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Fome, morte e desinformação: a bomba relógio na saúde mental dos moradores das periferias

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Com o avanço das desigualdades sociais, fake news e a desinformação, terapeutas analisam os impactos destes problemas estruturais na saúde mental da população periférica durante a pandemia de covid-19. 

O cemitério São Luís, localizado na zona sul de São Paulo, passou por uma intensa transformação de paisagem durante a pandemia de covid-19, devido ao grande número de covas abertas. (Foto: Menino do Drone)
Em um levantamento sobre perspectivas de vacinação da juventude periférica, realizado em setembro de 2021, pela equipe de reportagem do Desenrola, identificamos que entre os 44 jovens que participaram do levantamento, 18 deles trouxeram apontamentos e queixas em relação à saúde mental ao perguntarmos qual a maior diferença que eles notaram em si mesmos comparado o período antes e durante a pandemia.

“Sinto que minha saúde mental decaiu durante a pandemia. Me senti por diversas vezes insegura, sem uma utilidade. Precisava de um emprego e não conseguia. Realmente incapaz! Tive problemas com ansiedades e afins”

Esse é relato de uma jovem de 23 anos que participou do levantamento realizado pelo Desenrola em setembro deste ano.

Além do aumento da fome, desemprego, mortes e outras tantas desigualdades, a pandemia também aumentou a proliferação da desinformação e fake news.

Diante deste cenário, conversamos com duas psicólogas que atuam com a população periférica, para discutir essas questões e traçar perspectivas sobre como esse contexto de desigualdades sociais e digitais afetou e ainda impactará a saúde mental dos moradores.

Segundo Thainá Aroca, psicóloga clínica, psicanalista em formação e integrante da rede PerifAnálise, um grupo de terapeutas que atuam nas periferias da zona leste de São Paulo, os filhos da classe trabalhadora já enfrentavam uma realidade difícil anterior à pandemia. 

“O jovem periférico acaba tendo que enfrentar diretamente as dificuldades e os problemas de casa e assumir uma responsabilidade dentro de casa e ter uma preocupação financeira da dinâmica de casa, acabam tendo que contribuir com a renda da família para não serem despesas”

Thainá atua na linha de frente de combate aos transtornos da saúde mental da população negra e periférica durante a pandemia de covid-19.

Impactos da desinformação 

Para Rosimeire Bussola, psicóloga atuante no SUS, psicanalista e também integrante da PerifAnálise, a pandemia mostrou os riscos das notícias falsas e o quanto podem gerar mortes.

“Enquanto nação, são as autoridades porta-vozes dos acontecimentos a nível social, são essas figuras que têm a responsabilidade de transmitir à população de modo seguro os acontecimentos”, enfatiza ela.

“Podemos ver o horror, o despreparo e desserviço causado por essas pessoas, incluindo principalmente o Presidente da República, que fomentou mentiras, desqualificou o trabalho científico”

Rosimeire Bussola reconhece o impacto da desinformação gerada por líderes políticos nos moradores das periferias.

A psicóloga ainda complementa: “Motivou a população a se aglomerar, criando um ambiente de risco e fazendo uso das notícias falsas para validar as suas falas”, analisa Rosimeire, e afirma que com posturas como essa, geraram dúvidas e incertezas que influenciam pessoas a comportamentos de risco.

“Perdi muito do pouco que tinha de controle da minha saúde mental, e com a atual conjuntura econômica do país e todo esse turbilhão de informações, digamos que influenciou um pouco no meu cotidiano e na ansiedade”

Esse é outro relados de um dos jovens que participaram do estudo realizado pela nossa equipe de produção de dados

Devido ao avanço do desemprego entre moradores das periferias, a fome avançou em muitos territórios, fato que aumentou a demanda de atuação das ações solidárias realizadas por movimentos sociais. (Foto: Thiago Fernandes)
Rosimeire pontuou ainda sobre o excesso e a busca de informações em fontes seguras, o que pode também influenciar na saúde mental. “Me parece que dá a falsa impressão de que quanto mais eu souber menos exposto serei, entretanto, num contexto de disseminação de notícias falsas, será necessário uma dupla atenção em relação a quem traz a notícias e que conteúdo é esse, para assim quem sabe, se proteger desses riscos.”

A psicóloga Thainá ressalta que embora nas periferias a realidade do acesso à internet e outras garantias sociais ainda sejam muito precárias, ela percebeu em sua experiência clínica, que no momento de distanciamento social durante a pandemia, foi na internet que muitos jovens encontraram espaço de troca e conversas, como uma fonte de refúgio e respostas para a insegurança gerada pela pandemia e a falta de gestão pelas autoridades do país gerou na população de modo geral.

“O acesso às informações acabou se tornando uma ‘faca de dois gumes’ digamos assim, ao mesmo tempo que informou e trouxe algumas respostas importantes para a população, gerou sobrecarga, uma vez que fruto de uma má gestão estatal a população mais vulnerável se viu sem outras alternativas de articulação a respeito daquilo que estava sendo informado”, aponta a psicóloga.

Políticas públicas 

Ao analisar o cenário no qual os moradores das periferias, mulheres, pessoas pretas e lgbtqia+, foram a população mais afetada pela pandemia, fake news e desinformação, Rosimeire Bussola afirma que para pensar uma melhora da saúde mental dessa população, é preciso pensar no fortalecimento das políticas públicas, na garantia do acesso aos serviços do SUS e do SUAS – Sistema Único de Assistência Social.

“Ao acessar esses serviços, à população pode ter um espaço de promoção e prevenção de saúde, tratamento dos agravos deixados pela pandemia e informação construída de modo comunitário, pois esses serviços estão nos territórios, conhecem a realidade local, e juntos com a população pensam estratégias de cuidado”, explica a profissional. 

“Já havia um quadro de ansiedade antes da pandemia, mas no ano de 2020 tudo se agravou e passei pela depressão. Foi um momento extremamente difícil. Havia tantas preocupações, era um caos mundo afora. Muita gente morrendo, medo de familiares e amigos se tornarem vítimas do vírus, ao mesmo tempo que lutava para me manter firme nos estudos, e como não conseguia, me sentia horrível. Desenvolvi a compulsão alimentar como nunca antes (já sofria de transtorno alimentar). Enfim, foi realmente um ano horrível. Porém, hoje venho melhorando de pouco em pouco, me sentindo mais forte a cada dia”

Relato de uma jovem de 17 anos, moradora da zona sul de São Paulo.

Thainá alerta que a piora da saúde mental da população periférica também faz parte de um cenário anterior à pandemia. “É importante ressaltar que as consequências da piora da saúde mental da população periférica percebida na pandemia não está exclusivamente relacionada com o início da pandemia da covid-19, mas sim está ligada ao agravamento de todas as restrições de acesso e estado de exceção que essa população já convive diariamente, antes mesmo da covid-19”, aponta a psicóloga.

Ele lembra que em 2020, o Ministério da Saúde, baseado no documento “Diretrizes para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”, pretendeu revogar portarias que organizam os serviços em Saúde Mental, no sentido de minar o funcionamento dessas políticas e focar em hospitais e ambulatórios psiquiátricos, enfraquecendo a atuação do CAPS, por exemplo.

Após décadas de implementação da RAPS – Rede de Atenção Psicossocial que estruturam a reforma psiquiátrica brasileira, a RAPS é apoiada na liberdade e na socialização de pessoas em sofrimento psíquico.  A psicóloga ressalta que pensar saúde mental junto com a população periférica é também defender os serviços de saúde pública e denunciar ataques à Rede de Atenção Psicossocial

“É defender políticas de cuidado em saúde mental veementemente contrários à lógica racista, classista e punitivista em que estrutural e historicamente são fundadas prisões e manicômios. É defender o SUS e sua transversalidade de atuação”

A terapeuta da Rede PerifAnálise valoriza o legado do Sistema Único de Saúde – SUS, pelo fato de ser a principal serviço de acesso a saúde pública no país.

Thainá pontua que os coletivos e movimentos sociais periféricos foram os mais interessados em pensar ações de suporte e assistência para a quebrada nesse momento de crise. “Só demonstra o abismo de que os interesses do Estado não só não contemplam as realidades periféricas, assim como as negligência, sendo que é papel do Estado a garantia de acesso a direitos básicos à população de modo geral”.

“Minhas crises de ansiedade aumentaram, eu tive um momento de quarentena que faltou muito pouco para ter um surto. Fiquei o máximo que pude em casa, mas em algum momento temos que sair”,  relata jovem de 21 anos, moradora da zona sul de São Paulo, que respondeu ao nosso levantamento de dados sobre saúde mental.

As psicólogas analisam que o atual cenário é preocupante e o futuro é duvidoso, por estarmos vivendo num contexto de retrocesso e desinvestimento nas políticas públicas de saúde, especialmente na saúde mental, além do desmonte das políticas já existentes.

“Alertamos que para que a saúde mental dos jovens periféricos possa ser cuidada, é importante que haja acesso aos serviços públicos que garantam atendimento à saúde mental”, reforçam as profissionais da saúde mental.

Pandemia de desigualdades viola direito ao convívio familiar de crianças nas periferias

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Em busca do sustento para os filhos, mãe solo enfrenta diariamente uma jornada tripla, que transforma a filha adolescente em responsável pelo irmão de cinco anos, que nessa faixa etária de idade não tem acesso a serviços públicos de educação infantil.  

Com a chegada da pandemia, as mães solo nas periferias de São Paulo se desdobraram para manter uma estrutura de cuidados com os filhos. Essa é a história da Irenilza Soares da Cruz, 46 anos, moradora do Cidade Ipava, bairro localizado no distrito do Jardim Ângela, zona sul da cidade.

Irenilza é conhecida carinhosamente como “Tuca” no território onde mora. Ela é mãe de cinco filhos, entre eles estão Thaís, 27, Stephanie, 21, João Pedro,14, e Thayná de 12, adolescente responsável por cuidar do irmão mais novo, o Luiz Fernando de cinco anos.

Baixa renda e jornada tripla 

Segundo o Mapa da Desigualdade de 2021 da Rede Nossa São Paulo, a remuneração média mensal de um trabalhador com emprego formal no distrito do Jardim Ângela é de $2.450,00, mas o salário que Irenilza recebe por mês não chega a um terço desse valor.

“É difícil manter a casa só com um salário, porque vem conta de água, de luz, perua escolar. Então a gente vai fazendo como pode, esse mês compra uma coisa, mês que vem compra outra e assim vai”, conta Irenilza.

O fato de Irenilza deixar seus filhos sozinhos não se trata somente da confiança que tem em Thayná, mas também da necessidade de manter a casa e comprar o alimento para a família.

“Com esse dinheiro que minha mãe pagaria pra outra pessoa cuidar, ela tá juntando pra comprar as coisas pra dentro de casa” explica a adolescente.

Irenilza trabalha em três lugares diferentes, um deles é o seu bar que fica próximo da sua casa na Cidade Ipava. (Foto: Flavia Santos)

“Quando eu chego do trabalho, vou lavar uma roupa, porque o resto das coisas minha filha mais nova já fez”

Irenilza é mãe de cinco filhos, uma dele é o Luiz de cinco anos.

Enquanto isso, a mãe se divide em três trabalhos: atuando como boleira, atendendo os clientes do seu barzinho e ainda realizando a venda de cosméticos como parceira da Avon. A Tuca foi casada por 16 anos, mas hoje se encontra separada e ela não poupa esforços para dar o melhor aos seus filhos.

