A noite de 06 de fevereiro de 2025 ainda não acabou para os moradores das ruas Rafael Portante e Vitoriano de Oliveira, às margens do Córrego do Engenho, entre o Jardim Rosana e o Jardim Mitsutani, na zona sul de São Paulo.
O rompimento de uma manilha (tubulação) da SABESP na Rua Rafael Portante foi uma das causas da enchente que destruiu lares de moradores dessa via na primeira semana de fevereiro. A força das águas inundou, inclusive, algumas residências na rua paralela (a de trás): Rua Guerra dos Mascates.
Outro fator também determinante para alagar a Rua Vitoriano de Oliveira, do outro lado do Córrego do Engenho, foi a execução de obras da Prefeitura de São Paulo (PMSP).
Embora tenha garantido um direito fundamental à parte da população local, a intervenção do poder público (entregue em maio de 2023), visou, de modo especial, à Av. Alto de Pirajussara, importante via de interligação entre bairros da região (inclusive com dois municípios vizinhos, Taboão da Serra e Embu das Artes), que alagava, “atrapalhando o trânsito”.
Em outras palavras, a prioridade era o trânsito, não as pessoas. “Tempo é dinheiro”, dizem, não é?
Ser humano, por sua vez, só é número e voto em época de eleição.
Por isso, as vidas dos que moram nas ruas afetadas estacionaram, ou pior, “desceram ladeira abaixo” (como se diz popularmente).
O montante de R$ 8,4 milhões investidos – segundo o site oficial da prefeitura de São Paulo – não apenas deixou de contemplar todos os moradores das ruas em que houve obras, prejudicou também aqueles que habitam as ruas Vitoriano de Oliveira e Rafael Portante.
Em contraste com o trecho canalizado, a prefeitura deixa considerável extensão do Córrego do Engenho, no trecho margeado pelas ruas Praias de Costa Verde e Rua José de Maistre, bem afastada aos olhos de quem transita pela Av. Alto de Pirajussara – sem nenhum tipo de intervenção.
Para além da solidariedade
Mais uma vez quem está resolvendo a questão é a população local. De um lado estão os que não residem nos pontos atingidos pelas águas poluídas do Engenho, auxiliando em campanhas; do outro, os que foram afetados, lutando por seus direitos.
Enquanto a sociedade civil entregava marmitas na noite de domingo (09/02) – “Graças a Deus! Não havia como cozinhar, né?”, agradeceu uma moradora –, prosseguia o mutirão para ajudar na limpeza de casas, auxiliar vizinhos, bem como fazer articulação para cobrar os responsáveis.
O restabelecimento de água, na Rua Vitoriano de Oliveira, por exemplo, só ocorreu uma semana depois do transbordamento do córrego em razão da pressão popular junto à Subprefeitura de Campo Limpo e à SABESP.
Apesar do engajamento dos moradores afetados pelas cheias, contudo, a prefeitura se limitou a fornecer apenas mil reais (em parcela única), por meio do Cartão Emergencial. “Essa quantia uma vez vai resolver o quê?’, questiona uma das moradoras.
A Defesa Civil, apesar dos protestos populares, vistoriou as residências apenas pelo lado de fora. “Quer dizer, nem se deram o trabalho de ver as condições da casa”, denuncia outra moradora. “Como posso saber se está segura?”
A manilha que se rompeu, debaixo de uma casa da Rua Rafael Portante, virou jogo de empurra-empurra entre PMSP e SABESP: ambos se eximem da responsabilidade. A família dessa residência, por exemplo, não poderá retornar ao seu lar enquanto as providências necessárias não forem tomadas.
A atuação do poder público tem de ser urgente: tanto SABESP quanto PMSP precisam cuidar dos munícipes afetados.
Neste primeiro momento, a SABESP tem de realizar os reparos na tubulação e promover os reparos necessários nas residências afetadas; também, ressarcir as perdas materiais: TV, geladeira, fogão, cama, dentre outros.
Em caráter de urgência, a prefeitura deve limpar o córrego. Mas apenas como paliativo. Apenas para evitar enchentes enquanto não concluir – o essencial – a canalização do Córrego do Engenho, em toda a sua extensão (por que não terminou, Ricardo Nunes?)
Disparar alertas de chuvas – para encerrar – é uma estratégia interessantíssima! Sobretudo, para a publicidade da gestão Nunes, como um governo que atua nesse segmento. Sua eficácia, porém, “vai até a página dois” em alguns casos, como este do Jardim Rosana (ou do Pantanal, na zona leste da cidade).
Acionar o modo trabalho para promover a prevenção de enchentes não rende curtidas, nem tampouco likes, tanto quanto a lacração dos “alertas” na mídia.
Arregaçar as mangas para garantir o mínimo de dignidade aos moradores do Jd. Rosana: é para isso que Ricardo Nunes, também, foi reeleito!
Em tempo: Tarcísio de Freitas, governador do estado de São Paulo, precisa participar desse processo, garantindo que a SABESP cumpra seu papel. Só quem não pode perder mais (até porque não tem o que perder) são as pessoas prejudicadas pela omissão pública.
Fábio Roberto Ferreira Barreto é professor da rede pública de ensino e mestre em literatura pela USP.
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.
A partir do Museu Territorial Tekoa Jopoí, que abrange as áreas do Jaraguá, Perus e Anhanguera como partes de seu acervo, na zona noroeste de São Paulo, o movimento cultural dessas regiões tem construído uma nova perspectiva prática do que é associado aos museus tradicionais. “[O museu e outras iniciativas] são instrumentos para diminuir o impacto[como da especulação imobiliária]. É difícil porque a gente não tem dinheiro para enfrentar a especulação, mas [temos] ideias criativas”, coloca Cleiton Ferreira, conhecido como Fofão, um dos fundadores do museu e do Quilombaque Perus.
Inauguração da Agência Queixada em 2022. (foto: arquivo pessoal)
O Museu Territorial Tekoa Jopoí, fundado em 2017, é uma iniciativa que nasceu na Comunidade Cultural Quilombaque, espaço cultural localizado em Perus, mas que desde 2022 tem uma sede e estrutura própria que é gerenciada pela Agência Queixada, onde também acontecem cursos de formação. O Museu Territorial é o território em si e as trilhas, que compõem esse acervo, são organizadas e realizadas pela agência.
“[Estamos] discutindo um turismo de base comunitária e trazemos a nomenclatura de Turismo de Resistência para mostrar que estamos em luta e que através do turismo a gente consegue se organizar”.
Fofão, co-fundador do Museu Territorial Tekoa Jopoí e do Quilombaque Perus.
O co-fundador conta que a ideia da iniciativa é atuar na valorização do território através de uma economia sustentável, que preza pelo ambiental e social. “Mas na perspectiva geral [com] uma economia [que colabore] no processo de preservação dessa região mantendo a paisagem, porque daqui a alguns anos vai mudar tudo. Nós perdemos o empreendimento [do] cinema que derrubaram para fazer estacionamento [pela] especulação de área”, conta Fofão ao exemplificar esse cenário de especulação com o fim do primeiro cinema do bairro de Perus.
Cleiton Ferreira, conhecido como Fofão, co-fundador do museu e do Quilombaque Perus (foto: Viviane Lima)
Outro exemplo que Fofão menciona é o condomínio Sete Sóis, que está sendo feito na Avenida Raimundo Pereira de Magalhães, pela construtora MRV. “Os caras derrubaram [a mata de] uma área grande que faz conectividade ecológica com o Parque Estadual do Jaraguá, isso já causou danos, porque ali era [um] eixo dos animais e da biodiversidade”, menciona.
Além das questões ambientais, Fofão aponta que esse processo causa a gentrificação, com mudanças no território, que entre outras coisas, também envolve alteração no custo de vida e afeta diretamente a população local. “Vai inaugurar um McDonald’s aqui e isso vai quebrar muita gente que vende lanche e se mantém disso. Quem não tem dinheiro vai ter que sair fora, ir mais para o fundão, [pois] o aluguel e o mercado ficam mais caros”.
