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“A feira fez de mim uma pessoa melhor”: trabalhadores falam sobre feiras livres como espaço de geração de renda e coletividade

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Seja uma parada para comer aquele pastel com caldo de cana ou para comprar as frutas e legumes da semana, a feira livre é um ponto de encontro para muitos moradores das quebradas. Presente em diversos territórios, manter esse funcionamento depende de muitos trabalhadores que acordam cedo para abrir suas barracas e garantir a chegada de alimentos em diferentes casas. Atualmente são mais de 1 mil feiras espalhadas só na capital, o que soma mais de 70 mil empregos diretos, de acordo com a Secretaria Municipal das Subprefeituras.

Continuidade de um ciclo familiar, a primeira oportunidade de trabalho, o gosto por trabalhar com pessoas, por necessidade ou por escolha. São várias as histórias e motivações dos feirantes que percorrem a cidade com suas caixas de alimentos.

No Dia do Feirante, comemorado em 25 de agosto, trabalhadores destacam os laços criados através das feiras livres, além da geração de renda, que foi mudando ao longo dos anos. Mais atratividade e segurança nas ruas são citadas como fundamentais para que possam continuar atuando. 

Feirante desde os 13 anos, Charles Alves, 43, morador do bairro Jardim Mituzi, trabalha em Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo, e conta que a troca com as pessoas é uma experiência contínua de aprendizado e conhecimento. 

“Eu amo essa profissão. Já tentei sair, mas não consigo, me apeguei. Meu filho de 15 anos também trabalha na feira e ele gosta. Meu ex-patrão, que já faleceu, foi sempre muito importante [na minha trajetória]. Foi ele quem me ensinou tudo que sei hoje. Ver meu filho na mesma profissão me traz o sentimento de que estou ensinando a ele o caminho certo”. Charles Alves, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo.

Paulo Shigeru, 42, morador de Taboão da Serra, conta que começou a trabalhar nas feiras de Garça, no interior de São Paulo, quando era mais jovem. Sua família foi uma das primeiras a inaugurar as feiras populares da região. “A gente começou com alguns vendendo frutas, verduras e outros pastéis, mas praticamente toda minha família é de feirante”, compartilha. 

“Na feira sentimos liberdade para trabalhar e lidar com as pessoas. Nossa energia faz toda a diferença na venda. Se chegar cabisbaixo é difícil de vender. Quando possível, é legal também dar um desconto, abaixando um ou dois reais. Tudo isso aproxima a gente dos nossos clientes.” Paulo Shigeru, 42, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo.

Paulo conta que os preços dos alimentos variam dependendo do local. Na feira em que trabalha toda quarta e domingo, tem pessoas que saem de outras regiões até Taboão, por conta do valor. “Sei de duas moças que moram no Morumbi e se deslocam para cá só para comprar porque por lá os preços são bem mais altos. Aqui temos essa pegada de ser algo mais popular”.

“O mercado é muito relativo. Hoje a concorrência é grande, tem mercado, sacolão, até delivery de frutas e verduras. Sinto que é importante abrir espaço para outras oportunidades, diversificando o trabalho e por isso também faço entregas, pensando justamente em uma atuação diversificada, só que isso sem perder a essência [da rua]”. Paulo Shigeru, 42, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo. 

No Jardim São Carlos, distrito de Guaianases, zona leste de São Paulo, a feirante Letícia Batista, que é moradora de Itaim Paulista, trabalha na área há mais de 20 anos e, para ela, um dos pontos de melhoria para os trabalhadores das feiras é com relação à segurança.


“Minha família inteira trabalha na feira, desde os pequenos até os mais velhos. Isso vem desde o ventre mesmo. Fora que os amigos que a gente faz aqui também acabam se tornando família”. Letícia Batista, trabalha na feira do Jardim São Carlos, na zona leste de São Paulo. 

Letícia Batista, vende legumes variados na feira do Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo. Foto: João Santos/Desenrola.

Anitta Dourado, 51, feirante no Jardim São Carlos, reforça os desafios atuais. 

“Espero que o cenário melhore, que as coisas abaixem o preço pra gente poder voltar à movimentação que tinha antes. Antes era tão cheio que quase não tinha espaço [para circular]. Não é fácil, a gente pega chuva, pega sol, mas seguimos na luta”. Anitta Dourado, 51, é responsável pela barraca de ovos na feira de Jardim São Carlos.

Também na feira do Jardim São Carlos, a pasteleira Fabia José, 47, fala sobre as dificuldades de garantir qualidade ao consumidor e a diferença de lucro em comparação com alguns anos atrás. 

“A feira já não tem o mesmo rendimento de antes, principalmente depois da pandemia [da covid-19] e com a concorrência dos hortifrutis nos mercados. Ainda assim, eu amo o que faço. A gente passa mais tempo com o pessoal da feira do que com nossa família, criamos laços de carinho no dia a dia”. Fábia José, 47, pasteleira na feira de Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo.

Junto dela trabalha Joyce Karin que, orgulhosa, compartilha o que aprendeu na rua.“Hoje sei tratar melhor as pessoas, ouvir, acolher. Tenho um carinho enorme pela comunidade que está sempre presente, chegando para conversar e comer um pastel com caldo de cana”, diz.

“Eu até poderia ter seguido outro caminho, arrumar um serviço diferente, porque concluí os meus estudos, mas escolho estar aqui. A feira me transformou, me ensinou a ser uma pessoa melhor. Eu era muito ignorante, fechada no meu jeito, e com o tempo aprendi a mudar, a crescer como ser humano”. Joyce Karin trabalha na barraca de pastel na feira do Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo.

Cerca de 35km separam a feira do Jardim São Carlos, na zona Leste, do bairro Jardim Tiro ao Pombo, no distrito da Brasilândia, zona norte, local em que toda semana está Carlos Eduardo Bueno, 19, na barraca do morango.

“Tenho seis anos de feira, comecei [por influência da família] e desde então aprendi muita coisa. Comecei nas verduras, depois fui para os legumes e hoje estou nas frutas. Sempre tem mercadoria nova, sempre uma novidade. Sou muito grato, porque sem nossos clientes não somos nada”. Carlos Eduardo Bueno, 19, é morador do Jardim Guarani e trabalha na barraca de morango, no bairro Jardim Tiro ao Pombo, na Brasilândia, zona norte de São Paulo.

Coletividade, cooperação e pertencimento são falas e gestos comuns entre os trabalhadores das feiras e, aos fins de semana, espaço de distração para os moradores. É o que conta Gleice Kelly Rocha, que trabalha há 17 anos na feira.  

“Domingo, principalmente, é o dia de tomar aquele caldinho de cana e comer um pastelzinho. É o dia do povo. É o momento de se distrair. Apesar dos desafios do dia a dia [e de passar quase 24 horas juntos] a gente se entende e se respeita muito. Vamos revezando e sempre pensando em não deixar [a barraca] parar.” Gleice Kelly Rocha, moradora do bairro Casa Verde e dona de barraca de caldo de cana na feira do bairro Jardim Maria Luiza, no Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo.

“Não podemos continuar sendo colocados na esteira para morrer primeiro”: Lideranças defendem adaptação climática com pessoas e territórios no centro do debate

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O debate acerca das mudanças climáticas tem ganhado cada vez mais força nos espaços acadêmicos, políticos, sociais e culturais, mas ainda encontra resistência, sobretudo, por parte de países do Norte Global, que negam o reconhecimento da escalada da crise climática e sua responsabilidade histórica. 

A criação de uma agenda socioambiental com foco na atuação do Brasil e outros países da América Latina, foi um dos destaques do Fórum Movimentos Pela Regeneração – Em Direção à COP30, realizado entre os dias 07 a 10 de agosto, no Sesc Pinheiros. Através de debates, oficinas e vivências o público pôde refletir sobre a necessidade de conservação da biodiversidade por meio de processos regenerativos. 

Práticas educacionais, de sustentabilidade e artísticas foram centrais ao longo do Fórum, que promoveu encontros entre especialistas e lideranças, como Cristiane Takuá, Naine Terena, André Baniwa e Thaynah Gutierrez.

No Brasil, os impactos da crise climática variam conforme as características de cada bioma e atinge diretamente comunidades tradicionais, favelas, periferias e territórios urbanos de maneiras distintas. 

Mata Atlântica

A artesã, teórica decolonial, ativista, educadora e pesquisadora indígena, Cristiane Takuá, afirma que, historicamente, as comunidades tradicionais são as primeiras a sentir os efeitos da crise ambiental. “De modo geral, nós que somos povos da Mata Atlântica, tanto Maxakalí, Guarani, Krenak, temos sentido profundamente esse impacto há mais de 500 anos, ou seja, desde o início da colonização, quando a Mata Atlântica foi invadida”. 

Cristine é da etnia Maxakali e moradora da Terra Indígena Ribeirão Silveira, que fica entre Bertioga e São Sebastião, litoral norte de São Paulo, e conta que o desmatamento é outro fator que potencializa os impactos na Mata Atlântica. Apesar de compartilharem a tarefa de regulação e equilíbrio climático do bioma, os seres vegetais e animais frequentemente são esquecidos. “Ainda hoje sentimos isso de forma profunda no próprio território que nos cerca, nos rios soterrados, nas terras perfuradas pela mineração e pelo agronegócio que segue rompendo barreiras escancaradamente e sem pedir licença, porque dinheiro não pede licença, ele compra, ele paga”, coloca.

A educadora, que vive, pensa e produz a partir do seu território, valoriza os saberes ancestrais como tecnologias de mitigação e regeneração essenciais para o enfrentamento coletivo da crise. “No mundo de hoje, onde as inteligências artificiais imperam, tenho refletido muito sobre as inteligências naturais. Aquelas que nossos avós sempre dominaram. E é justamente por isso que venho questionando o modelo escolar tradicional [com suas limitações], já que o processo educativo atual é baseado em dados rígidos”, diz ao citar sobre o papel da educação no cenário ambiental. 

