventude, onde experimentei um tipo de educação mais livre e artística. Este, também me trouxe um outro modelo de educação, que primeiro avaliei como se não fosse, pois era completamente diferente da escola. Porém, é fato que o misto entre educação formal e informal fizeram de mim, a educadora que me tornei.

Entre a escola e o Centro de Juventude, conheci o professor Ralf Rickli, que desenvolveu em seus estudos a Filosofia e Pedagogia do Convívio, uma quilha, que era nomeada como Trópis, (palavra grega que designa Quilha – coluna vertebral em torno, do qual, um barco é construído e que, configurava em seu trabalho a base, fundamento, e sentido para onde cada coisa vai).

Ralf Rickli construiu em nosso bairro um Rizoma, para jovens que moravam no Jardim Monte Azul, e bairros vizinhos, para que desenvolvêssemos nossas potencialidades. Criar uma pedagogia não fazia parte do nosso mundo, imagina viver uma pedagogia criada pelo seu professor, isso foi transformador.

Nossa formação se dava no cotidiano, na mesa do café, descobrindo que o sal já foi moeda de troca, ouvindo discos de Chico Buarque e descobrindo sobre a ditadura militar, em rodas de conversa e troca chamadas de O.C.A – Oficina de Conhecimento e Arte. Foi o melhor momento educacional e criativo da minha vida.

Conhecer um professor que sonha com o reencantamento do mundo e imprime no mundo essa prática fez de mim uma mulher que acredita na transformação pela educação.

Em 1995, eu já era educadora pela Educação Convivial, através desta, estabeleci um método que, mais tarde, se fundiu com a Educação Popular, filosofia organizada por Paulo Freire, que valoriza os saberes prévios que trazemos, nossas realidades culturais, estabelecendo assim um olhar crítico que facilita o desenvolvimento educativo e humano.

Com Ralf Rickli e Paulo Freire, aprendi sobre responsabilidade política do educador, e sobre horizontalidade com o educando, para que fosse possível a construção do conhecimento.

Muita gente chama o que Paulo Freire escreveu de método, entretanto, eu nomeio como Filosofia Pedagógica, assim como a educação pelo convívio do Professor Ralf Rickli.

O que é proposto por esses professores é o reconhecimento do ser, a partir do que ele já é, não do que pode se tornar ao conhecer. Nesse sentido, conhecimento deve fazer ponte com sua história, com o meio em que pertence, com seu gênero, raça e classe.

Isso só se consegue com escuta, análise e respeito, esta é práxis, (reflexão e ação, atividade prática em relação a teoria), utilizada constantemente por Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido, práxis libertadora, práxis autêntica, práxis revolucionária e a práxis verdadeira.

Allan da Rosa, escritor, poeta, historiador e Doutor em educação pela USP, retoma para mim esses conceitos em seu livro, Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem, de 2013, quando traz nessa obra o movimento de educação popular periférico que reivindica a cultura de matriz africana nos processos educativos e concilia teoria e ação a partir das experiências vividas na quebrada.

Acredito que todo conhecimento deve ser criticado, como feminista não esqueço dos traços sexistas das obras de Freire. Bell Hooks, professora estadunidense, em seu livro Ensinando a Transgredir, dedica um capítulo a obra de Paulo Freire, sua práxis, e critica seu sexismo.

Hooks contribuiu para a retirada da linguagem sexista de suas ultimas obras sem auterar sua importância, porém, incluindo a demanda feminista dos anos 90, em um livro escrito nos anos 70. O tempo e a cultura mudam nossas práticas e o conhecimento revela novos paradigmas, precisamos estar atentos, todo tempo contém uma história.

A práxis revolucionária somente pode opor-se à práxis das elites dominadoras. E é natural que assim seja, pois são fazeres antagônicos. 

Freire, 2013,p.169

Segundo Freire, não há ninguém mais qualificado para qualificar a opressão, do que nós, os oprimidos, quem mais pode encontrar estratégias de libertação. Seria infantil de nossa parte achar que quem lucra com os nossos devaneios de consumo, com nossa falta de direitos, pode trazer uma resposta. Sendo assim, a autêntica libertação não é uma coisa que se deposita nas pessoas, mas uma ação e reflexão sobre o mundo para transformar sua realidade.

(…)Depois de um tempo indeciso, escolhi começar a obra pela parte “teorica”, a que reflete sobre elementos fundamentais de nossa cultura, de nosso convívio e criação, mas poderia muito bem ter iniciado o trabalho pela segunda parte, a da prática matutada. 