Essa jornada tem sido ainda mais pesada e cansativa, pois a renda dela tem sido insuficiente para fazer as compras do mês, fato que a obriga a trabalhar em diversos lugares e ter pouco tempo para conviver com os filhos.

De segunda-feira a sexta-feira, Irenilza sai às cinco da manhã de casa, e a partir deste momento sua filha Thayná de 12 anos começa a cuidar das atividades domésticas e da criação de Luiz, seu irmão mais novo.

“Quando eu chego do trabalho, vou lavar uma roupa, porque o resto das coisas minha filha mais nova já fez”, relata Irenilza, apontando o papel da filha nos cuidados com a organização da casa.

Thayná tem 12 e está cursando a sexta série. De segunda-feira a sexta-feira, ela cuida do irmão mais novo, Luiz de 5 anos, para a mãe conseguir se dedicar à três frentes de trabalho, que compõe a renda da família. (Foto: Flávia Santos)

A violação do convívio 

Com a rotina puxada, ela relata que às vezes não consegue aproveitar o tempo com as crianças, mas que sempre se esforça para fazer algo diferente e estar mais perto da família.

“Tem dias que eu não consigo ter um tempinho pra eles porque eu chego muito cansada, mas o que eu consigo fazer com eles quando posso eu faço”, afirma.

O tempo para Irenilza é tão curto que ela não consegue participar das reuniões escolares dos filhos, porque os horários da escola não se encaixam na sua rotina, e suas filhas mais velhas também não conseguem ir porque trabalham.

Atuando desde 2011 como conselheira tutelar na região da M’ Boi Mirim e Jardim Ângela, Silvana Farias, de 50 anos, comenta que pandemia obrigou as mães solo a abandonar o emprego ou a deixar seus filhos em casa sozinhos para assegurar o trabalho e a renda da família.

“Aumentou os casos de mães que não sabiam como ter que trabalhar e não ter com quem deixar os filhos, foi complicado pois de qualquer forma a mãe era orientada e aconselhada que mesmo diante de tudo o que estava acontecendo, os filhos teriam que ter a supervisão de parentes ou vizinhos, sendo assim alguns conseguiram, outros abandonaram seus empregos”, relata a conselheira.

A conselheira destaca que esse cenário impacta ainda mais o convívio e a afinidade que precisa ser desenvolvida entre pais e filhos. “As famílias de hoje já não têm convívio algum, os pais têm pouco tempo para os filhos e de certa forma atrapalha no crescimento enquanto indivíduo, pois os conselhos que tínhamos antigamente poucas famílias trazem consigo para passarem este conceito de geração em geração”, explica.

“Entre 0 e 3 anos e 11 meses a criança tem a creche com período integral, mas entre os 4 e 5 fica sem esta assistência”

Silvana Farias é conselheira tutelar há 10 anos e tem vasta vivência com atendimento a mães solo no Jardim Ângela. 

Silvana ressalta que a situação vivenciada por Irenilza, que tem um filho de cinco anos, afeta outras mães e famílias de todas as periferias de São Paulo, pois na primeira infância fica mais difícil conseguir um equipamento público de educação infantil com vagas abertas para essa faixa etária.

“Entre 0 e 3 anos e 11 meses a criança tem a creche com período integral, mas entre os 4 e 5 fica sem esta assistência, e com 6 anos pode ser inserido nos Centros de Crianças e Adolescentes (CCAs), só temos estas políticas públicas para auxiliar nesta fase da infância, não existe equipamentos públicos que poderiam atender com esta idade, isto é uma das dificuldades que temos”, conta a conselheira tutelar.

Nesse contexto, a pandemia contribuiu para o aprofundamento de problemas que antes eram pontuais entre as famílias do território. “Com certeza as famílias da periferia foram as mais afetadas neste período de pandemia, as denúncias por ‘abandono de incapaz’ aumentaram bastante”, aponta ela, argumentando que o abandono de crianças só aumentou porque as mães não tinham com quem deixar os filhos.

Felizmente, esse não é o caso da família de Irenilza, mas segundo a conselheira tutelar, muitos pais perderam seus empregos durante a pandemia, gerando um aumento significativo no atendimento do conselho tutelar da região.

“Quanto a questão financeira, muitas destas famílias perderam seus empregos e ficaram à mercê do auxílio emergencial, na nossa região muitas ONGs e movimentos acabaram auxiliando as famílias” diz a conselheira, reconhecendo a importância das ações solidárias que aconteceram na região, para garantir principalmente acesso a alimentação.

Embora tenha pouco tempo para conviver, Irenilza faz questão de ser uma próxima para a filha adolescente. (Foto: Flávia Santos)

Filhos sozinhos na pandemia 

Irenilza conta que a preocupação que sente em deixar seus filhos mais novos sozinhos é grande, não só pelo fato de a qualquer momento algo pode acontecer, mas principalmente porque ainda são crianças.

“Eu saio pra trabalhar, mas com aquela preocupação, que pode um fio ter um curto, o mais novo de 5 anos pode engasgar, porque ele é uma criança que se engasga muito. Então a gente sai para trabalhar, mas com aquele pensamento, sabe?”, desabafa.

Segundo Irenilza, a pandemia só piorou a preocupação com os filhos, porque as crianças nesse período ficaram mais doentes, e como ela não pode faltar no serviço, a insegurança toma conta dos seus pensamentos que focam na saúde das crianças e o medo de estar longe de casa.

Responsável por cuidar do irmão de cinco anos, Thayná está cursando a 6ª série na Escola Municipal Professor Edvaldo dos Santos Dantas. Ela conta que é raro os momentos que consegue se encontrar com seus amigos.

“Mesmo chegando cansada, minha mãe chega e brinca com a gente”

Thayná considera a mãe como uma grande amiga.

Mesmo na adolescência, Thayná já demonstra um amadurecimento em relação a situação da mãe e com os cuidados do seu irmão mais novo. “Minha relação com eles é muito boa. Eu sinto que estou tendo bastante responsabilidade né, cuidar assim, sendo tão nova”, diz a estudante.

Apesar de não ter tempo para conviver com os amigos da escola, ela conta que sua mãe todos os dias se torna sua melhor amiga, elas conversam e brincam bastante juntas. “Mesmo chegando cansada, minha mãe chega e brinca com a gente quando consegue, ela é muito brincalhona”, revela Thayná.

A partir dos relatos de Thayná, que demonstram o impacto de cuidar do irmão mais novo nas suas relações sociais com outros jovens da mesma idade, convidamos a psicóloga Thaís Ferreira,32 anos, formada pela Universidade Metodista e que atende famílias das periferias, para analisar suas respostas.

A terapeuta enfatiza que numa situação como essa vivenciada pela adolescente é de suma importância manter uma relação sadia e próxima entre pais e filhos. “Uma criança que acaba tendo que cuidar de outra, infelizmente ambos perdem aquele momento que precisavam ter com os pais, já que alguns acabam se responsabilizando pelo outro filho”, avalia a psicóloga.

“Oriento muito sobre atividade física para os adultos e para as crianças, o brincar, ter rotinas, mas cuidado com o excesso de telas digitais”

Thaís Ferreira é psicóloga com experiência em atender famílias em situação de vulnerabilidade social nas periferias. 

Ela aponta que os impactos na saúde mental que envolvem essas situações de mães solo se intensificou durante a pandemia, afetando ainda mais o cotidiano das famílias. E que isso é tratado com cuidado caso a caso, mas que em sua maioria, as orientações e conselhos passados se assemelham.

“Eu sempre oriento as famílias a se ‘reinventar’, se adaptar, entender que foi algo que não estava no nosso controle, e então não podemos dominar a situação”, explica.

Ela esclarece que em situações de confinamento e perda de relações sociais, a prática de exercícios físicos ajuda no alívio da ansiedade e da depressão. O que ajuda bastante também é o desapego das tecnologias e redes sociais, tirar um tempo para si mesmo e praticar atividades que gosta.

“Oriento muito sobre atividade física para os adultos e para as crianças, o brincar, ter rotinas, mas cuidado com o excesso de telas como tablet, celular, televisão e games”, finaliza a terapeuta,

“O uso de máscaras é fundamental”, afirma especialista em patologias humanas

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Falas sobre a flexibilização do uso de máscaras em locais abertos e publicidades governamentais influenciam moradores das periferias a acreditarem que a pandemia de covid-19 está no fim. Entrevistamos uma especialista em patologias humanas, que analisa os impactos das medidas e de falas de representantes do poder público sobre esse cenário. 

Foto: Di Campana Foto Coletivo

Desde o início de novembro deste ano, eventos de esporte, cultura e lazer, estão liberados para serem realizados com a capacidade máxima de lotação, sendo obrigatório o uso de máscara e apresentação do comprovante de vacinação para a entrada do público. O governo do estado de São Paulo também começou a cogitar a possibilidade da liberação do uso obrigatório de máscaras em locais abertos.

Mas de que forma esses anúncios por parte do poder público e a flexibilização de medidas preventivas para o combate a covid-19 impactam no cotidiano dos moradores das quebradas?

Conversamos com uma especialista em patologias humanas, que fez uma análise desse cenário nos territórios periféricos e também com um morador do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, que contou não ter seguido todas as medidas de prevenção à covid-19, e apenas utilizou máscaras em locais fechados por ser obrigatório.

“Infelizmente ainda não podemos flexibilizar o uso de máscaras”

Zezé Menezes é mestre em Patologia Humana pela FIOCRUZ  e Universidade Federal da Bahia 

Para Zezé Menezes, mestre em patologia humana pela FIOCRUZ/UFBA, ativista da rede Coalizão pela Vida, Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e Coalizão Negra por Direitos, ainda não é o momento para levantar o debate sobre a não obrigatoriedade de máscara ou de outras medidas de combate à covid-19.

“Infelizmente ainda não podemos flexibilizar o uso de máscaras e nenhuma das medidas de prevenção ao contágio pelo vírus Sars-Cov-2, simplesmente porque ainda ocorre sua transmissão no Brasil e na maioria dos países. Os dados científicos mostram que, ao contrário, o período que se aproxima, com as festas de finais de ano, requer cuidado redobrado”, aponta a especialista.

Atitude negacionista

“Eu mesmo não usei nada e não segui nada [recomendações contra a covid], eu me incomodei de usar a máscara, mas usei quando necessário, mas muita gente não usou, e aí, por exemplo, você vai no mercado tem que usar, mas na rua mesmo as pessoas sempre ficaram sem máscara”, afirma o morador do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, que preferiu não se identificar.

O morador nos contou que nesse período de pandemia, não seguiu recomendações de órgãos de saúde, mas tomou as duas doses da vacina por grande influência da família. Ele afirma utilizar a máscara para entrar em estabelecimentos que exijam o uso da proteção.

“Eu hoje estou é pior que no começo, porque agora parece que não tem mais covid, ninguém usa mais máscara em quase lugar nenhum por aqui onde eu moro, e assim, eu acredito que possa evitar eu pegar o vírus, mas não 100%”, coloca.

O morador reforça que não é adepto do uso de máscaras e álcool em gel de força espontânea. “Eu não uso álcool, às vezes uso a máscara pra entrar nos lugares fechados mesmo”. 

Zezé Menezes é integrante da Coalização Pela Vida. (Reprodução YouTube)

Publicidade governamental 

Segundo a mestre em patologia humana, os governos tanto Federal, quanto os Estaduais e Municipais, têm passado para a população uma falsa ideia de segurança. “É perceptível o grande número de pessoas que abandonaram o uso de máscaras após serem vacinadas. Isto não é real, basta ver que ainda temos óbitos causados pela covid, ou seja, as medidas preconizadas pela OMS há quase dois anos seguem atuais”, coloca Zezé.