Ela destaca que é preciso resistir à escalada da degradação ambiental e que a luta por justiça climática é inseparável da luta pela garantia de vida que resta nos territórios e às comunidades. Nesse sentido, Cristiane é coordenadora da iniciativa Escolas Vivas, projeto que promove diálogos acerca dos saberes e práticas dos povos tradicionais, apoiando ações locais com o objetivo de, através da educação, fomentar essa conscientização. As escolas vivas têm servido como um importante instrumento de denúncia, mobilização e resistência contra o sistema hegemônico e colonizador. 

“Há muitos anos tenho me dedicado a isso e é muito triste assistir tanta destruição. [Inclusive], por conta das Escolas Vivas, caminho por territórios devastados pela mineração, onde não há mais rio limpo nem floresta de pé, e as crianças não podem viver em paz. Como podem homens de poder aprovar leis [como a PL da Devastação] que estupram o direito à vida? Isso é um estupro. Quando digo que o útero da Terra está ferido, é porque esse estupro vem de muitos anos”, afirma.

“Se nos reconectarmos com as tecnologias naturais, talvez o mundo tenha a possibilidade de se regenerar e de se reconstituir. Esperançar é um verbo que deve ser conjugado por todos, mas precisamos buscar a semeadura dentro das nossas palavras e dentro das nossas ações”. Cristiane Takuá, artesã, teórica decolonial, ativista, educadora e pesquisadora indígena. 

Ela enfatiza que a luta dos povos indígenas é para que todas as formas de vida possam coexistir em harmonia. “Não é uma luta apenas para nós, humanos”, e ressalta que as tecnologias naturais e ancestrais são as principais respostas às emergências climáticas. “São elas que podem contribuir para enfrentar o que vivemos hoje nesse mundo climático em chamas, porque conseguem acessar camadas mais profundas da sustentabilidade”.

Pantanal

Presente majoritariamente nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Pantanal, o avanço do desmatamento tem aumentado rapidamente. A pesquisadora e ativista Naine Terena, aponta que o bioma possui características próprias. “Uma seca drástica no Pantanal muda totalmente os processos de plantio e colheita, assim como as queimadas no Cerrado, que impossibilitam que o solo também se regenere”.  

Naine Terena, pesquisadora e ativista.

A gestão das águas, o aterramento, a seca de rios e a poluição são afetados pelo avanço de empreendimentos que utilizam insumos agrícolas tóxicos, como aponta Naine. O empobrecimento do solo e a redução das chuvas também têm comprometido diretamente o ciclo do plantio. Nos estados da região, há forte influência do agronegócio, principal dificultador da luta pela preservação do bioma. Demarcação de terras, criação de leis e legislações, são formas institucionais para a preservação do território, cita Naine. 

O Estado do Mato Grosso do Sul, uns dos territórios tradicionais do povo Terena, depende do Aquífero Guarani, uma das principais reservas de água, cuja degradação ameaça o abastecimento e a sobrevivência das comunidades locais. Para frear esses impactos, a pesquisadora conta que o povo Terena pensa o Bem-Viver como um caminho de resistência e preservação. 

“Embora não possa falar por todo o povo Terena, pois as demandas são múltiplas, a participação ativa política e social, como do movimento de mulheres terenas, têm incidido sobre pautas fundamentais para o movimento indígena, buscando fortalecer o bem-viver e preservar os modos de vida tradicionais”. Naine Terena, arte-educadora, doutora em educação e professora.

Diversos grupos indígenas têm buscado representação direta nas articulações da COP 30, mas Naine conta que ainda precisam avançar para além das estruturas formais que já existem dentro da conferência. “[Somos] base do Conselho Terena e do grupo de mulheres terenas, seguindo orientações do movimento indígena para que a gente possa prospectar apoiadores e pensar em políticas públicas de fortalecimento, que sobretudo mantenham ritmos e fluxos de vida”, compartilha. 

Além da defesa dos modos de vida nos territórios, articulam diversas manifestações e movimentos de conscientização sobre o que é o agronegócio. “O estudo que vem sendo feito traz muitos embates contra as leis e todas as formas de proposições que tentam afrouxar a legislação ambiental do país, e é basicamente sobre isso que temos atuado, tanto juridicamente quanto pelas políticas públicas”, conta. 

Floresta Amazônica

Um dos indicadores das mudanças climáticas no bioma amazônico é a água, que de acordo com o professor, pesquisador e ativista André Baniwa, é fundamental para a manutenção da terra e continuidade das aldeias indígenas. A falta d’água facilita as queimadas da Amazônia e agrava a seca prolongada, que afeta diretamente quem vive e depende da floresta. 

Já o excesso de chuvas provoca alagamentos e destrói as roças, o que dificulta a manutenção do sistema alimentar. A seca extrema causa fome, tanto para as pessoas, quanto para os animais. “Antes, isso não acontecia. Períodos de floração, colheita e plantio também mudaram drasticamente. Até o horário de ir para a roça mudou: se antes era por volta das 8h ou 9h, agora é preciso começar às 5h da manhã, porque o calor fica insuportável até as 9h, e o trabalho só pode ser retomado no fim da tarde”, exemplifica.

“O sumiço da água no bioma faz a terra secar. A água é um ser, um espírito, e está fugindo. Ela reaparece nas chuvas, em abundância, como se dissesse: ‘Eu estou aqui, me perceba’. Isso aparece em várias mitologias e histórias de criação”. André Baniwa, professor, pesquisador e consultor em Medicinas Indígenas.

A situação traz ainda reflexos na saúde pública. André, que é consultor técnico da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, diz que o impacto das mudanças climáticas afetam, primeiramente, a saúde mental dos povos indígenas, que precisam lidar com as incertezas do futuro. Doenças como HIV/Aids, tuberculose, malária, entre outras, são exemplos crescentes nos territórios indígenas da Amazônia. 

“A primeira coisa que afeta a vida das pessoas é o pensamento e o coração. Elas passam a se questionar: como é que vou viver dali para frente? Os jovens crescem ouvindo, desde a infância, que o mundo vai acabar. Dessa forma, como é que você se questiona sobre o objetivo de estar presente no mundo? Como ter coragem de casar, ter filhos, pensar no futuro?”, questiona o pesquisador.

Na cultura do povo Baniwa, o Bem Viver é uma prática que envolve ações na convivência com amigos, família e comunidade. Diferente do termo Bem-Estar, antes usado com cautela por pressões externas, a ideia de Bem Viver é adotado por 123 povos indígenas do Rio Negro e por todo o Brasil como um conceito essencial de vida. Para os Baniwa, esse entendimento deve influenciar na formulação de políticas públicas.

André destaca que, na contramão da lógica da crise climática, os Baniwa constroem ações sustentáveis, tendo como ponto de partida a valorização das relações, por meio da oralidade e da vida em comunidade. 

Segundo ele, as práticas refletem no cuidado com a terra, no uso equilibrado dos recursos e no fortalecimento comunitário. “Para nós, povo Baniwa, o Bem Viver e o cuidado com a natureza começam a partir da reflexão, seja pela oralidade diária, pelas trocas com a família, com os amigos e com a comunidade, para que possamos nos realizar bem. É nosso conceito próprio de vida”, compartilha.

Acúmulo de desigualdades

Entender a adaptação climática como caminho para proteger os territórios passa pelo reconhecimento das desigualdades acumulativas, é o que afirma a pesquisadora, ativista e ambientalista Thaynah Gutierrez. Nesse sentido, adaptação climática é uma forma de tratar dessas desigualdades que deixam certas populações mais vulneráveis. 

“Por muito tempo a agenda priorizou a mitigação, que controla as emissões de gases que elevam a temperatura. Mas como não foi possível evitar o aumento, tornou-se urgente a adaptação para evitar mortes nos extremos climáticos”, pontua a pesquisadora.

Ela coloca que o impacto climático nas periferias e quilombos urbanos surge como uma cadeia de devastação ambiental. Áreas preservadas, que equilibram o clima, quando afetadas por grandes projetos, criam um efeito dominó que atinge os mais vulneráveis. “Periferias não recebem diretamente os projetos, mas sofrem seus impactos indiretos que aumentam a vulnerabilidade a desastres”, destaca. 

A participação em espaços de debate e negociações climáticas é um passo importante, mas Thaynah afirma que a presença dos grupos mais afetados ainda é limitada por barreiras diplomáticas, como o idioma. “Na pré-conferência que aconteceu em Bonn, na Alemanha, pela primeira vez, conseguimos inserir as populações afrodescendentes em dois textos de negociação, graças à articulação do movimento negro brasileiro. Isso também reforça o reconhecimento das periferias, onde vive a maior parte da população negra urbana do país”, analisa.

“Quem é preto, pobre e marginalizado não pode continuar sendo colocado na esteira para morrer primeiro. É preciso cobrar dos governadores respostas que não [sejam só] emergenciais, mas obrigatórias diante do avanço climático” – Thaynah Gutierrez, administradora pública, ativista ambiental e pesquisadora sobre periferias e justiça climática.

Thaynah destaca que a questão prioritária para a população preta e periférica segue sendo a regularização fundiária. “O que a população mais sofre nas periferias são as ilhas de calor, porque vivemos mal em cômodos de 20, 30 metros quadrados, com 5, 6 pessoas, em infraestruturas precárias, em espaços que não foram feitos para moradia, mas que as pessoas ocuparam por necessidade do direito de morar”, aponta. 

