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Técnica sustentável, ‘upcycling’ ainda é vista com preconceito na periferia, diz estilista

É essa a proposta do upcycling, técnica de reaproveitamento de resíduos têxteis, transformando tudo num produto novo com maior valor funcional e estético. Tudo isso, sem a necessidade de reprocessamento dos tecidos, o que reduz gastos com energia e consumo de água. Incrível, né?

Apesar dessas vantagens, a técnica é vista com certo desprezo pelas pessoas, segundo Luã Ayo Ayana, 25 anos, educador, produtor criativo e artista têxtil há mais de 8 anos.

“Se não é novo, então não presta, não tá valendo, vai estragar, é ruim […] Eu já escutei muita coisa assim. Ainda tem muito preconceito dentro da própria periferia”, diz Luã, morador da Chácara Santana, no distrito Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo.

“As pessoas têm muito preconceito e não querem dar um valor justo para uma peça. Pagariam um valor alto numa peça de uma marca famosa, mas não pagariam R$100 numa peça de upcycling porque a enxerga como lixo.” – Luã Ayo Ayana, educador

Da quebrada para a quebrada

Nas periferias de São Paulo, o upcycling em si ainda não é amplamente disseminado como mercado da moda, mas Luã lembra que suas técnicas sempre estiveram presentes culturalmente nesses territórios, que, por falta de condições financeiras, sempre precisaram achar alternativas para se vestir.

“Essa ideia de pegar roupas antigas e transformar é uma coisa que eu já vejo na quebrada faz muito tempo”, diz.

O que pode confundir muita gente é o uso do termo em inglês: upcycling, em português, significa “reciclagem”. Neste sentido, explica Luã, quando pensado no mundo do mercado da moda no Brasil, hoje tem se discutido o uso de outros termos para tornar a técnica mais acessível no país.

“A gente ‘catou’ esse termo, mas para mim sempre faltou uma coisa mais brasileira que conversasse mais com o meu corpo, que é o corpo dissidente. Daí eu conheci o termo ‘transmutação’, dentro de um curso do ateliê Vou Assim. Depois disso, eu comecei a me apropriar desse termo”, explica.

Luã em desfile da Casa de Criadores para o ateliê Vou Assim + DCRLHS em 2024. Foto: Arquivo pessoal.

Hoje, existem movimentos para que a transmutação têxtil chegue a mais pessoas nas quebradas, a fim de difundir essa técnica. “Meio que esse ‘babado’ de passar para frente o conhecimento para que ele seja difundido. […] Na Fábrica de Cultura Jardim São Luiz tem um curso de moda, que lutaram muito para conseguir fazer acontecer”, explica Luã.

Estilo e sustentabilidade andam juntos

Temas como sustentabilidade e estilo precisam andar lado a lado. Afinal de contas, ser consciente não impede ninguém de se sentir bem e estiloso. Além disso, achar técnicas sustentáveis na moda é uma emergência climática. 

Estima-se que o mundo gere hoje cerca de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano, e o Brasil, 4 milhões de toneladas anuais, segundo dados da Fundação Ellen MacArthur, ONG internacional.

Luã e alunos tirando medidas durante aula de transmutação têxtil. Foto: Arquivo pessoal.

Técnicas como o upcycling ou transmutação têxtil ajudam na redução de resíduos têxteis que vão parar em aterros sanitários e impactam o meio ambiente.

Desta forma, podemos dizer que o upcycling é também um movimento de contra-cultura da moda, uma vez que se opõe ao consumo rápido e descartável, propondo uma moda mais consciente e personalizada. Esse movimento acabou se tornando símbolo de uma cultura alternativa adotada por movimentos artísticos socioambientais.

E aí, conta pra gente, já conhecia essa técnica? Como a moda upcycling pega aí na sua quebrada?

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação do laboratório de produção de conteúdo Você Repórter da Periferia 2.0 (VCRP 2.0), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

O sonho como caminho de cura

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A sessão de hoje me trouxe uma pergunta que ecoa fundo: Quais são os seus sonhos?  Você se pergunta sobre isso?

Em uma sessão de terapia, essa questão surgiu enquanto eu refletia sobre os sonhos dos meus ancestrais — e sobre como estamos conectadas a eles. Pensei no que temos realizado, no que demos continuidade, e também naquilo que eles começaram e não puderam terminar. Alguns, talvez, tenham sido obrigados a matar dentro de si o desejo de sonhar.

É estranho olhar para a vida por esse ângulo. Tudo parece ter uma continuidade, ou ao menos desejamos que tenha. Mas é preciso reconhecer o caminho que nos trouxe até aqui — e o que se perdeu ao longo dele.

O maior desafio, para mim, é olhar o presente e perceber quantos sonhos se esvaziaram… ou morreram por falta de fé — fé em algo, fé em nós mesmos.

Para quem, como eu, busca ligar os pontos, é inevitável entender: somos um elo entre os que vieram antes e os que virão depois. Muitos dos nossos ancestrais sofreram, foram privados de sonhar, e tiveram como única missão sobreviver — manter os seus vivos.

Mas a vida não deveria se resumir à sobrevivência.
Nosso povo, no entanto, conhece bem essa realidade. Se perguntarmos aos nossos pais, aos que ainda resistem e seguem vivos, talvez muitos nem saibam dizer quais eram seus sonhos — talvez nunca tenham podido pensar nisso.

E se os sonhos foram arrancados, mortos ou esquecidos… como retomar essa força de desejar? Como realizar o que eles desejaram e não puderam? Como sonhar de novo, no presente?

Nessas horas, recorro aos deuses, aos Orixás, àquela energia que alimentava a força dos meus ancestrais para seguir em frente. E segue me alimentando, Eles buscavam construir algo que os mantivesse vivos — e neles, eu encontro espelho e alimento.

Os Orixás sabem das coisas

São capazes de nos enxergar, de nos mover e nos lembrar o que é viver. Alimentam em nós o sonho e o sentido, e nos lembram que sonhar é um direito humano.

Sou uma dessas pessoas — uma mulher que acredita que é possível transformar dor em amor. Acredito que os deuses afro-brasileiros viveram na terra, que tinham poder, que eram natureza, e que construíam coletivamente. Assim nos contam os Itans.

Hoje, porém, esquecemos nossa conexão. E tentar vencer sozinha é difícil — precisamos de outras pessoas.
Mas quando nos conectamos aos ancestrais e aos deuses, algo poderoso acontece.

Nas últimas semanas, senti a presença de Oxóssi em cada vivência. Ele trouxe um impacto psicológico e metafísico profundo, e foi assim que comecei a sessão de hoje questionando sobre os sonhos. Percebi que alcancei o meu próprio sonho através dessa conexão: cultuando esse Orixá, reencontrei o sentido de desejar.

Muitas pessoas relatam o mesmo — e esse é o desafio:
seguir buscando conexão com o passado, sem se aprisionar nele.
Relacionar-se com a ancestralidade para criar novos caminhos.
Desafiar a mente e o coração a trilhar uma estrada de luz e cura.

Integrar passado, presente e futuro como um espiral —
um movimento de relações que nos cura e nos permite desejar ser mais do que sobreviventes da história imposta pelos colonizadores.

“Sonhar é lembrar o que o tempo tentou apagar.
É chamar pelo nome os que vieram antes e sentir seus passos dentro dos nossos. Sonhar é deixar que o tambor do coração bata no mesmo compasso do tambor do mundo.

É abrir os olhos da alma e perceber que o impossível é só o que ainda não foi sonhado junto. Que Oxóssi nos ensine o caminho da floresta —
onde cada raiz é memória,
cada folha é esperança,
e cada respiração é um novo começo.”

Que este novembro nos convoque a desenrolar os sonhos adormecidos. A lembrar que somos continuidade viva, herança em movimento. Que não nos contentemos em apenas resistir, mas aprendamos a florescer por nós, pelos nossos, e por todos os que ainda virão sonhar através de nós.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Impomos às infâncias periféricas a cultura do cuidado e trabalho infantil”, reflete educadora sobre adultização de crianças das periferias

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Em agosto de 2025, o debate sobre adultização mobilizou a sociedade em diferentes camadas. Ao considerar os diversos recortes sociais e econômicos, as infâncias periféricas são afetadas por violências simbólicas e práticas dentro desse tema, seja no âmbito familiar, escolar ou comunitário, como conta a educadora Giselle Santos. 

