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Nova edição do Você Repórter da Periferia 2.0 cria laboratório de jornalismo de soluções a partir da zona leste de São Paulo

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O Desenrola e Não Me Enrola, organização de jornalismo periférico de soluções e educação midiática antirracista, realiza uma nova edição do Você Repórter da Periferia 2.0, com o objetivo de implementar uma metodologia inovadora de cobertura jornalística baseada na coleta de dados do território de Guianases, na zona leste de São Paulo, para produzir reportagens que facilitam o acesso a direitos sociais.

O programa foi criado com base numa visão estrutural sobre a dificuldade da juventude negra e periférica de acessar o mercado de trabalho de jornalismo e comunicação.  De acordo com a  pesquisa “Raça, gênero e imprensa: quem escreve nos principais jornais do Brasil?”- Gemaa/UERJ, a distribuição racial dos colaboradores dos 3 principais jornais do país – Folha de S. Paulo, Estadão e O Globo – é similar. em todos,  brancos são maioria entre os produtores de conteúdo, representando, na média, 84% do total. Em contraponto, o Desenrola e Não Me Enrola reúne  65,6% de inscrições de pessoas negras nas edições anteriores de programas de formação midiática. Desse total, 39,3% eram pessoas pretas e 26,3% pardas. Com isso, fica evidente a desigualdade do quadro funcional em empresas jornalísticas quanto à diversidade racial, já que existe amplo interesse de pessoas negras e periféricas na área da comunicação.

Partindo dessa motivação, o Você Repórter da Periferia 2.0 está em um território específico: “escolhemos Guaianases porque o bairro está entre os 10 piores distritos com infraestrutura digital de acesso a internet na zona leste de São Paulo”, argumenta Thais Siqueira, co-fundadora do Desenrola e Não Me Enrola, citando um dado do Mapa das Desigualdades da Rede Nossa São Paulo. 

Thaís lembra a força de atuação de coletivos no território.“Além disso, é um território rico em memória e atuação de coletivos e organizações sociais que buscam combater as desigualdades sociais que afetam a região. Queremos ser um parceiro nesta jornada de ampliar o acesso a direitos da população, por meio do jornalismo de soluções”, diz. 

Vitória Guilhermina, moradora do Rio Pequeno, na zona oeste de São Paulo, entrou no Você Repórter da Periferia aos 18 anos, em 2018, sem imaginar que o jornalismo se tornaria sua profissão. “Apesar de adorar fazer perguntas, não gostava de jornalismo”, conta Vitória. 

Vitória Guilhermina foi aluna do Você Repórter da Periferia em 2018. Hoje, ela atua como assitente de coordenação de Articulação e Educação Midiática. Foto: Gabriel Zahid.

Após a experiência, ela mergulhou na área, produziu reportagens, filmes e oficinas sobre memória dos territórios e produção audiovisual em diversas periferias de São Paulo. Influenciada pela experiência transformadora do Você Repórter da Periferia, hoje ela faz o curso de Educomunicação na USP.

Vitória atua na assistente de coordenação do Desenrola e Não Me Enrola, fato que ampliou a sua visão sobre o projeto. “Você Repórter da Periferia 2.0 é jornalismo de interesse público, vamos descobrir o que está sendo discutido nas quebradas, o que as pessoas querem saber. Fui formada em conexão com meu território e agora estou numa posição de decisão e co-criação coletiva”, explica.

Com início previsto para setembro, o programa tem um formato híbrido e de laboratório de jornalismo que incentiva a investigação dos territórios com autonomia e visão de dados. Nesta edição, sete jovens que já passaram por formações anteriores integram a equipe de reportagem. 

“A meta é fomentar o jornalismo que nasce dos territórios articulado diretamente com as comunidades, lideranças e moradores, produzindo informação como um direito fundamental”, conta.

O Você Repórter da Periferia 2.0 será realizado em parceria com a plataforma Território da Notícia, solução tecnológica gerida pelo Desenrola e Não Me Enrola e Periferia em Movimento, que distribui conteúdos jornalísticos por meio de totens digitais em comércios periféricos, conectando produção e circulação de notícias locais. 

A iniciativa faz parte um projeto piloto que está conectado com as reformulações do Desenrola e Não Me Enrola, preparadas ao longo desse ano com o objetivo  de aperfeiçoar e ampliar o impacto da cobertura jornalística baseada em direitos, gerar e cruzar dados, fortalecendo a participação direta dos moradores no acesso à informação.

O Desenrola e Não Me Enrola, juntamente com a Periferia em Movimento, faz a gestão da Território da Notícia, iniciativa de solução tecnológica que distribui notícias de 14 veículos periféricos por meio de 16 totens em 10 distritos da cidade de São Paulo. Foto: Território da Notícia / Gsé Silva.

‘‘Deu uma nova realidade para muitas pessoas de periferia”: artistas apontam o papel político do rap nos territórios

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Elemento central da cultura hip hop, através das letras que, geralmente, apresentam discussões sobre raça, classe, violência policial, entre outras demandas, o rap passou a influenciar o debate público a partir de questões políticas e sociais.

No Brasil, o movimento surgiu no final da década de 1980. O país, ainda nos reflexos do regime militar, vivia intensas tensões sociais, enquanto a cultura de rua ganhava força e o rap se espalhava cada vez mais nos territórios. Em São Paulo, foi nas praças da Rua 24 de Maio, próximas à estação do Metrô São Bento, que o gênero começou a tomar forma, consolidando-se mais tarde como uma expressão artística popular. 

A rapper, cientista social, ativista e produtora cultural, Rubia Fraga, é uma das principais referências do rap nacional. Pioneira na cena, ela formou o grupo RPW em 1991, atuou em coletivos como Minas da Rima, Hip Hop Mulher e atualmente integra a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Desde 1989, se define como uma operária do movimento e destaca que a trajetória do rap é marcada por lutas contínuas, sendo uma expressão legítima de resistência e emancipação social. 

“[É uma forma] de protesto, denúncia e contestação. Até a ostentação é um grito do jovem preto periférico, das mulheres, das manas e monas, que querem também usufruir das boas coisas. É um desabafo.” Rubia Fraga, cientista social e integrante da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop.

Rubia destaca que o rap é um retrato atual da sociedade brasileira e faz parte da emancipação das periferias, das lutas sociais, raciais e de gênero. “A geração dos anos 80 fala do seu cenário, a dos 90; dos 2000. Em 2025, a geração atual traz críticas com novas roupagens e formas de expressão. Isso é ótimo. É preciso revitalizar o discurso do rap para que ele dialogue com o povo, principalmente com as juventudes”, coloca.

Embora as formas de opressão tenham se transformado, a cientista social pontua que ainda vivemos em um país colonizado, escravocrata, que cultua a misoginia, homofobia, transfobia e o racismo, lutas pautadas de diferentes formas pelo movimento. 

“As elites e a extrema direita criam novas ferramentas com o passar do tempo. O samba foi criminalizado, a capoeira foi tratada como vadiagem. O rap passou pelo mesmo com muitos shows interrompidos pela polícia, muitos artistas presos. Hoje, também vemos isso acontecendo com o funk. A origem social é a mesma. Faz parte de um projeto de opressão”, afirma.

Os quatro elementos

O dançarino e ativista Nelson Triunfo, considerado precursor do breaking dance no Brasil, também destaca que o hip hop, especialmente o rap, sempre foi resistência às diversas formas de marginalização. Ele lembra os primeiros passos dados para a construção de uma consciência crítica coletiva nas periferias. “Fomos descobrindo as coisas brincando, misturando dança com capoeira e trazendo isso para o hip hop”, conta. 

“Quando os jovens começavam [a escutar o som], a pegar os passos [de breaking], percebia que eles ficavam mais à vontade e abertos para [o diálogo]. Era nesse momento que chegava mostrando que existiam outras possibilidades, que estudar era muito importante”, relembra. 

O artista conta que na época, muitos jovens começaram a dançar em grupo, dar aula e, naturalmente, viraram multiplicadores da cultura. Ele que já era ativo no campo quando o reconhecimento do rap ainda era impensável, cita sobre as transformações e desafios enfrentados ao longo das décadas, e menciona que com o tempo surgiram outras vertentes, como o trap. 

“O hip-hop já é livre por natureza, inclusive, ainda difícil de ser compreendido por muitos, pois não é uma só cultura. Tem várias expressões: A dança, que já dialoga com a capoeira. A pintura, que vem das artes plásticas. O canto, a criação lírica, o DJ. Você pode não saber cantar, mas pode dançar. Pode não dançar, mas saber pintar. A gente tem muitas ferramentas nas mãos.” Nelson Triunfo, dançarino e educador popular.

Após alcançar muitas pessoas nos anos 1990, o movimento se espalhou pelo Brasil e contribuiu para o nascimento de vários projetos sociais. “Naquela época, ainda não existia celular, então, quando algo passava na TV, todo mundo via. O povo assistia televisão para aprender. De repente, o Brasil inteiro estava dançando breaking”, recorda Nelson.

A visão do hip hop como ferramenta de transformação social foi o que norteou toda sua militância em Diadema, cidade berço das atividades promovidas por Triunfo. “Quando a gente começou o trabalho em Diadema, o cenário era pesado. Todo mês morria alguém. Uma vez, apenas em um mês, morreram três moleques [da quebrada]. Vieram com a ideia de chamar o prefeito, trazer a polícia para a favela. E eu falei: ‘Não, pelo amor de Deus! Não faz isso!’ A gente aqui sabe conviver com a quebrada, mas não com a polícia dentro da nossa atividade”, cita.

No final dos anos 1980, Nelson Triunfo iniciou, em escolas de Diadema, um trabalho com oficinas que reuniam os quatro elementos: rap, grafite, DJ e breakdance.

Conhecido por animar rodas de dança em pontos marcantes do centro paulistano, como o Theatro Municipal e a Praça da Sé, foi chamado pelo então prefeito José de Filippi Jr. (PT) para ministrar aulas e oficinas culturais aos jovens diademenses, o que acabou fortalecendo ainda mais seu vínculo com a cidade e com a juventude periférica, consolidando sua importância na difusão do hip hop em Diadema.