Em cidades como São Paulo, as periferias estão sendo abertas para a especulação imobiliária, com grandes empreendimentos que não são para quem precisa, mas para quem vem de fora morar, aponta. “Enquanto isso, a população em situação de rua só cresce. Isso não corrige o problema”.

Segundo ela, o significado de sustentabilidade precisa ser corrigido, junto com a construção de moradias resilientes, para que não ocorram mais situações como a do Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo, que ficou inundado enquanto o Poder Público criminaliza a periferia pelo direito de morar. 

“Eles escolheram negligenciar o território para depois dizer que não mandaram as pessoas morarem lá. Ninguém escolhe ir para debaixo da ponte, a pobreza extrema e a dificuldade de morar em São Paulo que empurram as pessoas para essas condições”, afirma ao citar sobre o combate às desigualdades para se falar em direito à moradia e a construção de um ambiente equilibrado e saudável para as pessoas viverem.


Duplicação da M’Boi Mirim: uma promessa política que atravessou uma década

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Recentemente, a duplicação da M’Boi Mirim tem sido alvo de novos debates, angústias e promessas. Na última eleição, em 2024, tanto o atual prefeito Ricardo Nunes quanto os demais candidatos falaram sobre essa pauta, especialmente Guilherme Boulos, que ocupava um lugar acirrado nas pesquisas de intenção de voto em relação a Ricardo.

Contudo, esse é um pedido recente da população?

Na verdade, a promessa de realização da duplicação já atravessou diferentes governos, sendo anterior às lutas da população com o Movimento Passe Livre, por exemplo. Quando tivemos as mobilizações pelo Hospital do M’Boi Mirim (que inicialmente seria construído no Guarapiranga, mas, com a pressão popular, foi possível alterar essa decisão), a duplicação já estava em pauta.

Em 2012, no governo de Kassab, tivemos mobilizações ativas da população pela duplicação da M’Boi Mirim e, apesar da pressão ativa e popular, não conseguimos enxergar uma luz no fim desse túnel de promessas.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul. Essa foto é do dia que alguns integrantes do movimento foram dormir na Associação que meu pai preside. Nesse dia estávamos organizando um ato. Foto de arquivo pessoal.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul. Irei deixar uma foto do dia em que alguns integrantes do movimento vieram dormir na associação que meu pai preside. Essa foto é de um dia em que estávamos organizando um ato. Foto de arquivo pessoal.

Em 2013, Haddad assumiu a Prefeitura do Estado de São Paulo. Tínhamos nele uma enorme esperança em relação a diversos encaminhamentos para a Zona Sul de São Paulo e, apesar dos registros no Plano de Metas de 2013 a 2016, nas reuniões não obtivemos respostas concretas em relação a essa reivindicação.

A “duplicação” realizada por ele foi somente a referente à ponte do Jardim Capela, uma obra pequena e que deveria ter tido continuidade por toda a extensão da avenida.

Estamos, então, realizando o aniversário de debutante dessa obra que nunca começa e que parece ser uma forma infinita de conseguir votos. Hoje, com meu pouco conhecimento na área de mobilidade urbana, sei que realizar uma duplicação não sanaria o problema que temos, pelo menos não por completo. O debate de mobilidade precisa ser realizado com profundidade, mas esse não é o foco do texto.

Todavia, o debate desse texto não é esse, e sim o uso constante de uma reivindicação popular para conseguir votos. Na última eleição, Ricardo Nunes citou a duplicação diversas vezes, porém, precisa ser uma informação de cunho público que ele não a incluiu no Plano de Metas de seu governo. Era uma promessa eleitoreira!

A promessa fez aniversário 

Assim, a duplicação do M’Boi Mirim já completou diversos aniversários. Poderíamos até realizar uma festa de debutante para ela. Uma reivindicação popular que tem um papel importante na mobilidade do território, que é utilizada para alcançar votação na região, porém jamais realizada.

Todas as semanas, em algum dos dias, muitos de nós temos que descer dos ônibus e caminhar para chegarmos em casa. Essa é uma realidade vigente desde a minha infância. Eu me lembro de caminhar do Jardim Ângela até em casa em diferentes fases da minha vida. Recordo das diversas vezes que cheguei atrasada em compromissos importantes ou no trabalho por passar 40 minutos parada somente no trajeto do Jardim Vera Cruz até a ponte.

Em uma cidade como São Paulo, beira ao absurdo pensar na população sendo exposta a esse tipo de realidade. Apesar das constantes propagandas que o governo faz, a São Paulo verdadeira para, não é rápida e não tem um planejamento efetivo para a população.

A juventude da região, que precisa trabalhar e estudar na região central da cidade, vive com a esperança de sair da região, não pelo ódio ao território, e sim pela exposição a condições precárias de mobilidade e transporte público. Não estamos falando de uma região pequena da cidade. O distrito do Jardim Ângela tem 311.432 habitantes (2022). Já a Zona Sul possui a maior concentração populacional da cidade: são 2,7 milhões de habitantes.

Se a obra já não será mais realizada, onde estão os recursos que foram destinados a ela? Além disso, quais outras alternativas a prefeitura tem pensado para a mobilidade na região?

Ricardo Nunes sempre se orgulha das suas economias, mas economizar sem investir na cidade e deixá-la sucumbir não é economia, é uma política que não pensa no trabalhador.

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Frente Periférica por Direitos promove ciclo de encontros para aproximar o debate climático nos territórios   

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Há poucos meses da COP 30 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), marcada para novembro em Belém, capital do Pará, desde setembro de 2025, encontros da Periferias Pelo Clima reúnem coletivos, moradores e lideranças comunitárias para debater sobre clima e meio ambiente. A partir dessa movimentação, a ideia é construir uma carta-manifesto que traduza os impactos reais da crise climática nos territórios. 

Organizada pela Frente Periférica por Direitos, a ação já circulou em diferentes regiões de São Paulo, com a discussão sobre quem são as pessoas mais impactadas pelos eventos climáticos. “É essa ponta mais fraca que não está presente nas grandes mesas de negociação, como os espaços da COP que são voltados à diplomatas”, coloca Jailson Lara, ativista, educador popular e coordenador da Casa Ecoativa, espaço localizado na Ilha do Bororé, no Grajaú, zona sul da cidade

“A nossa proposta é fazer da carta uma ferramenta de pressão e incidência, antes, durante e depois da conferência. E essa carta não é só para a COP 30. Ela vai continuar repercutindo nos territórios”, diz.

O objetivo é ouvir as comunidades sobre os principais problemas climáticos que afetam seu dia a dia, como o calor extremo, acúmulo de lixo, alagamentos e enchentes, poluição do ar, falta d ‘água, etc. Os encontros são abertos a moradores e atores locais, convidados através das redes e grupos comunitários.

Nos encontros, a comunidade levanta as demandas e temas a serem discutidos coletivamente para que a carta-manifesto reflita as reais necessidades da população e sirva como mecanismo de pressão aos governantes.

Rádio Cantareira, Casa Ecoativa, Espaço Alavanca e Ocupação Jardim Gaivotas são exemplos de iniciativas que participam dessa ação junto com a Frente Periférica por Direitos. Os encontros são abertos e gratuitos a todos que desejam somar na luta. A programação de cada encontro inclui momento de escuta com a comunidade, rodas de conversa e seminários sobre direitos, justiça socioambiental e enfrentamento às mudanças climáticas. Também realizam mutirões, atividades com colagem de cartazes artísticos, visitas a produtores orgânicos e articulação com cozinhas solidárias. 

A educadora Fernanda Naxara, da Frente Periférica por Direitos, diz que os encontros buscam empoderar a população para que protagonizem o debate. “A ideia é que a população traga [os problemas] e que a gente trabalhe nos nossos encontros. Nós sabemos quais questões vão aparecer, mas a proposta é ouvir mesmo as pessoas que estão na ponta”.

Ela conta que a Frente atua com coletivos, a partir da perspectiva de que o cuidado e atenção com os territórios periféricos, não é o mesmo que o Estado tem com outras regiões de áreas centrais. “Inclusive o manejo das árvores é sempre a periferia pela periferia”, afirma.

“É fundamental reconhecer que as periferias estão criando tecnologias nas bordas como resposta à emergência climática. Senão, a COP [continua sendo] um espaço esvaziado, com diplomatas, pessoas brancas, em geral homens, decidindo o futuro de uma população diversa”. Jaison Lara, articulador, educador popular e coordenador da Casa Ecoativa, na Ilha do Bororé, no Grajaú, zona sul de São Paulo.

Jaison diz que falta diversidade de narrativas em conferências de negociações como a COP, e que eventos institucionais como esse, não fazem parte do imaginário da maioria das pessoas nas periferias, mesmo vivenciado os impactos no cotidiano.

“Aquele jovem que sai da viela e vê um bueiro aberto, vê a bola cair no esgoto passando na frente da casa, é quem realmente se preocupa se vai fazer muito calor e esquentar demais [sua casa], se vai chover muito, porque vai entrar água por todos os lados”, analisa. Ele também afirma que as periferias produzem tecnologias e soluções que contribuem no combate à crise climática.

Jaison ainda destaca que não é de hoje que realizam atividades educativas com as crianças e adolescentes, promovendo passeios pelos bairros para evidenciar as contradições e o descaso do poder público com a infraestrutura local. A partir destas experiências, o grupo também quer fortalecer os diálogos pré-COP 30. 

A carta-manifesto também busca reconhecer os saberes quilombola, indígena, de povos tradicionais e periféricos na mitigação da crise climática, além de ocupar espaços de tomada de decisão. “A ideia é que a nossa mobilização consiga ultrapassar as barreiras da política institucional e criar pontes diretas com a base. A política institucional ainda é muito difícil, muito partidária, mas nós somos seres políticos. Política está em todas as esferas da vida”, aponta. 