A especialista afirma que nos últimos anos, a partir dos estudos sobre as infâncias, tem sido incômoda a forma como crianças e adolescentes vêm sendo expostos publicamente de maneira desigual e, muitas vezes, sem cuidado ético. “Há uma superexposição que acontece sem que eles sejam ouvidos, sem que possam dizer se concordam ou não com o uso de suas imagens e histórias”, destaca Giselle, que é especialista em educação e tecnologia.

 “A adultização acontece quando impomos às infâncias e juventudes um amadurecimento precoce, abrangendo diversas questões: sexualização, cobrança de consumo, responsabilidades domésticas, entre outras.” 

Giselle Santos é educadora e pesquisadora sobre tecnologia, inovação e infâncias.

Para além da exposição, ela aponta que existem outros modos de adultização das crianças que atingem, principalmente, aquelas que vivem nas periferias, problema que não é novo e reflete práticas coloniais. Gênero, raça e classe, segundo Giselle, também determinam como a adultização das crianças é percebida. 

“Uma criança [negra e periférica] sozinha, fora da escola, às dez horas da noite, passa despercebida. Em contrapartida, se colocarmos uma criança branca na mesma situação, imediatamente surge a narrativa de ‘criança perdida’”, afirma.

Diferentes formas de adultização

Entre 2023 e abril de 2025, o Ministério do Trabalho resgatou cerca de 6.372 crianças e adolescentes do trabalho infantil no Brasil: 2.564 em 2023, 2.741 em 2024 e 1.067 nos primeiros meses de 2025. No total, 86% dos casos envolviam formas de exploração relacionadas a atividades com graves riscos ocupacionais e sérios prejuízos à saúde e ao desenvolvimento integral de crianças e adolescentes.

Sobre o perfil das vítimas, a maioria são meninos (74%), e 26% são meninas, sendo que 91 tinham até 13 anos, enquanto 4.130 tinham entre 16 e 17 anos. As principais atividades em que o trabalho infantil foi identificado são comércio, alimentação, oficinas mecânicas, agricultura e pecuária.

“Crianças de favelas e periferias constantemente são tratadas como trabalhadoras, com um falso rótulo de pequenas guerreiras. São empurradas para uma cultura do cuidado desde muito cedo, onde precisam cuidar, por exemplo, daquele irmão mais novo, vender algo na rua para ajudar na renda da casa, etc. Essas crianças crescem [num contexto de] normalização da vulnerabilidade.”

Giselle Santos é educadora e pesquisadora sobre tecnologia, inovação e infâncias.

A pesquisadora destaca que o ciclo da adultização é constantemente reforçado pela ausência do Estado, especialmente em territórios marcados por uma arquitetura punitivista e pela falta de espaços de lazer ou proteção social, o que faz com que a vida das crianças seja moldada desde muito cedo.

“Enquanto comunidades periféricas criam sua própria rede de sobrevivência – acesso à água, luz, escola – as crianças seguem vítimas diretas dessa ausência do Estado que deveria garantir creche, transporte e políticas públicas para que a escola seja um espaço de cuidado, especialmente na ausência daqueles responsáveis que precisam trabalhar.” 

Giselle Santos é educadora e pesquisadora sobre tecnologia, inovação e infâncias.

Falta de acolhimento e proteção deixa crianças e adolescentes vulneráveis

Para Giselle, o problema ainda é atravessado pela forma como o cotidiano familiar, escolar e comunitário frequentemente negligencia o cuidado com as crianças e adolescentes.

“Muitas escolas e outros espaços de ensino ignoram ou atropelam direitos fundamentais previstos no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), tratando a imagem e a participação de estudantes como algo disponível para uso automático”, explica.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que família, sociedade e Estado, de forma conjunta, têm a responsabilidade de proteger crianças e adolescentes de quaisquer abusos e/ou negligências. Isso significa que todos devem assegurar sua dignidade, vida, saúde, educação e liberdade, protegendo-os de exploração, violência e descuido, conforme o Artigo 227 da Constituição Federal.

“Quando falamos em ‘passar por cima dos direitos’, estamos falando de um conjunto de garantias legais — como o direito à privacidade, ao consentimento, o uso ético e à proteção da imagem — que deveriam vir sempre em primeiro lugar”, específica.

A educadora defende que o direito ao brincar e a interação social são pilares fundamentais no desenvolvimento socioemocional de crianças, influenciando sobretudo a construção de vínculos duradouros e habilidades na primeira infância.

Em contextos de vulnerabilidade — seja pela precariedade de cuidados, pela falta de proteção social ou pela exposição precoce às tecnologias — o desenvolvimento pleno das crianças acaba limitado. 

“Desde a infância, o direito ao brincar, à experimentação e à expressão livre vai sendo controlado, tornando-se atividade dirigida. Até o direito à imagem passa a ser mediado. Dessa forma, direitos como o de uma educação plena acabam disputando espaço quando a tecnologia se sobrepõe ao que deveria ser prioridade”.

Giselle enxerga um avanço nesse debate, no entanto, ressalta que apenas a visibilidade das redes não são o suficiente para frear o avanço da adultização. Para ela, é importante ressaltar que a adultização não acontece de uma única forma e que a percepção popular não pode se limitar à ideia de isso acontece somente quando a criança quer se comportar como um adulto.

Ela ainda reforça que, apesar de se chocarem com o tema por meio das redes sociais, muitas pessoas continuam a explorar o trabalho infantil em outros ambientes. 

“É curioso perceber que muitas pessoas que entraram nessa discussão são as mesmas que contratam menores de idade para trabalhar como babá e acham isso natural”, afirma. 

Legislação e ambiente digital

Em agosto, o Congresso e o Senado Federal aprovaram o projeto de Lei nº 2.628, que estabelece regras para tentar combater a adultização de crianças no ambiente digital, seja por redes sociais, sites, programas e aplicativos, jogos eletrônicos ou plataformas específicas. O texto foi sancionado pelo presidente Lula (PT), no dia 18 de setembro de 2025.

Giselle analisa que o projeto de lei é um passo importante, mas alerta que é preciso criar canais acessíveis de denúncia e investir em conscientização para que crianças e adolescentes reconheçam situações de abuso e vigilância, quando estão sendo controladas por abusadores, especialmente nas redes.

Além disso, há necessidade de simplificar e popularizar as explicações sobre o funcionamento da lei, para que seus efeitos cheguem de fato à população. 

“Eu aposto na pedagogia da fofoca: a gente cria interesse pelo assunto, leva a informação de forma acessível, sem perder a profundidade. No debate sobre o ECA Digital, isso significa mostrar como falar sobre o projeto de lei, acompanhar seu andamento e discutir a aplicação da lei já em vigor, tornando o tema próximo da realidade das pessoas”, propõe.

Ela explica ainda que os riscos tecnológicos aparecem como consequência de uma série de carências anteriores. “As crianças passam a ser monitoradas por câmeras de reconhecimento facial, seus deslocamentos são acompanhados, e imagens acabam até em sistemas de segurança pública, podendo ser usadas para associá-las a situações ou delitos que não cometeram”, frisa ao alertar sobre a falta de procedimentos claros. 

“Não temos uma cultura de protocolo e sim reação. Vê qualquer B.O., qualquer caso que aparece — vazamento de foto, criança assediada na internet — e a gente corre para ‘resolver’. Mas não existe um protocolo sistematizado”, alerta Giselle.

Nesse sentido, ela aponta que proteger crianças e adolescentes de abusos e violências envolve cinco passos essenciais: 

  • Detectar o risco e entender o que está acontecendo; 
  • Responder rapidamente para interromper a exposição e proteger a criança;
  • Documentar as evidências de forma sigilosa, sem compartilhar imagens;
  • Denunciar às autoridades competentes, como direção da escola, polícia, conselho tutelar ou Ministério Público; 
  • Direcionar ou escalar o caso, acompanhando todo o processo até a resolução. 

Além disso, as práticas ancestrais são estratégias que ajudam a construir uma proteção mais próxima e efetiva. “Nos esquecemos daqueles rituais de conversa: depois de assistir a um desenho, a criança conta o que entendeu ou por que gostou. Sentar em roda, ouvir os mais velhos. Fortalecer a rede de apoio protege tanto quanto qualquer recurso digital”, coloca.