“Quando eu chegava para dar aula de dança na escola, os alunos me reconheciam e contavam como tinham gostado da aula. Na [aula seguinte], perguntavam: ‘Você se lembra de mim?”, relembra com nostalgia como o hip-hop contribuiu para enriquecer a educação e fortalecer o envolvimento cultural e comunitário dos alunos.

Novos fazedores de cultura

Com o tempo, novos agentes passaram a contribuir com o legado construído ao longo de anos. Jean Triunfo, por exemplo, que cresceu ouvindo Racionais MC’s, Facção Central, Sabotage e outros nomes da cena, conta que o rap forjou sua identidade e senso de pertencimento, o que também o levou a atuar em uma das vertentes do movimento. 

Jean esteve à frente da gestão da Casa do Hip Hop de Diadema de 2020 a 2024, equipamento cultural que fez parte da sua infância. “Minha vida inteira foi naquele espaço. Lá é minha segunda casa. Tenho lembranças até hoje do meu pai me acordando e me chamando para irmos até lá, onde eu passava o dia inteiro dançando, cantando, brincando, pulando”, conta.


“Meu pai nunca me obrigou a nada. Ele sempre foi muito versátil: Canta, compõe, faz de tudo, mas nunca falou ‘você tem que seguir esse caminho’. Eu escolhi ser MC, fazer beatbox, jogar basquete. Isto veio das referências ao meu redor. Em tudo que crio, seja um projeto, uma ideia, um trabalho coletivo, sempre penso se isso vai realmente fazer diferença na vida das pessoas”, conta Jean, que também é filho de Nelson Triunfo.

Atualmente, Jean lidera a On Fire Streetball Brasil, iniciativa que une basquete de rua, ações sociais e a preservação de espaços públicos em diferentes comunidades periféricas. Ele também é produtor no rap, fortalecendo a cena musical.

Pedagogia do rap

O rap enquanto processo de aprendizado, coletividade e incentivo para construção de sonhos é o que Letícia Reis destaca. Assistente social e organizadora da Batalha da VR, ela referencia o gênero como ferramenta de transformação. “Esse é o nosso trabalho: fazer com que essas crianças, jovens e adolescentes, através do hip hop, venham até a gente e saibam que podem ser o que quiserem”, afirma.

“Às vezes a criança está ociosa, mas tendo uma batalha de rima, [ela] cola e começa a ver que pode ter sim possibilidades [na vida]. Se quiser ser um MC, um DJ, grafiteiro, um dançarino de breaking, que hoje é até modalidade olímpica, ela pode;” Leticia Reis, assistente social, produtora cultural e organizadora da Batalha da VR.

Influenciada pelo seu avô, que realizava projetos sociais na região onde mora, no Parque Jd Santa Madalena, na zona leste de São Paulo, Letícia passou a frequentar batalhas de rima e atualmente integra a batalha da VR e a batalha do Badá, em Heliópolis. Ela também lidera o Projeto Raça Neguita. “Assim como meu avô plantou essa semente em mim, eu planto no meu filho para que ele também possa, lá na frente, plantar [nos filhos dele]”, diz.

Letícia ressalta que as batalhas de rima também são espaços de expressão e troca, mas ainda sofrem muito preconceito. “A gente ocupa espaço público por direito, faça chuva ou faça sol. É um trampo social, onde a gente leva cultura, lazer e entretenimento, que deveria ser obrigação do Estado, mas muitas vezes somos nós que fazemos isso”.

Renata Martins, conhecida como Mc Caramelo, articula as ações junto com Letícia e comenta de um novo momento que o rap vive. “A internet veio pra fortalecer uma nova geração, uma nova história, mas não podemos nos esquecer da base, do porquê tudo começou”, afirma. 

“O rap é um protesto social. Para [o sistema] e para quem vê de fora, é fácil julgar o que o povo periférico produz, tratando a nossa arte como crime. O rap é o grito dos esquecidos. Somos um povo que sobrevive fazendo milagre.” Renata Martins, Mc, fotógrafa e organizadora da batalha da VR.

Renata pontua que o rap deu uma nova realidade para muitas pessoas nas periferias, e acredita que o movimento de mulheres encabeça uma revolução. “A força da mulher dentro do rap é gigante”.

“O rap hoje traz [novas formas]. Já temos também o trap, outros caminhos, outras vivências. Eu sou daquelas que acredita que a gente pode mudar, se reinventar, se adaptar, mas sem perder a essência: o rap raiz, o rap nacional e de protesto”, finaliza Letícia.

Felizs celebra memória e resistência em 11ª edição com programação literária na zona sul de São Paulo

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A FELIZS – Feira Literária da Zona Sul consolida-se como um dos principais eventos do calendário cultural paulistano ao chegar à sua 11ª edição. De 19 a 27 de setembro, a programação gratuita ocupará escolas, bibliotecas, centros culturais, o Sesc Campo Limpo e outros espaços da zona sul. Nascida do desejo de reunir e valorizar os artistas e escritores da periferia da região, a feira tem a literatura como sua linguagem central, promovendo um intenso intercâmbio cultural.

Resistência e memória no território

Com o tema Memória e resistência: “a luta não é para hoje é para sempre”, a edição de 2025 presta uma homenagem especial a Ana Dias, símbolo de resistência popular no território. Ativista, educadora popular e liderança de grupo de mães, viúva de Santo Dias, líder operário assassinado em 1979 durante a ditadura militar, em um piquete em Santo Amaro, Ana assumiu o compromisso de manter viva sua memória e luta.

Ana Maria do Carmo Silva – Ana Dias. Foto: Acervo Pessoal

Militante nas Comunidades Eclesiais de Base, ela e o marido haviam migrado do interior para o Jardim Ângela no fim dos anos 1960, engajando-se nas causas dos trabalhadores urbanos e rurais. Desde lá, Ana mantinha atuação política ao lado de outras mulheres, organizando Clubes de Mães como o do Jardim Santa Margarida e participando do Movimento do Custo de Vida, que enfrentava as políticas econômicas da ditadura.

“Mesmo alvo de ameaças, manteve-se firme, afirmando a importância da luta coletiva e da memória, por isso a nossa escolha e mulheragem ”, frisa Silvia Tavares, educadora e produtora da Felizs. Ana Dias segue atuante no Comitê Santo Dias, ao lado dos filhos Luciana e Santo Filho, promovendo atos públicos no local onde o marido foi morto.

A proposta desta edição da FELIZS é estabelecer as continuidades entre a experiência do período ditatorial e os dias atuais nas periferias, refletindo sobre a luta contínua por direitos e voz. “Eventos como a FELIZS, que dão visibilidade para autores independentes expressarem suas questões, são de suma importância para a literatura nacional, pois trazem um panorama alternativo e inclusivo”, destaca Diane Padial, idealizadora da feira.

A programação, construída para valorizar todos os artistas, inclui saraus, encontros com autores, shows, performances, conversas literárias e oficinas. Entre os nomes confirmados estão Ana Dias, Bel Santos Mayer, Lilia Guerra, Cidinha da Silva, Jennyfer Nascimento; Marcelino Freire e shows de Lenna Bahule com Ermi Panzo, Grupo Cupuaçu, Jonatas Petroleo, Grupo Candearte, Bloco Afro É Di Santo, Vitor da Trindade e Geraldo Magela. O tradicional Sarau do Binho também se apresentará, e desta vez terá uma apresentação extra no Museu da Língua Portuguesa.

Sarau Poesia de Todo Canto no Sesc Campo Limpo. Foto: Divulgação/Felizs

Incentivo à leitura

Uma das iniciativas de maior impacto da FELIZS é a Moeda Literária, criada em 2018. O projeto direciona recursos para que estudantes, professores de escolas públicas e mediadores de leitura possam adquirir livros diretamente dos expositores durante a feira. “Conseguir oferecer esse benefício fortalece a produção e difusão de obras literárias”, explica Suzi Soares, produtora curadora do evento. Em 2024, R$25 mil em Moedas Literárias circularam no evento, e a meta para este ano é alcançar R$40 mil, fortalecendo ainda mais a economia criativa local. A campanha de arrecadação está aberta na plataforma Benfeitoria.

Cédulas da Moeda Literária que movimenta a economia criativa e incentiva a venda de livros na periferia do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Foto: Thais Siqueira.

Serviço

FELIZS – Feira Literária da Zona Sul
19 a 27 de setembro
Mais informações pelo site e pelo Instagram.

O silêncio ancestral como estratégia de cura e resistência

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Nesta sessão, proponho uma reflexão sobre o silêncio — esse movimento interno que muitas vezes nasce de incômodos, dores ou sentimentos que preferimos não revelar. Contudo, para além dessa dimensão, o silêncio pode também ser compreendido como um espaço fértil de introspecção e autoconhecimento. Ele nos conduz a um encontro profundo com nós mesmos e com uma força ancestral que costumo evocar em nossas sessões, onde a escrita se torna ferramenta para compreender outras dimensões de nossa cultura e resgate de memória.

Muitos de nós não cultivamos o hábito de reservar tempo para o recolhimento, porque vivemos em uma sociedade que não nos permite parar. 

Nesse ponto, o silêncio também ganha um aspecto cultural e religioso. Recordo, por exemplo, a experiência do roncó, em que o recolhimento ritualístico convida à introspecção diante do sagrado. Nesses momentos, aprendemos a não permitir que o mundo externo invada nosso espaço interno, preservando-o como território de cuidado, cura e ressignificação.

O silenciar, portanto, pode ser compreendido como prática de cura interior, capaz de nos elevar a um grau mais profundo de autoconhecimento e de conexão com o sagrado. É também um modo de lidar com dores que não conseguimos verbalizar de imediato, criando espaço para sua transformação.