A falta de infraestrutura para receber as construções e mais moradores na região é apontada por ele como mais um problema. “A demanda de mobilidade não é discutida, está travando tudo. Imagine com mais 20 mil pessoas que vão vir”, avalia.
As trilhas, que compõem o Museu Territorial Tekoa Jopoí e acontecem desde 2014, constituem o museu a partir da perspectiva de que os espaços culturais e históricos de Perus, Jaraguá e Anhanguera são as próprias obras de arte. Ao todo são sete trilhas: Jaraguá é Guarani; Ferrovia Perus – Pirapora; Memória Queixada; Agroecológica, Campo e Cidade MST; Ditadura Nunca Mais; Reapropriação e Ressignificação de Espaços Públicos e a PerusFeria Graffite.
Trilha Jaraguá é Guarani realizada com o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) Perus. (foto: arquivo pessoal)
A Agência Queixada, que tem como foco o desenvolvimento eco cultural turístico local, fica no bairro Recanto dos Humildes, no distrito de Anhanguera e foi inaugurada em 2020, mas o conceito do museu territorial está sendo estruturado desde 2011 e tem como fundamento o TICP – Território de Interesse da Cultura e da Paisagem.
Território de Interesse da Cultura e da Paisagem
Fofão explica que o TICP é uma proposta para pensar a gestão da cidade de forma menos exploratória, mais humanizada e compartilhada. Para mostrar ao poder público a viabilidade de implementar políticas públicas através de investimentos em projetos que são criados e geridos de modo integrado pela comunidade, movimentos sociais, culturais e de educação.
“O museu é um contexto de uma ideia que a gente tem na Quilombaque de pensar a descentralização de orçamento e um processo de desenvolvimento sustentável local, por isso que a gente vem trabalhando na perspectiva de uma museologia, mas com a metodologia de um instrumento que a gente criou que é o TICP”, diz.
O Território de Interesse da Cultura e da Paisagem é um instrumento construído pelos moradores, junto com o professor Euler Sandeville Jr, da FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da USP, um coletivo de professores do Projeto Coruja, e integrantes da Quilombaque. “[Abrimos] a Universidade Livre, onde as pessoas vinham fazer um estudo do território, [assim] a gente fez um mapeamento das potencialidades da região”, conta Fofão sobre o surgimento do TICP, e a partir disso a criação do museu.
Em 2014, o TICP foi apresentado e aprovado no Plano Diretor da cidade de São Paulo, porém desde então nenhuma providência foi tomada pelo poder público. “É uma lei que está no plano diretor da cidade, mas ninguém executa, porque [se fosse executada] a gente conseguia fazer uma gestão compartilhada entre sociedade civil e poder público”, menciona o articulador.
Foto tirada durante uma expedição na Fábrica de Cimento. (foto: Angélica Múller)
Mesmo não sendo executada pelo poder público, através da organização integrada entre moradores, educadores, movimentos culturais e sociais, a viabilidade do plano é evidenciada nas ações como o Museu e da sensibilização da comunidade. Fofão ressalta que essas iniciativas são continuidades de lutas que começaram com os operários da fábrica de Cimento Portland Perus, que em 1962, ficaram conhecidos como os Queixadas, após travarem uma greve de sete anos, em plena ditadura militar, por direitos trabalhistas.
Articulação em rede
Thalita Duarte, atriz, produtora cultural e integrante do Grupo Pandora de Teatro, conta que a Ocupação Artística Canhoba, espaço cultural independente administrado pelo Grupo Pandora de Teatro desde 2016, é um dos equipamentos culturais mapeados pelo TICP. O local integra a trilha “Reapropriação e Ressignificação de Espaços Públicos” do museu.
Thalita Duarte, atriz, produtora cultural e integrante do Grupo Pandora de Teatro, que faz a gestão da Ocupação Artística Canhoba. (foto: Viviane Lima)
“O pessoal faz um processo de visitação no bairro e aqui é um dos pontos, uma das obras do nosso museu. Quando as pessoas vêm aqui a gente conta a história do grupo Pandora, a história da memória [do bairro], a nossa relação com o território e também mostra como foi o processo de ocupação desse espaço”, conta a produtora.
A Ocupação Artística Canhoba, assim como a Casa de Hip Hop Perus, que também faz parte da mesma trilha, eram espaços abandonados pelo poder público que, em 2015, viraram ocupações culturais, segundo Thalita. Ela menciona que a reforma do local contou com mais de 150 artistas e moradores do bairro. Desde então o espaço recebe atividades culturais, principalmente apresentações teatrais.
“O museu tem a capacidade de transformar a informação em experiência. Então, uma pessoa que quiser conhecer esse território, ela pode entrar lá no Google e [pesquisar], mas nada vai substituir o fato dela estar aqui presente no território, conhecendo, caminhando, sentindo o sol, olhando aquela vista bonita [da praça]”
Thalita Duarte, atriz, produtora cultural e integrante do Grupo Pandora de Teatro.
Perspectiva semelhante é apontada por Silvana Bezerra da Silva. Ela é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e moradora da Comuna da Terra Irmã Alberta, que também faz parte do museu e está na trilha “Agroecológica, Campo e Cidade MST”.
“Fazer esse diálogo face a face é muito importante porque as pessoas têm outras sensibilidades, para além do que conseguem ouvir, ver ou ler. É sentir o cheiro da terra, comer a nossa comida, sentir a nossa verdade. Todas sensações que ultrapassam a questão da alienação de informações, imagens e textos descontextualizados sobre as nossas ações. As pessoas saem daqui com outro pensamento”, comenta Silvana sobre as trocas que acontecem nas trilhas que compõem o museu territorial.
Trilha Campo e Cidade no Assentamento Comuna da Terra Irmã Alberta. (foto: arquivo pessoal)
Localizada no bairro Chácara Maria Trindade, no distrito de Perus, em São Paulo, desde 2001, a comuna ocupa um território que na época, conforme Silvana, corria o risco de virar um lixão e que atualmente pertence à Sabesp. “Sempre corremos riscos de despejo, mas agora é mais efetivamente por conta do processo de privatização [da Sabesp], encabeçado pelo atual governador do estado, Tarcísio de Freitas”, relata.
Silvana afirma que a articulação em rede fomentada pelo Museu Territorial Tekoa Jopoí fortalece todos os movimentos envolvidos. “O museu é a nossa referência de articulação entre o campo e a cidade”.
“Tudo é luta aqui. Luta indígena, do movimento negro, luta sindical, da classe trabalhadora, a luta contra a ditadura, pela reforma agrária. O que a gente fez foi juntar os movimentos. A gente faz a narrativa porque não tem contexto histórico de nós narrando isso. [Fizemos] o museu nessa perspectiva, quem narra é o pessoal que fez a resistência e que faz até hoje”, finaliza Fofão.
Em março de 2014, em meio às celebrações dos 50 anos do golpe militar de 1964, uma cena abjeta emergia em São Paulo: a “Marcha da Família com Deus” foi recriada, reunindo algumas centenas de pessoas saudosas da ditadura. O que começou como um ato raquítico ganhou força nos anos seguintes, com manifestações robustas e ampla cobertura midiática hegemônica que mobilizavam o imaginário popular e a opinião pública “contra a corrupção”, mas clamavam por “soluções” radicais, como a intervenção militar.
Em retrospecto, esses eventos foram prenúncios de uma nova etapa do nacionalismo fascita no Brasil. Nos anos seguintes, em todo mês de março houveram mobilizações em torno da comemoração do golpe militar de 64.
O Brasil tem sido palco de um embate acirrado em torno da identidade nacional pelo menos nos últimos 15 anos, conflitos que se manifestam nas ruas, nas redes sociais e nas instituições. Jogar luz sobre essa disputa revela como a extrema direita brasileira tem buscado construir um novo “ethnos” nacional: um projeto excludente que nega a diversidade e flerta com o autoritarismo nazifascista e o fundamentalismo/terrorismo religioso.