“Nosso front é a comunidade: conversar com famílias, com crianças e adolescentes. A Casa Ecoativa, por exemplo, já tem uma atuação muito forte de trabalho de base. A gente acredita que o trabalho no território, muitas vezes, repercute mais do que congressos [internacionais] com a mesma galera de sempre, mas, agora, estar neste espaço [é importante]”. Jaison Lara, articulador, educador popular e coordenador da Casa Ecoativa, na Ilha do Bororé, no Grajaú, zona sul de São Paulo.

A educadora enfatiza que os problemas enfrentados pelas quebradas precisam ser colocados pela lente de quem nela vive. “Quando se fala de meio ambiente, parece que é só uma falta da classe média, quando quem sofre mais com as mazelas da mudança climática é a periferia, que sofre com enchentes, com as ilhas de calor, a questão de deslizamento, etc”.

Ações como a da Frente, somam esforços diante dos interesses de grandes grupos, como no caso do crime ambiental causado pela Braskem, em bairros de Maceió, com o afundamento do solo. “Existe a pressão do lobby, e nós precisamos garantir a pressão popular. No caso da Braskem, há inúmeras pessoas hoje em depressão, e inclusive, um alto índice de suicídio, pois muitas famílias não tiveram dinheiro para processar. Quem teve condições de entrar na justiça, ganhou o processo e foi ressarcido, mas a maioria perdeu suas casas e ficou por isso mesmo”, exemplifica Fernanda.

Ela reforça a importância de falar sobre meio ambiente em diferentes perspectivas. “Muitos pensam só na Amazônia ou em abraçar árvores, mas é também o que acontece, por exemplo, aqui na Rua Aurora, com os flutuantes que transbordam lixo”, e ressalta que, “é muito difícil, porém, estamos nos movimentando”.

Confira os próximos encontros Periferias Pelo Clima: 

15 de agosto, às 9h – Leste
Galpão ZL – Rede de Inovação
Rua Serra da Juruoca, 112 – Jardim Lapenna

15 de agosto, às 19h – Centro
Teatro de Contêiner Mungunzá
Rua dos Gusmões, 43 – Santa Ifigênia

16 de agosto – Leste
São Mateus – Incinerador (horário a definir)

17 de agosto, às 15h – Sul
Seminário
Rua Maramores, 36 – Jardim São Savério

23 de agosto, às 14h – Norte
Rádio Cantareira
Rua Jorge Pires Ramalho, 71 – Vila Isabel

29 de agosto – o dia todo – Sul
Seminário
Parque Aristocrata

13 de setembro, às 9h – Norte
Seminário Céu Freguesia do Ó
Rua Crespo de Carvalho, 71 – Freguesia do Ó

20 de setembro, às 9h – Centro
Encontro das Periferias (local a definir)

Mais detalhes na página da Frente Periférica por Direitos

Estudar deixou de compensar?

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Tem um tempo, ainda este ano, que eu estava assistindo ao Jornal da Cultura com meu pai e passou uma reportagem dizendo que estavam sobrando vagas no ProUni. Lembro que ele ficou completamente chocado com essa informação:

“Como assim os jovens estão tendo a oportunidade de estudar e não estão aproveitando?”

Algumas semanas depois, soube que as inscrições para o ENEM haviam sido prorrogadas pelo governo federal por baixa adesão dos estudantes. Também acompanhei todo o reboliço que se deu quando a influenciadora Virginia foi depor na “CPI dos Bets”.

Nesse caso, me chamou a atenção o fato de a moça em questão ser a maior influenciadora do país. E eu fiquei me perguntando: influenciadora que influencia no quê, exatamente?

Claro que todos nós queremos, vez ou outra, escapar da nossa realidade — principalmente quando viemos de baixo e não temos tudo como deveríamos. Mas fiquei refletindo: por que não é uma pessoa que estuda e incentiva os outros a estudar que influencia milhões de brasileiros? Pelo contrário, o que se vende é uma vida fácil, principalmente por meio dos jogos de azar.

Moro na periferia de Itapecerica da Serra e, dentro das linhas de ônibus que mais costumo pegar, já vi mais de uma vez pessoas jogando no tigrinho enquanto voltavam pra casa. E vamos ser realistas — até porque o Mano Brown já cantava isso desde quando eu era bebê: “O sonho de todo pobre é ser rico.” Ponto.

Aí a gente chega num fato: ninguém que nasce na pobreza, ninguém que vem de um bairro que falta até saneamento básico quer morrer assim. Todo mundo quer, e tem total legitimidade pra isso, melhorar sua realidade, sua vida e a de sua família. O problema é quando os caminhos pra alcançar isso são vendidos apenas como os mais fáceis.

E olha só: estudar compensa, sim. No Brasil, trabalhadores com ensino superior ganham mais que o dobro daqueles com menor escolaridade, segundo pesquisa de 2024 da FGV. E vai muito além disso.

O grandioso poeta Sérgio Vaz tem uma frase que acho fenomenal:

“Vida loka é quem estuda.”

O lema de ser vida loka é muito comum nas quebradas, e não precisa ser só um vulgo pra quem tá sempre tirando um lazer por aí. Quando se vive em uma sociedade na qual os mais pobres, as mulheres e a população negra foram, por anos, impedidos de estudar, pegar um diploma é uma vitória coletiva.

Na minha família mesmo, meus pais só concluíram o ensino médio graças ao importante programa de Educação para Jovens e Adultos, EJA, porque, com 13 anos, pararam de estudar para trabalhar.

Graças a muita luta coletiva, o Jardim Ângela vai ganhar um Instituto Federal. E isso significa muito! Um território que já foi considerado um dos mais violentos do mundo pela ONU vai receber uma instituição pública que também oferece ensino superior.

Pra quem sempre precisou sair de Santo Amaro até lá pra conseguir um diploma desses, parece loucura. Ei truta, eu tô louco, eu tô vendo miragem: um IF bem em frente à favela é viagem.
(Quem pegou a referência, pegou.)

Mas não adianta a gente ter um IF na quebrada se, quando ele estiver pronto, a quebrada só o ocupar pra exercer funções de trabalho lá dentro. Queremos os jovens do Ângela, Capão, Vera, Horizonte, de Itap City e dos demais territórios vizinhos ocupando as cadeiras como estudantes.

Porque estudar nos desenvolve como seres humanos. Porque o estudo nos confere dignidade. Abre portas. Nos permite ocupar locais que a gente achava que nem podia entrar.

Lembro até hoje do meu primeiro estágio remunerado, já como estudante universitária. A minha avó materna sempre trabalhou como diarista e, quando fui contar pra ela onde era meu novo trabalho, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, ela me disse que trabalhou muito tempo lá.

Caramba… Eu estava indo trabalhar em um escritório no mesmo bairro onde, anos antes, minha avó limpava casas de pessoas com condições financeiras ridiculamente diferentes das dela.

Porque, no fim, o estudo nos permite isso:

Dar novos rumos à história da nossa família.

Não é algo só pra enriquecer nosso bolso, embora isso também venha, eventualmente. Mas é pra enriquecer nosso espírito. Nos tornar pessoas melhores. Pra enxergar o mundo além de nós mesmos.

Se você que tá lendo esse texto é um jovem de quebrada:
não caia no conto de influencer de Instagram, que tem uma vida completamente diferente das milhões de pessoas que a acompanham.

Hoje, eu sou bolsista de mestrado e recebo mais de um salário mínimo pra poder me dedicar à pesquisa. Já pensou em viver essa possibilidade?

Já ouvi de colegas meus daqui que precisavam de certificados do Ensino Médio só pra poder se candidatar a funções que pagavam mais. Uma vez, estava lendo um livro na fatídica viagem da linha 513 e um rapaz que sentou ao meu lado puxou assunto porque ele estava fazendo faculdade de Economia e, conversando, contava feliz que, pela primeira vez, tinha conseguido um trabalho em escritório graças ao curso.

Quando muitos colegas meus precisam enfrentar a absurda escala 6×1, horários de trabalho abusivos (pra alimentar os filhos) e quase não folgam de fim de semana, o ensino superior sempre me permitiu trabalhar de segunda a sexta.

Nossas vitórias podem não ser iguais às da Virgínia, mas elas existem. Vamos subindo os degraus de acordo com nosso ponto de partida. Vamos encarar a nossa realidade. Devemos sempre, sim, lutar por nossa melhora, mas colocando os pés no chão. Vamos ser os vidas lokas que estudam.

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Nas periferias, pais buscam romper ciclos de ausência com presença e cuidado

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“Tive um pai muito bacana e presente. Meus tios também foram e são referências que carrego comigo. Sempre tive estes bons exemplos para me inspirar como pai’’. Essas são algumas das memórias paternas do educador Leonardo Cordeiro, 37, que cresceu em uma estrutura familiar, que além da figura da mãe, também teve um pai afetuoso e participativo. 

Multiartista, morador do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, ele é pai do pequeno Luan, de 2 anos, e conta que sempre quis viver esse momento. Ao descobrir que seria pai, Leonardo passou a entender, na prática, a paternidade como lugar de presença, compromisso, escuta ativa e cuidado. 

“Quando adolescente, via muitos amigos meus que tinham pais ausentes. Aquele pai que fica o dia todo no bar e mal consegue conversar ou trocar com os filhos. Era estranho pra mim, pois meu pai era muito presente e envolvido com a família. Naquele tempo, achava que era diferente, mas depois entendi que era raro ter um pai como o meu. Muitos amigos tinham pais presentes só fisicamente, mas emocionalmente ausentes. Tudo recaía sobre a mãe”, conta ao relembrar sobre a construção da paternidade ao longo da sua vida e o cuidado que, em geral, é delegado às mulheres.  