Entretanto, como psicóloga, não posso deixar de observar o silêncio que se impõe às mulheres diante das violências sofridas. Muitas vezes, o que não é dito se prende na garganta, sufocado pela vergonha, pela humilhação ou pelo medo. 

Esse silêncio, que deveria ser refúgio, torna-se também mecanismo de sobrevivência diante das tantas violências que atingem os mais vulneráveis. Até mesmo no espaço terapêutico — pensado como seguro — nem sempre é simples romper esse silêncio que guarda feridas de infância, de mulheres, ou mesmo de homens ensinados a suportar em silêncio como prova de força.

O silêncio, portanto, é ambivalente: pode ser fonte de poder interior, mas também de auto penalidade. É complexo e multifacetado, exigindo de nós sabedoria para discernir quando calar e quando falar.

Assim como o caçador que, na paciência silenciosa, consegue atingir seu objetivo, precisamos aprender a usar o silêncio como estratégia para ir mais longe. Há momentos em que calar é contemplar o sagrado, ouvir a alma, reconhecer o próprio tempo de amadurecimento. Em outros, é necessário romper o silêncio, erguer a voz e enfrentar os algozes.

Percebo, portanto, que o silêncio é parte constitutiva de nós. Ele se revela quando falamos demais sem nos ouvir, quando precisamos aprender a escutar a nós mesmos para lapidar nosso caráter. Ele também se manifesta como gesto de respeito, reverência e conexão com o sagrado — como nos ensinaram nossos ancestrais.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“O Movimento Negro Unificado é uma escola de formação”,  destacam ativistas sobre protagonismo do MNU na luta contra o racismo no Brasil

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Greves, marchas, ocupações, denúncias e centenas de mobilizações foram encabeçadas ao longo de mais de quatro décadas pelo Movimento Negro Unificado (MNU), que nasceu em 1978, em resposta às violências intensificadas pela ditadura militar no Brasil. A geógrafa especialista em educação para as relação étnico-raciais, ativista e intelectual Regina Lúcia, uma das militantes que compõem a vanguarda do MNU, relembra sua trajetória, destaca retrocessos e principais marcos, especialmente para as pessoas negras periféricas.

“Estes 47 anos foram, em primeiro momento, um desvelamento do racismo no Brasil, desmascarando a dita democracia racial e colocando às claras que o Brasil era um país racista. O MNU foi sempre ponta de lança para as lutas e conquistas”, afirma Regina ao relembrar momentos que marcaram a história da luta negra.

Segundo a ativista, muitas conquistas do movimento negro chegaram às periferias. “Foi [muito importante] para a população negra, pobre, periférica, poder sonhar e ver seus filhos entrarem nas universidades. A briga pela regularização dos quilombos, a propagação da cultura negra e a lei 10.639, que embora ainda não esteja sendo aplicada na sua totalidade, já produziu muito material retratando acerca da nossa história e de nossa contribuição neste país, mas também para a história mundial”, lembra.

Ela também cita as cotas no serviço público, nas universidades públicas e privadas e a política de atenção integral à saúde da população negra. “Tudo isso configura conquistas, mas ainda existe luta para ser feita”, acrescenta a militante, que destaca o genocídio contra a população negra como, ainda, o mais importante desafio.

“[O] genocídio não está só na morte pela bala da polícia, do Estado, mas na negação à saúde, à alimentação. E há um fenômeno mais recente, um fato que tem se agravado: o suicídio, em especial, de homens negros jovens, muitos já chegando na fase da universidade. O suicídio é mais um produto do projeto de genocídio”. Regina Lúcia, ativista e intelectual do Movimento Negro Unificado (MNU).

A tomada de uma consciência crítica racial que contemple todas as dimensões e que desenhe futuros possíveis a partir da luta coletiva, é o que Regina espera ver garantido para seus netos.

“Eu já ouvi muito dos meus filhos, há alguns anos, que estava na hora de parar, que eu já tinha lutado muito, mas hoje eles entendem que não dá para parar. Já participei de muita luta, de muitas construções, mas o que [sigo acreditando] é que não dá para retroceder”, afirma Regina que já possui mais de 50 anos de militância política, sendo 30 anos de militância no movimento negro organizado.

Estrutura organizada a partir de territórios

A compreensão de que a população negra é diversa — seja em termos territoriais, educacionais ou políticos — foi o fio condutor que guiou a organização político-social do movimento, buscando dar conta dessa pluralidade presente no Brasil conforme as transformações históricas ao longo dos anos. A estrutura se organiza a partir do território em que cada militante está inserido, seja no trabalho, na educação ou em outras frentes de atuação. 

A partir daí, a mobilização permanece nos municípios e nos estados brasileiros, com distribuição de núcleos temáticos que possuem independência de ação, mas que seguem diretrizes bem delimitadas para incidir nacionalmente, inclusive, na política institucional.

Já no campo internacional, o movimento constrói articulações diversas, especialmente com organizações negras, coletivos de vítimas da negligência e violência de Estado, como movimentos de mães que perderam seus filhos e também aquelas que lutam pela libertação de familiares, inclusive do cárcere, em diferentes partes do mundo. 

Nesse sentido, Regina ressalta que, para o movimento social, estas alianças são compromissos inegociáveis de solidariedade e unidade na luta: “Precisamos derrotar o racismo enquanto política de controle da humanidade e enquanto política de reprodução do capital”, diz.

“Temos nos engajado em todas as lutas na defesa da vida, especialmente, das mulheres negras no Parlamento, pela indicação de mulheres negras ao STF, ao STJ, por exemplo”.

Regina Lúcia, liderança no Movimento Negro Unificado (MNU).

Nova geração, luta antiga

Aos 25 anos, a jovem estudante de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UNB) e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo, Brenna Vilanova, representa uma nova geração de militantes do MNU. Filha de uma trabalhadora doméstica e neta de nordestinos, ela diz que carrega na própria história a marca das desigualdades que atravessam a população negra brasileira.

Durante a pandemia de covid-19, a aproximação se estreitou. Em 2022, oficializou então sua filiação ao Movimento Negro Unificado em uma data simbólica. “Fiz a filiação em uma comemoração do dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Foi uma experiência muito gostosa de viver, não porque seja gostoso militar, pois a gente lida com muita dor, mas porque simbolizou um acolhimento, uma reconstrução de casa, de lar, que nós, pessoas negras, precisamos”, relembra.

Desde então, tem se dedicado especialmente a organizar a juventude negra dentro do movimento social Brasiliense. “Faço parte desta geração mais nova e tenho conseguido trazer outros jovens para dentro do MNU, [articulando] essa perspectiva de continuidade. Aprendo, todos os dias, com os mais velhos, mas também puxo os meus iguais e os meus mais novos. É isso que repito muito e sempre: o MNU, para mim, é uma escola de formação. Quando a gente aprende, a gente também tem que ensinar. É essa continuidade do legado, sem mudar a essência do MNU, mas renovando a forma de se organizar conforme o tempo em que a gente vive”.

“Temos dificuldade de trazer esses meninos negros para organização [político-social] que estão expostos à precarização do trabalho, falta de tempo. Ao mesmo tempo em que conseguimos colocar jovens negros dentro da academia, ainda falta alcançar muita gente que está nas quebradas: as mães negras, aquelas trabalhadoras que seguram tudo sozinhas”.

Brenna Vilanova, militante pelo MNU, estudante de Ciências Sociais e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo.

A compreensão da luta coletiva e construção de conhecimento faz parte do repertório da pesquisadora ao citar a ex-coordenadora nacional do MNU, Ieda Leal: “Certa vez, Ieda falou algo que me marcou profundamente: ‘eu não estava na escadaria em 1978, mas eu estava na carta de princípios’. Eu também me sinto assim. Nunca estive nas escadarias do Theatro Municipal junto com o MNU, em seu começo, mas sempre me senti pertencente”, compartilha. 

“Quando o movimento escreveu sobre a criança negra, sobre a juventude negra brasileira, sobre trabalho digno, eu estava ali. Eu sou fruto desse diálogo potente que o MNU faz”, destaca a jovem se referindo ao ato de fundação do MNU, realizado no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo.

Brenna menciona os contextos que representaram gargalos ao longo das décadas de construção coletiva, bem como os desafios atuais e futuros que enxerga com preocupação. “O MNU se funda denunciando o namoro do Brasil com o Apartheid. E até hoje a gente segue nessa estratégia internacional. O problema é que, ao mesmo tempo em que avançamos devagar no combate ao racismo, surge essa onda da extrema-direita, que é a nossa principal ameaça”, coloca.

“Quando você flexibiliza o discurso, quando libera conteúdo racista nas redes sociais, como o Elon Musk fez, por exemplo, isso se transforma em violência concreta nas periferias. Onde corpos negros não têm proteção social nem judicial, a violência aumenta”, ressalta Brenna sobre o avanço da extrema-direita.

Mesmo reconhecendo conquistas, como a lei de cotas e sua recente renovação, a ativista chama atenção para contradições existentes, inclusive, em governos progressistas. “Foi com o presidente Lula que [sancionamos] as ações afirmativas, mas, ao mesmo tempo, houve frustração quando não houve a indicação de uma mulher negra ao TSE. Mais uma vez ficamos de fora. Isso mostra como o povo negro no Brasil ainda precisa construir sua política sozinho”, observa.

“O Movimento Negro Unificado é uma escola de formação, e que a gente construa com os nossos mais velhos, com os nossos anciães, mas também com a juventude e com as crianças negras, pois é isso que irá garantir a continuidade dessa luta”.

Brenna Vilanova, militante pelo MNU, estudante de Ciências Sociais e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo.

Para ela, é a memória, somada à resistência que renova a esperança do povo negro para o fim do racismo como estrutura social. “Para quem veio antes, é só saudação e gratidão. Eu piso devagarinho neste caminho que foi aberto. E para quem está chegando, digo que o importante é pisar também, ocupar o lugar, se organizar”, finaliza.