Das “Marchas da Família com Deus” de 1964 e 2014 ao culto a figuras de repressão e a disseminação de discursos de ódio, chegamos a um projeto de poder que visa enquadrar a identidade nacional em valores que capturam os sentimentos mais repulsivos e subterrâneos para mobilizar pessoas e incluir novos paradigmas na sociedade.
Para “eles”, tudo é válido ou “verdade” desde que parta de porta-vozes absolutos que encarnam uma espécie de missão heróica de criar e se sacrificar por um caminho viável para o poder.
A aproximação entre o bolsonarismo e o nazifascismo está fundamentada em alguns paralelos ideológicos, estratégicos e discursivos, embora cada movimento tenha suas especificidades históricas e contextuais.
A seguir, uma breve listagem de pontos de semelhança mas também de características que são próprias do bolsonarismo.
Culto ao líder e centralidade do autoritarismo
Assim como no fascismo e nazismo, o bolsonarismo promove uma centralização do poder em torno da figura do líder. Jair Messias Bolsonaro é retratado por seus seguidores como uma figura (tragicamente) messiânica, capaz de resgatar o país de uma suposta “degeneração” de valores morais, religiosos e institucionais, característica típica dos regimes autoritários.
Exaltação de “valores nacionalistas” e militarismo
O bolsonarismo se apoia fortemente em símbolos nacionais, como a bandeira e o hino, como se fossem os únicos a encarnar o patriotismo e, também, promove uma visão militar do poder. A retórica de “salvar a nação” ecoa estratégias de regimes fascistas, que buscavam legitimar sua ascensão como defensores de uma unidade da identidade nacional ameaçada por minorias políticas ou numéricas.
Por exemplo, se fala racismo a resposta é que “há no Brasil apenas o brasileiro como raça e que todos são filhos de deus”, então não existe racismo. Se fala de gênero, “querem deturpar a ordem natural e a família, introduzindo o sexo e a promiscuidade homoafetiva”, indicando que tirar “o homem” do holofote é degeneração moral, etc.
Política do medo e exclusão
Mais uma característica central do nazismo e fascismo é a criação de “inimigos internos” que ameaçam a pureza ou estabilidade da nação (como dito antes). Se nos EUA e na Europa isso tem se traduzido em perseguição aos imigrantes, no bolsonarismo, esse discurso é direcionado contra minorias políticas (indígenas, LGBTQIAPN+, negros, mulheres, etc.) e grupos opositores, sobretudo, comunistas e socialistas, frequentemente tratados como terroristas-estelionatários que degeneram a ordem social.
Adoção de retórica antidemocrática
O desprezo por instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, é recorrente no discurso bolsonarista de seguidores, remetendo à forma como regimes fascistas minaram a democracia para consolidar seu poder com apoio popular e mobilização de massas. Declarações que sugerem fechamento de instituições ou intervenção militar para resolver conflitos políticos refletem essa tendência.
Apropriação de práticas de desinformação
Tanto o nazismo quanto o fascismo utilizaram propaganda e desinformação para controlar a narrativa pública e governar pelo medo e o ódio. O bolsonarismo adaptou essas táticas, utilizando redes sociais para disseminar fake news, criar inimigos públicos simbólicos, impulsionar altos investimentos em “milícias digitais” (grupos organizados que agem para destruir a imagem pública de adversários, sejam eles pessoas ou instituições) e polarizar a sociedade em uma narrativa de guerra social/cultural.
Ressentimento contra a classe trabalhadora
O bolsonarismo opera promovendo um ideal de homogeneidade nacional. Isso se reflete na ideia que a identidade primordial é a nacionalidade e a religião, sendo assim, todos nascem iguais e com as mesmas oportunidades, então haveria desonestidade em denúncias políticas afirmativas que excluem pessoas brancas, e/ou homens, e pessoas de classe média e ricas como alvos de programas de Estado ou até do setor privado. Esse discurso chega como medidas contra o “bolsa família”, ações afirmativas para diversos grupos, privatizar programas essenciais de serviços básicos, etc.
Embora o bolsonarismo não se alinhe plenamente ao nazismo ou fascismo clássico devido a diferenças de contexto de natureza econômica, política e perfil racial de seus seguidores, essas semelhanças mostram como ele mobiliza elementos ideológicos e estratégicos dessas doutrinas para fortalecer sua base de apoio e moldar a política nacional. O ex-presidente ainda exerce forte influência em sua base política.
Podemos afirmar que a polarização entre esquerda e direita revela as disparidades de poder entre os grupos em conflito que a representam. Não conhecemos organizações paramilitares ou milícias esquerdistas que dominam uma cadeia produtiva da morte e do poder sobre territórios em periferias como a Milícia do Rio das Pedras (RJ), ou o “Escritório do Crime”. Menos ainda a defesa aberta à posse de armas de fogo e ao uso de força letal como garantia de bem comum e “ordem democrática”.
Imigrantes, direita e o Brasil
Movimentos pró-democracia e de esquerda pelo mundo têm patinado em se tornar contraponto a projetos excludentes como esse. Nos EUA, a vitória do norte-americano Donald Trump revela mais do que se pode enxergar e reverbera um ressentimento e, sobretudo, uma onda do “orgulho branco” disfarçado de patriotismo.
Essa vitória, como outras eleições nos últimos e nos próximos anos, é resultado também de investimentos pesados de grandes empresas, mas, significativamente, das big techs que vinham sofrendo as consequências nos últimos anos de suas participações no estímulo a rupturas de governos democráticos pelo mundo, impulsionando discursos de ódio em suas plataformas, fortalecendo a extrema-direita e vinham sofrendo sanções para a regulamentação da atuação de suas empresas (sobretudo na Europa).
Do lado mais estritamente econômico, ao investirem e posarem na posse do presidente americano, também visam que Trump possa enfraquecer concorrentes de mercado através de intervenções diretas do Estado Americano em políticas econômicas, como exigência do Tiktok ser vendido para uma empresa americana para atuar no país, ou aumentar a taxação de países que fazem parte do BRICS que deixam de utilizar o dólar como moeda principal.
A caça aos imigrantes é um grande bode expiatório para culpá-los e camuflar problemas nacionais (como questões de saúde e aumento do custo de vida).
O que vemos agora em todas as redes sociais e na tv em relação às ondas de deportação de imigrantes, não é um acontecimento isolado. É provável que muitos países, não apenas os considerados de “primeiro mundo”, passem por uma crescente onda de imigrações.
O Brasil, segundo dados do Subcomitê Nacional de Recepção, recebeu cerca de 700 mil imigrantes venezuelanos entre 2017 e 2022, sendo que cerca de 326 mil permaneceram no país naquele período, muitos deles sofreram ameaças, perseguição, violência e até exploração sexual e trabalho escravo nas regiões de fronteira até seu destino final, um pouco mais de 50 mil desses imigrantes estavam em condição de refugiados.
O cerne da questão é que as motivações para ondas imigratórias serão cada vez mais diversas e recorrentes, sobretudo, relacionadas a questões climáticas. O impacto climático não está restrito a desastres, ele se estende na desertificação de áreas agrícolas, aumento da migração para centros urbanos, escassez de bens naturais. Sem políticas de reforma agrária para produção agrícola, cada vez mais sentiremos os efeitos da crise do clima, e sem renda básica universal, os centro urbanos serão uma panela de pressão de problemas de segurança, habitação, saúde e sofrerão mais com as mudanças do clima.
Não serão apenas os extremistas e supremacistas americanos e europeus que irão utilizar imigrantes como bode expiatório para os problemas nacionais de ordem política, econômica e social e para a “unificação” da identidade nacional. Justamente porque o único caminho para o florescimento da supremacia branca nazifascista está em se vestir de um movimento nacionalista-religioso, é o único caminho para agregar força, mobilização e coesão social, sem dizer aos olhos do público que odeia negros, mulheres, judeus e etc.