Um homem atento à rotina da casa e que dava conta das tarefas domésticas não era algo novo para ele. “[Meu pai] era um cara romântico, parceiro, me ensinava até mesmo coisas simples, como limpar o vaso depois de usar para o próximo utilizar. Ou seja, sempre nos ensinou sobre senso de cuidado com o coletivo”, recorda.

Antônio Cordeiro, pai do educador, deixou aprendizados sobre amor, coragem e presença. Após seu falecimento, o desejo de Leonardo pela paternidade persistiu. “Quando minha ex companheira me contou da gravidez, já me coloquei totalmente disponível. Fomos morar juntos, participei de tudo, pois se sobre a mãe recaem obrigações durante a gestação, eu também tinha [as mesmas obrigações]. Se ela iria faltar no trabalho para ir a consulta, eu também faltaria. Encarava como ‘nós estamos grávidos. É nosso filho, nosso compromisso’”.

Atualmente, Leonardo e a mãe do Luan seguem juntos apenas enquanto parceiros na criação do pequeno. A dinâmica de não morar mais na mesma casa que o filho, trouxe mudanças nesse cotidiano. “Ficar longe do Luan me jogou em uma depressão profunda. A sociedade reforça a figura da mãe solo como vulnerável, e mesmo eu querendo ser presente, muita gente prefere me colocar no padrão do pai ausente, do cara que some”, coloca.

Leonardo conta que buscou meios de estar mais presente na vida do filho, com a possibilidade de guarda alternada e um arranjo mais igualitário na convivência e tarefas. Judicialmente foi determinado que o pequeno deveria ficar com a mãe, considerando o mais adequado para garantir estabilidade e cuidado durante a primeira infância. Para ele, o formato não é melhor, pensando na dinâmica de demandas e convívio.

Léo fica com o filho uma vez por semana, e a cada 15 dias tem mais tempo juntos. “Pra mim isso é pouco. Me sinto uma visita. E é injusto, pois tenho disposição real para dividir os cuidados. Sinto muito em parecer uma visita frequente para o meu próprio filho”, compartilha ao contar sobre a nova rotina.

“Quis muito ser um pai presente e tenho que lidar com uma nova realidade [que é difícil de aceitar]. A depressão que passei foi difícil de reconhecer. Tive muitos pensamentos suicidas e o que me segurou foi pensar: ‘Quero ver o Luan mais uma vez.’ Só isso. A saudade de ouvir a voz dele de novo, foi esse pensamento que me manteve vivo.”

Essa relação com o filho, também ampliou a percepção do multiartista com suas sobrinhas. “Me questionei muito o porquê dos pais das meninas acharem que é suficiente visitar de vez em quando. Um deles, por escolha própria, sequer aparece”. Léo busca estar presente também nesse convívio com as sobrinhas, que nomeia como uma paternidade afetiva. ‘‘Fico feliz por essa troca, mas não é uma felicidade plena. A ausência que o pai delas faz, só elas vão saber o tamanho disso um dia”, reflete.

“Criando um menino e duas meninas, vejo as diferentes camadas disso tudo (paternidade). As formas de se relacionar, de conversar, de acolher. Mais do que dar conselhos ou resolver problemas, é estar presente. Perguntar como estão, ouvir, abraçar, [estar] na rotina, no convívio.” Leonardo Cordeiro, multiartista e pai do Luan, de 2 anos.  

Terapia, leituras e estudos sobre paternidade foi um caminho que escolheu para desenvolver seu repertório na criação do Luan. “Foi aí que descobri muita coisa, inclusive sobre quem era meu pai dentro de tudo isso. No meio desse processo também participei [de atividades como: acompanhamento pré-natal, cursos de preparação para o parto, acolhimento emocional para pais e mães, oficinas e grupos de apoio à amamentação], na Casa Ângela, que foi onde o Luan nasceu. Lá, oferecem formação em paternidade e maternidade. Isso é muito importante. Tudo me deu base para pensar como eu queria ser pai e como eu queria amar também’’, compartilha.

Para o educador, trocar sobre afeto e cuidado na periferia, em algumas redes, ainda é desafiador. “No meu território, aprender a mostrar afeto foi uma construção. A maioria dos caras daqui, da periferia, não tinha esse lugar de falar o que sente um para o outro. Mas eu tive sorte. Alguns dos meus amigos eram diferentes. A gente se falava mesmo: ‘te amo, se cuida, foi da hora conversar com você’. E isso era genuíno.”

“O Luan é agitado, esperto e muito musical. A gente passa muito tempo junto em torno da música. Eu toco alguns instrumentos, então ele aprendeu a brincar com isso. Ele já tem gosto musical: todo sábado ou domingo de manhã ele pede pra ouvir Jorge Ben.”  Leonardo Cordeiro, multiartista e pai do Luan, de 2 anos.  

Criar memórias positivas com o Luan é parte dos desejos futuros do Léo. “Quando estou com ele no colo, balançando para dormir, lembro do meu pai fazendo isso comigo, lembro dele me ninando. São camadas de afeto que a gente vai construindo de um jeito nosso”, diz sobre o pequeno ainda não entender muitas coisas, mas entender o afeto.

Para o futuro, o educador espera que a construção que tem feito hoje, seja lembrada pelo Luan. “Se um dia você ler isso, espero que esteja feliz, realizando seus sonhos, saudável e inteiro. Que eu e sua mãe consigamos te dar tudo o que precisa para ser você mesmo. Quero te ver feliz, te potencializar. Dizer que te amo parece pouco perto do que sinto, mas é a palavra mais próxima que eu conheço: Por isso, eu te amo muito e sempre.”

Construção da paternidade

Diferente da experiência do Leonardo, a paternidade nunca foi um desejo concreto para Rene Rodrigues, 31, pai da Heloá, de 8 anos. O morador de Guarulhos, São Paulo, acreditava que gestar uma criança estava associado apenas às mulheres cis, pensamento que mudou com a chegada da filha.

Dentro de casa, Rene teve um pai presente que foi exemplo de companheirismo e cuidado, mas para ele, o processo de se reconhecer enquanto pai passou por outros entendimentos com relação a sua vivência trans. 

“Nunca me imaginei gestando, mas aconteceu. A descoberta foi surpresa para todo mundo, inclusive para mim. Só que em nenhum momento passou pela [minha] cabeça não dar continuidade. Ela [Heloá] se tornou a coisa mais importante da minha vida. Às vezes até me pego refletindo [por que nunca quis ou pensei em ter um filho]”, divide.

“Naquele momento, não tinha muito entendimento [sobre a gestação]. Não me via gestando um ser humano. Não fazia sentido para mim. Hoje entendo que este era um pensamento machista, mesmo sem perceber. Nós, homens trans, precisamos entender que a gente tem diferenças, porém, existem homens que gestam sim.” Rene Rodrigues, 31, pai da Heloá, de 8 anos.

Com o nascimento de Heloá, ele precisou lidar com vulnerabilidades e com a realidade de uma sociedade que ainda coloca pessoas trans em situações de violência em que não se sentem dignas de amor e cuidado. “Quando eu tive ela, nem pensava muito sobre [como seria criar uma criança], a única coisa que eu pensava era se ela iria me amar”, compartilha ao falar dos questionamentos que já fez a si mesmo sobre as trocas com Heloá. “Ela já está com oito anos, mas [confesso que] até hoje me preocupo”.

Sobre a relação que cultivam, todos os dias, destaca: “Ela é muito amorosa. Às vezes, ela chega em mim me chamando de papaizinho. Mesmo com toda a correria do dia a dia, quando estamos juntos, tento sempre estar por inteiro, sem [distrações] ou pensando em outras coisas.”

Com brilho nos olhos, diz que Heloá é uma criança muito parceira. “Digo que ela é a minha versão, somos muito parecidos, em tudo”.

No lugar das expectativas de aceitação, Rene conta que foi preciso também ajustar as expectativas com a própria mãe. “Minha mãe [idealizou uma imagem perfeita] de que eu seria sua bebezinha, sua princesa, aquela ideia de que iria crescer, me casar, dar netos. Ela criou e projetou muitas expectativas em mim. Quando tive a minha filha, ela passou a [transferir essas] e outras expectativas, do tipo: ‘Agora a minha neta vai me trazer tudo isso”, diz. 

“Saiba que meu coração é todo seu”, finaliza Rene ao citar a filha.

Movimentos de educação popular debatem construção do Instituto Federal no Jardim Ângela

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O auditório da Paróquia Santos Mártires recebeu a 2ª Audiência Pública sobre a criação do Instituto Federal Campus Jardim Ângela (IF Jd Ângela), que aconteceu no último sábado do mês de julho, na zona sul de São Paulo. A construção do campus faz parte de uma luta antiga dos movimentos sociais, estudantis e populares da região que, há mais de uma década, buscam garantir o que pode ser reconhecido como o primeiro equipamento de educação pública no Jardim Ângela, com vagas para cursos técnicos e de nível superior. 

Com caráter informativo e consultivo, a audiência reuniu moradores, estudantes, educadores e lideranças comunitárias para dialogar à respeito do que ainda precisa ser feito para que a unidade de educação se concretize. O Instituto também deve atender moradores de distritos vizinhos, como no Capão Redondo, Jardim São Luís, Campo Limpo, entre outros.

Atualmente, o projeto aguarda a cessão do terreno e liberação orçamentária para a construção do prédio. Em julho de 2024, ao lado do Ministro da Educação, Camilo Santana, e do reitor do IFSP (Instituto Federal de São Paulo), Silmário Batista, o presidente Lula (PT) esteve no local e fez oficialmente o anúncio do campus. 

Durante a audiência, Denilza Frade, diretora-geral do IF Jd Ângela, apresentou elementos técnicos e comentou sobre os avanços até então, que não seriam possíveis sem a luta dos movimentos sociais organizados.