Retrato de um punk, preto e periférico

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Como seu próprio vulgo indica, Regicida (matador de reis) nunca se acomodou ao lado dos poderosos, não fez e não faz concessão quando o assunto é o enfrentamento das desigualdades e da cultura racista e nazifacista que sempre rondou sua existência e a própria construção desse país.

Na matéria de hoje, na coluna que eu, Daniel Fagundes, mantenho aqui no Desenrola, decidi fazer de um modo diferente e entrevistar, dessa vez sem câmeras, esse jovem tiozinho de 40 anos, referência do nosso cinema periférico, preto e anarquista. Um importante realizador do que chamamos de cinema nacional, aquele cinema que revela as entranhas de um país que o nega historicamente em suas narrativas. Um cinema que não para, tendo ou não tendo recursos, pois a urgência das histórias e da forma de agir com a câmera não é pautada pelas armadilhas do capital.

Regicida é pai do Oruan, nasceu em Salto de Pirapora, mas cresceu na periferia da capital paulista, especificamente no bairro da Brasilândia, onde conheceu a cena cultural e de onde apontou pela primeira vez suas lentes para enaltecer o povo de luta do seu bairro e de outras quebradas. Entre seus filmes estão “Unindo Quebradas”, “25 de Julho – Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa”, “Metaleiras Negras”,  “Um Breve Relato” e “Confluências”, esse último, além de ser seu mais recente trabalho, é uma obra que resume de forma brilhante o pensamento do mestre quilombola Antônio Bispo e por consequência resume também a proposta política do cinema do próprio autor, confluir favelas, quilombos e aldeias. E como diria Nego Bispo, quando isso acontecer o ‘asfalto vai derreter!’.

Foto: Arquivo Regicida

Como iniciou nas artes, qual o primeiro contato com o mundo cultural?

Iniciei nas artes a partir do desenho, na escola eu era bastante dedicado nas aulas de artes e pegava tarefas extras com a professora que era desenhista, aprendi técnicas diferentes das que haviam no currículo escolar, disso caminhei para observar mais pinturas e fotografias.

Cabe comentar aqui que no ano de 2015 Regicida desenvolveu junto de Sônia Bischain e Enver Padovezzi o livro “Olhares da Brasa – Fotografia, Cultura Daqui”, uma linda homenagem em fotografias do território da Brasilândia. Conheça no link: (CLIQUE AQUI)

Como ingressou no movimento anarcopunk?

Desde muito cedo eu conheci o rolê Punk por estar nas ruas com o pessoal do Hip-Hop, andei com os UBC e alguns pixadores do bairro, na época sentia falta de um grupo organizadamente anarquista, logo me vi fazendo rolê com os punks e com isso me inseri nos ativismos políticos e manifestações de rua, onde fui inserido nos conceitos do AnarcoPunk.

Como iniciou a caminhada no audiovisual?

Audiovisual sempre foi para mim a ferramenta mais eficaz para acessar as pessoas, em comparação ao livro ou ao teatro e assim como as rádios, entendi que para falar com as pessoas eu precisava usar dessas ferramentas. Já fui zineiro, dos meus 13 anos de idade até os 26 produzi e co-produzi 4 zines e cada um com muitas edições. Com a gana de acessar mais pessoas resolvi encarar o caminho de aprender a gravar, roteirizar e editar, sou autodidata e com meu primeiro filme “Unindo Quebradas- AnarcoRap em São Paulo” vi que tinha potencial em acessar lugares e pessoas que meus zines ainda não haviam alcançado. Sempre destacando que a linguagem é uma poderosa ferramenta pedagógica e por trabalhar com educação popular e social sempre tenho audiovisual junto comigo nesses momentos.

Foto: Sonia Regina Bischain/Arquivo Regicida

Como vem pensando sua atuação no audiovisual desde o começo até agora? Quais os avanços e quais os principais desafios?

Eu começo no audiovisual de forma autodidata e forjando meus equipamentos para as produções acontecerem, passo por me estruturar e fundar uma produtora periférica e afro-indígena de audiovisual libertário a Do Morro Produções. Observando meus passos e refletindo sobre eles consigo criar métodos de ação e estruturo o ciclo de roteirizar assuntos, produzir gravações e exibir para o público, pois além de tudo venho conseguindo manter durante alguns anos um cineclube aqui na norte.

Entendendo a diferença que os cineclubes fazem na difusão das produções periféricas e mesmo contraculturais como as feitas por punks, pessoas do Hip-Hop e grupos ativistas no geral, nesse processo me desafiei a fundar um festival internacional de filmes, junto com minha irmã Marina Knup, o “Festival do Filme Anarquista e Punk de São Paulo”.

Nesses meus quase 20 anos de produções e organizando espaços voltados para a linguagem, percebi que os formatos mudaram bastante e as pessoas que querem acessar essas produções são outras, se mantivermos os mesmos costumes da minha geração e das gerações que vieram antes de mim, vamos acabar falando para nós mesmos e esse é um desafio que venho tentando enfrentar.

De que forma o seu envolvimento com a cultura anarcopunk é importante para o que você produz no campo audiovisual?

Alguns fundamentos que trago do AnarcoPunk me balizam para caminhar com minhas criações no audiovisual, e não falo apenas sobre os filmes. Fundar o Festival em São Paulo foi importante para diversas movidas pelo mundo, o que Marina Knup e eu iniciamos em 2012, de fundar o primeiro festival no Brasil voltado para produções punks e contraculturais, acabou inspirando outras organizações a entenderem que também podiam e hoje temos diversos outros festivais e mostras de audiovisual pela América Latina, que difundem material audiovisual punk, anarquista ou mesmo libertário.

Aproveite e fale mais do festival do filme anarquista e punk de São Paulo.

Então, como eu disse, o Festival surgiu em 2012 e o encerramos na sua 11ª edição, no ano passado [2024]. Anualmente reunimos de 30 a 40 produções de todo o planeta, alguns materiais que nunca haviam sido exibidos no Brasil foram trazidos para cá por nós, porque os parceiros mundo afora viram no festival um espaço potente onde poderiam exibir com qualidade seus filmes. Vimos coletivos de vídeo sendo criados para poderem produzir e exibir conosco, alimentamos uma chama que nossos cineclubes não estavam mais alcançando. Junto com Elaine Campos, Juliano Angelin, Ruivo Lopes, Clayton João e Joaquim Santos mantivemos uma boa bagunça todo mês de dezembro, mês que acontecia o festival.

O que você pensa sobre o discurso comum que coloca o punk e até a cena rock de forma mais ampla como um movimento de maioria branca?

Quem não conhece a própria história não saberá de onde veio e até mesmo para onde pode caminhar. O Rock é preto, nascido do Blues e desenvolvido por Sister Rosetta, tudo que se criou depois dela é uma disputa de discurso. Assim como o samba, a capoeira, a religiosidade e as tecnologias civilizatórias, tudo que foi concebido pelos africanos e as africanas em diáspora acabou sendo cooptado, de forma a se dizer que é branco para ser aceito pelos brancos e eles poderem consumir sem assumir o quanto temos a oferecer de cultura, história e filosofia.

Logo, acreditar nesse discurso de que o rock é musica de jovens brancos e o punk é uma cena de homens brancos é só mais uma idealização de consumo para mercantilizar fenômenos culturais de potência que são feitos por não brancos, e quem pensa o contrário está de chapéu atolado.

Como você tem feito o enfrentamento do racismo na sociedade pelo lugar do anarcopunk?

Meu enfrentamento vem através do resistir cotidianamente de cabeça erguida, Punk é ação direta e dá o exemplo prático sobre como existir sem se render a cultura do consumo, ir contra as relações mercadológicas e toda cosmofobia instaurada a gerações em nossas mentes.

Nem sempre estou blindado às questões que me atravessam, da mesma forma que atravessam meus pares e parentes pretos, indígenas e periféricos, mas sigo vivo com a Do Morro Produções, onde tenho esse foco no registro arquivista das memórias de militâncias periféricas libertárias.

E o Coletivo Malungo que se organiza a partir do propósito de forjar ambientes pedagógicos para se pensar sobre o quanto o racismo e a cosmofobia está impregnada nas estruturas educacionais e criar meios legais e até ilegais para a superação da visão  eurocêntrica que banaliza nossas vidas  cotidianamente, principalmente na educação e nas instituições escolares.

Você está há 17 anos no audiovisual, fazendo trabalhos autorais e colaborando com outras produções do cinemão também. Faça um levantamento breve dos principais trabalhos que você realizou e destes outros que atuou e, se possível, diga quais obras que mais curtiu trabalhar.

Assino meu primeiro trampo solo em 2008 e de lá para cá tenho cerca de 30 produções minhas ou que fiz parte. Unindo Quebradas (2008) é uma das que mais me marcaram, não apenas por ser minha primeira, mas também por ter conhecido muita gente durante as gravações (um dia lanço a continuação já gravada, mas nunca editada).

Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa (2013) é meu maior trabalho até hoje, me levou para lugares que nunca pensei estar e me fez crescer um pouco mais como ser humano. Tenho um curta sobre minha mãe onde me vi num desafio de registrar uma das pessoas que mais admiro, mas esse trabalho não quis lançar abertamente. Fiz fotografia para produções que estão na Netflix, Amazon e GloboPlay e me orgulho disso, assim como estar no catálogo da TodesPlay e AfroFlix. Poderia citar algumas produções feitas junto a grupo de jovens durante os cursos que promovo, mas deixo aqui a curiosidade para quem está lendo ir atrás.

No momento, meu último trabalho lançado é um curta que produzi sobre Antonio Bispo a partir do convívio que tive com ele. Fui feliz em ter durante alguns anos esse mano para trocar ideias, tomar cachaça, discutir e discordar em vários pontos, mas sempre aprendendo algo novo, com isso consegui registrar um pouco do Bispo lavrador, pai, avô e querido na cidade que morava, e não apenas o quilombola pensador cosmológico que nos deixou um grande legado em seus livros. “Confluências” (2020) trás parte desses registros que fiz em sua comunidade no Piauí, espero conseguir lançar um próximo trabalho mais amplo, que terá mais um pouco desses momentos que gravei com ele em vida.