“Se a gente troca 10 minutos de tela por 10 minutos de conversa, já estamos criando confiança e vínculo. Não é sobre saber tudo de tecnologia, e sim criar um ambiente onde o diálogo exista, e aí sim dá para introduzir o digital de maneira consciente. Essa rede protege, cuida e fortalece, caso algo dê errado”, conclui.

Casos de trabalho infantil, maus-tratos, negligência ou outras violações dos direitos de crianças e adolescentes podem ser denunciados de forma anônima e gratuita pelo Disque 100.

Hortas comunitárias como estratégia de sobrevivência à insegurança alimentar #38

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Dados do IBGE indicam que 70% dos lares chefiados por pessoas negras vivem em situação de insegurança alimentar. Além da luta por políticas públicas, outra estratégia nas pelo direito à alimentação saudável nas periferias, são as hortas comunitárias, com variedades de hortaliças, ervas, frutas e legumes. 

Foi pensando em espaços como esse, que conversamos com o Iago Quinas Araújo, educador popular e membro do grupo Horta da Mata, espaço construído em 2014, na Cohab 2, em Itaquera, zona leste de São Paulo. A iniciativa é uma agrofloresta, ou seja, além da produção agrícola, o espaço também conta com diversas árvores e plantas nativas da mata atlântica. O local é aberto aos moradores, que coletam os seus alimentos e também conta com voluntários que cuidam da horta. 

Sophia Rosa Benedito, nutricionista e especialista em racismo alimentar, também chega para esse papo e ressalta que as hortas comunitárias têm um papel importante, do ponto de vista da educação ambiental, e colaboram para a reconexão das comunidades com a terra.

‘‘Me sinto útil em poder matar a fome de quem depende daquela única refeição no dia’’, diz trabalhadora do Bom Prato de Paraisópolis 

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Na correria da cozinha do Bom Prato de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, dona Maria Antônia serve quem chega, garantindo que ninguém fique sem sua refeição. A fila é cada vez maior, enquanto mais pessoas aguardam pela sua vez. Cada prato entregue com cuidado e atenção reflete o trabalho diário que dona Maria exerce há quase cinco anos na unidade.

Moradora de Paraisópolis desde 2013, a auxiliar de cozinha, Maria Antônia Araújo, 61, nasceu em Garrafão, cidade localizada no estado do Pará, região norte do país. Filha de pai cearense e de mãe belenense, ela vive em São Paulo desde 1983, ano que antecedeu o encontro com seu esposo, com quem é casada até hoje e tem três filhos. Também é avó de duas crianças, que cuida como se fossem suas filhas, equilibrando a vida familiar com a rotina intensa de trabalho no Bom Prato, como auxiliar de cozinha.

“Eu sempre gostei de cozinhar. Eu amo preparar os alimentos e mesmo lá no interior da roça, desde pequena me lembro de quando meus pais levantavam cedo para trabalhar e também de sempre prepararem o almoço e jantar dos trabalhadores que os ajudavam no trabalho no plantio”, compartilha ao lembrar que aos sete anos, subia em uma tora de pau ‘sebo’ (espécie de tora de madeira lisa e escorregadia), para ficar observando sua mãe preparar o jantar.

Comida no prato e cuidado comunitário

Desde 2021, Maria Antônia trabalha na função de auxiliar de cozinha no Bom Prato de Paraisópolis. Segundo ela, sua rotina envolve diversas etapas da preparação das refeições. Responsável pela produção de legumes, seleção de frutas, preparo de saladas e serviço na rampa, relata a correria e a dedicação de todos os dias.

“A única coisa que nós auxiliares não fazemos é cozinhar diretamente. Mas a parte de paneleiro, devolução, que é a lavação de pratos para servir os funcionários, bipar os cartões, fazemos. Também participamos da faxina geral, que acontece duas vezes por semana, às quartas e sextas-feiras”, conta.

O Bom Prato é um programa de segurança alimentar do Governo do Estado de São Paulo, criado em 28 de dezembro de 2000, que oferece refeições saudáveis e a preços acessíveis, com o objetivo de combater a fome e a insegurança alimentar. As refeições custam R$ 0,50 (café da manhã) e R$ 1,00 (almoço e jantar), os mesmos valores há 25 anos. 

O cuidado com a higiene também é parte do processo rigoroso dentro da cozinha. “As frutas que são comidas com casca, como peras e maçãs, colocamos em um [higienizador de alimentos], por cerca de 20 minutos. Depois desse processo, lavamos tudo na água corrente e depois [colocamos] em uma caixa fechada”, detalha sobre o processo que a equipe realiza para começar a servir às 10h30.

“As frutas que não são comidas com casca são descascadas, cortadas e arrumadas. A salada, do mesmo jeito, e os legumes que são cozidos, como a couve da feijoada, seguem o mesmo processo, tudo bonitinho. Isso se repete todos os dias”, explica.

Ela conta que todos os dias é tirada uma amostra de 100 gramas de tudo que é servido no café da manhã, almoço e jantar. “Cada saquinho é armazenado com a data e, se algum cliente passar mal, vai para o laboratório para exame”.

A organização é outra fase essencial para que tudo funcione corretamente. “Nós, auxiliares, entramos no serviço às 07h. Depois entra outra turma que fecha o roblado às 8h30, com outras tarefas. Temos que aprontar tudo até 9h30, pois a unidade também prepara marmitas [para distribuição externa]. Depois, fazemos toda a higienização e limpeza, para que o Bom Prato abra às 10h30 e comece a servir o almoço dos clientes’’.

A trabalhadora destaca o movimento intenso que o restaurante recebe e os diferentes perfis de público, o que, na sua visão, reflete a importância do Bom Prato como uma política pública que não só atende quem enfrenta contextos extremos de vulnerabilidade social, mas que também cumpre um papel essencial de integração comunitária, por funcionar como espaço de socialização e de oferta de alimentação saudável e de qualidade para todos.

“Nossa unidade é sempre bem movimentada. É difícil ter um dia que não bate a meta [de atendimentos]. Hoje servimos feijoada. Ontem, por exemplo, era frango assado”, destaca sobre a variedade do cardápio.

Insegurança alimentar ainda é realidade nas quebradas

Em 2024, o Brasil reduziu os índices de fome, no entanto, os números ainda são alarmantes. Segundo o IBGE, atualmente 6,48 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar grave — 2,2 milhões a menos do que em 2023, o que representa diminuição de 24,2% de domicílios com algum grau de insegurança alimentar.

As regiões Norte (37,7%) e Nordeste (34,8%) ainda concentram os piores índices de insegurança alimentar, com 6,3% e 4,8%, respectivamente, dos lares em grau grave.

O IBGE classifica como insegurança alimentar grave quando pessoas de uma mesma residência passam fome, pois não há comida suficiente nem de boa qualidade para todos se alimentarem.

Sem trabalho e renda, moradores das periferias dependem do Bom Prato para se alimentar

Em São Paulo, cerca de 5,8 milhões de pessoas enfrentaram algum grau de insegurança alimentar até 2024, sendo 1,4 milhão em situação grave de fome. A maioria teve redução na quantidade ou qualidade dos alimentos, com mulheres e pessoas negras sendo as mais afetadas. Os dados são do I Inquérito sobre a Situação Alimentar do Município de São Paulo (2024), conduzido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

O mesmo levantamento revela que, em domicílios liderados por mulheres negras, a insegurança alimentar grave era 2,1 vezes maior do que em domicílios chefiados por homens brancos. Entre famílias com renda de até um salário mínimo, 84% precisaram reduzir a variedade da alimentação por falta de dinheiro. 

Em Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, com mais de 100 mil habitantes, a realidade não difere do cenário geral do país. A Associação Ação Gueto, organização local, realizou entre fevereiro e junho de 2024 um levantamento sociodemográfico das famílias cadastradas em seus projetos de segurança alimentar. O estudo aplicou questionários presenciais a 333 famílias, selecionadas com base em critérios como inscrição no CadÚnico, presença de crianças menores de 7 anos, gestantes ou lactantes, e risco de Insegurança Alimentar e Nutricional (InSAN).

Os resultados mostraram que 81% das famílias estavam em risco de InSAN moderada ou grave, 71% estavam inscritas no CadÚnico (sendo 22% ainda na fila de espera) e 83% tinham mulheres negras como chefes de família. 