“É muito importante a gente reconhecer todos que formaram esse grande cordão de solidariedade em busca de uma política estruturante, como é a do Instituto Federal, num bairro periférico como o Jardim Ângela, que até hoje, ainda não tem nenhuma oferta de ensino superior público.”

“Estamos trazendo uma política forte, uma política do governo federal, que vai beneficiar milhares de jovens, não só do Jardim Ângela, pois a presença de um Instituto Federal tem capilaridade municipal e estadual. E é preciso destacar que essa luta, inspirada pelo saudoso Padre Jaime, vem de longe. Ele que nos deixou esse legado de não desistir, de buscar. ”

Denilza Frade, diretora-geral do Instituto Federal Jardim Ângela.

A luta por um Instituto Federal na região enquanto uma conquista coletiva é um marco na região. “Sempre falaram da violência no Jardim Ângela, principalmente envolvendo os nossos jovens. Mas por que existe essa violência? Não temos políticas públicas de verdade. Se houvesse educação de qualidade, acesso à cultura, ao meio ambiente e à saúde, a história seria outra. O que combate a violência é investir em educação, é valorizar o professor, é garantir estrutura desde a base”, foi um dos pontos de reflexão que a aposentada e moradora do Jardim Vera Cruz, Maria dos Anjos, trouxe no encontro.

Para a jovem Geovanna, representante da Rede Ubuntu de Cursinhos Populares na audiência, além de acessar a instituição, é preciso também uma estrutura segura e acessível para que os estudantes consigam permanecer de forma digna. “A importância de ter um IF aqui no Ângela é que ele não beneficiaria só o Ângela, mas todas as regiões ao redor. Por ser um curso integral, muita gente acaba voltando muito tarde pra casa e isso gera medo, principalmente no trajeto de volta”, disse ao defender que a educação como ferramenta de transformação.

Reyna Destro, educadora socioambiental, conselheira municipal LGBT e integrante do Fórum de Luta LGBT da Zona Sul, reforçou sobre a presença de pessoas LGBTQIAPN+ nos espaços de ensino, para que ao longo da construção do IF, essa seja uma das demandas. “Que o Instituto Federal Jd Ângela [esteja aberto e sensível] para a inclusão das pessoas LGBTs, especialmente de pessoas trans. Sabemos que nos espaços de ensino, do básico ao superior, ainda são ambientes hostis para nós. Queremos e lutamos para mudar esse cenário.” 

O cenário artístico e cultural também é parte das demandas de cursos da unidade. Gabriela Araújo, vice-presidenta do SATED-SP (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos), que representa profissões artísticas e técnicas, como atores, atrizes, técnicos de som, de luz, figurinistas, cenógrafos, entre outros, falou da falta de oportunidade de formação nessas áreas. 

“Quem mora no Jardim Ângela, por exemplo, precisa ir até Santana ou ao centro de São Paulo para encontrar um curso gratuito na área cultural. Falta técnico de som, de luz, falta gente da maquinaria, e os próprios equipamentos culturais sentem isso. Por isso, proponho que esses cursos sejam pensados dentro da formação técnica federal também”, trouxe ao citar que o setor cultural tem muitas profissões que ainda são pouco conhecidas.

Diálogo com o território

De acordo com dados do Observatório de Indicadores da Cidade de São Paulo, apresentados pela diretora-geral, o Jardim Ângela registrava, até 2023, uma população de 308.974 habitantes, sendo o segundo distrito mais populoso da Sul, ficando atrás apenas do Grajaú, com 382.640 habitantes. Outro marcador importante é que o distrito tem a segunda pior expectativa de vida de São Paulo, com em média 62 anos.

Em 2020, o Jardim Ângela tinha uma população economicamente ativa de 168.750 pessoas. Já em 2023, cerca de 29.158 famílias viviam em extrema pobreza, com renda per capita de até um quarto do salário mínimo. Em 2004, 28.016 famílias foram beneficiadas por programas de transferência de renda. 

“A zona sul tem realidades muito distintas. Basta comparar regiões como o Morumbi com o Jardim Ângela. A disparidade é enorme. [Falando da cidade de São Paulo em geral], estamos dentro de uma megalópole desigual, com múltiplas realidades, inclusive, em termos de emprego formal”, destacou.

Entre as ações que envolvem a implementação do Instituto, foi realizado levantamento pelo grupo de trabalho do IF para compreender, a partir da população, quais deverão ser as modalidades e áreas dos primeiros cursos ofertados pelo IF Jd Ângela. Denilza afirma que com essas informações, é possível entender melhor os interesses locais, sociais e culturais. “[Precisamos] mapear esses dados para compreender o que deve ser ofertado e como o campus pode dialogar com as potencialidades locais”, disse durante a audiência.

Uma pesquisa inicial aplicada pela equipe de gestão, indicou que há grande demanda por cursos técnicos. Os cinco cursos mais votados pela população foram: Técnico em Enfermagem; Técnico em Produção Cultural; Técnico em Desenvolvimento de Sistemas; Técnico em Produção de Áudio e Vídeo e Técnico em Administração.

Esse levantamento faz parte de um dos três princípios que baseiam a estrutura pedagógica que envolve a verticalidade, para que funcione como uma formação contínua; a transversalidade com o intuito de que os estudantes participem de pesquisa e extensão; e a territorialidade ao demarcar que os cursos precisam nascer das necessidades da região. 

“[Do Jd.Ângela] até a reitoria do IFSP (campus sede), são quase 23 quilômetros. É muito longe. A gente tem um estudante, morador daqui, que precisa se deslocar todos os dias até o Campus São Paulo, fazendo essa travessia. E é por isso que a chegada de um campus aqui vai encurtar esse caminho e garantir que mais jovens tenham acesso ao ensino de qualidade”, explica Denilza, sendo que com a chegada do IF, as pessoas poderão estudar mais perto de casa.

Alisson, estudante do ensino superior (tecnólogo), e morador do Jardim Independência, no Distrito do Sacomã, ressaltou a necessidade de também pautar outras demandas que envolvem o acesso ao ensino, como o transporte e a garantia do passe livre. “Deixo a provocação para que haja uma linha de ônibus que passe pelas quebradas, levando as pessoas até perto do Instituto e também perto de casa.”

Ele também trouxe sobre o Instituto ter uma estrutura aberta à comunidade, como um restaurante popular que atenda não só os estudantes, mas também a população local. “Quando o espaço é acessível e movimentado, as pessoas se sentem mais à vontade para se inscrever e participar dos cursos”. “A luta tem que seguir nas próximas audiências e a gente espera que mais pessoas possam participar”, ressaltou o estudante em sua fala final. 

A terceira audiência pública será no dia 12 de agosto, no Auditório do CEU Vila do Sol, que fica na Avenida dos Funcionários Públicos, 369. 

Volta às aulas: como a restrição ao celular afeta alunos e professores nas periferias

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“Foi bem desafiador não mexer no celular, porque é algo que hoje em dia a gente não consegue viver sem”, é assim que Larissa Gomes (nome fictício), 18, avalia os primeiros meses da Lei 15.100/25, que restringe o uso de aparelhos eletrônicos em espaços públicos e privados de educação. Moradora do bairro Jardim São Bernardo, no Grajaú, zona sul de São Paulo, ela estuda na Escola Estadual Afrânio de Oliveira, que faz parte da rede pública de ensino, localizada na mesma região em que mora.  

Em vigor desde o início do ano letivo de 2025, em São Paulo, a Lei Estadual 18.058/2024, detalha que, os estudantes que escolherem levar seus celulares para as escolas deverão deixá-los armazenados, sem acessá-los durante o período de permanência na unidade escolar. A exceção se dá para casos específicos, como uso para fins pedagógicos, alunos com deficiência ou alguma condição de saúde.

Larissa conta que as primeiras semanas foram bem rígidas, que não pegavam no celular, “mas hoje em dia alguns alunos nem ligam mais e, às vezes, mexem mesmo tendo a orientação dos professores de que não devem usar”, compartilha a estudante que cursa o terceiro ano do ensino médio, que se se coloca a favor da lei, mas diz não ter notado grandes diferenças em sala de aula. 

“Alguns alunos prestam mais atenção nas explicações dos conteúdos, mas já vi também muita gente pegando no celular mesmo não podendo. Até mesmo em determinadas aulas, o celular precisa ser usado para fazer a atividade, porque não tem aparelho suficiente na escola para todos”, conta ao citar pontos de contradição quando se trata do acesso a outros recursos de ensino na escola.

“Na minha escola tem laboratório e sala de informática, mas às vezes não tem tantos computadores e tablets para todos os alunos. Às vezes os professores deixam [de explicar a lição em classe] para poder passar lição com o uso da plataforma, como a ‘sala do futuro’.” 

Larissa Gomes da Silva, 18, estuda na Escola Estadual Afrânio de Oliveira e mora no Jardim São Bernardo, Grajaú, zona sul de São Paulo.

A estudante Rafaela Oliveira (nome fictício), 18, destaca situações parecidas com as mencionadas por Larissa, e fala sobre a necessidade de escuta dos alunos e professores ao se implementar uma lei que muda a dinâmica escolar. “Na minha escola não tem laboratório. A gente tem uma sala que não era para isso, mas agora eles modificaram e mesmo assim, não tem computadores para todo mundo”, conta Rafaela, que é aluna do terceiro ano de uma escola da rede pública estadual na região da Brasilândia, zona norte de São Paulo.