Assista “Confluências”: https://www.youtube.com/watch?v=fi-4T8tdYDY

No momento político atual, como você acha que o audiovisual, o cineclubismo, a comunicação independente podem ampliar possibilidades de engajamento social nas quebradas? Quais experiências você tem conhecimento hoje que são boas referências nesse sentido?

Poderia citar algumas referências sobre como as quebradas estão avançando, mas quero pontuar apenas a APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro), pois mais pessoas precisam ter ciência que esse espaço existe e está muito ativo. Não vou comentar o que é a APAN, porque novamente quero que as mentes curiosas que estão lendo esse meu relato corram atrás de saber.

Quais os planos futuros de trabalho, de carreira, o que você tem pensado deste ponto em diante?

O futuro é algo que pouco penso sobre como será enquanto Do Morro Produções, pois vejo que se não mudar a forma de se fazer ficarei nostálgico e não é meu objetivo, quero falar para as gerações mais novas e talvez artisticamente não consiga, mas sei que tenho algo a dizer que os interessam, qual vai ser o formato ou a linguagem ainda estou tentando formular, mas passado um longo processo de depressão e agora recém saído desse buraco que a doença nos coloca, me vejo de novo nas pistas e disposto a voltar a botar fogo por aí, pois o regicídio está por vir.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Isso tem a ver com o fato de ser um projeto periférico”: pesquisa aponta centralização de recursos culturais na cidade de São Paulo

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Sentados no chão, reunidos em círculo, um dos jovens se direciona até o centro da roda para apresentar sua fala. Quem está ao redor observa e incentiva, assim o espaço vai ganhando movimento e forma. Essa é parte da rotina de apresentação teatral dos integrantes do coletivo Usina dos Atos, que mesmo com o desafio do financiamento, desde 2009, desenvolve projetos que unem arte, formação e impacto social na região da Cidade Tiradentes, Guaianases e São Mateus. 

A principal atividade do grupo é o Projeto Primeira Cena, criado em 2010, que envolve formação de jovens a partir de técnicas de teatro e dança, com duração de um ano. Em paralelo, participam de oficinas de política, comunicação e literatura.

Cai Teixeira, articuladora cultural e um dos mobilizadores, conta que já realizaram sete edições, com 17 turmas e 19 trabalhos artísticos circulando por diferentes territórios, com jovens da Cidade Tiradentes, Grajaú, Sapopemba e Campo Limpo. Muitas ações aconteceram no que chama de “guerrilha cultural”, sem recursos. “A última edição com recurso foi a sétima, entre 2022 e 2023. De 2009 a 2019, praticamente não tivemos financiamento, apenas em 2012 conseguimos algum apoio. Nesse período, tudo que fizemos foi na base de mobilização própria”.

Em 2019, a maioria das pessoas do coletivo conciliava outros trabalhos com as atividades do grupo, ano que Cai saiu do emprego fixo para se dedicar integralmente à iniciativa. Foi nesse momento que a produtora passou a estudar sobre captação de recursos.

O coletivo existe há 16 anos, sendo 11 registrado com CNPJ, pensado para captação. As atividades acontecem em parceria com espaços públicos ou ocupações. O Primeira Cena, projeto de arte-educação, ocorre principalmente no CEU Inácio Monteiro, na zona leste, parceiro desde 2011 e considerado o mais constante. Ao longo dos anos, as ações também já passaram por outros equipamentos, como o CEU Cidade Dutra, CEU Três Lagos, CEU Casa Blanca e a EMEF Miguel Ferreira, na zona sul, além da ocupação Mateus Santos, em Ermelino Matarazzo. 

“Começamos a buscar cursos e certificações importantes para acessar editais e financiamentos. A partir daí, conseguimos recursos algumas vezes e, em 2022 e 2023, acessamos o FUMCAD, que é um recurso muito bom, mas difícil [de acessar]. Com ele, conseguimos implementar o projeto em quatro regiões diferentes, atingindo o maior número de jovens simultaneamente”, relembra Cai.

Com acesso ao financiamento, as ações do grupo expandiram: realizaram a publicação de dramaturgias, lançamento do podcast “Diversamente” e estruturação de uma biblioteca digital, mesmo o valor não sendo suficiente para garantir recurso fixo aos jovens e para manter a sustentabilidade de todas as atividades. Um exemplo é o livro digital Periferia Esperança, que reúne a peça criada por jovens do Projeto 1ª CENA, da Usina dos Atos. A publicação funciona como registro e divulgação da dramaturgia periférica.

O FUMCAD é um fundo municipal voltado a projetos sociais que atendam especificamente crianças e adolescentes, com recursos destinados por pessoas físicas e jurídicas via imposto de renda e gestão do conselho municipal. Diferente da Rouanet, que é uma lei federal de incentivo à cultura e permite que empresas e pessoas físicas apoiem diretamente projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura, com foco na produção e difusão artística.

O coletivo já escreveu para ambos, mas não obteve aprovação nas etapas finais da Rouanet. “O Primeira Cena foi aprovado pelo Ministério da Cultura, via Lei Rouanet, mas travou justamente na etapa de captação do recurso, o que mostra que, de fato, o [dinheiro] não chega para nós, na periferia. O projeto é de cerca de 2 milhões de reais, um recurso bastante significativo, só que não conseguimos atrair empresas para apoiar. Quando chega nesta etapa, e inclusive ainda está apto para captar e temos tentado articular, não avançamos”, diz. 

“Isso tem tudo a ver com o fato de ser um projeto periférico, de não ter a visibilidade de artistas conhecidos ou de alguma instituição com nome mais forte e reconhecido”. Cai Teixeira, articuladora cultural e uma das mobilizadoras

Desigualdades no acesso à incentivos culturais

Maior concentração de recursos voltados à cultura no centro de São Paulo. É isso que os dados da pesquisa realizada pela Associação Cultural, Recreativa e Esportiva Bloco do Beco e o Observatório Ibira 30 mostram. O material traz um mapeamento sobre a distribuição dos recursos captados pela Lei Rouanet – mecanismo federal de incentivo cultural via renúncia fiscal, na cidade de São Paulo, entre 2014 e 2023, criado em parceria com a Fundação ABH e com a Universidade Federal do ABC (UFABC).

Entre os indicadores que evidenciam os padrões estruturais do financiamento cultural, é possível identificar que 88,86% dos recursos foram captados por projetos de regiões centrais da cidade de São Paulo, que abrigam 17% da população. Já nas periferias, onde vivem mais da metade dos paulistanos, foi distribuído 1,38% do total de recursos.

Segundo o estudo, projetos periféricos sofrem disparidades desde a submissão das propostas até a aprovação e captação de recursos, o que se relaciona com barreiras técnicas e institucionais. Ou seja, a lei existe, mas praticamente não chega. Quando chega, não é na sua totalidade.

Marcelo Zarzuela, um dos pesquisadores do Ibira 30, aponta que as leis de incentivo, em especial a Rouanet, precisam ser repensadas para incluir quem está fora do radar e promover soluções protagonizadas pelos territórios. “De fato, existe uma desigualdade imensa. A gente imaginava que ela estaria mais centro-periferia, mas não esperávamos que fosse tão grande. Essa concentração acontece em regiões específicas, como o chamado ‘corredor da cultura’, onde estão localizados os grandes centros culturais que ditam muito do que é cultura em São Paulo”, afirma ao citar sobre áreas periféricas que recebem 1,38% de todo o recurso, mesmo representando 50% da população da cidade. 

O pesquisador destaca que apesar do recurso ser público, quem decide para onde vai o dinheiro são as empresas. Em razão dessa estrutura, os equipamentos de maior porte não apenas são os maiores da cidade em termos de visibilidade, mas também os mais articulados com as empresas incentivadoras neste processo.

“Se a empresa decide para onde vai o dinheiro e esses equipamentos conseguem dar mais qualidade para contrapartida do que uma organização de periferia, com certeza o recurso será alocado lá, pois as empresas também trabalham com essa perspectiva da visibilidade [dos seus negócios]”, explica Marcelo sobre o processo que reforça os ciclos de exclusão cultural.

“Não se pode pensar que uma lei existe para reproduzir as mesmas desigualdades que a gente enxerga na cidade. Essa [Rouanet] é uma lei que está reproduzindo, historicamente, as mesmas desigualdades que a gente tem e já conhece”. Marcelo Zarzuela, pesquisador e um dos coordenadores da pesquisa desenvolvida pelo Ibira 30.

O pesquisador aponta que, a partir do cruzamento de dados, identificaram os locais de concentração do recurso. “Percebemos que as coisas se casam: domicílio em situação de precariedade é onde não se capta Rouanet. Educação de mais qualidade é onde se capta mais”.

Fatores raciais cruzam com marcadores socioeconômicos. Bairros periféricos identificados com alto índice de pobreza e infraestrutura precária, como Cidade Tiradentes, São Mateus e Jardim Ângela, concentram a maior parte das favelas, enquanto distritos centrais recebem a maior parte dos recursos. No Jardim Ângela, 53,3% das residências são favelas; em Moema, 0%. Pinheiros (IDH 0,942) captou R$ 1,2 bilhão, enquanto Parelheiros (IDH 0,680) não teve projetos aprovados.

A pesquisa aponta a divisão da cidade de São Paulo que está organizada em 96 distritos, distribuídos em 32 subprefeituras. São mais de 11 milhões de habitantes e cerca de 570 mil (média de 5%) vivem na região do M’Boi Mirim, território em que a pesquisa se aprofunda, que inclui os distritos Jardim São Luís e Jardim Ângela. 

A região do M’Boi Mirim, registrou 10 projetos que captaram recursos na última década, sendo 0,02% do total da cidade. Capão Redondo e Campo Limpo, que abrigam 9,39% da população, representam menos de 1% do montante arrecadado, com 35 projetos que captaram.