(Rosa, Alan,2013 p.15)

Educar para a prática da liberdade exige matar o colonizador que existe dentro de mim, exige estudos contínuos, convívio, envolvimento, organização e desapego da armadilha de ensinar algo, e trazer com sigo ferramentas – conceitos, textos, práticas, capazes de promover a reflexão e a catarse diante da vida vivida. Estranhar a vida, estranhar o cotidiano, a forma em que as coisas estão, essa é a educação que eu acredito e pratico.

Eu quero comemorar a existência da práxis revolucionária educacional que resiste, eu saúdo Paulo Freire, Ralf Rickli e Allan da Rosa que escrevem horizontes possíveis. 

(…)Imagine o quanto seria mais fácil para nós aprendermos como amar, se começássemos com uma definição compartilhada.

Bell Hooks, 2021

Jovem combate fake news e impede familiares de desistir da vacina contra covid-19 no Jardim Ângela

 Além de enfrentar a desinformação e conscientizar familiares que já estavam desistindo de se vacinar contra a covid-19, jovem lida no cotidiano com a falta de acesso à internet de qualidade dentro de casa.

Herbet Lucas, estudante do cursinho Rede Ubuntu. (Foto: Flávia Santos)

A Unidade Básica de Saúde (UBS) da Cidade Ipava está localizada no distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, onde 60% dos mais de 300 mil moradores locais se autodeclaram preta ou parda, representando a maior população de afrodescendentes da cidade de São Paulo. De acordo com o Censo de 2010, a UBS atende uma extensão territorial de 10,8 quilômetros quadrados, onde residem mais de 20 mil pessoas, distribuídas em 5.900 moradias.

É neste bairro e equipamento público de saúde que toda família de Herbet Lucas,19, jovem negro e estudante da Rede de Cursinhos Populares Ubuntu, se vacinou contra a covid-19 no segundo semestre de 2021.

Segundo levantamento de dados produzido pelo Desenrola que conversou com 44 jovens moradores das periferias do Jardim Ângela, com idade entre 16 e 29 anos, no início de setembro, 64% dos entrevistados responderam que receberam fake news, via meios digitais ou boca a boca, sobre os efeitos das vacinas aplicadas na população brasileiro para combater a pandemia de covid-19.

“Minha família foi afetada de tal modo que cogitaram até não se vacinar” 

Herbet Lucas,19, é morador da Cidade Ipava, bairro localizado as margens da represa Guarapiranga, zona sul de São Paulo.

 O jovem Herbert foi um dos entrevistados pelo estudo. Ele conta que antes de  sua mãe e seu padrasto aceitarem receber o imunizante contra a covid-19, uma batalha contra a desinformação foi travada por ele dentro de casa. “Geralmente a minha família recebe fake news em grupos de WhatsApp e até mesmo de amigos”, relata.

Após relatar como as informações falsas chegam até seus familiares, o jovem revela o impacto do consumo de fake news provocou uma hesitação em se vacinar contra a covid-19. “Minha família foi afetada de tal modo que cogitaram até não se vacinar pois alegavam ter um “chip” na vacina”, conta o estudante.

Ele considera que o fato causador da descrença na vacina tem relação direta com a ‘infodemia’. “A pandemia da desinformação afeta tanto na conscientização da população acerca da covid-19, e até mesmo na formação de opinião, seja ela política, ou de assuntos sociais”, argumenta.

Apesar das informações falsas serem passadas de boca em boca ou de grupo em grupo no WhatsApp, Hebert está atento ao formato destas notícias, por isso, ele segue pesquisando e buscando entender cada assunto através de fontes confiáveis, principalmente se for pela internet. A atitude do jovem de ajudar desmentir e explicar a inexistência do tal ‘chip’ dentro da vacina pode ter contribuído para salvar a vida dos familiares.

 Coalizão contra desinformação

Atenta a importância de construir programas de educação e companhas informativas sobre o impacto da desinformação na vida da população preta, pobre e periférica, a Coaliza Pela Vida lançou em setembro um conjunto de 10 medidas para combater o avanço e o surgimento de novas variantes da covid-19 na cidade de São Paulo.

Uma das medidas previstas no pacote de ações emergências é o combate a desinformação e proliferação de fake news. O coordenador da Coalizão Pela Vida, Beto Gonçalves destaca que as redes sociais poderiam ajudar nesse processo de combate às fake news, mas tem mais atrapalhado.

“Para combater fake news a gente tem que apostar na prevenção, passar informação confiável, utilizar pessoas de grande credibilidade pra passar boas informações e fazer um debate com o Facebook, Google e o Twitter, né? Isso faz a gente questionar o próprio modelo de negócio das redes sociais que acaba abrindo campo para a desinformação”, avalia o coordenador da Coalizão Pela Vida, que também é jornalista e um dos idealizadores da iniciativa.