Depois de morar 30 anos no Jardim Miriam, bairro que faz divisa com Diadema, região metropolitana de São Paulo, a então residente de Paraisópolis celebra o fato de não precisar pegar condução para ir ao trabalho, já que mora há poucos metros da unidade em que trabalha. Ela ainda reforça a importância do programa para o território.  

“É uma alegria ter essa unidade no nosso território e servir pessoas que muitas vezes não têm nada para comer. Às vezes, essa é a única refeição do dia. Quantas vezes já tiramos do próprio bolso para ajudar quem não tem nem um real para comer’’.

Maria Antônia, auxiliar de cozinha no Bom Prato de Paraisópolis e moradora da região.

Trabalho coletivo

Maria Antônia ressalta o espírito de equipe e o respeito que sustenta a base do trabalho que desempenham diariamente. Para ela, é esse comprometimento diário que faz a diferença na rotina e na qualidade do serviço. 

“Aqui nós falamos que somos uma super equipe. Trabalhamos com horários e todo mundo é unido. Além disso, há uma grande força feminina. Sempre teve mais mulheres que homens aqui. E a relação com o nosso gerente, Ronie, é muito boa, pois é prazeroso trabalhar com ele”, diz.

A auxiliar de cozinha Maria Antônia, 61, ao lado de Ronie Leonardo de Pontes, 36, gerente do Bom Prato de Paraisópolis. Foto: Gustavo Araújo

“O melhor de tudo ao longo destes anos morando em Paraisópolis é saber que, com o trabalho no Bom Prato, estou finalmente conquistando a minha casa própria e voltar para o nordeste. Eu e meu marido continuamos batalhando, pagando aluguel e os custos da nossa casa, mas agora estamos conseguindo”, comemora ao contar que pretende deixar a equipe em breve, mas permanece na unidade até se aposentar.

Em meio à insegurança alimentar e à fome que ainda atinge muitas pessoas, o trabalho de Maria na unidade se materializa em cuidado prático: nas frutas higienizadas e refeições de qualidade servidas. 

Em meio à insegurança alimentar e à fome que ainda atinge muitas pessoas, o trabalho de Maria na unidade se materializa em cuidado prático: nas frutas higienizadas e refeições de qualidade servidas. 

As mulheres negras que mudaram os rumos da história e ninguém sabe quem são

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Em geral, quando falamos de como as restrições de acesso à saúde reprodutiva impactam as mulheres negras, falamos que elas são as que mais morrem e as mais encarceradas. E, infelizmente, tudo isso é verdade.

A América Latina é um dos lugares com as maiores restrições ao aborto no mundo, e as mulheres negras as principais vítimas de morte de gestantes e puérperas por falta de acesso a cuidado adequado durante a gestação, aborto, parto e puérperio (período de recuperação e adaptação física, psicológica e emocional, que dura entre 45 e 60 dias após o parto).

No entanto, como no dia 25 de novembro, acontecerá a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, em Brasília (DF), queria aproveitar para fazer algumas conexões mais felizes com o tema principal desta coluna, a Justiça Reprodutiva, e contribuir para a mudança de narrativas sobre o aborto. 

Entre as décadas de 1980 e 1990, o misoprostol, conhecido pelo nome da marca Cytotec, era vendido livremente nas farmácias do Brasil, para tratar gastrite e úlcera. No hora de comprar, a pessoa ficava sabendo que não podia ser usado por grávidas, porque poderia causar abortos ou nascimentos prematuros. 

Eu sempre fico imaginando como deve ter sido o dia em que alguém teve a ideia genial de realmente usar para interromper uma gestação indesejada. Porque, o que aconteceu depois, mudou os rumos da história das mulheres. 

Elas tinham descoberto que podiam usar o misoprostol para abortar em casa. Era barato e seguro. A notícia desse achado correu com o vento e revolucionou a ginecologia e obstetrícia do mundo inteiro. Tudo isso porque alguma mulher, muito provavelmente uma mulher negra, em alguma quebrada ou favela desse Brasil, descobriu que era seguro abortar com misoprostol e contou para uma amiga, que contou para outra, que contou para outra, fazendo a notícia correr o mundo. Grande é o poder de uma fofoca boa, minhas amigas. 

Desde então, as mulheres passaram a priorizar a medicação ao invés de estratégias mais perigosas, como objetos perfurantes ou intoxicação e, assim, as complicações por aborto inseguro caíram vertiginosamente. Isso fez com que os laboratórios se interessassem por pesquisar mais sobre o misoprostol na ginecologia e obstetrícia. Muita água passou debaixo dessa ponte e, como já é bem sabido, hoje o misoprostol é um medicamento essencial, segundo a Organização Mundial da Saúde, para indução de parto e aborto e para manejo de aborto espontâneo e hemorragia pós parto.

Como a gente não tem o rastro dessa história, pra saber quem ou como essa descoberta aconteceu, você pode estar se perguntando porque é que estou atribuindo a descoberta e a divulgação às mulheres negras? Oras, por uma questão de desigualdade: as mulheres brancas, com dinheiro, sempre tiveram e continuarão tendo seus abortos atendidos sob demanda e sem questionamentos, em clínicas de alto padrão no Brasil e no exterior.

Quem é que sempre soube usar da sua criatividade, inventividade e coragem, para resolver seus próprios problemas? Mulheres pobres, em sua maioria, negras.

Infelizmente, o que aconteceu depois, também está registrado na história: logo que a descoberta do misoprostol se popularizou, o Brasil, o primeiro país a registrá-lo para uso obstétrico, foi também um dos primeiros a restringir seu acesso. Hoje, o remédio é de uso exclusivo hospitalar.

O Brasil é, junto com Egito e Tailândia, um dos países com a maior restrição ao misoprostol do mundo. Em vários outros, esse comprimidinho ainda está livre nas farmácias, tratando úlceras, gastrites, induzindo abortos seguros e salvando vidas.

Nós talvez nunca saberemos quem foram elas, mas ainda que o acesso tenha sido dificultado, as que vieram antes de nós nos deixaram a lição de que é justo se rebelar contra leis injustas e que entre nós, nos cuidamos. A elas, o movimento aborteiro do mundo inteiro é muito grato.

Para saber mais, deixo aqui uma indicação de leitura: Brasil: as regras que puseram o misoprostol “na cadeia”, por Morgani Guzzo, do Portal Catarinas. 

E uma série com três vídeos lindos, em espanhol e inglês, sobre a história do acesso ao aborto na América Latina.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Mulheres periféricas compartilham trajetórias de fé e vida em comunidade: “Seja batendo tambor ou lendo a Bíblia”

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“Sou uma mulher de fé, uma mulher preta, periférica, filha de uma mulher de oração e de um pai pregador pentecostal, periférico. Venho de uma família que sempre teve a fé como elemento fundante. Na minha casa, todo mundo sempre orou muito, sempre houve cultos em família. A fé sempre esteve na nossa mesa”, é assim que Lídia Maria de Lima, mulher evangélica, pastora, teóloga e pesquisadora define sua caminhada religiosa.

Lídia Maria, 44, nasceu em Cotia — município localizado na região sudoeste da região metropolitana de São Paulo —, atualmente vive em Itaquaquecetuba e passou a maior parte de sua infância frequentando a Igreja Pentecostal Brasil Para Cristo, indo aos cultos até cerca dos seus 10 anos de idade e dividindo seu tempo entre a Assembleia de Deus e Brasil Para Cristo. Aos 11, passou a frequentar as reuniões da Igreja Metodista, onde participava dos cultos tradicionais, mas também de encontros e outras reuniões que misturavam religiosidade e atividades sociais. 

“Na Igreja Metodista, havia uma outra proposta muito mais voltada para o evangelho social, e partir daí eu me encanto com essa igreja e fico por lá, onde aprendo nesta comunidade a exercer a minha fé, mas também com os olhos voltados para as questões sociais e para a militância junto ao povo preto que sempre foi importante para mim”, compartilha.

Lídia Maria é pastora, teóloga, pesquisadora e autora do livro Entre o Amém e o Axé. Foto: João de Santos.