“A população, entretanto, é bombardeada por uma intensa propaganda governamental que dá um tom de normalidade na vida social e tem como consequência expor estas pessoas ao contágio pelo covid-19 e o risco de morte ou de desenvolverem sequelas”

afirma a especialista em patologia humana e ativista da rede Coalizão pela Vida.

O morador do Rio Pequeno que preferiu não se identificar, não faz uso frequente das medidas de prevenção, mas acredita que a liberação pode aumentar o número de casos, mesmo relatando já ver diariamente pessoas sem a proteção.

“Se liberarem eu acho que vai aumentar os casos da covid, porém ninguém mais usa, você vê na rua mesmo, os pontos de ônibus tão cheio de gente sem máscara, as pessoas só põe pra entrar, andando na rua sem máscara, só põe pra entrar nos lugares, então fica essa daí, né, eu não sei”, observa o morador.

A integrante da Coalizão pela Vida reforça a importância de se utilizar álcool em gel e máscara como medidas fundamentais e efetivas para prevenção da covid-19. “Existem muitas coisas que estão acontecendo, medir temperatura, e outras coisas, não são efetivas, não tem de fato um impacto na prevenção contra covid, mas álcool em gel e máscara sim. Além de outras, como distanciamento social, como a vacinação, elas são medidas essenciais”, pontua a especialista.

Cor e CEP como fatores históricos de desigualdades 

Para Zezé, ainda faltam medidas pensadas para os territórios periféricos, voltadas a garantir segurança aos moradores. “E tem um lado difícil e perverso de tudo isso, que é dessa população não ter acesso ao álcool em gel, máscaras de qualidade, que é a pff2”, aponta ela.  

Segundo nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, divulgada em 20 de setembro de 2021, data histórica que celebra o dia da Consciência Negra no Brasil, homens negros morrem mais por covid-19 do que homens brancos, e mulheres negras morrem mais por covid-19 do que todos os outros grupos (homens negros, mulheres e homens brancos), nos dois casos, isso ocorre independente da ocupação no mercado de trabalho. Para realizar o levantamento, utilizaram dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, de 2020.

A nota técnica divulgada no boletim da Rede de Pesquisa Solidária, se baseou nas mortes por covid-19 no Brasil no ano de 2020, e buscou identificar a ocupação das pessoas que morreram do novo coronavírus.

“Óbvio que o resultado dessa população absolutamente desassistida pelo estado brasileiro, é uma população que sofre, adoece e que morre por covid-19”

Zezé Menezes integra a Rede Coalização Pela Vida e a Coalizão Negra Por Direitos 

“Essa pandemia tem uma característica muito difícil, muito perversa, que é exatamente ser uma pandemia que tem uma característica de que a população de maior vulnerabilidade, é a população que deveria receber a maior proteção, o maior cuidado pelo Estado, e é exatamente o oposto”, explica Zezé Menezes.

Ela aponta que para as periferias é praticamente impossível fazer o distanciamento social, pois muitas pessoas das periferias trabalham geralmente em serviços precarizados, no trabalho de atendimento, prestação de serviços, sendo um segmento que não consegue fazer home office.

“Uma parcela muito pequena da população negra ficou em home office. A imensa maioria ficou sujeita aos transportes públicos, não teve essa possibilidade, o acesso às medidas preventivas, que vai desde o saneamento básico, medidas essenciais, água, distanciamento social, home office, até equipamentos de proteção, uma EPI, máscaras de qualidade”, coloca a especialista.

“Óbvio que o resultado dessa população absolutamente desassistida pelo estado brasileiro, é uma população que sofre, adoece e que morre por covid-19, e que desenvolve as sequelas dessa doença tão perversa”, aponta Zezé.

Notícias falsas e desinformação influenciam decisões da população 

Na avaliação da mestre em patologia humana, as fake news e tudo que vivenciamos ao longo nesses quase 2 anos de pandemia, teve um efeito perverso para a população das periferias. “Fez com que essa população acreditasse no caráter inofensivo do vírus, então é só uma gripe e que vacina não resolve, que é bobagem usar máscara, é para frouxo”, relembra ela sobre declarações do presidente Jair Bolsonaro.

“Tudo isso que foi propagado diretamente do Palácio do Planalto e que todo mundo já sabe, isso causou e tem causado a grande maioria das mortes por covid, essa é a questão perversa de tudo isso”, aponta.

Ela analisa que essas mentiras e fake news prosseguem, resultando inclusive em políticas dos governos. “Imagine que flexibilizar o uso de máscaras e outras medidas protetivas contra a covid é uma das piores aberrações, piores coisas que poderiam acontecer nesse momento que se quer zeramos o número de óbitos”, coloca Zezé, relembrando que no Brasil, quase dois anos após a chegada da pandemia, mais de 200 pessoas ainda morrem todos os dias por covid. “Ou seja, o vírus segue circulando e segue matando pessoas”, argumenta.

“Uma falsa sensação de que elas estão imunes a partir do momento que elas tomam a vacina” 

Zezé Menezes tem um histórico de atuação como ativista junto a Marcha das Mulheres Negras

A especialista aponta que a vacinação por si não resolve a questão da pandemia, e que os governos estão colocando uma falsa sensação de segurança nas pessoas. “Uma falsa sensação de que elas estão imunes a partir do momento que elas tomam a vacina. Isso foi também um fator que causou muita preocupação nos pesquisadores, porque as pessoas de fato relaxaram no cuidado de prevenção a covid-19, a partir do momento que começaram a se vacinar”.

Zezé finaliza afirmando que estamos em um ciclo que dificilmente vai ser resolvido, principalmente por estarmos nos aproximando do final de ano e na sequência, o carnaval.

“São momentos de aglomeração, carnaval principalmente, por ser uma festa com milhares de pessoas nas ruas, e eu temo de fato da gente continuar por mais um ano com esse vírus circulando no Brasil”

analisa, afirmando que não estamos tomando os cuidados necessários e efetivos para que pare a circulação do vírus.

Especialistas de diversos setores da saúde apontam que os cuidados ainda precisam existir e se manter, mesmo com a vacinação da população. “Precisamos continuar com as medidas preventivas, mas, o principal é que o Estado ofereça políticas públicas para toda população, em especial para as de maior vulnerabilidade social, que são os povos originários e a população negra”, conclui Zezé Menezes.

*Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios. O conteúdo dos artigos aqui publicados é de responsabilidade exclusiva dos autores e não reflete necessariamente a opinião das organizações.  

“Substituo por salsicha”: moradores relatam insegurança alimentar em crianças nas favelas da zona oeste de SP

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Carestia, desemprego e ausência de políticas públicas aumentaram a insegurança alimentar de famílias, moradores de favelas da zona oeste de São Paulo. Ações solidárias minimizam os impactos da fome, mas não resolveram o problema que permanece afetando crianças e adultos da região.  

Com três filhos pequenos, a rotina de Samara Santos da Silva, 22, moradora da comunidade Bode Zé, localizado no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, mudou completamente durante a pandemia, a ponto de impedir a moradora de ter um trabalho fora de casa, devido ao fato de as escolas e creches estarem fechadas. Ela é mãe de Thalya, 6 anos, Otávio, 5 anos e Ellysa de 2 anos.

O companheiro de Samara, Bruno Nunes Silva, 33 anos, foi o responsável por trabalhar fora enquanto ela cuidava das crianças. Contudo, durante o período de isolamento social, a empresa de tapeçaria automotiva que ele trabalhava quase não estava pegando clientes e as condições financeiras da família ficaram comprometidas, afetando a rotina alimentar dos filhos, que precisou mudar completamente. 

Moradores das comunidades Bode Zé e 1010, na fila para a retirada de marmitas. (Foto: Ellen Amaral)

“Antes eu comprava costela, é uma coisa que não dá pra comprar mais, carne vermelha, porque tá muito caro, aí eu substituo por salsicha, linguiça, ovo”

conta Samara sobre a alimentação da família.

Uma das principais mudanças que Samara e as crianças sentiram, além da ausência de carne vermelha nas refeições diárias, foi com as compras na feira. Todos estavam acostumados a comer frutas e verduras, o que não acontece mais com tanta frequência.

“Toda terça eu ia na feira e comprava frutas pras crianças, agora eu não consigo ir porque aumentou bastante as coisas. Aí eu compro só uma banana e uma maçã, pra não faltar. Eu comprava bastante fruta e agora não dá pra comprar, porque as coisas tão muito caras, tá muito difícil”, relata Samara.

Após sair do Mapa da Fome em 2013, dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU), mostraram que na pandemia da Covid-19, o Brasil chegou ao mesmo patamar de insegurança alimentar do início dos anos 2000, em que quase 10% dos brasileiros não tinham o que comer.

Essa realidade, além de afetar adultos, impacta principalmente crianças na primeira infância, com idade de 0 a 6 anos, como retrata Samara, mãe de três filhos, moradoras da zona Oeste de São Paulo.

Thalya, Otávio e Ellysa jantando após chegarem da escola.  (Foto: Arquivo pessoal)

Com todas as dificuldades e comprando só o básico dentro de casa, Samara começou a depender de doações de cestas básicas e marmitas, já que o pouco de comida que conseguiam juntar, Samara e Bruno preferiram priorizar as crianças:

“Eu comecei a ir atrás de cesta, comecei a ganhar cesta, é o que estava ajudando. Teve uma época, bem assim da pandemia, que eu não comia porque tinha um pouquinho de arroz, aí eu fazia pras crianças, eu não comia”, desabafa Samara.

Samara começou a pegar as cestas básicas oferecidas pela Pastoral da Criança, localizada na igreja do bairro. Outro reforço na alimentação da família veio com a e também a distribuição de marmitas, iniciativa realizada por Lília Cristina, liderança comunitária da Bode Zé, que se articulou de forma autónoma e depois com a prefeitura, para a distribuição de marmitas para os moradores.

“Eu não tenho vergonha não, fui atrás e consegui bastante doação. Teve um tempo que eu não tinha nem bolacha, nem danone, mas porque o dinheiro não estava sobrando, tinha que tirar da janta pra comer no almoço, aí só comia ovo, ovo, ovo, ovo”

enfatiza Samara.

Lília Cristina, 57 anos, se tornou liderança comunitária no começo da pandemia de coronavírus. Morando na comunidade há mais de 50 anos, ela percebeu a extrema necessidade de combater a insegurança alimentar que estava afetando as famílias do bairro.

Por conta própria, ela começou a se movimentar para ajudar essas famílias e tentar captar recursos da prefeitura para doação de roupas, utensílios de higiene e principalmente alimentação.

“Eu faço a distribuição de cestas básicas quando eu recebo. Eu adotei tudo isso porque eu me vi em meio a pandemia sem condições, sem ter o que comer na minha casa. Meu marido é professor substituto de Educação Física na escola de Osasco, então faz dois anos que o meu marido não tem salário”, conta Lília.

A entrega de marmitas é feita todos os dias, a partir de 12h, no quintal da casa de Lília. (Foto: Ellen Amaral)

Passando necessidade, ela foi pedir uma cesta básica para uma organização social da região e foi negada pelo fato de ter casa própria dentro do território, mesmo sem ter como colocar comida dentro da casa, morando com o marido e os dois filhos. A partir desse dia, ela começou a lutar pelos direitos dela como moradora e pelos vizinhos que estavam na mesma situação.