Muitas vezes nos perguntamos, “como as pessoas que são minoria podem compartilhar discursos extremistas?”, a resposta pode ser mais simples do que imaginamos. É porque a direita e extrema direita utiliza “símbolos universais” para compor a unidade e a identidade do grupo, nunca utilizam características que individualizam, para ser de direita deve-se ser: cristão, hétero, a favor da família, defender os símbolos nacionais, gostar de futebol, etc.
É fácil perceber que todas essas características são genéricas, ou seja, qualquer pessoa que se identifica com elas pode ser de direita. Nesse caso, o difícil seria não se identificar, já que essas características determinam o padrão de comportamento social da maioria em sociedades ocidentais e pós-coloniais.
A luta por reconhecimento, memória e justiça social se faz ainda mais urgente diante do avanço do nacionalismo violento e criminoso, anti-direitos humanos. Investigar a dinâmica da construção dessa identidade no Brasil, contribui para o debate público e para a defesa da democracia.
É preciso compreender as raízes do nacionalismo excludente e os mecanismos de manipulação utilizados pela extrema direita para fortalecer a resistência contra mudanças, garantir um futuro mais justo e com oportunidades para todos os brasileiros, sobretudo, os menos privilegiados.
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.
A partir da rua Alagoa Nova, a Cohab Perus, vem ganhando novas cores e significados através do Festival Gigantes das Ruaz. O projeto de grafite, realizado desde 2024, no bairro e distrito de Perus, zona noroeste de São Paulo, tem impactado a vida dos moradores da região, tanto no fortalecimento da identidade, quanto na valorização e visibilidade do local, segundo Mariana Calle, 27, uma das idealizadoras e produtoras da iniciativa.
Mariana Calle grafita desde 2011 e em 2022 começou a atuar como produtora cultural (foto: arquivo pessoal)
“A partir do primeiro mural que foi pintado, um menino preto com uma armadura, a gente viu muitas pessoas se emocionarem. As pessoas negras que vivem nesse território se sentem cada vez mais representadas”, conta Mariana ao citar a obra “O guardião da quebrada”, realizada pelo artista Preto TNA, que é morador da Brasilândia, na zona norte de São Paulo.
Obra feita pelo Preto TNA (foto: AM Criative Studio)Grafite O guardião da quebrada (foto: Drone das Ruaz)
“Uma mãe veio falar comigo, ‘obrigada por vocês fazerem isso aqui, porque eu nunca vi meu filho dar um sorriso tão grande do jeito que ele deu quando viu aquilo ali [o grafite de um menino preto] e falou que era ele’.”
Mariana Calle, artista grafiteira e idealizadora do Festival Gigantes das Ruaz.
O projeto é realizado pela Ruaz Produções, através dos artistas, idealizadores e produtores Mariana Calle, moradora de Perus, Luiz One, de Osasco, e Andreza Pasqualini, de Diadema. Mariana comenta que até dezembro de 2024 foram realizados cinco murais de artistas das diferentes periferias de São Paulo: Preto TNA, da Brasilândia; Image, do Capão Redondo e os grafites dos três produtores do festival. “Não tem uma temática, [mas] até então todos os artistas que pintaram, exceto a Andreza que faz letras, representaram pessoas pretas”, explica a produtora.
Mariana estima que o bairro de Perus tem cerca de 80 mil habitantes, a Cohab 8.000 moradores, e é essa a estimativa apontada pelo grupo da quantidade de pessoas impactadas diretamente com esse trabalho, além daquelas que estão de passagem pela região, pois os murais podem ser vistos a grandes distâncias, como conta Luiz One, 30, grafiteiro desde 2009.
“A essência do grafite é impactar a vida da pessoa que passa cotidianamente por aquele trabalho, levando um pouco de cor para aquelas pessoas e também conseguir fomentar a cultura, [no sentido de] poder adquirir novos adeptos, crianças e jovens”
Luiz One, artista e produtor do Festival Gigantes das Ruaz.
Luiz One é morador de Osasco, artista e um dos produtores do Festival Gigantes das Ruaz. (foto: arquivo pessoal)
Mariana e Luiz comentam que as crianças são as que mais ficam entusiasmadas com a iniciativa e que o projeto também inclui oficinas de grafite para as crianças e os jovens dos prédios. “A gente tem um menino que fica muito com a gente, o Pedro. Ele é bem esforçado, mas tem bastante problema familiar. Ele tem habilidade [em] fazer o grafite, mas [ainda] não sabe exatamente o que é. Então, a gente vai mostrando para eles pouco a pouco”, coloca Luiz. A intenção é expandir as oficinas também para as escolas próximas à Cohab.
No festival, as pinturas são feitas nos muros das laterias dos prédios e nas empenas, que têm 15 metros de altura. Ao todo são 30 prédios, ou seja, 60 empenas que o projeto pretende grafitar.
Grafite realizado por Image (foto: AM Criative Studio)Obra intitulada GranDona (foto: AM Criative Studio)
“A gente pensa em incrementar a Cohab como [parte da] rota turística artística que tem aqui em Perus”, comenta Luiz ao citar as trilhas do Museu Tekoa Japuí, realizadas na região pela Agência Queixada.
No entanto, há alguns entraves com relação ao projeto. “Foi muito desafiador conseguir as autorizações [dos moradores e síndicos], porque infelizmente a gente ainda sofre muito preconceito com o grafite”, afirma Mariana. “Alguns [moradores] não aceitam as artes de referências negras, já teve casos de moradores com falas racistas”, aponta Luiz.
Por meio da comunicação e de reuniões, os artistas contam que vão estreitando as relações com os moradores. A maioria é a favor,como uma das síndicas que já até ajudou com a manutenção do andaime, mas há pessoas de dois blocos que são irredutíveis. “Quem determina se sim ou não é o síndico. [Mas] a gente opta pela questão democrática. São 30 blocos, cada bloco tem um grupo de WhatsApp e lá eles colocam em votação, a gente vê dos 20 apartamentos quem é a maioria e quem é a minoria. Os prédios que estão irredutíveis, a gente largou pra tentar retomar futuramente”, explica Mariana.
Edital e autonomia
O projeto teve inicio em 2021, na cidade de Francisco Morato, região metropolitana de São Paulo com o nome “Entre amigos” e em outubro de 2024 teve um novo formato, realizado pela produtora Ruaz.
A renovação do projeto surgiu como uma forma de reivindicação ao edital do Museu de Arte de Rua (MAR), que segundo Mariana e Luiz, não contempla artistas e periferias de forma ampla. “Entre dois [e] três anos no máximo, eles estão dando mais oportunidades para pintar em periferias, porém o foco sempre foi a pintura do centro”, pontua Mariana.
Através da Ruaz Produções, a produtora relata que, em 2024, foram feitas 23 inscrições de projetos de diferentes periferias de São Paulo e de alguns estados do nordeste no edital MAR, porém nenhum foi selecionado e três ficaram na lista de espera. A artista menciona que não há devolutivas sobre os critérios de avaliação que são usados nessa seleção. O Museu de Arte de Rua existe desde 2017 e é uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo, realizada pela Secretaria Municipal de Cultura.
Obra de Andreza Pasqualini (foto: AM Criative Studio)Grafite Mães (foto: AM Criative Studio)
“O edital MAR [é] fundamental para a cultura do grafite em São Paulo, [mas] a gente foi entendendo que é algo muito particular, porque são sempre as mesmas pessoas [escolhidas]”, coloca Mariana, que já foi contemplada pelo edital em 2023 e realizou o grafite que está no CEU Perus.
Além do impacto para o território, o festival também tem grande significado para os artistas, pois segundo Mariana, pintar grandes estruturas, como prédios, é o sonho de muitos grafiteiros.
“A gente só dá realmente a estrutura que é o andaime [e] o artista convidado paga a tinta dele, os ajudantes, tudo sai do bolso dele”, conta Mariana. Ela coloca que isso gera visibilidade para os artistas e que a iniciativa contribui para a quebra do estigma negativo que ainda existe sobre as periferias e sobre os grafiteiros, que por vezes também são marginalizados.
