Quando as violências simbólicas continuam sendo absorvidas, como acreditar na justiça?
Eu quando pequena não compreendia a importância ou fato de termos estátuas, assim como estranhava o nome das escolas que faziam parte de um grupo de pessoas desconhecidas que davam nome a coisas, eu não conhecia o significado de dar nome de pessoas a objetos inanimados, nem que isso representava uma homenagem, nós só naturalizamos.
Eu não sei como foi na vida de vocês, mas demorei muito para saber quem era Dona Zulmira Cavalheiros Faustino, que nomeia a escola estadual da qual fui estudante secundarista, que ela foi uma liderança da Vila Prel, que lutou no movimento brasileiro de educação, foi muito atuante na luta social nesse bairro.
Qual o sentido de fazer essas homenagens se nem o Estado, nem esses locais que levam os homenageados como nomes, nos educam, como população, sobre a importância dessas pessoas? Qual o sentido dessas homenagens vazias? Quem nós realmente queremos lembrar e quem são as figuras que nos são relembradas constantemente?
Assim foi com todos os pontos históricos da Zona Sul, como a Casa Amarela, a história de Santo Amaro e o Gigante Borba Gato, ponto de referência da região e a imagem mais alta que já havia visto na vida. Quando pesquisei a respeito, fiquei triste pela existência da representação, de forma tão gigantesca, de um Tenente Capitão do Mato.
Em 2008, com diversos artistas, ativistas sociais e lideranças periféricas da ponte pra cá, realizamos o Julgamento do Borba Gato. Lembro que foi estranho, mas era preciso, como se fosse nossa obrigação dizer que aquele gigante era um criminoso que representava toda violência do Estado.
Depois de 13 anos de sua condenação, que o Gigante cumpriu em regime aberto, no dia 23 de julho de 2021, sua sentença foi realizada, fogo nós fascistas!
Não posso dizer que não fiquei emocionada, depois de tanto terror que vivemos nessa pandemia, tanta falta de perspectiva para o que vamos enfrentar nas eleições que se aproximam, queimar a representação da militarização da vida e genocidio indigena, me traz um pouco de esperança.
Aqui se apresenta uma metáfora: não derrubamos uma estátua, como derrubaremos o totem bolsonarista? Não é exagero, a vida é simbólica.
Dias difíceis para mudar o mundo, quando a pedra vale mais que vida
O Estado não relativiza o fogo em nossos corpos, em nossos lideres, em nossa ancestralidade, em nossa religiosidade, em nossas casas, em nossas florestas. Talvez geramos todos os dias milhares de capitães do mato, em função de ainda considerarmos o nosso algoz.
Nossos verdadeiros gigantes não estão em estátuas pela cidade, em números possíveis de mudar o rumo da nossa história, muita gente ainda acredita em descobrimentos, libertações, em bons algozes navegando para nosso desenvolvimento em torno de modernidades transformadoras.
É importante lembrar que ele não é gigante pela própria natureza, mas porque existe um grupo no Brasil que sustenta esse tipo de ideologia do que um Tenente General, Capitão do Mato representa, exploração do povo, domínio imperialista.
Ainda existe uma faísca de respeito ao sinhozinho bondoso, ao sinhozinho sorrindo, ao sinhozinho permissivo, ele faz parte da história, contudo, nossos ancestrais também e onde estão os monumentos de repudio a escravidão no Brasil? Quando seremos ressarcidos?
Os poderosos como Borba Gato, sempre são perdoados, e nosso povo segue encarcerado, ainda existe uma fagulha de compreensão ao malvado chicote. Queremos uma democracia plena, porém, não julgamos como errado um conjunto de símbolos coloniais e imperiais que impelem em nosso legado a injustiça.
Quando as violências simbólicas continuam sendo absorvidas, como acreditar na justiça? O genocio indigena não é repudiado ao ponto da retirada de todos os símbolos que o consagraram, o que significa, de fato, esse repúdio? Não repudiamos a política escravocrata ao ponto de retirar seus executores de seus eternos palanques de pedra, o que de fato significa a luta anti-racista, anti-facista?
Foi-se os anéis, mas ficaram os dedos e esses dedos cutucam nosso imaginário todos os dias com a possibilidade de perdoar o trajeto histórico que vivemos, – que é imperdoável -, e que lentamente se levanta contra nós nesse momento.
Dinheiro para tirar o povo da miséria na pandemia, o Estado e seus mandatários não tem, mas para retificar o símbolo da sua origem, sempre haverá.
Nunca negamos a existência do nosso passado colonial, ele está cravado na criação de um país em divisões, como castas sociais que geraram o monopólio do poder político, o qual conferiu a esses estamentos senhoriais, como Borba Gato, a possibilidade de controlar a máquina do Estado e com isso nossas vidas.
Como dizia Florestan Fernandes, uma sociedade que tolhe as pressões de baixo para cima, não está somente na infância. É uma sociedade de classes que só funciona como tal para os “mais iguais”, ou seja, para as classes altas e médias.
FLOR DA SÉ
Eu vi uma flor na Sé.
Pois bem, era um dia de semana comum,
nós sozinhos na Sé, no centro, uma flor.
Enquanto isso, pessoas que pela sua classe social
desistiram da moralidade
e da tão sistemática cidadania.
Na Sé o barulho é ensurdecedor,
por isso é ignorado
e o que não se ouve, não se sente.
E lá junto a um lugar literário,
onde talvez nasceu no Brasil
o galego português,
uma casa, uma marquesa,
um amor
um amante.
Quem foi D. Pedro I?
E quem sou eu?
Eu vi uma flor na Sé
responda-me quem puder.
A sé
Asé
Até tu, São Paulo
Que só te explicam a pobreza,
e dão teu nome a politicagem soberba.
Até tu amiga que me abraça
com braços fortes,
E me faz gigante, mas não pela própria natureza,
e sim por punhos de nordestinos,
que transformam essa,
a quem deram o nome de pátria.
Sei ser cidadã e sei ser eu mesma.
Não me pergunte o que eu prefiro ser.
Anabela Gonçalves, 1997
Nossa! Texto incrível!
Sem fala mas aliviada por poder ler algo tão direto, tão forte e tão completo!
Excelente texto,se eu estivesse dando aula iria usá-lo ,vou envia-lo para Julia e quando ela for dar aula o sobre expansão colonial do Brasil,trabalhar esse texto.
Muito bom! Muitas coisas ficam adormecidas em seu feito. Borda Gato visto por muitos, todos, porém uma estátua totalmente sem significado… Hoje aberto a população o significa nefasto da estátua. Assim fez história e assim conserta história.
Outras manifestações para consentir pelo desvalor destes símbolo. Até a remoção pra espaços fechados com a historiografia deles cravada aos pés.
Obrigada Professor, sua perspectiva histórica é muito importante!
Gratidão Marta!
✊?