Outra questão ponto crítico que potencializa o aumento da desinformação no ponto de vista de Gonçalves é a limitação no acesso à internet que muitos moradores das periferias convivem no cotidiano.

“Grande parte da população não tem crédito no telefone. Sem internet, elas não têm capacidade pra conseguir consumir tanta informação” 

Beto Gonçalves é jornalista e coordenador da Coalização Pela Vida.

A pesquisa TIC Domicílios 2019, publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) retrata bem o ponto de vista do coordenador da Coalização Pela Vida.

“Grande parte da população não tem crédito no telefone. Sem internet, elas não têm capacidade pra conseguir consumir tanta informação assim e nós sabemos que grande parte das pessoas vão preferir não ter um computador em casa, ela tem no máximo um celular como o pré-pago”, explica.

Na Região Metropolitana de São Paulo, 61% dos usuários de internet que residentes em áreas de baixa vulnerabilidade social acessam a rede por meio de celulares e computadores. O cenário muda completamente nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, onde 70% dos entrevistados usam somente o celular para se conectar a internet.

Para Gonçalves, o legado do acesso a internet precarizado possibilidade que o morador tenha dificuldade de consumir informação de qualidade, o aproximando ainda mais das fake news.

“Ou ela fica presa as redes sociais e não consegue navegar, o que não dá liberdade pra ela, o que limita o conhecimento, né? E nós sabemos também que uma coisa é o celular para quem tem acesso a livros, jornais e computador. Outra coisa é só ter acesso ao celular e ainda mais como pré-pago, isso limita demais”, argumenta.

Desigualdades raciais e digitais

Infelizmente, as desigualdades digitais fazem parte da vida do jovem morador da Cidade Ipava. Hebert lembra que além da sua família ser bombardeada por notícias falsas que reduziram o interesse em tomar a vacina contra a covid-19, o acesso à internet precário é outro fato que dificulta estar conectado à rede e pesquisar informações confiáveis para confrontar as notícias dos grupos de WhatsApp da família.

“Eu tenho internet em casa, mas é de baixa qualidade, também não possuo plano de internet móvel”, afirma. Segundo os Mapa das Desigualdades 2021, divulgado nesta quinta-feira (21) pela Rede Nossa São Paulo, os moradores do Jardim Ângela convivem diariamente com dificuldade de acesso à internet móvel de qualidade.

O estudo mostra que no distrito há 1,4 antenas de telefonia móvel para cada 10 mil habitantes, enquanto no Itaim Bibi, região nobre da cidade, existem 49,8 antes de telefonia móvel para o mesmo montante de moradores.

O valor recomendado pela Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações (ABRINTEL) é de uma antena de telefonia móvel para acesso à internet para cada 2.200 usuários. Esse estudo revela que o Jardim Ângela está 450% abaixo da média sugerida pela entidade setorial.

 “Sempre usamos a UBS quando precisamos, porque não temos convênio”

Herbet Lucas e os membros da sua família usam constantemente a UBS Cidade Ipava.

No distrito com a maior parcela de população afrodescendente, a desigualdade digital caminha lado a lado com a ausência de políticas públicas que ameaçam o direito à vida dos moradores. A expectativa de vida do morador do Jardim Ângela é de 61,2 anos, enquanto no Alto de Pinheiros, região nobre da cidade é 80,9, uma diferença de quase 20 anos.

Em 2020, as mortes por consequência da covid-19 representaram 19,6% do total de óbitos ocorridos no distrito, um dos maiores indicadores da cidade. Além disso, para um morador do Jardim Ângela tentar acesso ao serviço público de saúde mental, ele vai aguardar em média 44 dias até sair uma consulta com um especialista.

Enquanto a desigualdades não param de crescer no distrito de afrodescentes mais populoso de São Paulo, a importância do sistema único de saúde SUS aumenta. “Sempre usamos a UBS quando precisamos, porque não temos convênio”, finaliza o jovem. 

*Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios. O conteúdo dos artigos aqui publicados é de responsabilidade exclusiva dos autores e não reflete necessariamente a opinião das organizações. 

“Pra cá não tem nem calçada mano”: jovem compartilha os traumas da acessibilidade na quebrada

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 O jovem Marcos Vinícius trabalha próximo ao Metrô São Bento, no centro de São Paulo, como atendente de telemarketing. Todos os dias ele faz um trajeto de transporte público que percorre em média 60 quilômetros para ir e voltar do trabalho.