A partir daí, ela também conheceu a perspectiva ecumenista — movimento que busca aproximar as diferentes igrejas e doutrinas cristãs — e passou a circular entre outros movimentos e grupos religiosos. Já o contato mais profundo com religiões de matriz africana aconteceu durante o mestrado, ao discutir o trânsito religioso de protestantes ligados a essas tradições. 

Crescimento da Igreja e ausência do Estado

Essa diversidade de cosmovisões, para ela, é onde mora a beleza do sagrado. “A religião muitas vezes acaba por ocupar espaços onde o Estado não responde. A gente costuma procurar pela igreja, pelos templos, etc., para suprir essas lacunas deixadas pelo Estado”, diz Lídia ao mencionar a crescente expansão de comunidades, especialmente, evangélicas nas periferias.

Os dados preliminares do Censo 2022 indicam que os evangélicos no Brasil têm forte presença em populações historicamente associadas às periferias e às camadas mais vulneráveis da sociedade. 

A maioria dos evangélicos se declara parda (49,1%) ou preta (12,0%), correspondendo a mais de 61% do total do grupo, enquanto entre os brancos o percentual é menor (23,5%). Em termos de nível de instrução, 14,4% possuem ensino superior completo, predominando aqueles com ensino médio completo ou superior incompleto (35,2%).

Questionar como pensar evangelho sem olhar a dimensão social é algo que Lídia costuma ver como impossível de desassociar. “O verdadeiro evangelho, é pautado pelo anúncio das boas-novas, da comunhão e da partilha”, fala. 

“Durante um tempo se fez a crítica de ‘pequenas igrejas, grandes negócios’. Hoje vejo que essa vertente ainda existe, junto ao crescimento do fundamentalismo e da disputa por poder e território. Mas, por outro lado, há igrejas que desenvolvem trabalhos bonitos e importantes nas periferias, cuidando das necessidades do povo”, coloca Lídia.

“Buscar no sobrenatural respostas para questões que a ciência, a arte ou a vida não conseguem resolver é algo profundamente humano. Ao mesmo tempo, a sociedade e os atores políticos aprenderam a usar a fé como instrumento de poder e garantia de votos. ”

Lídia MAria de lima, pastora, teóloga e pesquisadora.

Segundo ela, para as pessoas negras e periféricas, o direito à fé também passa por reconhecer sua história, identidade e memória. “Sempre que pensamos na população negra, no movimento negro no Brasil, e na participação do povo evangélico, dizem que a população negra nega suas origens [quando não opta por religiões de matriz africana], pois o cristianismo esteve ligado à escravidão. É verdade que a religião protestante alinhou-se, historicamente, ao processo escravagista, mas também houve abolicionistas .”

Historicamente, a posição das igrejas evangélicas (protestantes missionárias e de imigração) no Brasil foi marcada pela omissão e, muitas vezes, pela conivência com a escravidão. Diferente da Igreja Católica, que teve um papel central na justificação e gestão do sistema escravagista durante o período colonial, as denominações evangélicas chegaram mais tarde, quando o sistema já estava estabelecido no país, mas, em geral, não se opuseram ativamente a essa estrutura. 

Luiz Gama; André Rebouças; José do Patrocínio; e Francisco Glicério são alguns exemplos de expoentes figuras negras abolicionistas no Brasil. Embora não haja registros consistentes de que fossem protestantes, dialogaram com ideias e redes influenciadas pelo protestantismo, que buscava romper com a estrutura racista vigente. 

“É legítimo que a população negra escolha sua religião, ressignificando Cristo, como Cristo preto, nazareno, periférico, revolucionário, em processo de libertação e firmamento. Essa liberdade religiosa é necessária e possível, e que a gente possa dialogar, respeitando nossa negritude, que nos une na busca por liberdade, dignidade e justiça, independentemente se eu bato tambor ou leio a Bíblia”, diz.

Lídia conta que, em determinados momentos, enquanto cientista da religião, já se viu desiludida com a vida, com a política e sentiu na pele a misoginia e o racismo. “Desisto então de ser pastora institucionalizada, entrego minhas credenciais como um sinal de desesperança diante de uma igreja misógina e racista. Mas recupero minha fé e esperança quando encontro, na caminhada, mulheres que seguem me dizendo: ‘estou orando por você’.”

Ao longo destes anos como pastora, ela promoveu rodas de conversa com outras mulheres para dialogar sobre violência doméstica nos espaços religiosos. Além disso, acompanhou jovens, especialmente LGBTs, para refletir sobre sexualidade e identidade dentro das igrejas.

As experiências de Lídia reforçaram a importância de caminhar coletivamente. Ela entende Cristo e o Espírito Santo como vento, feminino, transformador e restaurador.  

“Minha fé está na rotina, no encontro com outras mulheres, com a juventude, na educação dos meus filhos, de outras crianças que se aproximam de mim, e também naquela oração que faço para me manter de pé enquanto mãe solo de duas crianças num processo de divórcio.” 

Lídia MARIA DE Lima, pastora, teóloga e pesquisadora.

Espiritualidade por meio do Candomblé

Assim como Lídia, Danny Farias, 41, moradora de Diadema, município do ABC Paulista, encontrou pelo caminho mulheres de força e sabedoria que a inspiraram naturalmente a seguir seu caminho espiritual. Uma delas, sua avó, Dona Ditosa, que deixou inúmeros ensinamentos carregados de bênçãos, como conta. 

“A fé me acompanha desde muito nova. Minha avó foi quem me ensinou o que era ter fé. Eu rezava o rosário, o terço, sempre ao lado dela. Mas, naquela época, ainda não entendia o que era de fato espiritualidade. Foi só quando entrei para o Candomblé que compreendi essa diferença: ser uma pessoa espiritualizada é muito mais do que ser apenas uma pessoa religiosa.”

Danny Farias, é candomblecista, praticante do culto tradicional Yorùbá e moradora de Diadema (ABCD), na região metropolitana de São Paulo

Danny faz parte de um grupo religioso que também cresceu no Brasil nos últimos anos. Umbanda, Candomblé e outras religiões afro-brasileiras também tiveram um aumento no número de adeptos, de acordo com dados do Censo 2022. Embora esse número parta de uma base pequena, a proporção saltou de 0,3% em 2010 para 1,0% em 2022.

Danny cresceu em um lar catolico e diz que a espiritualidade é ser boa com as pessoas. “É entender que a vida espiritual exige entrega, renúncia, e, mesmo assim, permanecer firme no propósito de crescer e evoluir espiritualmente”, complementa.

Ela diz que, quando a fé não se traduz em ações práticas, é como uma fé vazia. “Nessa minha caminhada, aprendi que fé sem ação não existe”. Para ela, é preciso rezar, mas também agir e mudar. 

“Em Ifá, acreditamos que a mudança de comportamento é o caminho para uma vida melhor, para um caráter mais forte, para evolução espiritual. Se eu tenho fé, mas continuo sendo uma pessoa ruim, minha vida não muda e eu também não evoluo espiritualmente”, compartilha.

Um olhar para a vida que contemple todas as pessoas, também faz parte das lições que adquiriu. “O Candomblé chegou no meu caminho depois de alguns acontecimentos mediúnicos que começaram a tirar minha paz. Foi ali que senti o chamado. Meu pai carnal é também meu sacerdote, e foi com ele que eu fui conversar quando percebi que minha vida precisava mudar; eu estava desempregada havia mais de dois anos, me sentindo perdida”, conta.

Sua trajetória na religião começou em março de 2008, quando fez seu primeiro ‘Ebori’, um ritual dedicado à iniciação religiosa no Candomblé. “O processo de iniciação foi incrivelmente lindo e cheio de paz. É um momento de muita organização, como se fosse um casamento mesmo: preparei meu enxoval, afinal, eu seria uma Iyawo, a ‘noiva do segredo’”, divide sobre o ritual em que raspa a cabeça e fica recolhida no quarto de santo por 11 dias, em contato apenas com sua mãe e família espiritual.

Ela costuma dizer que nasceu de novo em 27 de maio de 2010. Foi nesse dia que Oxum e Oxóssi, seus Orixás de cabeça, apontaram o caminho e ela decidiu escutar.

A iniciação foi como um divisor de águas em sua vida. Ela conta que aprendeu a dançar, cantar e a rezar para seus Orixás, sua relação com o pai ganhou novos laços, os vínculos com amigos e familiares se tornaram mais leves, e sua reatividade deu espaço para a escuta e a calma. 