Obra Caminhos (foto: AM Criative Studio)Empena pintada por Mariana Calle (foto: AM Criative Studio)
Mariana comenta que o maior desafio é pagar um andaime bem estruturado para os artistas produzirem de forma segura. Luiz comenta que a comunidade também tem fortalecido, “uma água, uma garrafa de refrigerante que um morador traz pra gente já é válido, porque aquilo sairia do nosso bolso”. Os artistas mencionam que toda ajuda é bem-vinda e que a continuidade do projeto também depende disso.
“Nós somos uma produtora com CNPJ, tudo formalizado, se for uma ajuda financeira a gente presta contas do dinheiro usado”, menciona Mariana. Ela fala que a doação de materiais também ajuda. O projeto segue e os murais realizados podem ser conferidos na Cohab Perus, o acesso é livre e os grafites podem ser visualizados da rua.
Em 2024 tivemos eleições municipais. Brasileiros de todos os estados foram às urnas eleger seus novos representantes e mandatos das cidades: os vereadores, prefeitos(as) e vice-prefeitos(as). Todos os eleitos terão um mandato de 4 anos, ou seja, ficarão todo esse tempo ocupando um cargo público no qual devem representar a população e ir atrás de melhorias. Mas como podemos acompanhar seu trabalho? Seguem abaixo algumas dicas!
Sabendo a função de cada um
Antes de tudo, é importante ter noção de qual a função de cada um deles. Os vereadores representam diretamente a população e devem ser a primeira pessoa que o cidadão pode procurar quando tem algum problema na sua rua ou no seu bairro que precisa de ajustes, pois são eles quem fazem a ponte entre a população e a prefeitura.
Além disso, são os vereadores que apresentam e votam nos projetos de lei municipais, e devem fiscalizar se o trabalho da prefeitura está sendo feito como se deve.
Já o prefeito ou prefeita, junto com os secretários municipais, cuidam de tarefas importantes como: a arrecadação dos impostos municipais e a aplicação deles: são eles que cuidam de como será usado o dinheiro público na cidade.
Além disso, devem manter serviços importantes como o transporte municipal, as creches e escolas municipais, a pavimentação das vias – os famosos asfaltos que muitos só costumam cuidar em época de eleição – as unidades básicas de saúde e por aí vai. São as prefeituras que cuidam diretamente da administração da cidade.
Acompanhando Sessões da Câmara de Vereadores
Todos os vereadores têm o seu gabinete na Câmara Municipal, mesmo local em que acontece pelo menos uma vez por semana as sessões plenárias. Essas sessões são momentos nos quais os vereadores apresentam e votam projetos de lei, falam sobre problemas da cidade, relatam o trabalho que fizeram naquela semana, aprovam moções – tipo homenagens – às pessoas que consideram importante na cidade por trabalhos realizados.
Poucas pessoas sabem quando acontecem essas sessões e menos pessoas ainda já acompanharam uma. Na real, devido a correria do dia-a-dia, que é dobrada para quem mora na periferia, é normal que quase ninguém consiga acompanhar mesmo. Mas aqui vai uma dica: se não é possível assistir uma sessão inteira, que tal pelo menos conferir como cada vereador votou em algum projeto importante?
Na época de campanha, todo mundo promete várias coisas, falam que vão defender pautas x e y, mas só vamos saber se ele ou ela está realmente defendendo na hora do “vamos ver”, e as votações são uma dessas horas.
Pesquise no site da Câmara Municipal da sua cidade como os vereadores votaram em algum projeto que você considera importante para saber se estão de acordo com os interesses da cidade ou não.
Participando de Audiências Públicas
Audiências Públicas são eventos promovidos pela prefeitura ou por vereadores da Câmara Municipal, no qual são debatidos assuntos importantes sobre a cidade, como a questão de saneamento básico, transporte, meio ambiente etc. Todos os cidadãos podem participar de audiências para defender seu ponto de vista e pedir atenção do poder público para um tema específico.
O orçamento da cidade também sempre é apresentado em audiências que mostram o planejamento de como será usado o dinheiro público – ou seja, o dinheiro arrecadado de cada trabalhador.
Essas audiências de orçamento sempre vêm acompanhada de uma dessas siglas: PPA – Plano Plurianual, mostra o planejamento de quatro anos. LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias mostra as prioridades para o próximo ano e se tem alguma alteração referente a arrecadação dos impostos na cidade. Por fim, LOA – Lei Orçamentária Anual mostra as estimativas de quanto dinheiro será arrecadado naquele ano e quanto vai ser destinado para cada área de política pública no seu município.
Importante, né? Todas essas leis são apresentadas pela prefeitura e depois os vereadores podem propor alterações, assim como a população.
Sendo membro de Conselhos Municipais
Além disso, existem os conselhos municipais que são espaços destinados à participação social. Nos conselhos, são eleitos membros representantes do poder público e da sociedade civil, que se reúnem mensalmente para pensar políticas públicas sobre pautas específicas. Existe o conselho da mulher, da saúde, da cultura e por aí vai. Pesquise sobre os conselhos da sua cidade.
Portais de Transparência e Lei de Acesso à Informação
Por fim, uma dica de ouro: as cidades costumam ter – na realidade, devem ter, embora algumas não cumpram – portais de transparência, onde o cidadão pode acompanhar informações sobre contratos, obras e gastos municipais.
Também existe a Lei de Acesso à Informação, por meio da qual podem-se realizar pedidos de informações públicas aos municípios – mas como usar essa ferramenta fica para o próximo artigo.
As ideias acima não esgotam as possibilidades. Cidadãos que desejam acompanhar a política e promover a mudança podem também sempre descobrir novas formas de atuação. Ainda assim, ficam acima dicas que podem ser úteis para caminhar rumo à uma cidadania mais ativa.
Bora?
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Fiquei por um bom tempo pensando em qual tema me motivaria a abertura desta sessão, pois começamos um novo ano e também uma nova sessão. Achei emblemático, mas só decidi escrever depois de assistir um programa que eu admiro, por me sentir provocada a falar sobre fé e esperança no futuro, que é um assunto bem propício para recomeços.
No programa, ao ouvir a análise complexa de um filósofo e de psicanalistas sobre comportamentos humanos, tive uma sensação muito infeliz, na minha percepção só ouvi negatividades e expectativas destrutivas de futuro. Vislumbrei o amanhã sobre ruínas, sem chances de sobrevivências, só o caos do capitalismo e da tecnologia, sem amor, só a desesperança e a frieza de uma mente analitica sem afeto, dando seu parecer tão desumanizado, no seu papel de cientista branco e eurocêntrico, que cheguei a pensar: teremos alguma chance depois dessa análise?
Então resolvi propor o exercício de resgatarmos algo puro que podemos dar e receber. Uma troca cheia de humanidade, com valores reais, onde abrir o coração a outras possibilidades que são internas, que se a cultuarmos podemos enxergar para além do fatídico, violento e desumano. A beleza da vida e do amor que também existe em nós.
Isso é possível, podemos observar como buscamos através da arte, da música e da cultura que é tão rica, a beleza e o amor que são reflexos de algo interior que flui de dentro. Entendo que é uma conexão do indivíduo que cria sua arte através da sua essência, que é uma força motriz da vida que está para além do ego e apresenta novas possibilidades de enxergar o mundo, ressignificando a vida através dos sentidos. É ver além da dor e do medo.
Essa proposta de observar a vida fora dos sentidos físicos e ter a capacidade de existir e ser aberto ao amor, a sentimentos que precisamos fortalecer para resistir não é uma ilusão, é uma necessidade para o momento que vivemos.
Precisamos parar e enxergar para além de nós, sermos mais altruístas, exercitar o dar e receber. Ter olhos para ver a essência das pessoas, o que elas tem de bom, o que temos de positivo para nutrir outras formas mais puras de amar e recuperar a fé no futuro. Assim, podemos recuperar a saúde mental, física e espiritual.
É possível sim vivermos ainda que uma vida difícil e caótica, enxergar para além do corpo e sentir na alma uma outra forma de existir. Ressignificar as amarguras, amar as pequenas e grandes coisas que estão fora do racional e intelectual.