A concentração de recursos se dá principalmente em um raio de 5 km ao redor do centro expandido de São Paulo, o que representa 98% do total investido, com destaque para Pinheiros, que entre 2014 a 2023, responde por 20,36% de toda a captação municipal. 

A Lei de Fomento à Cultura da Periferia, resultado da luta dos movimentos culturais periféricos, busca um modelo oposto: 70% dos recursos devem ser alocados à Área 3 (regiões periféricas com alta vulnerabilidade social e domicílios com baixa renda); 23% à Área 2 (regiões intermediárias em termos de domicílios de baixa renda) e 7% às Áreas 1 e 4 (centro e demais regiões com menor vulnerabilidade), com redistribuição conforme vulnerabilidade social.

Na prática, em São Paulo, existem territórios que recebem maior apoio estatal. Exemplos de grandes proponentes na Rouanet incluem: MASP – Museu de Arte de São Paulo (R$ 235,7 mi), Fundação OSESP (R$ 190,7 mi), Fundação de Apoio à USP (R$ 176,5 mi), Fundação Bienal (R$ 154,2 mi), Museu de Arte Moderna de São Paulo (R$ 113,4 mi), todos localizados na área 1. 

Após aprovação, os projetos entram na fase de captação de recursos privados, etapa que depende da mobilização do proponente. A efetivação do recurso favorece quem tem redes consolidadas e conhecimento dos circuitos culturais. Mesmo São Paulo, que lidera nacionalmente em captação, apresenta grandes desigualdades territoriais. O Mapa da Desigualdade mostra que viver em certos distritos impacta diretamente o acesso a direitos básicos e serviços públicos.

Marcelo ressalta que muitas pessoas nas periferias deixaram de escrever projetos para a Lei Rouanet, pois até tiveram ações aprovadas, mas sem captação, isso pela dificuldade de ter acesso a um portfólio de empresas. 

“Um passo importante é uma coalizão pensando em ajudar a mobilizar as organizações periféricas a voltarem a escrever projetos para a Lei Rouanet”, sugere. Outro fator que o pesquisador coloca é que, a desigualdade constatada através da pesquisa, também tem relação com o que é considerado ou não cultura. 

Cai, da Usina dos Atos, afirma que existe uma tendência de enxergar arte apenas como grandes shows e eventos, o que apaga outras linguagens. Para ela, é necessário políticas públicas que incluam todas as formas de expressão artística, especialmente aquelas produzidas nas periferias. “Apesar de ser importante, a Lei Rouanet é muito excludente. Para muitas pessoas, ela parece tão complexa que nem tentam enviar projetos”. 

“O poder público, especialmente as prefeituras que deveriam investir mais em ações formativas voltadas para os artistas e coletivos, oferecendo espaços para que eles aprendam a elaborar projetos e entendam os processos necessários. Em paralelo, [as organizações] têm um papel fundamental neste processo, apoiando artistas e coletivos a se desenvolverem na arte e na cultura”, avalia a articuladora cultural.

Ela aponta que o movimento e agentes culturais periféricos se organizam em busca de políticas públicas que têm sofrido cortes, atrasos e descontinuidades.“Em paralelo, não deixamos de produzir nossa arte e cultura. Continuamos fazendo e existindo, muitas vezes com recursos próprios, juntando um pouco daqui, um pouco dali, ou mesmo sem edital, resistindo e promovendo transformação nas periferias, a partir daquilo em que acreditamos”. 

“No sentido financeiro ainda é difícil, porque as pessoas merecem receber pelo trabalho que realizam. Mas, felizmente, resistimos. Continuamos produzindo, fazendo arte, transformando, educando pessoas, construindo [novos olhares] e exercendo incidência política-cultural”, finaliza.

IA, plataformização e automação: O impacto colonial nas periferias 

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Oprê! Salve amigles, faz tempo, né? Estou aqui para tentar arranhar (ou manchar) as certezas do progresso, deixando aqui as minhas dúvidas de pobre preto e periférico. Trago aqui um tema grande, que eu não ouso esgotar, e para o qual quero olhar a partir de uma perspectiva cultural contra-colonial. 

Eu sou um usuário ativo de tecnologia, mas preciso escrever que o que eu vejo crescendo por aí é roubo colonial travestido de novidade. Na prática, há uma sofisticação do capitalismo para a tragédia de uma maioria pobre e não-branca das periferias do mundo. 

O que segue nos parágrafos seguintes pode parecer uma grande salada de confusão, e é isso mesmo. Estou confuso também. Talvez eu seja mais uma vítima da infodemia na rede mundial de internet.

Acho interessante descrever como me ocorreu escrever isso aqui. Eu estava no mercado, depois de correr pela quebrada e fazer meus exercícios. Fui comprar umas paradas para fazer uma canjica, adoro comer canjica no frio. Chegando no caixa do mercado para pagar, vejo que no local onde na semana anterior haviam cerca de oito funcionárias, tinham só duas. O restante dos espaços foram preenchidos por máquinas de autoatendimento. 

Bem, quem já me leu por aqui já deve saber, mas não custa lembrar: eu sou socialista, pan-afrikano, preto e periférico. 

De cara me ocorreu perguntar para algumas funcionárias, enquanto apontava para as máquinas: “Você não tem medo de perder seu trampo por causa disso não?”. As respostas me deixaram um tanto preocupado. Uma disse: “Para quem quer ser mandada embora isso é ótimo!”. Outra justificou: “Tem muita gente que falta bastante, daí o mercado resolveu testar”. Uma outra ainda afirmou: “Não tem volta. É o futuro”. 

As falas e a atmosfera meio que ecoaram algo que a gente vive ouvindo por aí: “Não dá para voltar para trás”, “não se pode evitar o futuro”, “é a inovação”, “é preciso otimizar o trabalho” e outros blá blá blá, que diga-se aqui são discursos derivados de propagandas que não foram criadas por pessoas pobres e periféricas do Sul Global. 

Essas são pseudo-verdades repetidas para vender na nossa sociedade que esse é o ÚNICO progresso possível. Essa propaganda é gringa, burguesa e brankkka – geralmente bilionária.

Voltei para casa e me peguei lembrando da Tereza, minha professora de História e da Sigrid, minha professora de Geografia. Lembro que as duas me influenciaram MUITO a ler um livro que foi importante na minha formação como pessoa: A invasão cultural Norte-Americana, de Júlia Falivene Alves. 

Um livro que detalha como a cultura estadunidense era nos anos 90, vendida como se fosse um avanço, a modernidade, e como essa venda de ideal era uma armadilha para nos colonizar culturalmente. 

E porque lembro desse livro? Acho que mesmo estando agora numa era de hiperinformação, temos pouco incentivo a optar por uma contranarrativa de defesa efetiva contra uma visão colonial. Nisso temos sido influenciades, cada vez mais, pelo pensamento estadunidense, colonial, que tende a vender que tudo que vem de fora é melhor. Não considerando a realidade local e nossas diferentes necessidades ou potencialidades em nosso território. 

Este livro citado, foi escrito no contexto da guerra fria dos anos 90, período em que Estados Unidos e Rússia disputavam a hegemonia bélica no mundo. Esse livro era uma das contra narrativas possíveis naquele tempo. Uma das que tive acesso nos anos 90. 

Hoje a disputa global é outra e tem novos protagonistas. Além de poder militar, as maiores potências disputam poder de influência cultural e algo ainda mais valioso: o acesso aos nossos dados nas redes. 

Voltando do mercado, pensava alto: Onde essas pessoas irão trabalhar? Como irão comer? Quais contra narrativas possíveis hoje? Spoiler: não tenho todas as respostas e você pode colaborar comentando esse texto. Agradeço!

Ao meu ver há dois sensos comuns no “Brasil” (sempre entre aspas), que nos deixam muito vulneráveis a influências externas. A primeira, é a Lei de Gerson, uma forma de agir tirando vantagem de tudo, que foi incutida na mente do povo “brasileiro” através da publicidade de uma marca de cigarros lá na década de 70. Essa forma de pensar, fez e faz com que muitas pessoas no “Brasil” queiram até hoje tirar o máximo de vantagens das situações do cotidiano, mesmo que isso seja desonesto, ou no fim, prejudicial à coletividade. 

Outro senso comum da “brasilidade” é o do complexo de “vira-lata”, que é o rebaixamento das pessoas daqui ao acharem que as melhores soluções tecnológicas vêm de fora do país, geralmente da Europa ou dos Estados Unidos. Partindo dessa lógica de rebaixamento, o que vem de fora é sempre melhor, superior, mais tecnológico, sendo um progresso “inevitável” e “desejável”, ainda mais num mundo globalizado como é hoje. 

Esses dois sensos comuns têm sido articulados pela extrema direita sobre as cabeças dos povos do chamado “terceiro mundo” (nós), e infelizmente essas duas visões de mundo são comuns e são difundidas e impulsionadas na mídia e nas redes sociais todos os dias.

Minha tese aqui é que essas duas paradas se articulam muito na cultural local do Brasil atual numa intensidade tanta, que mesmo entre as pessoas diretamente prejudicadas, há quem enxergue uma falsa praticidade na automação, na plataformização e nessa modernização desenfreada. Como se esses fenômenos fossem conjuntamente o anúncio de um único futuro possível, mesmo que, para isso, estejam perdendo empregos e entregando todos seus dados digitais aos países ricos do globo. 

Cedemos diariamente dados nas redes sociais, nos métodos de pagamento, nos streamings de vídeo, em todos cadastros feitos na internet, quando usamos ferramentas de inteligência artificial. 

Essa tem sido uma forma cotidiana das pessoas das periferias do mundo serem colonizadas, roubadas e extorquidas novamente, só que a distância, via internet banda larga e pagando por isso – logo, pagando duas vezes. 

Afinal, pensem comigo: Quem são as detentoras das tecnologias de automação e plataformas digitais e seus respectivos bancos de dados? São grandes empresas, geralmente do Norte global, que fazem a gestão dos bancos de dados e de toda informação que transita nesses serviços de pagamento automatizado e nos apps que usamos diariamente sem pensar nos efeitos colaterais coletivos. 