O convívio em comunidade, ao longo de 15 anos, gerou um amadurecimento e um novo jeito de se relacionar com as diferenças. O respeito às opiniões alheias, segundo ela, passou a guiar seu cotidiano, mas a mudança mais profunda foi outra: sua vontade de viver voltou. 

“Minha fé, espiritualidade e vivência dentro do Candomblé me ensinaram a ser melhor comigo e com o mundo. E isso é o que eu levo pra minha vida, todos os dias”, diz.

Mais tarde, a chegada da maternidade trouxe novos contornos à sua vida. “Quando engravidei do Arthur e me vi sendo mãe solo, confesso que não era o que eu tinha sonhado pra mim, mas eu sabia, no fundo, que meu Orixá me sustentaria”. 

Danny conta que seu nome, a partir da iniciação, é Osunfunke, que significa ‘Oxum trouxe essa criança pra eu cuidar’. “Em 2023, quando engravidei, tive certeza de que Oxum estava me olhando, me protegendo e me dando essa missão. O Arthur, assim como eu, também é filho de Oxum, e todos os dias eu sinto esse afeto, essa proteção sobre nós dois”, relata emocionada.

Nesse caminho, para ela, educar o filho consciente das suas raízes é um compromisso inegociável. “É de extrema importância que o Arthur cresça com essa conexão com o sagrado de forma lúdica, leve, espontânea. Quero que ele conheça, viva e, quando tiver discernimento, escolha o caminho dele, assim como eu fiz um dia”, conta. 

Ela reafirma que caminhos diferentes podem conduzir a um mesmo horizonte espiritual. “Cada território, cada comunidade, cada família tem sua forma de se relacionar com o sagrado e acredito que todas essas formas são válidas quando partem do amor, do respeito e da busca por evolução”, coloca. 

“Acredito que o mais importante é que cada pessoa tenha liberdade de se conectar com o sagrado do jeito que faz sentido pra ela, sem medo, sem imposição. E que isso aconteça, principalmente, nos territórios periféricos, onde muitas vezes a fé é o que sustenta e fortalece as pessoas em meio a tantas dificuldades”.

Danny Farias, é candomblecista, praticante do culto tradicional Yorùbá e moradora de Diadema (ABCD), na região metropolitana de São Paulo

Natureza como guia espiritual

Eluane Santos, entendeu desde cedo que a natureza era sua mestra e seu templo. Longe dos padrões religiosos, ela diz que prefere seguir seu próprio caminho, mas respeita todas as formas de crença e as diferentes maneiras de ser e existir no mundo. 

“Percebi cedo, aos 13 anos, que não cabia nos moldes das religiões que me cercavam. Entendi que era muito mais sobre minha aparência externa, do que do interno. Foi um processo árduo, mas a natureza sempre me acolheu”, diz.

“Quando toco a mão na terra ou abraço uma árvore, as pontas dos meus dedos começam a vibrar, e percebo que a espiritualidade acontece na natureza, mas não só. Acontece porque eu sou terra, água, fogo, silêncio; eu sou a natureza, faço parte dessa teia incrível. Essa é a forma de relação: ser, porque somos, somos natureza”, ressalta.

“Nasci em território indígena – Maxacalis, em Minas Gerais -, e meu primeiro altar em contato com o templo, foi dentro da Mata Atlântica. Perdi meu pai muito cedo, aos cinco anos de idade, e subia nas árvores para falar com ele”

Eluane é moradora de Grajaú, na zona sul de são paulo, educadora ambiental e se considera universalista

Universalista é quem adota uma visão ampla do mundo e defende a preservação da relação entre todos os seres humanos, acima de diferenças culturais, religiosas ou geográficas. Para ela, que ama explorar o mundo através de suas viagens, conhecer novos roteiros é como um rito que alimenta seu espírito. “Em toda viagem, com muita humildade, me conecto muito com a fauna e a flora do local, com os saberes, com os sabores, com as pessoas”, detalha.

Em um mundo cercado de intolerância, a mineira, moradora do Grajaú, distrito da zona sul de São Paulo, acredita que os fanatismos impedem a conexão com a espiritualidade. 

“Eu vejo cada caminho como um rio que percorre o mesmo ar. O conflito nasce quando um rio acha que tem mais importância do que outro. Mas um olhar universalista compreende que cada um tem seu valor e carrega sua sabedoria”, afirma. 

“Quando escuto, acolho. Quando respeito, abraço a diversidade. As árvores são diferentes entre si, e é essa diversidade que as mantém vivas. Assim também deveria ser entre nós, como um organismo vivo [como seres humanos]”, frisa.

Eluane conta que a presença do que se refere como ‘forças maiores’ se manifestam em sua vida a cada amanhecer. Seja no silêncio antes do nascer do sol, na passagem de uma borboleta ou no aroma do ambiente ou a cada risada ou gargalhada com uma pessoa querida. 

“Acredito que o caminho é reconhecer que a humanidade floresce quando aprendemos a valorizar a natureza, a nos relacionar melhor com o ambiente, seja interno ou externo, e a compreender que vivemos o mesmo sopro, pertencemos à mesma vida e nossa caminhada é coletiva”, finaliza.

Preservar, narrar e discutir a “lei violenta da periferia” na nossa história

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Quando a violência parte de indivíduos supostamente “à margem da lei”, em conflito com seus semelhantes e de forma agressiva, conforme a lógica capitalista da propriedade e do acúmulo como medida de valor e humanidade, ela é reconhecida como problema social e exige soluções coletivas. Contudo, quando essa violência parte do Estado — que deveria mediar conflitos e proteger vidas, mas historicamente defende os interesses de quem é branco, rico e proprietário — o crime deveria ser considerado hediondo. Nessa lógica, escolhe-se o extermínio de uns em benefício de outros, eliminando sobretudo pessoas negras, indígenas, pobres e trabalhadoras.

A associação entre pobreza urbana e violência é imputada às favelas e periferias, como se fossem atributos naturais de seus moradores — e não resultado de processos históricos de exclusão, precarização e estigmatização construídos por elites brancas descendentes do colonizador europeu. 

O genocídio negro, em suas múltiplas expressões e como parte do projeto de embranquecimento nacional, ronda nossa história — e é pressuposto de nossas vidas arrancá-lo do horizonte.

Nas últimas duas décadas, historiadoras e historiadores, como Sheila Alice da Silva (in memoriam), vêm demonstrando as possibilidades do viver em nossos territórios. Em Guaianases, por exemplo, o Samba da Sombra, liderado por Dona Penha (In Memoriam), articulou lazer, formação musical e ação social, revelando uma periferia que cria, educa e celebra, mesmo que sofrendo censuras de vizinhos racistas que consideravam os eventos “coisa de vagabundo”. 

Nossa contranarrativa é a pulsão de vida — desejo de romper com o projeto eugenista forjado há mais de cem anos na Primeira República, que via pessoas negras como descartáveis, destinadas à morte por meio da violência, fome ou pelas doenças. Ao contrário desse país branco que varre a população negra do mapa, queremos personalidade, identidade, reconhecimento, memória e dignidade.

Mas cada vez que o projeto de extermínio volta a se manifestar — como na brutal operação policial no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, que deixou mais de 120 famílias (em sua maioria negras) sem seus filhos, irmãos, netos e amigos — somos convocados a um acerto de contas com a história. 

Sabemos que “suspeitos” e mesmo “culpados” de áreas nobres historicamente não recebem a pena de morte ou ações violentas do Estado em seus territórios. Precisamos transformar dor e medo das “balas perdidas” em denúncia, memória e luta: utilizar a pesquisa, a arte e a educação popular para impedir o apagamento das vidas ceifadas e construir um futuro no qual nossa existência plena prevaleça sobre a morte ou o risco de morrer. 

Museologia ajuda a repensar a violência que cerca as quebradas

O Rio de Janeiro, que também foi palco de chacinas como a da Candelária (1993) e do Jacarezinho (2021), tem no Museu da Maré, localizado no complexo de mesmo nome, um projeto museológico que preserva memórias através de objetos, imagens e relatos organizados em “tempos”: festa, religião, casa, águas, migração, trabalho, cotidiano. 

Museu da Maré “Tempo do Medo”. Imagem 1: Livro Maré em 12 Tempos, 2020. ADOV/Museu da Maré /Demais imagens: Adriano Sousa, Outubro de 2024.