Dados do Censo Escolar de 2023 (INEP, 2024), sistematizados no estudo Panorama da qualidade da Internet nas escolas públicas brasileiras, revelam que o Brasil tem 137.208 escolas públicas, somando as redes estaduais e municipais. Desse total, 121.416, o que equivale a 89%, disseram ter acesso à internet para uso geral e 85.039 escolas, ou seja, 62% do total, declararam ter acesso à internet com foco na aprendizagem. 

Em 2023, 89% das escolas públicas informaram ter acesso à internet para uso geral, o que representa um aumento de 5% em relação a 2022. Porém, mesmo com esse avanço, a realidade ainda é desigual entre as regiões do país e dentro de cada região também existem diferenças. Na região Norte, por exemplo, há 20.279 escolas públicas — isso representa 14,8% do total de escolas públicas do Brasil. Dessas, 7.443 escolas, ou seja, 37%, disseram que não têm acesso à internet para uso geral. 

Muitos alunos e poucos equipamentos é uma das demandas da escola, segundo Rafaela. “Quando precisamos fazer a Prova Paulista ou alguma outra prova que a escola inteira precisa fazer, a internet cai, muita gente não consegue realizar, o sistema dá erro. Tudo isso deixa a vida, de nós, alunos do terceiro ano, os vestibulandos, muito mais difícil”, afirma a estudante que é contra a proibição do celular na escola, por considerar que existem outras formas de melhorar o ensino. 

“Eu trabalho, estudo e ainda sou vestibulanda. Não é meu caso, mas muitas pessoas que não têm acesso em casa [a internet], simplesmente não conseguem fazer [atividades]. Com o celular na sala de aula [como apoio] ficava muito mais fácil. A escola não tem computadores disponíveis para todo mundo, não tem tablets para todo mundo. Essa lei não foi pensada para as periferias”.

Rafaela Oliveira, 18, aluna da rede pública estadual de ensino e moradora da Brasilândia, zona norte de São Paulo. 

Ela diz que o uso de celular é um problema dentro das salas de aula, “mas quando você fala em escolas da periferia, aplicar uma lei dessa [em uma] escola que não tem infraestrutura para receber [demanda tecnológica necessária], [é outra história]”.

Aplicação em escolas públicas e privadas

Na Escola Estadual Vila Socialista, localizada na Vila Conceição, em Diadema, região metropolitana de São Paulo, o professor de ciências, Jordan Alves, esperou algum tempo para entender como seria essa nova dinâmica. “No primeiro momento, achei algo positivo e interessante, mas logo pensei que algumas tecnologias que [costumava utilizar], já não seriam mais viáveis em sala de aula, devido os alunos não estarem com o celular”, conta. 

Nos primeiros meses do ano, Jordan trabalhou em três escolas públicas. “Na Escola Socialista, onde estou atualmente, houve e há uma comunicação clara com as professoras em relação ao uso do celular. Inclusive, foi solicitado que nós mesmos, educadores, evitássemos o uso do aparelho. Os alunos realmente evitam. Quando precisam utilizar a orientação é que desçam e conversem com a coordenação”, explica ao contar que o formato tem funcionado na unidade, mas com ressalvas.

O professor diz que mesmo a lei permitindo o uso pedagógico do celular, na prática, isso quase não acontece em muitas escolas. “Eu até usava em atividades com jogos educativos, mas hoje evito para não gerar conflitos entre outros professores. Além disso, a estrutura das escolas públicas é muito precária. Onde [leciono], por exemplo, não há laboratório de ciências em funcionamento”, contextualiza Jordan.

“O Estado cobra resultados, mas ele mesmo não oferece condições e o professor da escola pública acaba tendo que fazer milagre, muitas vezes tirando do próprio bolso [para suprir as demandas].”

Jordan Alves, professor de ciências da rede pública estadual de ensino.

O educador, que atualmente dá aula para cinco turmas, com em média 30 alunos, conta que o perfil de cada estudante faz diferença na criação de procedimentos no ambiente escolar. Ele coloca como exemplo os alunos do 6° ano, que muitos não têm celular, diferente do ensino médio. 

“Atuei com turmas dessa etapa em outra escola da região e mesmo com a coordenação informando e colocando avisos nas salas, a maioria dos alunos simplesmente ignoravam. A sensação era de um ‘território sem lei’. Isso mostra como o apoio da coordenação é fundamental. Apesar de ser uma lei federal, cabe a cada escola organizar sua aplicação e, nesta escola [com estudantes mais velhos], parecia que a norma sequer existia”, relembra.

Mesmo com uma rotina em curso na escola em que atua no momento, Jordan pontua que a desigualdade educacional entre os modelos de ensino não pode ser ignorada. Ele cita sobre escolas públicas localizadas em áreas centrais e escolas particulares que contam com equipes pedagógicas maiores e uma outra infraestrutura tecnológica. 

Para ele, há limites a serem considerados. “Particularmente acho necessário que o aluno tenha o celular. Se ele precisa falar com o pai, com a mãe ou outro responsável, deve poder. Acredito sim que a comunicação rápida é essencial, ainda mais considerando o contexto de violência, de vulnerabilidade”, coloca.

Alguns quilômetros separam a escola Escola Estadual Vila Socialista do colégio particular que o Leandro Barros trabalha, localizada na região do Ipiranga, em São Paulo. Professor substituto de ciências, ele é responsável pelo laboratório da escola e conta que o uso de celular já era controlado antes da lei entrar em vigor. 

Desde que começou a trabalhar no colégio, em 2023, os celulares já eram recolhidos no início do período e só utilizados em momentos específicos, como no intervalo. Com a nova regra, o acesso ficou mais restrito, mas segundo ele, sem gerar grandes impactos na dinâmica do colégio.

“Os professores pedem, voluntariamente, que os alunos coloquem os celulares dentro da caixa. Depois disso, os inspetores recolhem as caixas e as levam até a biblioteca, onde ficam guardadas durante todo o período. Cerca de cinco a dez minutos antes do sinal de saída, os aparelhos são devolvidos’’, detalha Leandro. Na escola, os inspetores distribuem caixas de madeira com divisórias específicas para guardar os celulares. 

“Vejo que não são todos que guardam, mas eles também não mexem. Alguns não gostam de guardar na caixa, mas deixam na mochila, desligado. [Usam] por exemplo, só depois que bate o sinal, na hora da saída. Se algum estudante for visto utilizando o celular durante o intervalo, pode ser advertido”, frisa.

Leandro diz que a estrutura da escola favorece fazer valer a medida. “Por ser uma escola privada, trata-se de uma instituição com bastante estrutura. Temos o laboratório de ciências, que eu sou responsável, com experiências de química, física e biologia. São muitos os equipamentos”, conta o professor ao detalhar a estrutura que também inclui uma sala maker com notebooks, impressoras 3D e materiais para atividades de programação. Ele ressalta que quando os educadores precisam de algum material extra, é possível fazer a solicitação com antecedência e a escola providencia. 

No contexto do ensino, o professor acredita que a medida, por si só, não resolve o problema da distração dos alunos em sala. Ele relata que após o endurecimento da regra, alguns estudantes passaram a levar câmeras digitais. “Só que a câmera também é uma distração. E não só a câmera, mas também jogos de baralho, etc. Ou seja, os alunos vão procurar outras formas de se distrair”, analisa.

Para Leandro, o uso pedagógico dos aparelhos eletrônicos pode ser benéfico no lugar de uma proibição rígida. “Já aconteceu de eu estar ensinando sobre astronomia e me perguntarem qual que era a maior estrela já descoberta. Falei que não sabia, mas que a Sirius era maior que o Sol. E sugeri [uma pesquisa]. O aluno pesquisou e trouxe a informação para sala”, exemplifica. 

Nesse sentido, enquanto ferramenta de auxílio para o aprendizado, o celular ainda seria um caminho, segundo ele. “Se fosse nesse contexto de proibição, isso teria matado ali a curiosidade do aluno que quando chegasse em casa, provavelmente nem se lembraria mais disto”, pontua.

Memórias periféricas na história da cidade

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Dia 13 de maio de 2017, data em que relembrávamos exatos 127 anos da falsa abolição da escravidão. Escrita na lei, mas até hoje vivida de forma relativa pelas populações negras brasileiras. Nesse dia, fui até o bairro Jardim Vila Carrão, o nosso Carrãozinho, distrito do São Rafael, Subprefeitura de São Mateus.


Havia combinado uma conversa com Maria Aparecida Trajano, Cida Preta, também conhecida como Tia Cida. Sento-me no sofá, ligo o celular para iniciar a gravação e ouço atentamente as histórias de uma mulher preta que chegou a São Mateus no fim dos anos de 1940, ainda com 7 anos.


Em um loteamento comercializado pela família italiana dos Beis (que dá nome à principal avenida do território), viu sua primeira casa, construída em mutirão por sua família e vizinhos, ser derrubada pelas chuvas e ventos.


Seu longo caminho de ônibus nas estradas de barro de São Mateus até os bondes na Celso Garcia e centro da cidade para chegar ao Jardins, para trabalhar como doméstica — trabalho que depois vira sua “casa”, por conta das longas distâncias, mas também da cultura racista dos patrões — é mais uma herança da falsa abolição que Tia Cida nos traz.


A fala é pausada, o olhar para o alto, expressão facial de quem saboreia o ato de rememorar. Entre o cigarro que acendia na boca do fogão e o café que preparava, contava da infância de seus filhos, as dificuldades nos estudos que só foram superadas pela filha. Os dois meninos sofriam racismo na escola, sua educação formal seria abreviada pela falsa abolição.


Desafios de uma mãe solo que teve seus filhos com um pintor de alegorias e espaços da escola Camisa Verde e Branco. Que foi embora e voltou ao final da vida para receber os últimos cuidados.