 O jovem Marcos Vinicius, 23, morador da Cidade Ipava, zona sul de São Paulo é um amante do Skate, esporte que transforma a experiência dele com acessibilidade de uma forma divertida de transitar pelas ruas e calçadas da quebrada e de outras regiões da cidade.

Desde que nasceu, ele é portador de Artrogripose, termo utilizado para se referir a má formação de articulações e membros inferiores e superiores de crianças recém-nascidas, que terão ao longo da vida uma dificuldade para se locomover.

Por conta dessa deficiência, o jovem skatista chegou a fazer tratamento na AACD e de vez em quando vai até lá para fazer exames ou passar na oficina ortopédica para realizar o conserto de seus equipamentos que ajudam na sua locomoção pela cidade.

O jovem trabalha próximo ao Metrô São Bento, centro de São Paulo, como atendente de telemarketing. Todos os dias ele faz um trajeto de transporte público que percorre em média 60 quilômetros para ir e voltar da sua casa até o local de trabalho, ficando cerca de três a quatro horas dentro do ônibus. (confirmar)

Neste cenário, Marcos relata que sua maior dificuldade se dá pelo fato de depender muito da acessibilidade para chegar até o trabalho. Sempre que está se preparando para entrar dentro do ônibus, ele percebe como os aparelhos de acessibilidade instalados nos coletivos e micro-ônibus não funcionam e acabam o deixando na mão.

“Tem uma história engraçada, uma vez eu estava voltando pra goma, era tarde já, acho que umas 23h30 da noite, última perua e eu estava querendo muito ir pra casa, não quis esperar outro. Aí o motorista teve que descer, ligou lá o bagui (elevador) e o bagui travou e todo mundo teve que descer do ônibus”, relembra Marcos.

Uma das das paixões de Marcos é o skate. (Foto: Flávia Santos)

 Marcos sempre foi um jovem desenrolado, que embora tivesse dificuldades de locomoção, sempre procurou estar envolvidos em projetos socioculturais. Ele já trabalhou com grafite, designer, gestão de redes e hoje é sócio de um amigo num empreendimento voltado para o mundo do skate, com o nome de “Sant Skate Shop”.

“Muita gente me conhece e me destaca por querer tentar fazer as coisas, mas tipo assim, isso não é uma peculiaridade minha, é uma peculiaridade das pessoas da quebrada!”, destaca ele, apontando que o fato de ter nascido numa família que sempre esteve envolvida com projetos sociais o ajudou a passar por todos os processos de inclusão social e construção de sua identidade.

Embora a superação faça parte da trajetória de vida do Marcos, o jovem conta que nem tudo é superável, como por exemplo, as barreiras cotidianas de acessibilidade que ele enfrenta no transporte público e nas ruas da cidade.


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“Na periferia a locomoção é muito difícil”, diz morador do Jardim Ângela – Desenrola E Não Me Enrola

Na segunda entrevista da série Barreiras da Acessibilidade, o morador Nelson Souza conta como um acidente que retirou 90% do seu braço contribuiu para ele sentir na pele o descaso de governantes com pessoas com deficiência, além de vivenciar situações de preconceito no ambiente de trabalho.
Foto: Flávia Santos

Segundo ele, não é apenas o transporte público que precisa de melhorias, pois as ruas e calçadas da quebrada também precisam ser bem estruturadas, assim como os terminais de ônibus, com uma melhor distribuição de rampas e elevadores nos acessos elevados.

“Passou do Capão pra lá é tudo mil maravilhas, agora pra cá não tem nem calçada, mano! A gente disputa espaço com os carros. Do caminho que você fez da sua casa até aqui, provavelmente não veio numa calçada”, reclama.

Ao compartilhar essas experiências do cotidiano de quem depende do transporte público e da acessibilidade para circular a cidade, Marcos enfatiza que esse debate precisa ser ampliado e focado na qualidade de vida dos moradores de quebrada.

“Acessibilidade na real é você conseguir tramitar na sociedade civil inteira, sem que você tenha nenhuma limitação, tá ligado? É o mínimo que uma pessoa com deficiência precisa ter para viver”, finaliza Marcos. 

“Na periferia a locomoção é muito difícil”, diz morador do Jardim Ângela

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Na segunda entrevista da série Barreiras da Acessibilidade, o morador Nelson Souza conta como um acidente que retirou 90% do seu braço contribuiu para ele sentir na pele o descaso de governantes com pessoas com deficiência, além de vivenciar situações de preconceito no ambiente de trabalho. 