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Quero iniciar essa nova sessão com algo tão importante quanto os temas anteriores, que é o viver coletivamente, criar formas de nos aquilombar, reconexões e ancestralidade que já são parte de nós.
Em novembro vivi uma experiência marcante e amorosa que me fez ter o desejo de escrever, mesmo tendo enfrentado uma viagem de ida e volta longa. Quero registrar os momentos vividos para curtir e celebrar esta grande conquista que o Desenrola e Não Me Enrola me proporcionou.
Fiquei tão feliz e grata que divido aqui com vocês o valor do cuidado afetuoso, coletivo e a experiência que podemos trocar com nossos pares de forma amorosa e não violenta.
Podemos nutrir uns aos outros com a troca, o reconhecimento e o respeito que podem gerar bons momentos, boas energias. Ter a certeza que esse é o caminho, que como disse no encontro: Vou insistir nesse caminho, acredito que é sobre a ancestralidade que realizo esse trabalho e que são ELES que nos aproximam de formas poderosas e misteriosas. Realizam conexões para podermos vencer, curar, construir, realizar, cuidar e amar.
Tive o prazer de conhecer a trajetória desse grupo, das suas lideranças, sua ideologia de levar a informação, de realizar formações, buscar formas de mudar o sistema, criar estratégias e ter a criatividade para levar o que tanto precisamos: registrar e mostrar a caminhada do povo que o sistema tem aniquilado de tantas maneiras.
Conheci também uma professora de inglês que tem realizado um trabalho de mestrado na USP e tem apoiado com seu conhecimento esse grupo e isso me fez acreditar ainda mais no amor. O amor pelo conhecimento, o amor e respeito pelo trabalho que realizamos e podemos realizar.
Saí nutrida de afeto de amigos que se fortaleceram na caminhada desafiadora do Covid, e pós pandemia seguem fazendo e recebendo de forma tão cuidadosa com as comidinhas, abraços e olhares agradecidos pelo que faço do outro lado da cidade, junto com este projeto amoroso que é o Obará.
Sei que muitas vezes nos endurecemos e seguimos sem acreditar nessa perspectiva, mas tenho fé que tantos os ancestrais, como aquelas pessoas comprometidas com o coletivo, com a comunidade, possamos nos fortalecer e construir novos caminhos para re-existir e transformar.
No caminho da viagem para o encontro com o Desenrola, estava lendo bell hooks e no livro “Tudo sobre o amor”, esta autora tão incrível, descreve no capítulo 8, Comunidade: uma comunhão amorosa”, que fala justamente sobre este tema e me fortaleceu a ideia em escrever o artigo sobre o cuidado coletivo. Porque após a minha chegada lá no espaço, vivi exatamente estes momentos em comunhão com o grupo.
Temos nossa ideologia e manter nossa resistência coletivamente nos abastece com a certeza que, as ações voltadas para o bem estar coletivo e para o nosso povo, trazem o sentimento de pertença e de que juntas podemos realizar coisas grandiosas.
Levar a mensagem para a comunidade, os coletivos, os quilombos, aos povos originários, mesmo que a vida seja cheia de desafios, mais dores que alegrias muitas vezes, mas que juntas somos um e mais fortes. Principalmente se cuidarmos uns dos outros, respeitar e acolher a individualidade, cultura e a essência de cada pessoa.
É um baita desafio, mas acredito na realização delas e vamos tomar o caminho para a vitória, segurando as mãos uns dos outros e fazendo acontecer.
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“Maracatu não é só batuque, tem vários outros saberes ancestrais. A dança, a espiritualidade, as cantigas, as roupas, o penteado”. Essa é uma das formas que Luciana Félix, regente de maracatu e parte do movimento desde 2011, explica sobre os fundamentos dessa, que segundo ela, vai além de uma manifestação cultural ou entretenimento, que é parte de uma identidade cultural. “Maracatu é alegria, é processo de cura, de libertação, é família”, afirma Luciana.
Luciana Felix é regente do grupo Caracaxá desde 2019 (foto: Maria Clara Guiral)
Segundo a regente, o território é um elemento fundamental quando se trata da origem e consolidação do maracatu nas periferias de São Paulo, e conexão com grupos tradicionais que têm origem no estado de Pernambuco, chamados de Nações de Maracatu. “Batuque, corte, território e ancestralidade são os quatro elementos que têm que estar junto [para ser uma] Nação de Maracatu”, explica Luciana, que também é arte-educadora, multiartista e produtora cultural.
Registrado como Patrimônio Cultural do Brasil pelo IPHAN desde 2014, em 2024, foi validada a lei que cria o Dia Nacional do Maracatu, em 1º de agosto. A data que já era comemorada em Pernambuco, agora passa a ser celebrada em todo o país.
“O maracatu em São Paulo começa com as Irmãs Ibeji entre 1940 e 1950, e tem um reinício quando o meu vô [Solano Trindade] chega do Rio de Janeiro, em 1960, e vem para Embu das Artes”, conta Vitor da Trindade. Ele é músico, Ogan Alabê Omoloyê, presidente e diretor artístico do Teatro Popular Solano Trindade (TPST), que tem como origem o Teatro Popular Brasileiro formado, em 1950, por Solano Trindade, Margarida Trindade e Edison Carneiro.
Vitor da Trindade e Elis Trindade. (foto: arquivo pessoal)
“Atuante agora em São Paulo, nós somos os mais velhos”, aponta Elis Trindade ao se referir ao maracatu Nação Kambinda, que faz parte das manifestações culturais que acontecem no TPST. Bailarina e professora de danças afro-brasileiras contemporâneas, Elis é coreógrafa e coordenadora cultural do Teatro Popular Solano Trindade. Ela e Vitor moram no bairro Jardim Silvia, na cidade de Embu das Artes, território que também está localizado o TPST.
Conhecido como poeta do povo, Solano Trindade era de Pernambuco, escritor, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante do Movimento Negro. Junto com Margarida Trindade, que era coreógrafa e terapeuta ocupacional, passaram os seus saberes sobre manifestações culturais adiante, conforme explica Elis e Vitor.
“Em 1974, meu vô falece e minha mãe retoma a ideia do maracatu [que] se espalha [também] na periferia”, conta Vitor ao se referir a Raquel Trindade, que além de sua mãe, era artista plástica, pesquisadora, folclorista e coreógrafa. “Eu adolescente acompanhava minha mãe. [Coloca] aí 50 anos para trás ela já ensinando maracatu, fazendo a dança nas escolas, falando com os professores, nos bairros, nas comunidades, nos centros comunitários”, relembra.
Raquel Trindade à frente do maracatu Nação Kambinda. (foto: arquivo pessoal)
Entre o final da década de 90 e o início dos anos 2000, foi quando o maracatu se propagou de modo mais consolidado em São Paulo. Luciana cita o músico e percussionista Eder Rocha, como um dos precursores ao trazer e difundir o ensino da parte sonora do maracatu. Ela aponta três tipos de maracatu: “maracatu de baque solto [também conhecido como maracatu rural], o maracatu cearense e o maracatu de baque virado, é esse que a gente brinca bastante aqui em São Paulo”.
“Da Vila Madalena é que foi para periferia, não saiu da periferia para a Vila Madalena. Ele [também] sai daqui [do TPST], a gente espalha pela cidade inteira. O Eder se assenta na Vila Madalena e o maracatu, a partir [daí] se tornou uma grande moda em São Paulo”, conta Vitor.
“Pessoas com maior poder aquisitivo, na hora que Eder chega na Vila Madalena e apresenta o maracatu, vão para Pernambuco aproveitar o carnaval, consomem da tecnologia de lá, trazem [para SP], mas não falam que aprenderam lá”.
Elis Trindade, coreógrafa e coordenadora cultural do Teatro Popular Solano Trindade
Nesse contexto, Elis comenta que com o tempo os mestres e grupos de maracatus de Pernambuco passaram a exigir que seus saberes fossem referenciados.