Desde que passou a distribuir as marmitas na porta de sua casa, a fila para a retirada é composta majoritariamente por crianças, a partir de 5 anos. Alguns pegavam duas marmitas, uma para comer naquele instante e outra para a janta, ou uma para si e outra para os pais, que chegavam do trabalho com fome.

Para Lília, a entrega de marmitas e outros trabalhos de doação que não existiam antes da pandemia são essenciais, pois a alimentação das crianças se reconfigurou totalmente na pandemia.

“A alimentação mudou na casa dos trabalhadores aqui da comunidade Bode Zé. Eles podem ter o arroz, o feijão, o macarrão, o molho, mas eles não tem a proteína, eles não tem legumes. Eu tenho criança que nunca tinha visto uma manga. Uma vez eu fui doar uma manga para uma criança e ela disse: “Que que é isso, tia? As crianças não estão comendo do jeito que deveriam comer. As crianças estão largadas”

lamenta Lília.

Madalena da Conceição Ramos, 43 anos, mora na 1010, comunidade próxima a Bode Zé, e tem duas filhas, Mariana, 8 anos e Alessandra, 4 anos. Ela trabalha como técnica de enfermagem, mas no começo da pandemia precisou ficar em casa com as crianças, enquanto o marido, Adson Ramos, saía para trabalhar, em uma empresa de monitoramento de segurança, que não paralisou com o isolamento.

Assim como para Samara, por ter crianças pequenas, um dos maiores impactos que Madalena sentiu, foi com o aumento dos alimentos na feira. A solução encontrada para lidar com a alta dos preços, foi a substituição desses produtos.

“Tem algumas frutas que as pequenas gostam muito, né? Por exemplo, morango. E aí nesse período estava muito caro, a gente não tinha condições de comprar. Como eu não estava trabalhando então não tinha dinheiro suficiente, ou quando tinha algum dinheiro, dava prioridade a outras coisas. A gente substituída por uma mais em conta”, relata Madalena.

Madalena conta que a principal substituição que fez, foi trocar as outras frutas por melancia. Pois como é uma fruta que tem muita água, já matava a sede das crianças. “A minha pequenininha bebe bastante água e a nossa água aqui não é da gente, tem que comprar água também. Então a melancia já substituía”

explica Madalena.

O aumento do valor do gás de cozinha também impactou a alimentação da família. Madalena começou a cozinhar em maior quantidade e deixar tudo congelado, para evitar utilizar muito o gás.

Além disso, o aumento dos alimentos fez com que ela substituísse a carne vermelha por ovos e frango e não adquirisse mais todos os produtos que geralmente compõem uma cesta básica.

Conselho de Segurança Alimentar 

Maria Angélica, que atua no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN), é moradora do Butantã, na Zona Oeste de São Paulo e se tornou membro do Conselho por conta de todas as articulações que já fazia em seu território.

Ela conta que a luta para fazer a ponte entre a necessidade alimentar das famílias periféricas, principalmente com as escolas fechadas, até a captação de recursos foi um processo burocrático que a desestabilizou muitas vezes, principalmente para entregar cestas básicas às comunidades no início da pandemia.

“Passou três meses, nada da outra cesta. Escuta, as famílias vão esperar três meses pra comer? [ pensou] Aí a gente começou a lutar pela marmitex. A lutar pelo alimento. Já que a cesta não está vindo, tem que correr atrás de outra coisa”, expressa Maria.

As marmitas ajudaram a suprir a necessidade alimentar dentro das comunidades, e a fila é composta majoritariamente por crianças. (Foto: Ellen Amaral)

A conselheira diz que todas as demandas que chegavam até ela eram graves, e que apesar de ter vivências nas comunidades Bode Zé e 1010, ela também viu os abismos de desigualdade que cercavam todos os cantos de São Paulo.

“A mãe tinha que abrir mão [do alimento] e inclusive escolher o filho mais novo que já estava chorando de fome do que o filho mais velho que poderia segurar um pouquinho mais”

conta ela, apontando uma situação de insegurança alimentar de uma família periférica.

De acordo com Maria, o principal foco do Conselho é atuar em conjunto com a população mais vulnerável, como a na primeira idade, que está em fase de desenvolvimento. Por conta da insegurança alimentar, em alguns territórios ela presencia crianças com oito anos com o tamanho de crianças de quatro, pois a carestia impediu esse desenvolvimento.

“Você só vai saber que ela tem oito anos quando você olha o cadastro dela, 

diz Maria.

Essa atuação, constitui incluir nas recomendações de metas para o prefeito, o enfrentamento da desnutrição e da falta de acesso à alimentação adequada das crianças nessa faixa etária.

“Todo suporte para que as mães possam manter o aleitamento materno, porque a gente buscou se articular com a Política Municipal da Primeira Infância de forma a mostrar que as políticas têm que ser articuladas para poder fazer o enfrentamento da fome e da Insegurança alimentar e nutricional de maneira efetiva”, expõe.

A conselheira relata que uma das maiores lutas do Conselho Municipal, é garantir que as cestas básicas e a comida distribuída nas escolas no processo de retomada, alcancem todos os critérios de alimentação digna para os cidadãos e para as crianças em idade de desenvolvimento.

“Além de dar o arroz, o feijão que é o que as figuras que estão no poder público imaginam que estufa o estômago da criança e está tudo certo. ‘Mata a fome’ [eles pensam]. A gente não quer matar a fome. A gente quer dar um alimento digno. Direito humano à alimentação”

enfatiza a conselheira, sobre a luta diária para levar uma alimentação digna para o prato das crianças periféricas.

“Somos mães atrevidas”: mulheres criam organização para combater encarceramento nas periferias

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Em Itaquera, zona leste de São Paulo, movimento de mães democratiza há 22 anos o acesso à informação sobre direitos sociais para que famílias possam conviver e proteger seus filhos dentro do sistema prisional. 

Maria Aparecida Soares de Melo, 52, é moradora de Diadema e há mais de vinte anos, ela luta pela garantia de direitos para pessoas que estão ou passaram pelo sistema prisional. (Foto: Carolina Carmo)

Em 1998 quando o filho adolescente de Maria Aparecida Soares de Melo, 52, é moradora de Diadema, foi levado para antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), ela conta que se viu perdida e desamparada, sem entender o que poderia ser feito, por não ter consciência de quais eram os seus direitos como mãe diante daquela situação.

“Cheguei na delegacia e fui humilhada né, porque eles humilham a gente. Daí na porta da FEBEM a gente se uniu com meia dúzia de mães e falou: “Isso tá errado, tão me privando de tudo”, lembra Aparecida.

Para ela, o Estado fala isso e aquilo, mas não explica na prática quais sãos os direitos das famílias que tem seus filhos privados de liberdade. Viver essa situação mudou para sempre a vida dela e de muitas mães que estavam na mesma situação.

“Daí a gente fundou uma associação, na época chamava “AMAR” Associação de Mães e Amigos de Adolescentes em Risco. A gente fez um trabalho muito bonito, a gente ganhou até prêmios de direitos humanos”, conta ela. 

“O nosso intuito lá atrás era fundar um grupo de mães mais atrevidas, porque nós somos atrevidas mesmo”

Maria Aparecida é conhecida como Cidinha entre as mães da Associação Amparar.

Um dos objetivos da inicialmente AMAR, organização social que hoje se chama AMPARAR, era fundar uma organização de mães desafiadoras e presentes na cobrança da assistência que deveria ser prestada às pessoas em situação de cárcere e a família delas.

“O nosso intuito lá atrás era fundar um grupo de mães mais atrevidas, porque nós somos atrevidas mesmo, para formar outras mães a não aceitar o sistema!”, conta Cidinha, uma das fundadoras da AMPARAR.

A AMPARAR oferece serviços essenciais que deveriam ser oferecidos pelo poder público, desde assistência psicológica a orientação jurídica, e através de doações também distribui cestas básicas aos familiares que tem parentes no sistema prisional.

Cidinha conta também que a AMPARAR hoje é reconhecida internacionalmente e que seu filho não está mais privado de liberdade, mas ela ressalta que o filho da coordenadora da associação está no sistema prisional, e esse fato reforça a importância de seguir construindo ações afirmativas para a população pobre, preta e periférica ter acesso aos seus direitos no sistema prisional.

O sistema prisional e a ressocialização  

Para Carlos Alberto de Souza Junior, vice-presidente do conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente, a sociedade precisa entender o que é e como funciona o sistema prisional. “As discussões avançaram, mas a sociedade ainda precisa entender o que é o sistema prisional, o que é a cadeia que nós temos hoje que não reeduca, não ressocializa, não cumpre uma função social”, argumenta.

Ele complementa enfatizando que essa discussão na sociedade precisa acontecer para ampliar o debate sobre o que é segurança pública. “Se a gente trabalhar com isso, a gente acaba com políticas como a segurança pública, que não é uma política pública, pelo contrário, vem cumprindo um papel péssimo na sociedade”, diz ele.

O vice-presidente do conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente, que é especializado em gestão de organizações sociais e em gestão de políticas sociais também ressalta os impactos que o sistema prisional gera nas pessoas que já ficaram privadas de liberdade, por cometer algum tipo de delito.

“A pessoa que tá presa é aquela que cometeu um mal a alguém, não veem que ali está um ser humano, as pessoas nesse caso esquecem a história, elas veem só o momento. Ai se cria um estigma”, explica.

“A ausência de oportunidades de emprego e qualificação profissional acabam prejudicando todo esse contexto de ressocialização”

 Carlos Alberto de Souza Junior é vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 

 Esse estigma citado por Souza também é lembrado por Cidinha como um fato que acompanha a vida e as relações sociais de quem passa pelo sistema prisional. “Quando uma pessoa vai presa todo mundo tem preconceito, o filho de fulano foi preso, não presta. O meu que é bom. Eu era assim, eu não enxergava. Hoje eu penso diferente”, afirma Cidinha, uma das fundadoras do AMPARAR.

Um dos caminhos para as pessoas que passaram pelo sistema prisional recuperar sua autoestima e combater o preconceito que gira em torno dela é a conquista de um trabalho formal, com garantia de direitos. Mas esse é outro desafio para quem vive essa realidade.

Segundo Souza, existem no Estado de São Paulo uma média de 11 cadeiras que tem atuam no formato de Colônia, essas unidades prisionais oferecem formação e oportunidade de trabalho para quem está privado de liberdade, mas a qualidade dos cursos e dos empregos oferecidos ainda é algo a ser debatido pela sociedade.

“A ausência de oportunidades de emprego e qualificação profissional acabam prejudicando todo esse contexto de ressocialização, não gosto muito desse termo, porque falam em ressocializar como se a pessoa fosse a pior do mundo, mas tem outras conjunturas e contextos que colocam a pessoa em situação de violência”, finaliza o vice-presidente do conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente.

Yakissoba do Chico: ao criar o próprio negócio na pandemia, morador emprega 5 filhos

Conheça a história de Chico, cozinheiro que em meio às diversas crises da pandemia de covid-19 decidiu abrir um delivery de Yakissoba, e com isso trouxe emprego aos seus filhos e hoje consegue passar mais tempo com a família.  

 Ao pensar nos desafios que a pandemia trouxe para sua rotina e da sua família, Francisco Rodrigues, 46, carinhosamente conhecido como Chico, morador do Cidade Ipava, bairro pertencente ao distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, viu a possibilidade de criar um empreendimento diante de um cenário pandêmico, correndo o risco de não dar certo e trocar o que já tinha em mãos pelo que ainda era duvidoso.