Após sofrer um acidente de carro há oito anos, Nelson de Jesus Souza, 45, morador da Cidade Ipava, zona sul de São Paulo, precisou amputar o braço esquerdo. Após esse acontecimento, ele viu sua vida mudar de forma drástica, principalmente no ambiente profissional.

“Eu trabalhava na portaria e fiquei 11 meses afastado por conta da minha deficiência, e quando eu voltei eles me mudaram para um setor que eu sentia muito preconceito”, conta o morador.

Para Nelson, a mudança de posto de trabalho também era uma forma de esconder a sua deficiência dos moradores do condomínio onde ele atuava na portaria. “Não podia me deixar na portaria porque alguma criança poderia ver minha situação e ficar com medo, e eu vi isso como preconceito”, relata.

Ao recordar os acontecimentos desta época, Nelson lembra que essas situações significam atitudes de preconceito devido a sua deficiência física. Segundo o morador, até o seu ex-chefe já entregou para ele recortes de jornais com vagas de emprego, o induzindo a procurar outro lugar para trabalhar. 

São 34 quilômetros percorridos de transporte público diariamente para Nelson ir e voltar do trabalho. (Foto: Flavia Santos)

Hoje, Nelson trabalha oito horas por dia, numa empresa que possui outros funcionários deficientes físicos. Com essa convivência, ele consegue se sentir melhor no ambiente de trabalho, não só por se identificar com os colegas, mas também por ter acessibilidade para funcionários portadores de deficiência.

Ele faz questão de mostrar para as pessoas a sua volta que a sua deficiência não o impede de fazer atividades domésticas ou profissionais. Além de fazer comida e pentear o cabelo da filha mais nova, o morador também auxilia na construção de sua casa.

Atualmente, para chegar ao trabalho, o porteiro que é pai de três filhas, enfrenta todos os dias o trajeto de transporte público, que parte da Cidade Ipava e vai até o bairro da Chácara Santo Antônio, zona sul da cidade. 

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“Tenho dificuldade para me virar no ônibus cheio”, diz estudante com paralisia cerebral da Cidade Ipava

Quais são as barreiras impostas pelo transporte público no cotidiano de uma estudante da quebrada para se deslocar até a escola? Conheça essa história na primeira entrevista da série Barreiras da Acessibilidade do Desenrola.  


https://desenrolaenaomenrola.com.br/series-e-especiais/tenho-dificuldade-para-me-virar-no-onibus-cheio-diz-estudante-com-paralisia-cerebral-da-cidade-ipava

Trajeto de ônibus

Após um acidente de carro, Nelson teve 90% do braço amputado. (Foto: Flavia Santos)

São 34 quilômetros percorridos de transporte públicos diariamente. Durante esse percurso, Nelson conta que enfrenta muitas barreiras de acessibilidade e destaca que muitas dessas dificuldades estão no transporte público e na forma como as pessoas tratam pessoas deficientes.

“Por exemplo: a pessoa chega pra falar que está cansada porque está vindo do trabalho, só que eu também estou vindo do trabalho, e além de estar cansado mentalmente pelo estresse do trabalho, ainda tem sua deficiência, que te deixa com a mobilidade reduzida”, explica Nelson.

O morador afirma ter percebido que no bairro onde mora e nas regiões por onde passa para ir e voltar do trabalho, as pessoas com deficiência física ou cognitiva enfrentam todos os dias uma série de barreiras que impedem uma boa locomoção.

“Eu vejo que na periferia a locomoção para essas pessoas é muito difícil, quem tem deficiência passa por muitos desafios. É preciso ter dignidade, porque os governantes nos deixam muito esquecidos”, desabafa.

“Tenho dificuldade para me virar no ônibus cheio”, diz estudante com paralisia cerebral da Cidade Ipava

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Quais são as barreiras impostas pelo transporte público no cotidiano de uma estudante da quebrada para se deslocar até a escola? Conheça essa história na primeira entrevista da série Barreiras da Acessibilidade do Desenrola.  

Na pesquisa Viver Em São Paulo com o tema ‘Pessoas com Deficiência’ publicada em 2019 pela Rede Nossa São Paulo, um diagnostico chamou a atenção da sociedade civil e de gestores públicos: aumentou o número de paulistanos que percebem pessoas com deficiência utilizando o transporte público.

Neste contexto, entrevistamos a estudante Karen Carneiro, 17, moradora da Cidade Ipava, bairro do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, para ela relatar como o uso de transporte público faz parte do seu cotidiano. Ela depende do ônibus para ir e voltar da Escola Estadual Professor Alberto Conte, localizada em Santo Amaro, onde está cursando o segundo ano do ensino médio.