Entre eles, está também o tempo do medo — materializado em projéteis recolhidos nas ruas e em amostras de buracos de tiros em paredes, objetos e danos tão comuns no complexo que se tornam parte da paisagem. Ao retirá-los da rotina e expô-los como testemunhos dessa guerra “não declarada”, o Museu rompe com a naturalização do trauma.

A mesma urgência é vista no trabalho do coletivo Memória Carandiru, formado por sobreviventes do massacre de 111 detentos da Casa de Detenção do Carandiru em 1992. O passado ecoa no presente: ontem foram 111; hoje, mais de 120. A justiça, lenta e instável e não cumprida no caso do Carandiru, revela o peso da memória e a necessidade de reparação histórica. Sobreviventes desse massacre se unem a pesquisadores para manter essa luta viva.

Como será a narrativa futura e a postura judicial diante da barbárie que se viu na Penha e no Complexo do Alemão? Qual será o registro da trajetória das pessoas que ali tombaram, do nascimento à morte, os laços sociais, as desilusões, medos, revoltas, capacidades, sonhos ou ambições? As oportunidades oferecidas e as que foram negadas? 

Lei da periferia, ó quem diria, são muitos se fodendo todos os dias”, já denunciava o grupo paulistano Consciência Humana em 1999.  O RAP narrava trajetórias atravessadas por desemprego, precariedade, repressão policial e disputas pela sobrevivência, uma realidade que se repetia em todas as periferias e também historicamente, tendo grande intensidade na década de 1990 na cidade.

Em “O Homem na Estrada”, dos Racionais MC’s a tentativa de reconstrução da vida após a prisão é esmagada por narrativas de vizinhos e midiáticas que desumanizam, culpabilizam e justificam a morte de corpos negros — vidas reduzidas a um boletim policial, sem nome, sem história, sem futuro. A história do homem e do filho que desejava ver rompendo o ciclo de pobreza e violência, foi narrada pelo rádio ao final da letra, caracterizando-o como naturalmente perigoso em uma Estrada do M’Boi Mirim sem número, sem paisagem no cartão postal da cidade. Mais um ciclo que se repete em nossas periferias e que precisa de ruptura. 

Enfrentar essa trilha de dor, preservá-la e debatê-la é parte do embate por políticas públicas que protejam vidas nas periferias. No Jardim Ângela, outrora considerado o bairro mais violento do mundo, um modelo de policiamento construído junto à comunidade aliado a políticas de educação,cultura, serviço social e saúde reduziu drasticamente as mortes causadas pelo Estado via polícia e entre civis nos anos 1990. Hoje descontinuado, esse modelo foi lembrado pela assistente social e ativista Regina Paixão no documentário Lado Sul do Mapa, produzido pelo Centro de Memória das Lutas Populares Ana Dias  em parceria com o Instituto Vladimir Herzog em 2021 que narra não só essa como outras vivências cotidianas relacionadas ao lazer e à cultura no território.  

Seja para exigir justiça, formular políticas de segurança pública a favor do povo — ou romper com a paralisia gerada pelos traumas de quem foi historicamente estigmatizado como culpado pela violência que é relegada aos nossos territórios por ricos das “Farias Limas” e “Zonas Sul”  — é urgente afirmar nossas histórias, rostos e experiências na preservação das memórias sensíveis das periferias. Lutar contra o genocídio negro e periférico é narrar, recordar e disputar o direito à vida como horizonte coletivo.

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CEU Cantos do Amanhecer mantém viva a poesia de Virgílio Brígido

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O Dia do Poeta (20 de outubro) passou, mas o sentimento ficou! A comemoração, criada em 1976  pelo   Movimento Poético Nacional, merece ser celebrada ainda que tardiamente. E para festejar nada melhor do que juntar e misturar poesia e educação!

O tributo desta publicação vai para Virgílio Brígido, poeta cearense falecido, coincidentemente, também em 20 de outubro (mas, no caso, em 1920, 56 anos antes de se estipular a homenagem a quem escreve em verso), bem como para uma instituição educacional: CEU (Centro Educacional Unificado) Cantos do Amanhecer.

Cantos do Amanhecer, o livro de estreia de Virgílio Brígido, em 1879, foi publicado em Recife (PE), cidade na qual o poeta cursava Direito, com poemas que escreveu no decorrer de quatro anos (1875-1879).

Capa de Cantos do Amanhecer, de Virgílio Brígido – Foto gentilmente cedida pelo Setor Obras Raras, da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (BECE)

Quase cem anos após seu falecimento, a prefeitura de São Paulo, por meio do Decreto 11.504, de 04 de dezembro de 1978, denominou uma das principais vias do Jardim Eledy, no extremo da Zona Sul, com o epíteto: Av. Cantos do Amanhecer.

A toponímia, que estuda os nomes próprios dos lugares, explica a homenagem. A geografia do logradouro favorecia apreciar o alvorecer do dia, um “Canto do Amanhecer”. 

 “Cantos”, como sinônimo de poesia longa, e “Amanhecer”, com o sentido de uma nova criação literária, plurissignificaram os sentidos para interpretar o nome da avenida: paisagem paulistana e poesia cearense num só lugar!

Três décadas depois, na mesma via, a prefeitura de São Paulo construiu um CEU (Centro Educacional Unificado), denominando-o homonimamente: CEU Cantos do Amanhecer.

CEU Cantos do Amanhecer, situado à av. homônima: ambos em homenagem à obra de estreia do poeta cearense Virgílio Brígido (1854-1920). (Foto do arquivo pessoal do autor.)

Virgílio Brígido

Virgílio Brígido – Foto extraída do Instituto do Ceará, do qual foi um dos fundadores.

Virgílio Vóssio Brígido dos Santos ou simplesmente Virgílio Brígido nasceu em 24 de abril de 1854, na Povoação de Santa Cruz-CE (atual Itapajé-CE), e faleceu no Rio de Janeiro em 20 de outubro de 1920.

Advogado, promotor público em Fortaleza, deputado federal e Vice-Presidente por seu estado, Virgílio criou e colaborou em diversos órgãos de imprensa, como A Quinzena, periódico do Clube Literário, e foi um dos fundadores do Instituto do Ceará.  

Dentre suas obras, além de Cantos do Amanhecer, destacam-se Traços Biográficos do General Tibúrcio, Ligeiras considerações sobre as lutas de 1824 e Discurso sobre a seca do Ceará.

Cantos de Poetas

Elizandra Souza e Akins Kintê – Poetas prestigiaram estudantes de EJA da EMEF, em 2011,  na Biblioteca CEU Cantos do Amanhecer (Foto do arquivo pessoal do autor.)

O CEU Cantos do Amanhecer, fazendo jus a sua origem, é um recanto de poetas. A presença de poetas dos Saraus da Cooperifa, do Binho, das Pretas, Mesquiteiros, do RAP é uma constante desde o início das atividades do equipamento educacional.

Também é frequente a vinda de poetas vinculados ao SLAM nas dependências do CEU Cantos (Quadra, Teatro Marisa Dandara, EMEF, Bibilioteca): SLAM do 13, SLAM das Minas e (o recém-criado) SLAM do Sampaio.

Grandes nomes da poesia nacional, como Sérgio Vaz (cofundador da Cooperifa e criador do Poesia Contra a Violência, que já foi indicado ao Jabuti), e Binho (fundador do Sarau que leva seu nome, também indicado ao Jabuti) são assíduos no CEU Cantos do Amanhecer

Além deles, passaram pelo CEU outras dezenas de grandes nomes da poesia como Allan da Rosa (que dentre outros projetos e prêmios, criou o Nas Ruas da Literatura na Rádio USP), Emerson Alcalde (Vice-campeão de poesia, fundador do SLAM da Guilhermina e do SLAM Interescolar), Thiago Peixoto (Poetas Ambulantes, Sarau Baderna, Slam do 13), Rodrigo Ciríaco (Sarau dos Mesquiteiros), Ni Brisant (Editora Trovoar), Akins Kintê (vencedor do 1.° Festival de Poesia de São Paulo) e Elizandra Souza (Sarau das Pretas).

Poeta Sérgio Vaz, em atividade com estudantes na
 Biblioteca CEU Cantos do Amanhecer (Foto do arquivo pessoal do autor.)