“Começou essa pandemia, a gente estava em casa sem fazer nada, sem trabalhar. Aí tivemos que encarar com a experiência que a gente tem, que é trabalhar com a culinária japonesa, e graças a Deus até hoje estamos aí!”, relata o morador com entusiasmo.

E assim nasceu o empreendimento “Yakissoba do Chico”, que há quase dois anos tem fortalecido e mantido de pé a família Rodrigues, além de gerar renda e emprego para jovens da quebrada.

Chico é casado com Elizabete Maria há quase 30 anos e pai de seis filhos: Renato de 26, Bruno de 24, Thiago de 22, Aline de 21, Jennifer de 16 e Isabelli de 3 anos.

Chico é pai de 6 filhos e casado há mais de 25 anos. (Foto: Flávia Santos)

De seis filhos, cinco trabalham no Yakissoba, o Renato como motoboy, o Bruno como sushiman, Thiago como auxiliar de cozinha, Jennifer como empacotadora e Aline como administradora e gerente.

Além dos filhos de Chico, ele também contratou outros dois moradores do bairro, que atuam como entregadores e auxiliando no atendimento com os clientes.

O pai de família afirma que quando começou o negócio, sua filha Aline incentivou a continuar e não desistir de criar o empreendimento, mesmo entendendo que apareceriam dificuldades no caminho.

Apesar de ter sido criado por necessidade, o que mais motivou Francisco e motiva até hoje é o fato de trabalharem em família. “Para entrar nesse ramo, não dá pra fazer tudo sozinho, tem que trabalhar em família. Aí já junta todo mundo e faz um pacote só!”, exclama o chefe de cozinha.

As dificuldades que a família passou a enfrentar após a chegada da pandemia aumentaram, por isso Chico resolveu achar uma saída. Um dos obstáculos que ele está enfrentando é o fato de todos os materiais e produtos usados no negócio estarem mais caros.

Foto: Flávia Santos

“O filé mignon que a gente pagava $23,00 o quilo, agora estamos pagando $45,00. O salmão que era $30,00, agora eu pago $55,00”, desabafa.

 Além desse exemplo, ele comentou que as caixas de salmão fechadas que ele juntamente com sua equipe comprava e pagava em torno de R$700,00, agora não encontram por menos de R$1.500,00, em boa qualidade.

O chefe de cozinha afirmou que apesar desse aumento dos produtos diante da pandemia, os seus preços no empreendimento não foram recalculados, pois o risco de perderem clientes se tornaria muito maior. Com isso, o lucro é menor e o desânimo se torna bem maior.

“É um desafio a gente continuar trabalhando, porque tem que correr atrás pra conseguir promoções e não encontramos. A gente vai batalhando como pode, às vezes a gente fica até desanimado, só que a gente não pode desanimar, tem que continuar, apesar de não ser fácil” 

conta o pai de família.

Durante a trajetória de quase dois anos do Yakissoba do Chico, esses desafios de aumento nos preços dos produtos os preocupam há cerca de seis meses.

Antes, ele não cobrava a taxa de entrega, em busca de fidelizar ainda mais clientes. Mas com todo esse cenário, precisaram mudar a estratégia e cobrar uma pequena tarifa para conseguirem manter os lucros de pé.

Mas apesar dos desafios, Chico hoje trabalha com sua família e tem mais tempo perto de seus filhos, o que por muitos anos não conseguiu, pois saía muito cedo e chegava muito tarde em casa, trabalhando em dois horários, e isso impossibilitava o contato e a interação familiar.

Agora ele consegue aproveitar o convívio com a filha caçula Isabeli, de 3 anos, participando mais do processo de criação e troca de afeto. “Eu nunca tive tempo em casa, só no dia da folga, mas aí tinha coisa pra resolver e passava rápido, não tinha tempo com eles.” afirma Chico.

No restaurante que ela estava trabalhando antes da pandemia, ele ficou sem receber seu salário por alguns meses, isso fez com que ele resolvesse efetivamente abrir seu próprio empreendimento. Mas a situação foi ficando apertada e ele resolveu se desligar da empresa. “Eu ia trabalhar sempre na esperança de receber”, explica.

Foto: Flávia Santos

Prezando pelo trabalho em equipe e melhor entrega a seus clientes, hoje o Yakissoba do Chico é uma empresa registrada, que está de pé desde maio de 2020 e vem construindo sua história e sua própria essência, seu local de produção fica em cima da casa da família, onde produzem os pratos e o processo de delivery e atendimento digital.

Francisco foi embora para São Paulo com 23 anos, já casado, sem imaginar como seria sua trajetória profissional, é um pai que incentiva seus filhos a desenvolver habilidades e busca todos os dias a melhoria de vida da família, sempre acreditando que esses aprendizados irão fortalecer seus filhos num futuro próximo.

“Isso que eles estão aprendendo agora comigo, vai ajudar eles a saberem o que fazer daqui alguns anos, até porque daqui um tempo eu não vou estar mais aqui. E a história continua”

conclui.

Trajetória 

Nascido no dia 2 de outubro de 1974, na cidade de Graça do Ceará, a história do Chico com a culinária japonesa começou no ano de 1997, quando ele decidiu ir embora da sua cidade natal para São Paulo em busca de um emprego fixo e estabilidade.

No mesmo ano, ele começou a trabalhar num restaurante bem conhecido na época, localizado na Avenida Paulista, onde atuou por 19 anos. Neste local ele começou trabalhando na pia lavando louças, área que atuou por dois anos, ganhando pouco, onde afirma que o trabalho era mais valorizado, dependendo de qual função você exercia naquela época.

Depois desses dois anos, ele passou a trabalhar como ajudante de cozinha, após isso, se tornou cozinheiro e saiu da empresa como chefe de cozinha, e isso tudo aconteceu ao longo de 19 anos de casa.

Após sair desse restaurante, Francisco foi contratado por um outro, também especializado na culinária japonesa, localizado na Lapa, zona oeste da cidade, onde ficou também por 4 anos. Ao todo, o chefe tem 24 anos atuando como cozinheiro.

Antes dos comércios serem fechados na cidade, ele trabalhou durante dois meses em um restaurante de culinária japonesa localizado dentro de um shopping da zona sul de São Paulo. O pouco tempo de casa se deve ao fato de o dono do estabelecimento ter tido dificuldades para parar os salários dos funcionários, devido aos impactos da pandemia do coronavírus.

Grupo atua para mudar a visão da população sobre pessoas com deficiência em Osasco

Atendendo cerca de 400 pacientes no bairro Jardim Cipava, localizado em Osasco, região metropolitana de São Paulo, a organização Igats busca possibilitar maior autonomia e independência aos pacientes através de atividades ligadas principalmente à arte.

As aulas de música funcionam como terapia para Rodrigo Sobral, conta o professor José Elias Foto: Mateus Fernandes.

O IGATS, Instituto de Gestão, Administração e Treinamento em Saúde, foi criado em 2009, originalmente no bairro Jardim Belval, em Barueri. Atualmente o instituto atua em unidades espalhadas por 8 municípios em São Paulo. Entre essas unidades, está a do bairro Jardim Cipava, em Osasco, que atende cerca de 400 pessoas moradoras de bairros do entorno, sem restrição de idade.

Através de um acompanhamento contínuo, a organização utiliza diversas abordagens para melhorar a saúde e a educação de pessoas com deficiência, entre elas o trabalho com materiais recicláveis. “É a nossa maior matéria prima aqui, até por causa de nossos recursos virem muito de doações”, conta Ricardo Beserra, psicólogo e um dos coordenadores da unidade de Osasco. 

Denise Fernanda, de 60 anos, exibe artesanato que realizou no IGATS Osasco. Foto: Mateus Fernandes.

“Eu gosto de vir,  senti falta em casa quando não tava podendo vir [para o espaço].”

Conta Denise Fernanda,  paciente.

Na unidade, que antigamente era uma escola de educação especial, existem dois núcleos: na parte de baixo está o Centro Especializado em Reabilitação (CER 2 Osasco), e Núcleo Ambulatorial, onde ocorrem atendimentos de saúde agendados. O outro núcleo, na parte de cima da unidade, é um Núcleo de Convivência, frequentado por aqueles que eram alunos da antiga escola.

Como o local antes era uma escola de educação especial, com a mudança da legislação, esses usuários não poderiam ser desassistidos, sendo assim, através do Núcleo de Convivência eles continuaram sendo estimulados.

Equipe do IGATS Osasco. Foto: Mateus Fernandes.

Os frequentadores recebem atendimento de especialistas em áreas como neurologia, psicologia,  fisioterapia, educação física, enfermagem, fonoaudiologia e dentista. Os trabalhos não são apenas ambulatoriais e clínicos: há trabalhos terapêuticos realizados com música, dança e esporte. Além disso, tem também o acompanhamento com assistentes sociais.

Paredes do CER 2 Osasco. Foto: Mateus Fernandes.

A existência de várias salas no espaço, permite que ocorram atendimentos tanto em grupo como mais individualizados. “Tudo depende da maneira como o paciente vai estar melhor se beneficiando”, afirma Rebeca Mancini.

As salas de atividades específicas, como as de música e de capoeira, contam com desenhos relacionados à atividade, assim, ao entrar na sala, eles já identificam o atendimento que terão, trabalhando também a questão do reconhecimento do ambiente. 

William Veloso é professor de capoeira e realizou a arte na parede da sala onde ocorrem as aulas. Foto: Mateus Fernandes

Atividades fora do espaço

xposição da CER 2 no Super Shopping Osasco. Foto: Mateus Fernandes.

Em setembro de 2021, o espaço realizou uma exposição com obras produzidas pelos pacientes. As obras foram expostas no Super Shopping Osasco, próximo a região central do município.

Ricardo, morador de Osasco e um dos coordenadores da unidade, conta que no dia da exposição observou os olhares do público que passava pelo shopping aos deficientes, onde segundo ele, é um local que não é considerado um espaço para eles estarem.

“… a gente pode ocupar esse espaço, isso não precisar nem ser avisado”,

afirma o Osasquense

Fotos que registram a história do CER 2 em Osasco estiveram presentes na exposição. Foto: Mateus Fernandes.

A proposta da exposição foi ampliar esse convívio dos pacientes, pois Ricardo relata que muitas vezes a pessoa com deficiência só convive com os responsáveis e com o pessoal da unidade, como no centro de convivência do IGATS.

“A gente que atende esse público, a gente que é da saúde mental, a gente entende que se não tomarmos posse de certos lugares não há mudança. Foi legal, até porque a gente tira aquela ideia do pessoal do shopping ou do empreendedor, que é ver a pessoa com deficiência sempre como coitadinho”

declara Ricardo, que é formado em psicologia.

A prática do esportes é incentivada, para evolução de corpo e mente. Na foto: Maria Isabel Carvalho, Iago Ramilo, 28 e Ediralf Rodrigues, 32. Foto: Mateus Fernandes.

Muitos acessos são negados ou dificultados para uma pessoa com deficiência, a falta de acessibilidade em aspectos básicos como a ausência de elevador ou uma rampa, diz muito sobre os lugares restritos e não pensados de forma plural, principalmente para pessoas com deficiência que são de territórios periféricos. Para Ricardo, muito disso se dá devido ao mercado e empresários não enxergarem a pessoa com deficiência como consumidora.