“A paralisia afeta principalmente o lado esquerdo do meu corpo”

Karen Carneiro é moradora da Cidade Ipava, bairro localizado no distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo.

Desde que nasceu, Karen é portadora de paralisia cerebral com diparesia. “A paralisia afeta principalmente o lado esquerdo do meu corpo e essa paralisia ocorreu por causa da falta de oxigênio na hora do parto”, explica a jovem que nasceu de parto prematuro.

A paralisia cerebral diparesia consiste em sequelas que promovem alterações do tônus muscular e distúrbios motores que geram dificuldade de equilíbrio e locomoção. Essas sequelas atingem principalmente membros inferiores do corpo humano, como a cintura pélvica, coxa, joelho, canela, panturrilha e os pés.

Karen sofre para se locomover até a escola pegando ônibus cheios e com pouco espaço para se segurar. (Foto: Flavia Santos)

Trajeto de ônibus até a escola 

Sempre que ela faz o trajeto da sua casa na Cidade Ipava até a escola em Santo Amaro, a estudante percorre cerca de 30 quilômetros, para ir e volta da escola. Como ela não usa um serviço privado ou público para pessoas com deficiência física, o transporte público é a solução de mobilidade mais acessível para se chegar até o seu destino.

“No meu trajeto logo que saio de casa para pegar o ônibus eu enfrento um pouco de dificuldade para se virar no ônibus cheio com a mochila, porque o equilíbrio é um pouco menor do que o de pessoas sem algum tipo de deficiência ou mobilidade reduzida”, relata a estudante sobre a sua rotina dentro do coletivo.

“Ainda encontro calçadas altas e baixas e outros desníveis e irregularidades”

Karen Carneiro, 17, é estudante do segundo ano do ensino médio na Escola Estadual Professor Alberto Conte.

As barreiras que interferem na acessibilidade da jovem até a escola não param por aí, pois após descer do ônibus, ela conta que o caminho até a escola revela novos desafios. “Logo quando chego próximo a escola tenho menor dificuldade, mas ainda encontro com calçadas altas e baixas e outros desníveis e irregularidades.”

Além do transporte público e das calçadas desniveladas apresentarem uma série de barreiras, Karen diz que na escola em que estuda não há recursos e estruturas necessárias para alunos portadores de deficiência, e agora que as aulas voltaram para o modo presencial, essa perspectiva ficou ainda mais evidente, pois para ela, mesmo tratando-se de uma escola antiga e tradicional na região de Santo Amaro, a adaptação para outros alunos seria de grande valia. 

Pandemia e futuro 

Mesmo enfrentando essas barreiras de acessibilidade, a estudante se descreve como uma jovem tímida, indecisa e caseira, mas que possui muitos sonhos e metas, reforçando que a sua deficiência física não a impede de circular a cidade e viver experiências de vida que façam sentido para a vida dela.

Desta forma, Karen segue em busca de realizar seus sonhos e metas pessoais, o que gera combustível para continuar seguindo em frente. “O meu sonho atualmente é terminar o ensino médio e entrar numa universidade federal, mas ainda estou pensando o que vou cursar e depois pensar em constituir uma família”, afirma.

Ficar isolada em casa com seus familiares durante quase dois anos, no período da pandemia, deu origem a criação de hábitos saudáveis e de cuidados pessoais importantes para o bem-estar de Karen. “Por conta da paralisia, a pandemia me fez começar a fazer atividades físicas que é algo importante”, conta a estudante. 

“Hoje eu entendo que sou como qualquer pessoa, capaz de fazer qualquer coisa”

Karen Carneiro tem paralisia cerebral que atinge principalmente o lado esquerdo do seu corpo.

Além da saúde física, a moradora da Cidade Ipava também passou a cuidar da saúde mental. “Tive ajuda de um psicólogo para eu entender como uma pessoa com paralisia é uma pessoa normal como qualquer outra”.

Após relatar essa série de experiências para enfrentar as barreiras da acessibilidade que começam na sua quebrada e se estendem por toda a cidade, Karen concluiu que tudo que aprendeu e exercitou durante esse período é fruto do seu reconhecimento como pessoa, jovem, mulher e deficiente físico da quebrada.

“Hoje eu entendo que sou como qualquer pessoa, capaz de fazer qualquer coisa e a importância de fazer tudo no seu tempo, se demorar ou não, isso não impede de eu buscar e fazer o que quero”, finaliza.

Maracatu Ilê Aláfia: uma história de luta e cuidado na periferia de São Paulo

Através de ações com a comunidade local, o Ilê Aláfia, grupo de Maracatu que surgiu no Jabaquara, zona sul de São Paulo, vem atuando na disseminação de arte, cultura e lazer, com crianças e jovens de diversas regiões periféricas.