A lista prossegue: Márcio Vidal, Zé Sarmento, Marcos Rodrigues (Xandu, ex-aluno do CEU), Poeta Fuzzil, Tawane Theodoro, Poeta Márcio Ricardo, Márcio Batista, Carol Peixoto (SLAM das Minas-SP), Hayara Alves (SARAU RAP), Cocão a Voz, Rose Dorea, Jairo Periafricania, Dona Edite (Patronesse da Sala de Leitura do CEU EMEF Cantos do Amanhecer), Caco Pontes, Márcio Rodrigues, Isaque Paiva, Ryan Farias, dentre tantos(as) outros(as) que, comparecendo com coletivos, impossibilita nomear.

Poeta Binho, na Sala de Leitura Dona Edite (cuja inauguração foi matéria do Desenrola), do CEU EMEF Cantos do Amanhecer, durante gravação do Programa Boas Práticas (TV Cultura), em 2025. (Print do programa televisivo.)

A importância da escola para a poesia

Antonio Candido lembra da importância da oralidade para difusão da literatura no Brasil, no Século XIX, especialmente os gêneros poéticos. Em um país no qual as taxas de analfabetismo eram altíssimas (em torno de 80%, na década de 1870), mesmo nas grandes cidades, os poemas recitados eram memorizados por quem declamava e quem escutava.

No Século XXI,  a situação é distinta, mas a oralidade – ao lado da escrita – ainda é uma grande disseminadora da poesia. A alfabetização se aproxima dos 100% (93,5%, de acordo com o IBGE 2022). O acesso à literatura é, de modo privilegiado, garantido pela escola – quer pela disponibilização de acervo de livros, quer pelo suporte de materiais didáticos e extracurriculares (como vídeos com performances poéticas; isto é, pelo multiletramento), quer, ainda, por projetos como a AEL (Academia Estudantil de Letras).

No CEU EMEF Cantos do Amanhecer, por exemplo, o fomento à leitura e à escrita literárias ocupam posição de destaque no processo pedagógico. Além de livros publicados por estudantes da EMEF do CEU, vale ressaltar experiências – algumas já noticiadas pelo Desenrola e Não Me Enrola –, como a Semana da Literatura, a criação da Sala de Leitura Dona Edite, e AEL Tula Pilar, em homenagem a uma grande poeta negra do território.

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A guerra não é contra o crime, é contra as pessoas

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Eu ia pular o mês de outubro, porque a vida se impôs e eu não tinha dado conta de acompanhar. Às vezes é tanto de tudo, que a gente sente que não tem mais o que dizer. Até que aconteceu a ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro: mais de 120 pessoas mortas, caos e terror instalado. E aqui estamos.

Outro dia, uma pessoa muito querida disse que tinha uma certa dificuldade de articular o debate sobre aborto em contextos onde se discutia o genocídio da juventude negra

Como falar do direito de decidir, do projeto de não parir, com mulheres que tiveram suas maternidades interrompidas bruscamente? Que tiveram suas crianças e adolescentes arrancadas pela violência? Fiquei o mês todo pensando que era uma boa pergunta mesmo.

Para mim, a resposta era simples: Justiça Reprodutiva é sobre viver uma vida digna. Sobre ter as crianças que se deseja, quando se deseja, e poder criá-las em segurança, sem medo que uma bala perdida as encontre. É sobre (re)produzir a vida em condições dignas de acesso à saúde, moradia, educação. Estou falando de necessidades básicas essenciais para que possam, mães e crianças, construir e viver seus projetos de vida. Era tão simples que parecia que não dava um texto. Até começar o tiroteio.

Existir como feminista é, infelizmente, estar o tempo todo envolvida com dados e narrativas de violências. As violências rodeiam as mulheres e as pessoas de quem elas cuidam, porque são as mulheres que cuidam de todo mundo: das crianças, das pessoas idosas, das doentes, com deficiência, das presas e inclusive das pessoas adultas e saudáveis. Porque as mulheres cuidam da (re)produção da vida. Não há Justiça Reprodutiva possível no meio do fogo cruzado.

Há alguns anos, a gente tem se dado conta de como direita e extrema direita têm abraçado o problema da segurança pública, criando um inimigo interno, e têm ganhando muito poder em nome de uma política de morte. Nessa época, lembro ter escrito um texto, falando que era muito importante não permitir que a pauta fosse banalizada por figuras políticas irresponsáveis, que se apoiam nos índices e na sensação de violência generalizada que a gente vive pra se promover com um discurso armamentista e autoritário. 

Nós não precisávamos aumentar o número de pessoas armadas, ou ter saudade do regime militar, que era ainda mais brutal, num país em que 60 mil pessoas morrem de morte violenta todos os anos, no qual mais ou menos 50% das pessoas mortas por arma de fogo são jovens-homens-negros. Pelo menos 10% dessas mortes são causadas por policiais em serviço, sem contar as milícias, nem os casos em que os policiais não foram diretamente indicados como causadores das mortes. 

Somos o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, que registra uma agressão contra uma mulher a cada 4 minutos, e temos altos índices de mortalidade infantil, suicídio e assassinatos de indígenas. Temos números de países em guerra, e uma enorme subnotificação. Nada disso começou ontem.

O que eu queria dizer lá é que a gente já estava falando sobre política de morte fazia tempo e que a direita tinha tomado pra si o “combate” à violência, num vácuo deixado pela esquerda na segurança pública. Naquele momento, a extrema direita tinha acabado de assumir o Governo Federal e o Governador do Rio tinha vencido jurando mirar na cabecinha. Nem imaginávamos o que ainda teríamos pela frente.

Apesar de existirem infinitos modos de existir dos feminismos, em geral, nós gostaríamos que as crianças viessem ao mundo desejadas, em lares que possam amar e cuidar delas, sem bombas caindo do céu, sem risco de levar um tiro vestindo o uniforme da escola, porque um policial confuso achou que um pacote de pipoca ou guarda-chuva parece com revólver. Policial é uma categoria que se confunde com frequência, vocês sabem.

E de novo, lá do meu texto de 2019, eu me perguntava o porquê de estar trazendo essa conversa toda tão pesada? Eu tenho um interesse político em dizer o óbvio: a nossa situação é alarmante há um bocado de tempo e sinceramente acho que a gente não pode deixar que o debate sobre a violência e segurança pública continue um monopólio da direita.

Desse pessoal que acredita que segurança pública é sinônimo de extermínio. Não existe guerra contra o crime ou contra as drogas, não se faz guerra contra coisas. Se há uma guerra, ela é feita contra pessoas e sabemos quem são elas.

Pra terminar, ano que vem tem eleição, e eu te pergunto: Que tão efetivas essas ações aterrorizantes são, de verdade, no combate ao crime organizado? Vai me dizer que entrar atirando na favela, prender 80 pessoas e matar mais de 100, parar a cidade, expondo milhares de cariocas ao tiroteio, é uma ação realmente eficaz para desestruturar o crime organizado? Ou é só porque a espetacularização do extermínio dá mais votos do que uma ação articulada de inteligência mesmo? 

Encher o chão da cidade maravilhosa de cápsulas de bala, fechar escolas e hospitais, parar o transporte, é mais eficaz do que uma investigação minuciosa, como a que chegou no esquema bilionário do PCC na Faria Lima? O que significa a apreensão de uma centena de fuzis, diante dos milhões ou bilhões de reais que o crime movimenta? A mesma quantidade de fuzis foi apreendida no condomínio Vivendas da Barra, no Rio também, sem que nenhum tiro fosse disparado. 

Quais os custos humanos, para as pessoas que vivem na cidade maravilhosa, de uma operação como essa? As facções acordaram mais fracas e o Rio de Janeiro mais seguro, no dia seguinte a esse massacre?

Se você se interessa por segurança pública, o Instituto Fogo Cruzado faz ativismo de dados de altíssima qualidade ao monitorar e analisar dados de violência armada em mais de 50 municípios do Brasil. Te convido a ver a Cecília Oliveira explicar.

E aqui no Desenrola, em 2023 a Evelyn Vilhena conversou com  a Marcia Gazza, coordenadora do movimento Mães da Leste, e com a Edijane Alves, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, no podcast Cena Rápida: Medo e esperança: O direito à vida da população preta e periférica #15

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