“Às vezes as famílias deixam de ir a determinados lugares com os filhos e vão sozinhos pensando: ‘ah, eu não vou com meu filho porque lá ele não vai se sentir bem’. Mas por que ele não vai se sentir bem? Porque o ambiente não foi pensado pra ele”

coloca Ricardo

Arte, reciclagem e cultivo fazem parte da rotina do espaço

Além da reciclagem, plantio, aulas de capoeira e outras atividades, as oficinas também abordam áreas artísticas, sempre buscando que o produto final seja feito pelos pacientes.

Todos desenhos foram feitos por atuais e ex- frequentadores. Foto: Mateus Fernandes.

O espaço realiza ações como eventos no bairro, práticas de esportes ao ar livre e festas temáticas, com a intenção principal de integrar os pacientes à comunidade e mostrar aos moradores que não deve existir restrição nesse convívio. Além de informar sobre a importância dos serviços públicos de saúde e assistência social para pessoas com deficiência.

Essas ações permitem ainda arrecadar doações para a instituição e também para as famílias, que em sua maioria vivem em alto risco de vulnerabilidade social. 

Visitante da exposição é auxiliada pela profissional Carla Isabel. Foto: Mateus Fernandes

Com o tempo, o uso do material reciclável que recebem por meio de doações, também se firmou na instituição com a ideia de conscientizar sobre o aspecto do meio ambiente e sustentabilidade. O espaço chegou a contar com instrumentos musicais feitos de materiais de reuso.

Bonecos foram feitos de material reciclável por pacientes da CER 2 Osasco Foto: Mateus Fernandes

As obras da exposição que realizaram em 2021, foram todas feitas em oficinas com materiais recicláveis que ocorreram no centro de convivência. Os materiais vêm de itens reutilizados na instituição ou de doações, desde garrafa plástica, caixa de leite a tampinha de garrafa. Rebeca destaca que todos os objetos foram construídos pelos pacientes.

“A IGATS tem um contrato de gestão [com a prefeitura] gerenciado pelo nosso diretor Renato Henrique Nogueira, em que os recursos para administração da unidade vêm dessa verba”

Apontam os coordenadores, que também utilizam o reuso de materiais para contribuir com a renda do espaço.

Escultura, feita na CER Osasco 2, foi depois para exposição no Super Shopping Osasco. Foto: Mateus Fernandes.

No IGATS Osasco, está também sendo abordada a ideia de agricultura para consumo próprio. Recentemente foram montados canteiros no jardim do local. A ideia é trabalhar com alimentos orgânicos e fitoterápicos, plantas não convencionais com propriedades proteicas.

Canteiros, recentemente feitos no jardim da IGATS Osasco. Foto: Mateus Fernandes

Recentemente foi plantado morango, que foi consumido pelos funcionários e frequentadores. Os pacientes atendidos podem levar os alimentos plantados pra casa e aprendem todo o processo de plantio, com o intuito de também passarem a ideia para os familiares. “Acaba se tornando um investimento inicial, que precisa só fazer uma manutenção depois, né?”, aponta Ricardo. 

Trabalho contínuo

Camily Alves Machado é frequentadora do núcleo CER.

Segundo a equipe, o trabalho do IGATS vai além dos pacientes: é preciso também orientar as famílias e a população em geral, a entender as complexidades e as demandas da pessoa com deficiência, e que ela pode e deve, estar inclusa na sociedade.

“A gente busca dar maior autonomia e independência para o paciente. Ele não vai deixar de ter a deficiência, mas a gente busca proporcionar uma maior qualidade de vida pra ele de acordo com suas potencialidades”,

declara Rebeca, coordenadora.

Rebeca e Ricardo contam que muitos pacientes chegam sem conseguir pegar no talher, pois era o responsável que servia na boca. Isso passou a ser um dos aspectos trabalhados, a autonomia para comer sozinho: “As pessoas questionavam ‘você vai dar faca na mão deles?’. Sim, nós vamos dar’, colocam.

Rebeca Mancini e Ricardo Beserra, ambos de 27 anos, são gestores do projeto em Osasco.

“A gente tem paciente que tem condições de estar no mercado de trabalho hoje”

afirma a coordenadora Rebeca.

O espaço desenvolve ações que contribuem para o desenvolvimento, mas reforçam que é necessário mais políticas públicas, inclusão, incentivo e que se ocupe os espaços públicos.

“Como a Rebeca tá cansada de dizer, a gente tem que interferir. O que é interferir? É ferir entre as partes. A partir do momento que a gente interfere, na rotina de um espaço, como o shopping, e não estanca, eles entendem que precisam fazer alguma coisa para que não precisem se ferir novamente. Só assim pra mudarmos essa realidade”,

finaliza Ricardo.

Jovens da zona sul relatam os reflexos da transição capilar em sua autoestima

 Entrevistamos três mulheres da região sul de São Paulo, que trouxeram relatos sobre o processo da transição capilar, e como, para além da questão estética, as mudanças desse percurso impactaram sua saúde mental, autoestima e convívio social.

Caroline Meneses de 21 anos e moradora do Cidade Ipava. (Foto: Flávia Santos)

A transição capilar é um método adotado na maioria das vezes por mulheres, para retirar a parte do cabelo que tenha produtos químicos e voltar completamente para seu estado natural. Para entendermos os reflexos desse processo na vida de muitas mulheres da quebrada, seja antes, durante ou depois do procedimento, conversamos com três jovens que relataram suas experiências e como isso afeta a saúde mental e estilo de vida de uma mulher, principalmente negra e periférica.

Os relatos das três mulheres demonstram como o processo de transição contribui para que muitas pessoas passem por transformações que vão além do sentido físico, passando pela insegurança pessoal, medo de não conseguir se aceitar no final do procedimento, afetando também o lado emocional, sendo que muitas vezes pode ser mais difícil do que parece.

A primeira mulher que entrevistamos se chama Myrelle Oliveira, de 22 anos, estudante de teatro, moradora da quebrada Jardim São Francisco, localizada na região do Guarapiranga, na zona sul de São Paulo. Ela nos contou que desde sempre seu cabelo já era cacheado e muito volumoso, e por isso exigia muito tempo e cuidado.

Segundo ela, mesmo com um cabelo bonito e saudável, por muitas vezes sua mãe não sabia como cuidar, por não ser um estilo tão conhecido como é hoje. “Naquela época ninguém falava de cabelo cacheado, crespo ou ondulado. Era só cabelo liso, padrão. Então ela [a mãe] tinha muita dificuldade”, explica a jovem.

Myrelle conta que devido a dificuldades como essa, desde seus 9 anos sua mãe passava produtos químicos para seu cabelo “abaixar”, perder o volume e textura natural. Conforme o tempo foi passando, ela aprendeu a passar chapinha em seu próprio cabelo e foi assim até seus 17 anos, alisando, pintando e passando outros tipos de produtos. Essa dinâmica que durou até seus 18 anos, tirou totalmente a saúde do seu cabelo natural e também um pouco de sua autoestima.

Depois de muito tempo, sua irmã, Mayara, começou a passar por um processo de entendimento pessoal, quando resolveu assumir seu cabelo natural, e isso fez surgir em Myrelle um desejo de pesquisar sobre métodos e formas de recuperar o tempo que passou química no cabelo.

“Até que um dia eu bati o martelo, eu queria mudar. Parei de passar química no meu cabelo, deixava vários meses sem nada, fazia tranças para ir a escola”, relata Myrelle, que começou a explorar na internet, redes sociais e vídeos no YouTube como fazer a tal transição capilar, até que em 2017, com 18 anos, parou de alisar o cabelo.

Durante esse período de transição, ela conta que começou a se sentir estranha em seus ciclos sociais, não se sentia bem, e sempre deslocada. Sentimento que surgia tanto na escola, quanto em outros espaços com amigos, por ser a única que estava sempre de trança ou com o cabelo totalmente preso.

Segundo ela, era um acúmulo de sensações, primeiro pela falta de informação, não saber qual creme passar, que shampoo usar, e também a insegurança de não se sentir bem consigo mesma. Tanto que demorou muito para ela conseguir sair na rua com o cabelo solto, processo que só aconteceu por conta de um exercício no curso de teatro, onde ela se desprendeu de seus medos e passou a se aceitar como é, e com o cabelo que tem.

“Há uma semana de fazer 20 anos, teve uma dinâmica no curso que eu precisava apresentar um personagem. E nessa construção da minha personagem, na minha cabeça ela tinha cabelo cacheado. Talvez foi um espelho da minha vontade que ainda não estava concreta, que era de soltar meu cabelo e entender que essa sou eu”, afirma Myrelle.

Ela reforça: “quem quiser me aceite, porque eu me aceito”, retomando sobre o significado desse momento da transição capilar, onde afirma ter se redescoberto.

“Foi um processo difícil por ter aberto mão de muitas coisas, queria ter registrado todo o processo. Mas me ajudou a me descobrir, me amar, não me arrependo nem um pouco”

afirma a jovem Myrelle.

Caroline Meneses, tem 21 anos e passou pela transição capilar aos 15 anos. Foto: Flávia Santos

Outra mulher de quebrada que conversou com o Desenrola foi Caroline Meneses, de 21 anos, cria do bairro Cidade Ipava, região do Jardim Ângela. Ela mora com seu pai e sua filha de 1 ano e conta que se reinventou após ter iniciado a transição capilar aos 15 anos, pois nesse mesmo período ela namorava uma pessoa branca e também com uma família branca.

“Aquilo me incomodava, só eu negra, todo mundo de cabelo liso. E quando era pra sair em família, eu inventava desculpa para não ir, mas nunca falava o motivo de fato”, relata Carol.

Depois de passar muitas vezes por essa situação, ela decidiu cortar seu cabelo por conta própria, pois toda vez que o molhava e passava o creme, via que ele formava cachos, isso a encorajava para poder aos poucos perder o medo de entrar em uma transição. Foi quando cortou toda a parte com química do cabelo, deixando menos de um dedo dos fios, o que trouxe ainda mais inseguranças, pois a vergonha que antes ela já tinha, aumentou.

“Pensei ‘o que fiz da minha vida?’, cortei porque na hora me deu coragem, mas foi só na hora. Depois me desanimei, porque não sabia como a sociedade ia reagir com uma negra de cabelo crespo, só sabia como era uma negra de cabelo pranchado”.

compartilha a jovem.

Carol conta que passou por inúmeras situações de racismo, desde sua infância na escola, até depois já mais velha, e isso a assustava. Essa era a causa de grande parte da sua insegurança e da sua vergonha de ter o cabelo tão curto e natural. Um reflexo disso é que mesmo depois de 6 anos desde que cortou o cabelo, às vezes se vê com um olhar de preconceito, por conta dos padrões impostos pela sociedade, conta ela.

“As pessoas falam pra eu alisar, pranchar, dando todas as opções para deixar ele liso, e por último me falam pra trançar. Não entendem a importância da transição. E pra mim, a importância da transição capilar foi me descobrir como mulher”, diz Caroline.

Ela concluiu seu relato contando como foi difícil o processo de transição capilar, e como ainda é, mesmo depois desse período, pois afirma que até hoje ainda coloca a sociedade e o que pensam sobre ela na frente do que deseja ou busca, processo que está aprendendo a lidar. Obstáculos como esses tornam a trajetória de jovens e mulheres mais difícil e frustrante.

“Vivia de toca, indo pra escola de blusa. Fazia chuva ou sol, eu estava com a cabeça coberta. Acho que foi uma das fases mais difíceis. Por isso até hoje de vez em quando me sinto mal, mas estou trabalhando nisso, para me ajudar a elevar a autoestima”

concluiu a jovem que segue buscando o fortalecimento da sua autoestima e autocuidado.