Grupo Ilê Aláfia em apresentação na comunidade do Vietnã, no distrito do Jabaquara, zona sul de São Paulo. Foto: Mateus Fernandes.

O acesso e fortalecimento à cultura nas periferias, é um dos temas de constante discussão, luta e ação entre coletivos e movimentos periféricos, que criam possibilidades e perspectivas nos territórios. Pensando em atender a comunidade e criar espaços culturais nas periferias, em 1999, nasce no Jabaquara, zona sul de São Paulo, o grupo de Maracatu Ilê Aláfia.

O grupo surgiu como um projeto de extensão cultural, que por meio de manifestações da cultura popular afro-brasileira, possibilita à população acesso a arte, lazer, conhecimento e informação. 

O início

Segundo dados do Censo Demográfico, do IBGE, dos mais de 200 mil habitantes do distrito do Jabaquara, 34,2% se autodeclaram como negros. Este cenário foi um dos influenciadores para que o grupo de maracatu Ilê Aláfia, se fixasse na região. O grupo nasceu como um projeto social no espaço ACM CDC – Centro de Desenvolvimento Comunitário Leide das Neves, como conta Audrey Manfredini, integrante da coordenação geral e da percussão do grupo.

Audrey Manfredini é uma das artistas que compõem o grupo Ilê Aláfia. Foto: Mateus Fernandes

“Num primeiro momento, conta-se a história, que as criadoras do grupo gostariam muito de trabalhar com linguagens dentro das culturas tradicionais que valorizassem a negritude. Por que isso? Porque o CDC está inserido num bairro periférico e grande parte das crianças são crianças pretas”

afirma Audrey, sobre uma das motivações para a criação do grupo há 22 anos atrás.

Audrey conta que o grupo de maracatu foi criado por Nelci Abilel e Maria Conceição, e ao contrário de outros grupos percussivos, o Ilê Aláfia não começou a trabalhar o maracatu pela parte musical, mas sim pela dança.

A artista afirma que Nelci Abilel, uma das fundadoras, conta como o maracatu encantou as crianças pelo fato de ter um rei e uma rainha negros. Fazendo com que as crianças quisessem se aproximar desse lugar, além da questão da musicalidade.

Ela também relata que outra fundadora do grupo, Maria Conceição, uma mulher negra e dançarina, sempre trabalhou com linguagem corporal, tradições culturais e formações artísticas, todas dentro dessa temática. Assim, Conceição trouxe esse corpo no maracatu para as crianças e conforme foram surgindo mais integrantes, foram atrás dos instrumentos de percussão.

Percussão do grupo Ilê Aláfia em apresentação. Foto: Mateus Fernandes.

Aos poucos o projeto foi agregando as famílias dos alunos e se tornou mais que uma atividade programada apenas para os estudantes ao longo da semana, e passaram a ser um projeto de extensão realizado aos sábados, unindo ainda mais pessoas da comunidade.

Um dos objetivos do grupo é fomentar o território, como relata Audrey: “Não é só ir lá, colocar uma roupa bonita, pegar um instrumento, cantar, tocar, dançar e tchau”, reforçando a ligação do maracatu com as pessoas e comunidades.

O Ilê Aláfia também abriu espaço para pessoas além do território no Jabaquara, como é o caso da Audrey, que é de Santo André e ingressou no grupo em 2014. Hoje, o Ilê tem entre os seus integrantes pessoas de diversas localidades de São Paulo, desde participantes da zona leste até o extremo da zona sul.

Apresentação do grupo no evento “O Mundo Jabaquara”. Foto: Mateus Fernandes

O Ilê Alafia nasce de um projeto social e ainda se mantém com essa característica. A ideia é ajudar e estar presente para as pessoas que integram o coletivo, além de buscar formas e ações específicas de atuação externa, como uma rede de apoio, para ganhar ainda mais força nos territórios que atuam, como conta Audrey:

“O maracatu é música? É. O maracatu é dança? É. Mas o maracatu é além disso. É união, é troca, é essa essência, é esse cuidado existente principalmente das periferias das grandes capitais”

O evento “O Mundo Jabaquara” ocorreu na comunidade do Vietnã, no bairro Vila Santa Catarina, distrito do Jabaquara. Foto: Mateus Fernandes.
Apresentação do grupo Ilê Aláfia. Foto: Mateus Fernandes
Apresentação do grupo Ilê Aláfia. Foto: Mateus Fernandes

Há 4 anos, o grupo Ilê Aláfia se desvencilhou do ACM CDC Leide das Neves, período em que o grupo passou a não ter o apoio de uma instituição e os seus integrantes, crianças e adultos, também começaram a entender a função de cuidar não só da continuidade desse trabalho no aspecto artístico, mas também no aspecto social.