Deixo dúvidas aqui: Para que e a quem servem esses acúmulos de dados? Quem tem hegemonia sobre eles? Quem afinal lucra? São muitas perguntas e respostas possíveis, mas o dinheiro, no final, vai para fora do nosso país. Por fim, a “vantagem” é de quem coloniza. Sempre. A globalização faz e fez bem às chamadas “potências mundiais”, não a nós que somos parte da periferia do mundo. 

Dado importante, as principais empresas de banco de dados no Brasil atuam com tecnologias da Oracle (EUA), Microsoft (EUA) e MySQL (vendida à Oracle em 2010). No caso das redes sociais, a META lidera (também dos EUA e responsável pelo Instagram e WhatsApp). 

Resumo: fomos colônia de Portugal na nossa “fundação” e atualmente somos colônia digital dos Estados Unidos. Por isso a resistência da extrema direita mundial a regulamentação das redes sociais e internet. 

A digitalização de vários aspectos da vida cotidiana, que foi alardeada nos anos 2000 como sendo liberdade e modernidade, hoje visa apenas o lucro bilionário de poucos e a exploração de bilhões de pessoas. Sobretudo pessoas que vivem nas periferias do mundo, pessoas que não tem acesso a alta-tecnologia sendo agentes ativos e conscientes, mas sim sendo fonte, cobaia de experimentos sociais complexos que produzem escassez de trabalhos, solidão e uma crescente onda de problemas na saúde mental coletiva. 

Essa extrema digitalização não gera prosperidade, segue portanto projetando um cenário de crise no senso de coletividade e por isso vem causando diminuição crítica da capacidade de articulação coletiva. 

Pense, por exemplo, em como ficamos presos sozinhes em timelines infinitas e em como os algoritmos nos manipulam para cairmos em eternas propagandas de produtos inúteis ou de cursos fúteis e de baixa profundidade. 

Outro dado importante: o Brasil é o terceiro maior em acesso a redes sociais no mundo. Pense bem, esse não é um método cruel de desarticulação dos pobres e oprimidos de sempre, nós? 

Não é à toa que as lideranças das grandes empresas de tecnologia estadunidenses, as chamadas big techs, estavam e estão ao lado do presidente imperialista Donald Trump. Não à toa também que a maioria desses líderes são homens brankkkos bilionários. 

Se no contexto da guerra fria (anos 90), a briga entre Estados Unidos e Rússia era pela hegemonia global baseada em poderio cultural e militar, hoje, Estados Unidos e China disputam a hegemonia sobre matérias-primas minerais, essenciais para produtos tecnológicos, e uma hegemonia cultural e digital. Essa disputa chega nos fundões da periferia diariamente, através das redes sociais, aplicativos, serviços digitais e também das novas inteligências artificiais generativas.

Lembre por aí, nos últimos meses, quantas foram as tecnologias de inteligência artificial sendo divulgadas nas suas redes sociais, em links patrocinados ou em vídeos virais, como forma de tornar esse “futuro” mais atraente para você. Do filtro para transformar suas fotos em desenho animado, passando por vídeos gerados por IA, chegando até a criação de músicas e memes diversos. 

As grandes empresas de tecnologia dos bilionários, lembrando, geralmente ricos e brankkkos, cedem acessos “gratuitos” para que cada vez mais corpas e mentes sejam seduzidas pela “facilidade e praticidade”. Enquanto cedemos gentilmente nossos dados, informações sensíveis, direitos intelectuais e o mais importante, enquanto nos tornamos pessoas seduzidas a não pensar coletivamente sobre a importância da regulamentação para proteger empregos e proteger nossas mentes da fragilidade crescente em estarmos nos tornando pessoas cada vez menos capazes de conseguir construir relações humanas saudáveis presencialmente.

É importante lembrar que as relações humanas, geram, há milênios, a construção de habilidades sociais e culturais essenciais para a vida em sociedade e para resistência a sistemas autoritários.

Essa automação desenfreada, a inteligência artificial e a plataformização digital reproduz desigualdades seculares, rouba propriedades intelectuais, acelera a crise climática e não tem feito a classe trabalhadora e pobre trabalhar menos. Pelo contrário, a automação e a inteligência artificial tem diminuído, e muito, a renda das famílias periféricas. Tem gerado insegurança para o futuro de jovens, que muitas vezes não se vêem motivades a aprofundar estudos em áreas de atuação que são ameaçadas constantemente pela substituição digital que dizem que “vem por aí” e que “não tem volta”. 

Essa semana você já deve ter recebido um vídeo qualquer sobre como aprender a nova forma de trabalho revolucionária, que vai te fazer enriquecer ser sair de casa e sem ter que conviver com pessoas. Lembra? 

Pode parecer teoria da conspiração, mas é uma triste realidade. Vários dos bilionários americanos acreditam no transhumanismo, conceito para o qual o humano está em processo de superação do humano atual, para o alcance de uma transcendência, uma superação da criação de Deus através da tecnologia criada por bilionários. 

Ellon Musk, CEO da Tesla, é um dos que crêem nessa teoria. Essa “transcendência” idealizada por esses bilionários, segue a preceitos coloniais e eugenistas e por isso corpas racializadas, mulheres, povos originários são e serão descartados como a branquitude tanto tentou no século 18 e 19. 

Não à toa a grande briga dos países poderosos como os Estados Unidos é combater a regulamentação de ferramentas digitais. Esses “nobres senhores” trabalham para acabar com a soberania dos territórios periféricos por dentro, via influência através das redes e das “novas tecnologias”. Nessa era do capitalismo, é preciso haver regulação e, além disso, precisamos ter soberania de dados, ou seja, nossos próprios bancos de dados nacionais.

É algo um tanto quanto macabro. Procure por aí no Google como a mais avançada inteligência artificial, o GROK, de Elon Musk, classificou Hitler e o nazismo e se preocupe aqui junto comigo se for possível. Em notícia recente, o GROK fez apologias diretas ao nazismo e a supremacia brankkka

As inteligências artificiais mais avançadas e as grandes empresas de tecnologia tem donos que não estão pensando em ninguém além deles mesmos, no lucro e acúmulo de dinheiro, informação privilegiada e controle comportamental. 

Vale a pena pensarmos coletivamente sobre o uso moderado e ético da IA, problematizar a automação desenfreada e pensar em como governos e sociedades de países do Sul Global precisarão se debruçar com cuidado sobre a criação de bancos de dados soberanos, proteção de dados e de empregos. Legislações diversas que podem ser articuladas para proteger as novas gerações de uma pandemia de desigualdade social, de agravamento da violência e de reprodução generalizada e normalizada de opressões históricas, como racismo, xenofobia, machismo, lgbtqiapn+fobia, capacitismo, etc.

Importante que você saiba, que segundo matéria recente da TAB UOL, atualmente, no “Brasil”, mais de 12 milhões de pessoas têm usado a inteligência artificial para apoio psicológico. Ou seja, o que pode estar acontecendo é que uma pessoa que passa por diversos problemas pessoais e sociais, agravados pela solidão e pelo uso impensado de redes sociais, chega a recorrer por ferramentas digitais que podem e provavelmente vão piorar sua condição, enquanto privam essa pessoa de qualquer convívio saudável com pessoas de carne e osso. 

Em suma: eles vendem o problema e a “solução”. Isso não é teoria ou conspiração. Isso já está acontecendo.

Como eu disse no início desse texto, não tenho a pretensão de esgotar esse assunto, mas escrevo para me indignar e ressaltar a urgência de regulamentação das redes sociais. A urgência de dialogarmos sobre uso responsável, para que possamos refletir sobre como o capitalismo atual vem nos privando de direitos básicos como a convivência saudável, emprego e saúde mental. 

O campo da esquerda e do progressismo “brasileiro” não vem discutindo isso de forma ampla ou aprofundada. Muitas das lideranças inclusive caem no discurso fácil do “futuro inevitável”. 

A falsa praticidade aponta para algo mais complexo e profundo. Aponta para um capitalismo que quer te privar de ter casa, água, saúde mental, privacidade de dados e que quer te privar de uma real autonomia para fazer suas decisões, sejam de compra e de vida. 

Quando você for usar uma ferramenta de inteligência artificial, quando for usar da facilidade da automação ou quando for pedir algo pelo aplicativo, lembre que grande parte dessas tecnologias são, na verdade, velhas ferramentas coloniais que visam gerar lucro, exploração e o acúmulo de dinheiro na mão de poucas pessoas endinheiradas e encasteladas em ar condicionado. Provavelmente pessoas de fora do seu território mãe. Isso é colonialismo digital

Estamos em guerra. Precisamos pensar e agir sobre essa trincheira! Sua filha, sua sobrinha e seus descendentes diretos terão empregos e direitos garantidos se seguirmos teclando e cedendo nossos dados sem pensar?   

Saravá as mudanças!

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.


Oyá (Iansã) e Xangô: Orixás da transformação e força

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Nesta sessão, trago reflexões a partir do olhar ancestral que temos cultivado por aqui. Seguimos sendo surpreendidos por mudanças de rota, por caminhos que se desfazem e se refazem diante de nós. Tenho compartilhado minha visão sobre as forças que nos atravessam e nos convocam a novos desafios.

Como as águas, precisamos aprender a fluir, entregando-nos ao movimento, para então compreender o poder do fogo, que queima, transforma e nos empurra para grandes mudanças.

Hoje, convido à reflexão sobre o poder das divindades Oyá (Iansã) e Xangô.

Quem nunca se angustiou diante de um relâmpago cortando o céu, anunciando uma tempestade por meio de estrondosos trovões?

Diante de tamanha força, só nos resta reconhecer a grandiosidade do que nos transcende. Essas manifestações anunciam que algo será transformado, a vida como a conhecemos pode ser desfeita num sopro, e não temos controle sobre isso. Resta-nos apenas a consciência de nossa pequenez diante da força sagrada.