As andanças entre São Mateus, centro da cidade e Barra Funda, para comprar discos e instrumentos musicais, frequentar sambas e se formar enquanto cidadãos que rabiscavam a cidade ao ritmo do samba foram fundamentais para enfrentar as barreiras da falsa abolição. Marcelo Tocão se tornou exímio tocador de banjo.

Os sambas animaram o quintal de Tia Cida, a partir dos anos de 1970, sendo espaço de formação de uma turma que se espalhou por São Mateus como Berço do Samba de São Mateus, Bar do Timaia, Instituto do Samba de São Mateus, Samba da Maria Cursi, Escola de Samba Amizade Zona Leste. Quintal e sambas de resistência contra a violência do lado de fora, em plena Ditadura Civil-Militar, e na construção do viver na década de 1990 marcada pelo desemprego.

A sina do trabalho do cuidado, que a sociedade da falsa abolição destina às mulheres negras, fez com que Tia Cida estudasse serviço social, fosse designada pelo padre Franco, pároco da Igreja São Mateus Apóstolo, para mapear famílias que precisavam de cesta básica, crianças que precisavam de cuidado e espaços educacionais para que suas mães pudessem trabalhar.


Veio, então, a luta pelas creches, pelos postos de saúde, hospitais, com a participação no Movimento de Saúde da zona leste, do qual o Hospital São Mateus e postos de saúde conquistados com a volta da democracia ainda são testemunhas em São Mateus. A sina virou luta, formulação política, saberes de organização do povo e de direção de creches.


A essa altura, o impacto de ver a história da cidade que eu vivo, da periferia leste, de São Mateus sendo escrita oralmente, com todo o seu conteúdo de abolição real — em construção — já havia me colocado outra questão: que história é essa, que vem das leis, dos documentos de governo, que não respira, não se empolga, não luta e não vive a construção da nossa cidade?

Essas memórias periféricas, de nossas casas autoconstruídas, do básico arrancado do Estado com muita luta e articulação política e da criação artística, conseguimos captar aqui e agora, como movimento em constante transformação. É aquela que documentamos, narramos e vivemos mobilizando nossos sentidos: o escutar, o ver, tatear-caminhar.


Que o diga o grupo Opni, referência do graffiti na cidade nos últimos 20 anos, que, em 2021, colocou Tocão para tocar banjo para Tia Cida ao lado do grupo Berço do Samba de São Mateus, em uma linha do tempo de nosso samba, com todos os grupos e comunidades de samba que Tia Cida inspirou, incentivou e articulou e com quem gravou e divulgou seu álbum Tia Cida dos Terreiros em 2013.

Estão todos ali, nas paredes da galeria de graffiti a céu aberto da Vila Flávia, história monumentalizada por um dos elementos da cultura hip hop.
As memórias periféricas na história da cidade transbordam nas paredes, nas falas, no chão e no nosso olhar para o alto e ao redor. A história não é só escrita nos livros e não fala só de heróis ou heroínas.

Tia Cida é mulher, negritude, coletivo e movimento. Uma e, ao mesmo tempo, várias e vários, como são os movimentos, criadores, grupos, vielas, ladeiras, ocupações, conquistas, resistências e reexistências nas nossas periferias.

É dessas histórias, memórias e patrimônios (nossos monumentos e heranças) que tratarei nesta coluna que inicio hoje no Desenrola e Não Me Enrola.

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‘‘Nossa principal reivindicação ainda é o fim da morte de nossos filhos’’: mulheres negras marcham por reparação e bem viver

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“Nós, mulheres negras, estamos trazendo nossa contribuição política e criticando este modelo de sociedade que não nos contempla.” É assim que Juliana Gonçalves, jornalista e pesquisadora apresenta sobre a luta das mulheres negras por reparação e bem viver, princípio norteador da 10° edição da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo.

Fundamentado no cuidado, nos princípios de coletividade, dignidade, justiça social e respeito à vida, o conceito de bem viver surge a partir da denúncia das inúmeras violências históricas que atravessam populações marginalizadas. A filosofia, que propõe caminhos de emancipação, é baseada nos conhecimentos dos povos tradicionais, especialmente dos povos andinos e indígenas que vivem há séculos na região da Cordilheira dos Andes, em países como Peru, Bolívia, Equador, Chile, Argentina e Colômbia.

‘‘Quando marchamos, celebramos a vida, o legado e a memória do que as mulheres negras construíram e constroem neste país até hoje. Ao mesmo tempo, a gente faz a crítica, porque infelizmente esse modelo de sociedade, político e econômico, não nos contempla. É um modelo racista e sexista, que não valoriza a abundância dos saberes que existem nos territórios” 

Juliana Gonçalves, jornalista, pesquisadora e integrante da Marcha das Mulheres Negras. 

Sob constantes ataques, a ativista reforça que a luta é por direitos e para que as mulheres negras possam viver com liberdade e dignidade, sobretudo, nas periferias. “A periferia é rica e está sendo massacrada com a falta de direitos básicos: escola, educação, cultura”, afirma. 

A jornalista ressalta que esse massacre acontece em diferentes frentes, como a forma hostil que a Prefeitura de São Paulo trata o movimento funk. “Também estamos sendo massacradas quando a gente não consegue diminuir os números de feminicídio de mulheres negras, sobretudo num momento em que a Lei Maria da Penha [vai completar quase] 20 anos. É um grande avanço, porém, ainda não chega para as mulheres negras”, coloca.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, divulgado na véspera do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, apontam que 1.492 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2024, sendo que 63,6% delas são mulheres negras – soma de pretas e pardas. 

Nesse cenário, Juliana aponta que a construção do Bem Viver exige organização política e continuidade do que foi construído pelas que vieram antes.

“Tudo que [vivenciamos] está sendo sintetizado em nosso manifesto político, que aborda sobre o PL da Devastação, justiça climática em território urbano, etc. É o momento de apresentarmos para a sociedade tudo o que temos pensado e refletido dentro do movimento de mulheres negras. E isto não é um movimento isolado. Isso faz parte de um grande movimento nacional”, coloca a pesquisadora sobre algumas das estratégias do movimento.

No Brasil, em 2025, 18 cidades marcharam por reparação e bem viver. As mobilizações começaram no dia 19 de julho e seguiram até o dia 27. Desde a grande marcha de 2015, quando se juntaram para ocupar Brasília e reivindicar direitos, muita coisa mudou. No entanto, as conquistas não acompanharam todas as necessidades das mulheres negras. 

“Ainda observamos a nossa população encabeçando os índices de pobreza, vulnerabilidade, evasão escolar, violência. Em 2015, fomos o último movimento a ocupar Brasília antes do golpe da Dilma, e já havia um acampamento pedindo a volta da ditadura. O que vivemos hoje é reflexo de algo que vem sendo [articulado] há anos”, analisa Juliana, que cita sobre momentos complexos para a população, como a pandemia da covid, que só não foi pior, porque as mulheres negras estavam organizadas nos seus territórios.

“Essa democracia que está posta não contempla as mulheres negras, não contempla a população pobre, as empregadas domésticas, mulheres que estão na prostituição, as que estão nos terreiros. O que estamos fazendo é discutir e disputar que Estado a gente quer construir e quais bases de Estado são essas”, pontua.

“A nossa principal reivindicação ainda é pelo fim da morte de nossos filhos. Ainda é o fim do genocídio da população preta. A gente avançou, mas é preciso lutar. É preciso estar na rua contra essa política de morte que ainda é viva no país. Não é possível que fiquemos tranquilos sabendo que, a cada 23 minutos, morre um jovem negro, e que o índice de mortalidade de mulheres negras também aumentou. O encarceramento é outra ferramenta de controle e de manipulação.” 

Juliana Gonçalves, jornalista, pesquisadora e integrante da Marcha das Mulheres Negras. 

Criar estratégias a partir do Bem Viver, é sobre pensar outras formas de sobrevivência e existência em coletivo. É o que afirma Maria José Menezes, ao pontuar que não é possível discutir cidadania, se não for pela ótica das mulheres negras. 

Bióloga, ativista e uma das fundadoras da Marcha das Mulheres Negras, Maria José conta que representa uma geração de mulheres nordestinas que migraram para São Paulo em contexto de deslocamento forçado, na década de 1960, e destaca que o Estado sempre foi um articulador de violências contra a população negra.

“A luta das mulheres negras remonta à formação do que se chama de Brasil, desde o tráfico transatlântico. Nós nunca tivemos, de fato, uma cidadania real. Mesmo após o período escravagista, a população negra, sobretudo as mulheres, segue até os dias atuais enfrentando a precariedade e a violência do Estado.” 

Maria José Menezes, bióloga, ativista e uma das fundadoras da Marcha das Mulheres Negras. 

Em 2025, o movimento se organiza para realizar a 2° Marcha Nacional das Mulheres Negras, em Brasília, 10 anos após a primeira mobilização que marca a atuação das mulheres por justiça racial e de gênero no país. 

“Em 2015, mobilizamos cerca de 50 mil mulheres para Brasília. Foi a nossa força, a nossa voz de dizer: Chega! Nós queremos moradia, cidadania, dignidade, saúde, queremos viver, pois somos o setor da sociedade que, de fato, paga os impostos e que mantém o Estado brasileiro’’ relembra Maria José.

A ativista ressalta que não é mais possível viver em um país com tantas violações. “Exigimos que os nossos direitos sejam respeitados. Exigimos ser tratadas com cidadania, exigimos moradia, exigimos o direito de permanecer em nossos territórios dizendo não ao despejo e a tantas outras opressões”. Ela reforça a importância de uma sociedade que pensa e atua a partir da coletividade.

“Somos mulheres cis, mulheres trans, bissexuais, lésbicas, mulheres com deficiência, trabalhadoras domésticas, mães, donas de casa, etc, todas lutando por algo em comum: o Bem Viver’’, finaliza.