Conversamos também com a Tamires Aparecido, de 15 anos, moradora do bairro Jardim Aracati, na zona sul de São Paulo e estudante do ensino médio. Segundo ela, a relação com seu cabelo antes da transição sempre foi complicada, desde muito pequena, quando ainda não entendia o que era a saúde capilar e aceitação.

“Alguém da minha família praticamente me obrigou a passar química no cabelo, no início foi até bom, mas depois fui vendo e não fui gostando, passei a me sentir mal”, coloca a jovem que iniciou o processo de transição há um ano.

Segundo Tamires, o fato de se ver sempre diante de padrões colocados na sociedade, seja em um comercial de produtos para cabelo, nas redes sociais ou até mesmo em espaços de convívio no dia a dia, é o que mais a incomodava diante do seu cabelo e da sua aparência. 

“Pra mim ninguém tem que seguir um padrão. Cada um tem seu cabelo, às vezes você entra numa estética achando que vai se sentir bem, mas no fim acaba se sentindo mal”

coloca Tamires.

Tamires iniciou a transição aos 14 anos, e para ajudar nesse percurso começou fazendo tranças, para sentir aos poucos como esse processo funcionava. Mas apesar de ter dado esse grande passo, as incertezas e receios a intrigava muito por não saber se iria conseguir manter, chegar até o final e principalmente, se aceitar e se amar como é.

“Acho que minha saúde mental foi afetada um pouco, às vezes consigo me aceitar, às vezes não. Não só por conta do meu cabelo, mas pelo meu físico, meu jeito, do meu falar, do meu vestir. Às vezes me sinto muito insegura”, coloca Tamires.

A jovem usou em quase todo o período de transição, as tranças conhecidas como box braids, para a auxiliar no processo. Mas além de tudo, para a esconder de possíveis comentários maldosos que normalmente circulam.

“O padrão social me afeta muito. Por isso tenho as tranças e eu não quero tirar, é um escudo que uso para me proteger, fico pensando que se eu tirar as pessoas vão voltar a me zoar e isso vai me dar vários gatilhos”

relata a jovem que há um ano passa por esse processo de transição.

Tamires conta que apesar de ter sido e continuar sendo difícil todo esse caminho percorrido em busca de aceitação e desenvolvimento pessoal, se conhecer e ter consciência de sua identidade é totalmente crucial e libertador.

“A importância da transição não só uma questão de melhorar minha autoestima, mas de mostrar quem eu sou, mostrar minhas raízes, mostrar a minha identidade. Porque minha identidade é o meu caráter e também como as pessoas me veem”, conclui Tamires.

“Eu tento dar o melhor pro meu filho”, diz Luana Ribas, artista e mãe solo

 Mãe aos 17, Luana contou ao Desenrola quais foram os principais obstáculos enfrentados por ela sendo artista, mulher preta e mãe solo na periferia. 

Cria da Cidade Ipava, bairro localizado no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, Luana Ribas, de 20 anos, além de mãe, é uma multiartista, atuando com artes visuais e na música. Ela passou a infância nessa quebrada da zona sul, onde colecionou vivências e construiu quem é no dia de hoje.

Luana desenha desde aproximadamente 3 anos de idade, e sua paixão por essa arte é tão grande que na escola, sempre que tinha tempo, estava rabiscando em algum papel. “Eu sempre gostei de desenhar, desde sempre mesmo! Desde que eu era criança. Na escola eu vivia desenhando”, relembra.

Uma de suas metas de vida é ter o corpo todo tatuado, mas isso não é por acaso, Luana diz ter se encontrado na arte um pouco depois da vinda de seu filho Anthony Ribas, de 3 anos, que nasceu em maio de 2018.

Nessa época, ela não conseguia encontrar emprego e precisava buscar o melhor para si e seu filho. E com isso veio a ideia de usar sua habilidade de desenhar para gerar renda, foi quando ela decidiu vender seus desenhos e começou a tatuar.

“Um rapaz que eu tinha no meu Facebook, era tatuador, e aí ele viu e me chamou pra ser meu ‘padrinho’ na arte. Aí ele começou a me ensinar, eu aprendi e comecei a ganhar dinheiro com a minha arte”, explica ela.

Luana Ribas é mãe de Anthony Ribas, de 3 anos. (Foto: Flávia Santos)

Saúde mental 

Se tornar mãe foi um passo grande que Luana não estava esperando que viria tão cedo, mas trouxe de volta a vontade de viver, fazer o melhor, pois sabia que em algum momento seu filho iria começar a se espelhar nela, e o que queria era mostrar o melhor de si para Anthony.

Seu tempo se tornou limitado após toda sua rotina ter sido construída nessa correria, na semana o tempo é curto e na maioria das vezes, o que ela precisaria resolver na semana, acaba deixando para o final de semana, pois sua prioridade sempre é dar mais atenção para seu filho.

“É meio difícil porque no final de semana faço coisas que não dá pra fazer na semana, tenho que dar atenção pro Anthony. Mas de pouquinho em pouquinho eu vou conseguindo conciliar”, pontua Luana.

Ela terminou os estudos ainda com Anthony na barriga, diz ter se esforçado bastante para ir o máximo de dias que podia, pois queria concluir o terceiro ano do ensino médio de toda forma, imaginou que teria problemas e ainda mais dificuldades se deixasse de estudar, e que isso pioraria mais sua qualidade de vida e entrada no mercado de trabalho.

O pequeno Anthony ajudou Luana a se motivar para combater a depressão. (Foto: Flávia Santos

“É meio difícil porque no final de semana faço coisas que não dá pra fazer na semana”

Luana tem uma jornada tripla, pois trabalha em diversos lugares para complementar a renda da família.

A gravidez em aspectos de acompanhamento foi relativamente saudável, o que realmente passou a preocupar bastante a jovem foi o fato de sempre ter tido problemas psicológicos, como a depressão, doença que já a fez tentar tirar sua própria vida mais de uma vez. inclusive quando ainda estava em período gestacional.

“Foi bem difícil, fiquei muito mal. Eu já tinha depressão, pensei várias vezes em tentar suicídio, mesmo grávida”, relata Luana.

A jovem lembra que descobriu a depressão quando era mais nova e explicou que até hoje ela sente ainda marcas da doença, onde o medo de cuidar de uma outra vida era grande.

“Teve uma época da minha vida que eu estava com depressão e tudo mais, não tinha muita perspectiva de vida. Depois que o Anthony nasceu, eu me vi obrigada a tentar melhorar, eu tinha que além de cuidar de mim, cuidar de outra pessoa. E aí comecei a ter meus objetivos como artista”, reforça.

Viver de arte

No início de 2020, mesmo Luana tendo tido um reconhecimento por parte desse profissional da área, ela afirma já ter pensado em se tornar tatuadora antes, pois amigos e colegas próximos notavam seu talento e sempre a questionavam o porquê de ela não trabalhar com isso.

Essa fase foi complicada, pois Anthony ainda estava para completar 2 anos, Luana já tinha iniciado seus trabalhos como tatuadora e se esforçava para conseguir tempo para tudo. Além disso, a vaga na creche estava difícil de conseguir, não tinha com quem ela deixar seu filho, pois sua família também trabalhava, e a preocupação tomou conta da mãe.

“Depois disso eu tive certeza de que queria tatuar. Mas aí não estava sendo o suficiente no momento, precisava de mais dinheiro. Eu era iniciante, tatuagem dá dinheiro, mas é preciso estar ali no ramo há um tempo”, diz a artista.

Com todos esses receios que ainda ocupavam espaço na mente de Luana, ela passou a procurar emprego para conseguir um dinheiro extra para dentro de casa, foi quando conseguiu uma vaga como atendente de telemarketing, trabalhando de segunda à sexta e mesmo assim continuou tatuando nas horas vagas.

Mesmo trabalhando fora, ela tinha certeza de que queria viver da arte, mesmo que isso exigisse um foco ainda maior vindo dela.

Os planos de Luana para atuar somente com arte em 2022 foram afetados pela pandemia. (Foto: Flávia Santos)

“Viver da arte e ter minha própria independência é meu maior objetivo. Quero fazer acontecer”

Luana atua com produção de desenhos, faz tatuagens e pretende lançar seu primeiro álbum musical.

Além de mãe solo, ela afirma ser uma artista acima de tudo, tanto que comentou com o Desenrola o fato de ter em mente futuros projetos musicais, por ter a habilidade também de escrever e compor letras baseadas em suas vivências. E é por se encontrar na arte, que seu sonho é viver dela.

“Me vejo como uma pessoa que passou por coisas bem pesadas. Eu só quero passar por cima de tudo isso, me tornar uma artista, viver da minha arte e dar uma vida minimamente decente pro Anthony”, desabafa.

Com a chegada da pandemia esses sonhos ficaram ainda mais distantes. Mas Luana tem tentado seguir adiante, dando máxima atenção como mãe e sempre correndo atrás do melhor pro Anthony.

“Viver da arte e ter minha própria independência é meu maior objetivo. Quero fazer acontecer”, concluiu ela.

Hoje, Luana mora com sua família materna, sua mãe, avó, tia e tio. Isso facilita para que não fique tão pesada a divisão de valores e gastos na casa, e ajuda no que pode todo mês.

Ela continua trabalhando fora, fazendo tatuagens e trocando serviços em busca de novos clientes e divulgação do seu trabalho. Seus planos para o próximo ano é conseguir trabalhar e viver somente da arte, conseguir um espaço só seu, mais tempo com seu filho e estabilidade. “Pretendo estudar muito, para até o meio do ano que vem estar trabalhando somente com arte”, enfatiza.

“É uma obrigação do poder público e do cidadão consciente”: moradores contam sobre a coleta seletiva em Osasco

Reciclando há muitos anos ou distantes desse processo, moradoras de Osasco refletem sobre a cultura da separação de materiais recicláveis, onde algumas aprenderam com a própria família e outras ainda tentam descobrir como colocar em prática dentro do território.

Sempre que lava a louça, Beatriz aproveita para lavar as embalagens recicláveis que utilizou durante o dia.

Com a realização da 26ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 26, em 2021, pautas sobre o meio ambiente foram discutidas no mundo inteiro, com grande destaque durante o evento. Nos territórios, o processo de coleta seletiva e separação de materiais recicláveis é um tema cotidiano, e para entender um pouco mais sobre essa cultura sustentável, o Desenrola conversou com Beatriz Gonçalves, que recicla desde pequena, e Ana Nunes, que não tem esse costume.

Beatriz Gonçalves, 23 anos, mora no bairro do Jardim D’Abril em Osasco, região metropolitana de São Paulo, e a separação de materiais recicláveis está presente em sua vida antes mesmo de seu nascimento. Tudo começou com o seu avô, Lafaete, 79 anos, que sempre gostou de se informar sobre educação ambiental e consumo consciente, devido ao trabalho que teve durante muitos anos: vendedor de livros autônomo.

Lafaete retirava os livros de distribuidoras, colocava todos em um fusca que tinha, e saia de sua casa em Santana de Parnaíba, para vender os livros de porta em porta em todas as cidades e estados que passava. O contato com a literatura o fez entender sobre a separação de materiais recicláveis e consumo consciente. 

“Meu avô vendia livros indo até as casas, era muito antigamente. Eram sobre diversos assuntos [os livros] e ele sempre foi assim. Ele lê muito, ele gosta dessas coisas e eu acho que ele se informou por aí, […] ele sempre foi um homem bem informado, sempre com noções de consumo de água, reciclagem entre várias coisas”

conta Beatriz sobre seu avô.