Quando criança, eu temia as tempestades. Queria me esconder, e o fazia: fechava os olhos e me cobria com o que acreditava ser proteção. Na inocência, pensava estar segura, quando, na verdade, apenas me refugiava no imaginário de uma segurança que não existia.

Na vida adulta, já sabemos que não há como se esconder das tempestades que a existência nos impõe. Somos chamados a encarar os ventos, os raios, a destruição e a transformação.

Não somos mais crianças, e fingir que tudo está sob controle é ilusão. Precisamos entender que não dominamos tudo. A vida exige entrega, fé, coragem e confiança na força dessas energias ancestrais que nos guiam.

As grandes mudanças, muitas vezes, vêm com dor. Quando a justiça não é ouvida, quando o entendimento nos escapa, quando tudo parece ruir, talvez não caiba buscar respostas imediatas, mas sim cultivar coragem para recomeçar, resiliência para reconstruir e sabedoria para seguir.

As tempestades, físicas ou simbólicas, sempre trazem um chamado: olhar para os erros, aprender com eles e seguir com mais equilíbrio e consciência.

Os ensinamentos que vêm da destruição e da reconstrução são regidos por forças que assustam, mas que também amam profundamente. O amor e a justiça de Oyá e Xangô, que regem o mês de julho, nos ensinam que há proteção, mesmo no caos. Que há amor, mesmo na dor. Que há justiça, mesmo quando tudo parece injusto.

Eparrey, Oyá! Kaô Kabecilê, Xangô!

Que nunca nos esqueçamos de que temos com quem contar, mesmo nos momentos mais difíceis. Sigo confiando no amor e na sabedoria de adulta, com o coração de uma criança.

Essa mesma força que parece destruir também é a que media as ações humanas e fortalece nossos passos. A analogia da tempestade nos ajuda a compreender os sinais da Terra, ventos, trovões e enchentes revelam não apenas as mudanças em nossas vidas, mas também as consequências de como tratamos o planeta. E sabemos: são sempre os mais vulneráveis que sofrem primeiro.

Na infância, escondíamo-nos sob os lençóis; na vida adulta, aprendemos ser preciso coragem. Coragem para olhar para dentro, descobrir a própria força e mudar de rota quando o caminho já não nos serve mais. Muitas vezes, somos perseguidos não pelos nossos erros, mas por nossa verdade, por aquilo que não está à venda, que resiste.

Xangô e Oyá cuidam dos seus. Protegem, mas também ensinam. Nos chamam à escuta, ao planejamento, à consciência espiritual e material. Nos convidam a desenvolver autoconfiança e a lutar por justiça, a nossa e a do mundo. Mas tudo isso só é possível quando nos abrimos para sentir, compreender e agir em alinhamento com essas forças.

Por fim, deixo mais uma imagem: a da tempestade que nos dilacera, mas também nos cura. Quando sentimos que tudo está desmoronando, é preciso lembrar que os trovões anunciam movimento. Que os relâmpagos revelam o que estava oculto. E que, após a tempestade, há sempre a possibilidade da bonança. Que venha o novo. Que venha a paz. Que venha a transformação.

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“A feira fez de mim uma pessoa melhor”: trabalhadores falam sobre feiras livres como espaço de geração de renda e coletividade

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Seja uma parada para comer aquele pastel com caldo de cana ou para comprar as frutas e legumes da semana, a feira livre é um ponto de encontro para muitos moradores das quebradas. Presente em diversos territórios, manter esse funcionamento depende de muitos trabalhadores que acordam cedo para abrir suas barracas e garantir a chegada de alimentos em diferentes casas. Atualmente são mais de 1 mil feiras espalhadas só na capital, o que soma mais de 70 mil empregos diretos, de acordo com a Secretaria Municipal das Subprefeituras.

Continuidade de um ciclo familiar, a primeira oportunidade de trabalho, o gosto por trabalhar com pessoas, por necessidade ou por escolha. São várias as histórias e motivações dos feirantes que percorrem a cidade com suas caixas de alimentos.

No Dia do Feirante, comemorado em 25 de agosto, trabalhadores destacam os laços criados através das feiras livres, além da geração de renda, que foi mudando ao longo dos anos. Mais atratividade e segurança nas ruas são citadas como fundamentais para que possam continuar atuando. 

Feirante desde os 13 anos, Charles Alves, 43, morador do bairro Jardim Mituzi, trabalha em Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo, e conta que a troca com as pessoas é uma experiência contínua de aprendizado e conhecimento. 

“Eu amo essa profissão. Já tentei sair, mas não consigo, me apeguei. Meu filho de 15 anos também trabalha na feira e ele gosta. Meu ex-patrão, que já faleceu, foi sempre muito importante [na minha trajetória]. Foi ele quem me ensinou tudo que sei hoje. Ver meu filho na mesma profissão me traz o sentimento de que estou ensinando a ele o caminho certo”. Charles Alves, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo.

Paulo Shigeru, 42, morador de Taboão da Serra, conta que começou a trabalhar nas feiras de Garça, no interior de São Paulo, quando era mais jovem. Sua família foi uma das primeiras a inaugurar as feiras populares da região. “A gente começou com alguns vendendo frutas, verduras e outros pastéis, mas praticamente toda minha família é de feirante”, compartilha. 

“Na feira sentimos liberdade para trabalhar e lidar com as pessoas. Nossa energia faz toda a diferença na venda. Se chegar cabisbaixo é difícil de vender. Quando possível, é legal também dar um desconto, abaixando um ou dois reais. Tudo isso aproxima a gente dos nossos clientes.” Paulo Shigeru, 42, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo.

Paulo conta que os preços dos alimentos variam dependendo do local. Na feira em que trabalha toda quarta e domingo, tem pessoas que saem de outras regiões até Taboão, por conta do valor. “Sei de duas moças que moram no Morumbi e se deslocam para cá só para comprar porque por lá os preços são bem mais altos. Aqui temos essa pegada de ser algo mais popular”.

“O mercado é muito relativo. Hoje a concorrência é grande, tem mercado, sacolão, até delivery de frutas e verduras. Sinto que é importante abrir espaço para outras oportunidades, diversificando o trabalho e por isso também faço entregas, pensando justamente em uma atuação diversificada, só que isso sem perder a essência [da rua]”. Paulo Shigeru, 42, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo. 

No Jardim São Carlos, distrito de Guaianases, zona leste de São Paulo, a feirante Letícia Batista, que é moradora de Itaim Paulista, trabalha na área há mais de 20 anos e, para ela, um dos pontos de melhoria para os trabalhadores das feiras é com relação à segurança.


“Minha família inteira trabalha na feira, desde os pequenos até os mais velhos. Isso vem desde o ventre mesmo. Fora que os amigos que a gente faz aqui também acabam se tornando família”. Letícia Batista, trabalha na feira do Jardim São Carlos, na zona leste de São Paulo. 

Letícia Batista, vende legumes variados na feira do Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo. Foto: João Santos/Desenrola.

Anitta Dourado, 51, feirante no Jardim São Carlos, reforça os desafios atuais. 

“Espero que o cenário melhore, que as coisas abaixem o preço pra gente poder voltar à movimentação que tinha antes. Antes era tão cheio que quase não tinha espaço [para circular]. Não é fácil, a gente pega chuva, pega sol, mas seguimos na luta”. Anitta Dourado, 51, é responsável pela barraca de ovos na feira de Jardim São Carlos.

Também na feira do Jardim São Carlos, a pasteleira Fabia José, 47, fala sobre as dificuldades de garantir qualidade ao consumidor e a diferença de lucro em comparação com alguns anos atrás. 

“A feira já não tem o mesmo rendimento de antes, principalmente depois da pandemia [da covid-19] e com a concorrência dos hortifrutis nos mercados. Ainda assim, eu amo o que faço. A gente passa mais tempo com o pessoal da feira do que com nossa família, criamos laços de carinho no dia a dia”. Fábia José, 47, pasteleira na feira de Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo.

Junto dela trabalha Joyce Karin que, orgulhosa, compartilha o que aprendeu na rua.“Hoje sei tratar melhor as pessoas, ouvir, acolher. Tenho um carinho enorme pela comunidade que está sempre presente, chegando para conversar e comer um pastel com caldo de cana”, diz.

“Eu até poderia ter seguido outro caminho, arrumar um serviço diferente, porque concluí os meus estudos, mas escolho estar aqui. A feira me transformou, me ensinou a ser uma pessoa melhor. Eu era muito ignorante, fechada no meu jeito, e com o tempo aprendi a mudar, a crescer como ser humano”. Joyce Karin trabalha na barraca de pastel na feira do Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo.

Cerca de 35km separam a feira do Jardim São Carlos, na zona Leste, do bairro Jardim Tiro ao Pombo, no distrito da Brasilândia, zona norte, local em que toda semana está Carlos Eduardo Bueno, 19, na barraca do morango.

“Tenho seis anos de feira, comecei [por influência da família] e desde então aprendi muita coisa. Comecei nas verduras, depois fui para os legumes e hoje estou nas frutas. Sempre tem mercadoria nova, sempre uma novidade. Sou muito grato, porque sem nossos clientes não somos nada”. Carlos Eduardo Bueno, 19, é morador do Jardim Guarani e trabalha na barraca de morango, no bairro Jardim Tiro ao Pombo, na Brasilândia, zona norte de São Paulo.

Coletividade, cooperação e pertencimento são falas e gestos comuns entre os trabalhadores das feiras e, aos fins de semana, espaço de distração para os moradores. É o que conta Gleice Kelly Rocha, que trabalha há 17 anos na feira.  

“Domingo, principalmente, é o dia de tomar aquele caldinho de cana e comer um pastelzinho. É o dia do povo. É o momento de se distrair. Apesar dos desafios do dia a dia [e de passar quase 24 horas juntos] a gente se entende e se respeita muito. Vamos revezando e sempre pensando em não deixar [a barraca] parar.” Gleice Kelly Rocha, moradora do bairro Casa Verde e dona de barraca de caldo de cana na feira do bairro Jardim Maria Luiza, no Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo.