Opinião

Nacionalismo: o Brasil que odeia minorias também odiará imigrantes

A caça aos imigrantes é um grande bode expiatório para culpá-los e camuflar problemas nacionais.

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Em março de 2014, em meio às celebrações dos 50 anos do golpe militar de 1964, uma cena abjeta emergia em São Paulo: a “Marcha da Família com Deus” foi recriada, reunindo algumas centenas de pessoas saudosas da ditadura. O que começou como um ato raquítico ganhou força nos anos seguintes, com manifestações robustas e ampla cobertura midiática hegemônica que mobilizavam o imaginário popular e a opinião pública “contra a corrupção”, mas clamavam por “soluções” radicais, como a intervenção militar. 

Em retrospecto, esses eventos foram prenúncios de uma nova etapa do nacionalismo fascita no Brasil. Nos anos seguintes, em todo mês de março houveram mobilizações em torno da comemoração do golpe militar de 64.

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O Brasil tem sido palco de um embate acirrado em torno da identidade nacional pelo menos nos últimos 15 anos, conflitos que se manifestam nas ruas, nas redes sociais e nas instituições. Jogar luz sobre essa disputa revela como a extrema direita brasileira tem buscado construir um novo “ethnos” nacional: um projeto excludente que nega a diversidade e flerta com o autoritarismo nazifascista e o fundamentalismo/terrorismo religioso.

Das “Marchas da Família com Deus” de 1964 e 2014 ao culto a figuras de repressão e a disseminação de discursos de ódio, chegamos a um projeto de poder que visa enquadrar a identidade nacional em valores que capturam os sentimentos mais repulsivos e subterrâneos para mobilizar pessoas e incluir novos paradigmas na sociedade. 

Para “eles”, tudo é válido ou “verdade” desde que parta de porta-vozes absolutos que encarnam uma espécie de missão heróica de criar e se sacrificar por um caminho viável para o poder.

A aproximação entre o bolsonarismo e o nazifascismo está fundamentada em alguns paralelos ideológicos, estratégicos e discursivos, embora cada movimento tenha suas especificidades históricas e contextuais. 

A seguir, uma breve listagem de pontos de semelhança mas também de características que são próprias do bolsonarismo.

Culto ao líder e centralidade do autoritarismo

Assim como no fascismo e nazismo, o bolsonarismo promove uma centralização do poder em torno da figura do líder. Jair Messias Bolsonaro é retratado por seus seguidores como uma figura (tragicamente) messiânica, capaz de resgatar o país de uma suposta “degeneração” de valores morais, religiosos e institucionais, característica típica dos regimes autoritários.

Exaltação de “valores nacionalistas” e militarismo

O bolsonarismo se apoia fortemente em símbolos nacionais, como a bandeira e o hino, como se fossem os únicos a encarnar o patriotismo e, também, promove uma visão militar do poder. A retórica de “salvar a nação” ecoa estratégias de regimes fascistas, que buscavam legitimar sua ascensão como defensores de uma unidade da identidade nacional ameaçada por minorias políticas ou numéricas. 

Por exemplo, se fala racismo a resposta é que “há no Brasil apenas o brasileiro como raça e que todos são filhos de deus”, então não existe racismo. Se fala de gênero, “querem deturpar a ordem natural e a família, introduzindo o sexo e a promiscuidade homoafetiva”, indicando que tirar “o homem” do holofote é degeneração moral, etc.

Política do medo e exclusão

Mais uma característica central do nazismo e fascismo é a criação de “inimigos internos” que ameaçam a pureza ou estabilidade da nação (como dito antes). Se nos EUA e na Europa isso tem se traduzido em perseguição aos imigrantes, no bolsonarismo, esse discurso é direcionado contra minorias políticas (indígenas, LGBTQIAPN+, negros, mulheres, etc.) e grupos opositores, sobretudo, comunistas e socialistas, frequentemente tratados como terroristas-estelionatários que degeneram a ordem social.

Adoção de retórica antidemocrática

O desprezo por instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, é recorrente no discurso bolsonarista de seguidores, remetendo à forma como regimes fascistas minaram a democracia para consolidar seu poder com apoio popular e mobilização de massas. Declarações que sugerem fechamento de instituições ou intervenção militar para resolver conflitos políticos refletem essa tendência.

Apropriação de práticas de desinformação

Tanto o nazismo quanto o fascismo utilizaram propaganda e desinformação para controlar a narrativa pública e governar pelo medo e o ódio. O bolsonarismo adaptou essas táticas, utilizando redes sociais para disseminar fake news, criar inimigos públicos simbólicos, impulsionar altos investimentos em “milícias digitais” (grupos organizados que agem para destruir a imagem pública de adversários, sejam eles pessoas ou instituições) e polarizar a sociedade em uma narrativa de guerra social/cultural.

Ressentimento contra a classe trabalhadora

O bolsonarismo opera promovendo um ideal de homogeneidade nacional. Isso se reflete na ideia que a identidade primordial é a nacionalidade e a religião, sendo assim, todos nascem iguais e com as mesmas oportunidades, então haveria desonestidade em denúncias políticas afirmativas que excluem pessoas brancas, e/ou homens, e pessoas de classe média e ricas como alvos de programas de Estado ou até do setor privado. Esse discurso chega como medidas contra o “bolsa família”, ações afirmativas para diversos grupos, privatizar programas essenciais de serviços básicos, etc. 