“A gente nunca exigiu obrigatoriedade [de ser referenciado]. A gente sempre devolveu ao povo em forma de arte igual Solano Trindade falava, ‘pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte’. Só que esse povo que aprende, que consome da nossa tecnologia, leva e vende para todo mundo e não fala que aprendeu com a gente”, afirma Elis sobre um dos motivos de não conseguir apontar quantos grupos surgiram a partir do TPST.
Elis Trindade é bailarina, professora de danças afro-brasileiras contemporâneas e coordenadora cultural do TPST. (foto: Weslley Tadeu)
Em São Paulo, enquanto ensino de percussão, Luciana diz que o maracatu se dissemina a partir de grupos de estudos realizados e liderado principalmente por pessoas brancas, no centro da cidade. “Antes era difícil a gente chegar [nos ensaios de maracatu], sair de um território pra ir pra USP [ou] pra Vila Madalena. [Ao] chegar lá as pessoas pretas eram poucas, porque era difícil chegar [e] se sentir aceito. A gente foi quebrando isso, fazendo as nossas próprias movimentações”, coloca Luciana sobre os locais que os grupos de maracatu se reuniam para ensaiar.
“Não existia uma manutenção das pessoas pretas nesses espaços”, comenta Luciana ao citar alguns dos motivos desse cenário, como a distância, valor para locomoção e alimentação. “Inclusive, eu saía da zona leste, morava na Cohab II e ia pra lá”, relembra. Atualmente a regente mora no bairro Penha de França, no distrito da Penha, na zona leste de São Paulo.
Agentes culturais que viviam nas periferias e conseguiam frequentar esses espaços no centro, com o tempo, levaram essa cultura para os próprios territórios e formaram outros grupos, o que contribuiu para expandir a presença do maracatu nas periferias da cidade, segundo Luciana. “As pessoas querem estar no seu território e muitas vezes [formavam outros grupos] por divergências também”.
Ensaio de maracatu do grupo Caracaxá na Vila Guilhermina, zona leste de São Paulo. (foto: Diego Menezes)
Entre muitos exemplos, Luciana cita o Caracaxá, grupo fundado na USP, em 2003, e que alguns dos integrantes deram origem a outros grupos de maracatu que estão em bairros descentralizados, como o Ouro do Congo, no Campo Limpo, o Arrastão do Beco, em Santo Amaro e o Mucambos de Raiz Nagô, no Jabaquara.
“Com esse desmembramento, a gente que é periférico começa a assumir mais o papel tanto de liderança, quanto de batuqueiros”, afirma a regente sobre grupos que vão sendo criados nas periferias, além dos que surgiram no centro e migram para esses territórios. Esse é o caso do Caracaxá, grupo que Luciana é regente desde 2019, e que atualmente está no bairro Vila Guilhermina, na zona leste de São Paulo.
Identidade
Os grupos de maracatu, tradicionalmente em Pernambuco, estão localizados nas periferias do estado, segundo Luciana. “Uma nação de maracatu [sempre] vai estar numa comunidade, independente das pessoas virem de outros bairros, o grosso é daquele território”, comenta.
Acolhimento é outro fator que Luciana menciona como determinante para que um grupo de maracatu de São Paulo consiga permanecer em um território. Ela afirma que não é em todo local que o maracatu é bem-vindo, pois há preconceitos por se tratar de uma cultura de matriz africana. A presença da comunidade evangélica e a especulação imobiliária fazem parte dos contextos das periferias, no qual, Luciana aponta uma intolerância com relação ao maracatu.
Apresentação de maracatu do grupo Caracaxá. (foto: Maria Clara Guiral)
“A polícia oprimia o maracatu, tinha que pedir autorização para tocar na rua. E se tocava maracatu para os terreiros poderem fazer seus trabalhos, porque a polícia não podia ouvir o barulho do Candomblé que era proibido”, aponta a regente sobre o maracatu enquanto estratégia de resistência cultural.
“O que eu vejo da recepção dos territórios é que cada vez mais a gente está perdendo espaço”. No entanto, também há quem acolha os grupos, “a comunidade quando ela abraça é muito bom porque as pessoas saem na janela para tirar foto, bater palma, sai com um sorriso no portão”, relata.
A manifestação cultural, segundo Luciana, também é um lugar de fortalecimento para crianças e jovens nas periferias. Atualmente, ela ensina percussão de maracatu para crianças de 7 a 14 anos, na Casa de Cultura Raízes, no município de Ferraz de Vasconcelos, no CEU Arthur Alvim e no CEU Tiquatira, que fica na comunidade do Chaparral.
Luciana Felix ministrando oficina de percussão no Projeto Vivências, realizada na Casa de Cultura Raízes. (foto: arquivo pessoal)
Para a educadora, o impacto que essa cultura, assim como outras de matriz africana, gera na vida de crianças negras que vivem em territórios periféricos está diretamente ligado à construção de identidade e autoestima. “O empoderamento de se entender como uma pessoa periférica, gostar de ser periférico, valorizar o território, se sentir bonito, se entender como negro e afro-brasileiro, de entender o cabelo, a [própria] beleza, a roupa, a dança, ser aplaudida”, comenta.
A descentralização dos grupos de maracatus que se ramificaram para as periferias, é apontado por Luciana como um avanço, pois os grupos passam a se tornar mais diversos com relação a raça e gênero. “Nos tornamos protagonistas da nossa própria história”, menciona ao falar das mudanças.
Mas também pontua que o combate ao machismo, racismo e homofobia, mesmo dentro desses espaços culturais, assim como na sociedade, é algo contínuo. Nesse sentido, ela fala da necessidade de ter mais pessoas negras em cargos de lideranças nos grupos culturais, principalmente quando se trata de cultura negra e afro-diaspórica. “Não é sobre tirar lugar, é sobre fazer junto”, ressalta ao pontuar sobre pessoas brancas que lideram grupos de maracatu e que querem ser aliadas da causa antirracista.
“O que a gente tem que fazer é retomar a direção das nossas estruturas culturais [e] sociais. Nós temos que voltar para as religiões afro descendentes, temos que voltar da universidade para a periferia. O maracatu pertence à periferia, o maracatu é a periferia”, finaliza Vitor da Trindade.
Time do Amizade Feminino, fundado em 2012, é um projeto criado com a missão de formar atletas e cidadãos e tem como dirigente o senhor Valdomiro, que leva e se empenha dia-a-dia no foco de transformar vidas por meio do esporte.
Pensado para as meninas da comunidade, o projeto vai além das quadras, promovendo inclusão e oportunidades para jovens talentos. Os treinos acontecem regularmente na semana e final de semana também.
As meninas aprendem muito mais do que habilidades técnicas, elas desenvolvem valores como disciplina, trabalho em equipe e respeito. Além disso, é através desses treinos que elas conseguem se expressar, sonhar e acreditar no próprio potencial.
Em novembro desse ano, Miro, como é conhecido o dirigente, realizou no CEU TAIPAS um torneio interno com as meninas. Lindo de ver o sorriso no rosto de cada uma, a união de todas, e não importava se fosse a adversária a acertar um passe, todas, até do lado de fora, batiam palmas e vibravam juntas.
Muitas mães e pais estavam presentes acompanhando esse momento e vibrando juntos.
O esporte é uma poderosa ferramenta de mudança social.
Falta muita atenção e investimento para o futebol feminino, seja em quadra ou no campo. Que possa aparecer cada vez mais projetos e incentivos, tal qual investimentos para que cada vez mais aumente a mulherada disputando jogos em alto nível.
As meninas também sonham, tem garra e precisam de oportunidades, potencial não falta. Cada passe é um passo rumo a um amanhã melhor e é sempre bom lembrarmos que lugar de mulher é onde ela quiser.
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.
Um jovem, negro e periférico que está tendo as primeiras experiências como trabalhador e se depara com questões como a precarização e a informalidade do trabalho. Esse é o enredo central do filme “Samuel foi trabalhar”, que apesar de ser uma ficção, retrata a vivência de alguns jovens que estão à procura do primeiro emprego.