Com esse conhecimento, Lafaete criou 6 filhos e passou suas vivências adiante. Principalmente para Simone, mãe de Beatriz. Mesmo o restante da família tendo o costume de separar apenas as latinhas, na casa dela, tudo é separado. “Minha mãe sempre reciclou para ajudar os catadores. Ela também estudou sobre o assunto tempos depois, quando ela voltou a estudar”, enfatiza Beatriz.

Dentro de casa, Beatriz, Simone e o padrasto, Luiz, mantêm a rotina de separação dos materiais recicláveis como algo natural. Devido a convivência com o avô e as conversas sobre sustentabilidade, reciclagem, consumo de carne e tudo que envolve impactos ambientais, Beatriz decidiu cursar Gestão Ambiental no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), para dar continuidade a tudo o que já vivia.

Separação dos materiais recicláveis  

Durante um tempo, Simone fazia a separação de materiais recicláveis em casa, mas não levava em um Ecoponto (local público em que os cidadãos podem se desfazer de seus reciclados), ela apenas colocava na calçada para que quando o caminhão do lixo passasse, pudesse retirar.

Beatriz começou a estudar o assunto e percebeu que o caminhão de lixo convencional misturava o lixo reciclável e o não reciclável, e entendeu que elas precisariam mudar essa dinâmica e levar ao Ecoponto mais próximo da casa delas, localizado no bairro do Jaguaribe, em Osasco, pois na região onde moram não passa o caminhão da coleta de material reciclável.

“A gente achava que estava reciclando só separando o lixo, só que o correto é lavar a embalagem, secar e levar no Ecoponto. Porque o lixeiro vem, joga no caminhão e mistura tudo”

relata Beatriz.

Na primeira vez que usou o Ecoponto, foi informada pelos funcionários que ela não precisaria separar em sacos específicos, pois essa separação é feita no próprio espaço. Então, ela coloca tudo na mesa sacola, e separa apenas o vidro, pois pode cortar a mão de quem está em contato com o material.

“Ao lavar a louça eu lavo também a embalagem de produtos que já usei. Coloco para secar e coloco no saco de lixo. Eu consigo manter o saco dos recicláveis em casa por até 3 meses, depois levo no Ecoponto mais próximo da minha casa” explica Beatriz, sobre o processo que realiza para a separação dos materiais.

As embalagens recicláveis escorrem junto com as louças, depois de totalmente secas, Beatriz coloca em um saco para levar no Ecoponto.

As outras tias de Beatriz, não seguiram os passos de consumo consciente do avô Lafaete como ela e a mãe. E fora do seu núcleo familiar, a estudante conhece apenas mais dois amigos que fazem a separação de materiais recicláveis. O que para ela deveria ser regra, na verdade é exceção.

“Eu fui pesquisando sobre sustentabilidade e optei por ter uma vida mais minimalista e fazer a separação correta do lixo. […] O ser humano, ele se coloca acima como um ser superior, mas ele faz parte da natureza, cuidar da natureza é por sobrevivência também”

expõe Beatriz.

Na visão de Beatriz, que está envolvida na causa ambiental, ainda é muito difícil seguir com essa educação no município, por isso ela tomou a iniciativa de tentar mudar esse processo dentro de casa, procurando algum lugar para levar o seu lixo: “A gente não tem um apoio mais efetivo para reciclar. Não tem incentivo”, lamenta.

Osasco Recicla 

Atualmente, a cidade de Osasco conta com 7 ecopontos, em que as pessoas podem levar tanto materiais recicláveis de consumo doméstico, quanto resíduos de construção civil, móveis e eletrodomésticos. Os ecopontos ficam localizados nos bairros: Jardim Mutinga, Novo Osasco, Jaguaribe, Helena Maria, Adalgisa, Bandeiras e Munhoz Júnior.

A cidade, também conta com cerca de 250 PEV’s (Pontos de Entrega Voluntária) espalhados, que estão instalados em parques e equipamentos públicos, em que cidadãos podem descartar seus próprios resíduos recicláveis, como garrafas plásticas, latas de alumínio, papelões, entre outros.

Além dessas duas formas de reciclagem, compõem o programa Osasco Recicla, a coleta porta a porta, em que um caminhão recolhe os materiais recicláveis uma vez por semana, nos domicílios onde foi implantada a coleta seletiva. Esse serviço cobre apenas 19 bairros, cerca de 30% da cidade.

Segundo Jair Ribeiro, gerente responsável pela Secretaria de Obras de Osasco, que cuida de toda a limpeza urbana da cidade, estava planejado que a coleta crescesse para outras regiões, mas entre 2020 e 2021, a pandemia da covid-19 impediu esse processo.

“Depende das ruas, tem algumas ruas que são contempladas por esse serviço, não são todas não. Na zona norte é um pouco mais difícil, mas na zona sul tem bastante”

afirma Jair Ribeiro.

Ele conta o que acontece com o material depois que ele é coletado pelos caminhões da EcoOsasco, empresa contratada pela prefeitura. “Todo esse material coletado vai para as três cooperativas [da cidade]. É um programa que nós temos chamado “Osasco recicla”, onde há a inclusão dos catadores. São três cooperativas que recolhem esse material, preparam ele, separam, vendem o material, e a arrecadação é repartida entre eles”, diz.

Mesmo morando nos bairros contemplados pela coleta seletiva porta a porta, Karen Kumagai de Presidente Altino, Jessica Rodrigues do Jardim Roberto, Patrick França da Cidade das Flores e Eduardo Lopes do Rochdale, relatam que nunca viram o caminhão, ou ficaram sabendo desse serviço.

Questionado pela nossa reportagem, Jair explica que a divulgação do serviço não é midiática, é feita de casa em casa. “A divulgação é feita porta a porta em cada casa, levando panfletos e conversando com as donas de casa. Se a gente faz uma divulgação ampla, os outros bairros querem também e você não consegue fazer. É preciso fazer bairro a bairro esse trabalho de educação ambiental”, relata Jair.

Jair afirma que o critério utilizado para fazer o mapeamento da coleta porta a porta, é geográfico, levando em consideração bairros mais próximos das cooperativas por conta da logística do caminhão, e também vai de acordo com as demandas da população.

“Por exemplo, se existe uma demanda muito grande aqui no Vila Yara e Adalgisa que quer a coleta seletiva, o pessoal começa a ligar para nós e pedir. Então as vezes fica mais fácil você implantar onde as pessoas já querem”, diz Jair.

Ana Nunes, 20 anos, moradora do bairro do Jaguaribe, em Osasco, mora com os pais e eles não têm o costume de separar o material para reciclagem. Para ela, um grande empecilho para a não realização desse processo, é a ausência do sistema porta a porta em seu bairro. 

“Se fosse um caminhão que passasse igual o caminhão do lixo normal, ia ser muito mais fácil a gente separar em sacos diferentes”

expressa Ana.

Ela relata que um de seus maiores empecilhos para começar com a cultura dentro de casa, é a falta de tempo. Trabalhando e estudando, ela conta que chega muito cansada em casa, e não tem tanto tempo para separar o material e depois se deslocar até um Ecoponto ou PEV mais próximo.

Um dos Ecopontos da cidade, fica localizado no bairro de Ana, mas ela nunca soube dessa informação.

“A gente nunca ficou sabendo se existe algum posto perto de casa, eu sempre ando pela região e nunca vi posto de coleta e olha que a gente tem vários grupos da rua e ninguém fala nada que tem isso”

diz Ana.

Dentro de casa, sua família não tem o costume de separar todas as embalagens que utilizam, mas Ana vê desde pequena o pai Sidnei Roberto, 56 anos, separar e vender latinhas. É uma cultura que ele mantém há mais de 30 anos, sendo que depois de separar, ele não leva até nenhum Ecoponto, o pai vende o material e a renda extra ajuda com as contas.

Sidnei guarda as latinhas em uma sacola, e vende quando já juntou uma boa quantidade.

Para ela, uma divulgação mais efetiva desses Ecopontos seria anunciar nos pontos mais movimentados da região, como igrejas, mercados e portas de bancos, pois sem divulgação é muito difícil saber que esse serviço está disponível. “No dia a dia a gente não passa em todas as ruas pra ver se tem alguma coisa”, coloca Ana.

Além de não saber da existência do Ecoponto, para ela o processo para separar o lixo, também não é divulgado e detalhado para a população. “Eu não sei qual é o processo, o que acontece, o que tem que fazer, não é falando em todos os lugares”, diz. 

Ação territorial, para um impacto global  

Mesmo sem realizar a separação de materiais dentro de casa, Ana compreende que é um processo importante e primordial:

“Muito bom pro meio ambiente porque eu quero viver muitos anos ainda, e eu quero que meus filhos vivam, e do jeito que está não sei se vai dar. A gente fica vendo tanta coisa ambiental acontecer que a gente podia mudar o simples que é separar o lixo, coisas que estão ao nosso alcance”

enfatiza Ana.

Carlos Marx, 75 anos, foi Secretário do Meio Ambiente da cidade de Osasco por 12 anos e integra o coletivo “Casaviva”, que atua diretamente na conscientização cultural e ambiental na cidade.

“Em 2017, eu e um grupo de amigos do movimento cultural e ambiental de Osasco, decidimos criar um coletivo para trabalharmos em conjunto na área ambiental e cultural realizando cursos, atividades, eventos, comunicação na parte de conscientização e educação ambiental”, conta Carlos.

Desde então, ele e mais 8 ativistas: Samantha Alves, Fábio Maganha, Manoel Gurgel, Dorgival Nazaro, Maristela Leamare, Gênesis Nazaro, Larissa Alves e Rosi Cheque, atuam de forma voluntária na cidade, com a proposta de promover a educação ambiental e conscientizar a população osasquense. Para Carlos, a arte é uma importante ferramenta para fazer educação ambiental. 

“Você não faz conscientização ambiental só fazendo discurso e dando aula. Uma ação cultural, um evento, um show, um ato no calçadão… às vezes atinge e sensibiliza muito mais gente que você fazer essa educação ambiental formal”

explica sobre a dinâmica de atuação do coletivo.

Além da organização de ações e eventos, o coletivo atua na divulgação dos bairros que fazem coleta seletiva porta a porta, ajudando a informar as pessoas a separarem os materiais recicláveis em casa e colocarem na lixeira no dia da coleta, ou até mesmo para os catadores pegarem.

O contato também se estende por igrejas, condomínios e escolas do ensino médio, e ensino fundamental a partir da 5ª série. Com atividades, filmes e palestras envolvendo a educação ambiental. 

“Nós entendemos que a tarefa de preservar o meio ambiente é uma tarefa de todo mundo. É uma obrigação do poder público mas também do cidadão consciente. O cidadão tem que ter consciência que ele tem que saber dar a destinação para os resíduos que ele produz, se não o meio ambiente não vai ter recuperação ambiental”

exprime Carlos.

Ativista há muitos anos, Carlos percebe que atualmente, as pessoas estão bem mais engajadas e informadas sobre a importância da preservação da natureza do que em anos anteriores, principalmente a juventude, que recebe informações de multiplataformas e repassa para os pais.

Essa mudança de hábito é o que o coletivo caminha para atingir, informando as pessoas que a preservação do meio ambiente não passa de uma ação coletiva e local. 

“A ação local agora ganhou uma expressão muito grande. A pessoa não vai conseguir sair daqui de Osasco e ir lá na Amazônia impedir que ponham fogo e derrubem as árvores. A gente tem que ter compromisso que aquilo está errado, cobrar das autoridades, e fazer a nossa parte aqui”

considera Carlos.