“Depois de dezoito anos de existência a gente se desvinculou desse CDC, a gente ficou maior de idade, digamos assim. Nosso maracatu de deixa de de existir abaixo desse CDC e ele passa a ser gerido pela própria comunidade ”

conta Audrey.

Há 22 anos, o grupo cria espaços de encontros, rodas de conversas, formações, incentivando a dança e a música, unindo o saber e a cultura popular as raízes afro-brasileiras através do maracatu, e buscam seguir o propósito do nome que carregam enquanto Ilê Aláfia, como casa da felicidade.

Readaptação das atividades

Em 2020, o grupo foi contemplado pelo Programa de Fomento à Cultura da Periferia, que previa atividades como rodas de conversas com discussões sobre temas voltados para intolerância religiosa, afroempreendedorismo, culturas tradicionais do Jabaquara e história da população negra. Devido a pandemia, tanto essas rodas de conversa como as formações de dança e música, acabaram se tornando encontros virtuais.

As dificuldades de acesso a internet, que é uma questão para muitos moradores das periferias, também atrapalhou o grupo. Os encontros online acabaram tendo poucos participantes e a falta de acesso a internet foi um fator chave, sendo que grande parte do público atendido é composto por crianças que moram nas periferias.

O grupo fez um levantamento e constatou que a maior parte delas utilizavam o celular dos pais, muitas vezes com plano de internet limitado. “Essas crianças, a gente fez um levantamento pela internet mesmo, elas utilizavam o celular dos pais né? Aquele plano de internet já limitado e na hora que o pai, a mãe, a vó ou o responsável pudesse. E nem sempre dava”

Robson Vicente, Vinicius Cruz, Pedro Henrique Silva e Julio Cesar Silva, integrantes da percussão do Ilê.

Segundo pesquisa realizada pelo CETIC – Centro de Tecnologia, Inovações e Comunicações, para avaliar o acesso à tecnologia, 30% das casas no Brasil não têm acesso à internet. Nas classes D e E, este percentual alcança 59% dos domicílios que não acessam a internet e 85% das pessoas que acessam, usam a internet apenas pelo celular.

A cidade de São Paulo possui cerca de 7.509 estações de telecomunicações, segundo a Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações. O número parece alto, porém, na prática há uma grande desigualdade na conexão de internet em bairros nobres e periféricos de São Paulo.

Todos esses fatores limitam o acesso à conexão para as crianças. Além de acabarem usando a internet na hora que a mãe, pai ou responsável podem emprestar o celular, havia também momentos que ocorria o acesso a esse celular, mas não a conexão com a internet.

Devido às dificuldades e ao agravamento da pandemia, o grupo optou por dar um tempo nas atividades e só agora está retornando ao presencial:

“Tem quem não queira voltar até tomar a segunda dose. Tem quem quer voltar só se for presencialmente porque não aguenta mais a questão virtual. Tem quem acabou se afastando do maracatu , com o distanciamento da pandemia, enfim, tem uma série de coisas e nesse momento preferimos se afastar”

compartilha a coordenadora do grupo.

Sidcleia é dançarina no grupo Ilê Aláfia. Foto: Mateus Fernandes

O primeiro reencontro presencial do Ilê Aláfia durante a pandemia, aconteceu em junho deste ano, com um time reduzido. Convidados pela subprefeitura do Jabaquara, que está realizando uma série de ações no território voltadas à comunidade, o grupo está fazendo algumas apresentações dentro do circuito. Uma dessas apresentações foi no evento “O Mundo Jabaquara”, que ocorreu em setembro deste ano.

Após as apresentações, o grupo faz seu agradecimento, o Axé. Foto: Mateus Fernandes.

O grupo planeja voltar totalmente presencial ainda este mês de outubro, e a partir disso, pensar nos próximos passos ainda com todos os cuidados necessários com a pandemia, pois há pessoas no grupo que ainda não se sentem seguras em voltar:

“Todas essas questões são legítimas e a gente tá programando essa tentativa de uma primeira volta a partir do mês de outubro, pra gente ir tentando entender mais ou menos como é que isso pode acontecer.”

finaliza Audrey, ressaltando que o grupo entende as vontades e receios de seus integrantes para poder acolhê-los e continuarem aplicando o significado do nome Ilê Aláfia: Casa da Felicidade.

Confira as redes sociais do grupo Ilê Aláfia :