Segundo levantamento dos Principais destaques da evolução do mercado de trabalho no Brasil 2012 - 2023, divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2022 os trabalhadores informais totalizavam 38,2 milhões de pessoas, número que subiu para 39,4 milhões de pessoas no ano seguinte, é o que consta na PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), publicada em janeiro de 2024.
A pesquisa considera como ocupação informal as seguintes categorias: empregado no setor privado e empregado doméstico sem carteira de trabalho assinada, empregador e trabalhador por conta própria sem registro no CNPJ e trabalhador familiar auxiliar, ou seja, pessoas que trabalham em atividades conduzidas por membros da família, geralmente em pequenos negócios, propriedades rurais ou estabelecimentos familiares, sem remuneração formal.
Janderson Felipe, 30, é cineasta e diretor do curta “Samuel foi trabalhar”, que aborda a vivência de muitos jovens de territórios periféricos no mercado de trabalho. Ele comenta que pela falta de oportunidades e a urgência em gerar renda, pessoas que vivem em periferias acabam inseridas em trabalhos precários que em muitos casos não gostam, mas que realizam por necessidade.
Janderson Felipe no Festival Internacional de Cinema de João Pessoa. (foto: Natália Di Lorenzo)
“Às vezes a gente tem uma qualidade artística e a gente não consegue encontrar esses trabalhos. A gente não consegue dar vazão e ao mesmo tempo conseguir ganhar dinheiro com isso [como artista] e acaba entrando nesses lugares”, aponta Janderson, que também é jornalista e cresceu no bairro Tabuleiro dos Martins, em Maceió.
Cenário que vai de encontro com as discussões sobre direitos trabalhistas, como a revisão das jornadas de trabalho, debate que ganhou força no campo político e social em 2024, a partir do movimento VAT – Vida Além do Trabalho junto da deputada Erika Hilton (PSOL), que propôs uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para acabar com a escala de trabalho 6×1 no Brasil, que representa seis dias de trabalho consecutivos seguidos de um dia de folga.
Em 2019, quando Janderson começou a escrever o curta, ele comenta que em Maceió, acontecia um aumento no processo de precarização do trabalho pela uberização, modo de atuação informal que utiliza aplicativos para conectar trabalhadores a clientes e caracterizado pela falta de direitos trabalhistas, e isso reforçou a importância de falar sobre o assunto.
A pesquisa Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais, realizada pelo IBGE, Unicamp e o Ministério Público do Trabalho, por meio da PNAD Contínua, avaliou que no 4º trimestre de 2022, no Brasil, a população ocupada de 14 anos ou mais, foi estimada em 87.2 milhões de pessoas, sendo que 2.1 milhões realizavam trabalho por meio de plataformas digitais (aplicativos de serviços) ou tinham clientes e efetuavam vendas através de plataformas de comércio eletrônico. Desse total, 1.490 mil pessoas trabalhavam por meio de aplicativos de serviços e 628 mil utilizavam plataformas de comércio.
Os fatores externos, sociais e políticos, também se uniram à própria vivência do cineasta de nunca ter conseguido acessar um posto de trabalho formal, com carteira assinada e direitos garantidos. “Samuel também é um filme de terror nesse sentido, porque eu nunca assinei a carteira. Eu ficava, ‘caramba, nunca vai chegar’. Até o ponto que eu já não tenho uma questão sobre isso, mas quando eu era mais jovem tinha essa nóia”, compartilha o diretor.
Encontro entre ficção e vida real
O enredo do curta se dá a partir de Samuel, que está prestes a deixar a informalidade e ser contratado, mas é assombrado pelo seu instrumento de trabalho: a fantasia de engenheiro.
A direção, roteiro e montagem do curta foi feita por Janderson e Lucas Litrento, que é jornalista, escritor, cineasta e morador do bairro Benedito Bentes, em Maceió. Segundo Janderson, eles sempre imaginaram fazer um filme popular, que as pessoas pudessem se reconhecer, principalmente pessoas de periferias, negras e que também fosse uma representação do jovem maceioense.
“No cinema brasileiro recente, de fato, quem está pensando no trabalhador parte muito do cinema negro, porque ainda é uma coisa muito próxima. Os pais, mães e irmãos da gente são esses trabalhadores também. Muitos realizadores [dos filmes] foram ou são esses trabalhadores. Existe um cinema periférico geral no Brasil que pensa esses trabalhadores.”
Janderson Felipe, diretor e roteirista de cinema.
“[A proposta] era pensar quem é esse jovem periférico que estudou em escola pública a vida toda, terminou de se formar e o que ele vai fazer da vida. É o jovem que muitas vezes não vai acessar a universidade e quais são os empregos que ele vai conseguir?”, menciona Janderson sobre as motivações do curta.
“Tem [no] filme a discussão sobre buscar os direitos junto ao empregador. As meninas querem o dinheiro da passagem, pelo menos, para não gastar a grana do próprio bolso para poder trabalhar. Que é uma coisa que eu já vivi”, menciona Janderson sobre situações do filme que dialogam com a realidade de trabalhadores informais.
Questões sobre dias de folga e lazer também são abordadas no filme, tendo os territórios como ponto de partida. “Quando se pensa em Maceió se pensa na praia, o estado também vende esse imaginário. [Porém] quando se pensa em acessar esses espaços dentro da perspectiva de quem é da periferia, esse lugar não é só de lazer e turismo, também acaba sendo o ambiente de trabalho de muitas pessoas”, explica.
Cena do filme que se passa na orla de Maceió, mostra a perspectiva de trabalho que há no local, para além do lazer. (foto: Amanda Môa)
Janderson menciona que as pessoas negras e periféricas que acessam a praia, principalmente as mais turísticas, em muitos casos estão trabalhando, mas que também há famílias que vivem nesses locais e que têm a praia como uma das poucas opções gratuitas de acesso ao lazer na cidade. “O Samuel no filme vai para um baile de reggae, [por exemplo]. Os escapes desses jovens da periferia, o lazer deles acabam não sendo a orla de Maceió igual é para os turistas”, pontua.
Segundo o diretor, a dificuldade de deslocamento na cidade, que se agrava nos fins de semana e feriados com a escassez de transporte público, também contribui para que os trabalhadores, que são moradores de bairros afastados da orla, procurem por outras opções de descanso e lazer.
“Trazer esses espaços reconhecíveis para quem é de Maceió bater o olho e ver, ‘é perto do lugar onde eu moro, já passei por aí’”, explica Janderson sobre a ideia de representar ao longo do filme os bairros da Serraria, Salvador Lyra e Grota do Rafael, periferias de Maceió, que também receberam parte das gravações.
O filme circula entre as categorias de fantasia, terror e comédia. “Tem coisas engraçadas do trabalho do Samuel que não são [bem] engraçadas, mas tem uma graça ali, tem uma coisa de um riso meio estranho”, explica.
Estudante do ensino médio, de uma escola pública, participa de discussão sobre o filme, após exibição no Festival Revoada. (foto: Renata Baracho)
Jovens que se assemelham com os personagens são apontados por Janderson como o principal público do filme. “Quando tem esses jovens é onde o filme mais chega. No Festival Revoada, aqui em Maceió, teve várias sessões para escolas públicas. Teve uma sessão em que um menino decidiu falar sobre trabalho, que tem que buscar os direitos. O filme realmente pegou para ele”, relata.
Janderson fala com entusiasmo de como está sendo a recepção do filme por jovens que vivem nas periferias e finaliza, “o melhor público são eles”.
O filme está em circulação em festivais e mostras de cinema. As próximas exibições em dezembro serão na 7° Edição da Mostra Sesc de Cinema, em Belém-PA; entre os dias 3 a 10 no Macau International Short Film Festival; de 12 a 15 no 12º Curta Brasília – Festival Internacional de Curta-metragem; 9 a 14 deste mês no 15º Festival de Cinema de Triunfo e também na 15ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano entre o dia 12 e 15 de dezembro.