Embora o bolsonarismo não se alinhe plenamente ao nazismo ou fascismo clássico devido a diferenças de contexto de natureza econômica, política e perfil racial de seus seguidores, essas semelhanças mostram como ele mobiliza elementos ideológicos e estratégicos dessas doutrinas para fortalecer sua base de apoio e moldar a política nacional. O ex-presidente ainda exerce forte influência em sua base política. 

Podemos afirmar que a polarização entre esquerda e direita revela as disparidades de poder entre os grupos em conflito que a representam. Não conhecemos organizações paramilitares ou milícias esquerdistas que dominam uma cadeia produtiva da morte e do poder sobre territórios em periferias como a Milícia do Rio das Pedras (RJ), ou o “Escritório do Crime”. Menos ainda a defesa aberta à posse de armas de fogo e ao uso de força letal como garantia de bem comum e “ordem democrática”.

Imigrantes, direita e o Brasil

Movimentos pró-democracia e de esquerda pelo mundo têm patinado em se tornar contraponto a projetos excludentes como esse. Nos EUA, a vitória do norte-americano Donald Trump revela mais do que se pode enxergar e reverbera um ressentimento e, sobretudo, uma onda do “orgulho branco” disfarçado de patriotismo. 

Essa vitória, como outras eleições nos últimos e nos próximos anos, é resultado também de investimentos pesados de grandes empresas, mas, significativamente, das big techs que vinham sofrendo as consequências nos últimos anos de suas participações no estímulo a rupturas de governos democráticos pelo mundo, impulsionando discursos de ódio em suas plataformas, fortalecendo a extrema-direita e vinham sofrendo sanções para a regulamentação da atuação de suas empresas (sobretudo na Europa). 

Do lado mais estritamente econômico, ao investirem e posarem na posse do presidente americano, também visam que Trump possa enfraquecer concorrentes de mercado através de intervenções diretas do Estado Americano em políticas econômicas, como exigência do Tiktok ser vendido para uma empresa americana para atuar no país, ou aumentar a taxação de países que fazem parte do BRICS que deixam de utilizar o dólar como moeda principal.

A caça aos imigrantes é um grande bode expiatório para culpá-los e camuflar problemas nacionais (como questões de saúde e aumento do custo de vida).

O que vemos agora em todas as redes sociais e na tv em relação às ondas de deportação de imigrantes, não é um acontecimento isolado. É provável que muitos países, não apenas os considerados de “primeiro mundo”, passem por uma crescente onda de imigrações.

O Brasil, segundo dados do Subcomitê Nacional de Recepção, recebeu cerca de 700 mil imigrantes venezuelanos entre 2017 e 2022, sendo que cerca de 326 mil permaneceram no país naquele período, muitos deles sofreram ameaças, perseguição, violência e até exploração sexual e trabalho escravo nas regiões de fronteira até seu destino final, um pouco mais de 50 mil desses imigrantes estavam em condição de refugiados.


O cerne da questão é que as motivações para ondas imigratórias serão cada vez mais diversas e recorrentes, sobretudo, relacionadas a questões climáticas. O impacto climático não está restrito a desastres, ele se estende na desertificação de áreas agrícolas, aumento da migração para centros urbanos, escassez de bens naturais. Sem políticas de reforma agrária para produção agrícola, cada vez mais sentiremos os efeitos da crise do clima, e sem renda básica universal, os centro urbanos serão uma panela de pressão de problemas de segurança, habitação, saúde e sofrerão mais com as mudanças do clima. 

Não serão apenas os extremistas e supremacistas americanos e europeus que irão utilizar imigrantes como bode expiatório para os problemas nacionais de ordem política, econômica e social e para a “unificação” da identidade nacional. Justamente porque o único caminho para o florescimento da supremacia branca nazifascista está em se vestir de um movimento nacionalista-religioso, é o único caminho para agregar força, mobilização e coesão social, sem dizer aos olhos do público que odeia negros, mulheres, judeus e etc.

Muitas vezes nos perguntamos, “como as pessoas que são minoria podem compartilhar discursos extremistas?”, a resposta pode ser mais simples do que imaginamos. É porque a direita e extrema direita utiliza “símbolos universais” para compor a unidade e a identidade do grupo, nunca utilizam características que individualizam, para ser de direita deve-se ser: cristão, hétero, a favor da família, defender os símbolos nacionais, gostar de futebol, etc. 

É fácil perceber que todas essas características são genéricas, ou seja, qualquer pessoa que se identifica com elas pode ser de direita. Nesse caso, o difícil seria não se identificar, já que essas características determinam o padrão de comportamento social da maioria em sociedades ocidentais e pós-coloniais.

A luta por reconhecimento, memória e justiça social se faz ainda mais urgente diante do avanço do nacionalismo violento e criminoso, anti-direitos humanos. Investigar a dinâmica da construção dessa identidade no Brasil, contribui para o debate público e para a defesa da democracia. 

É preciso compreender as raízes do nacionalismo excludente e os mecanismos de manipulação utilizados pela extrema direita para fortalecer a resistência contra mudanças, garantir um futuro mais justo e com oportunidades para todos os brasileiros, sobretudo, os menos privilegiados.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas. 




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