Home Blog Page 67

O poder do olhar: um relato de alguns minutos na Avenida Paulista

0

 A fome me entristece, não por existir, mas por ser o fim que possui um planejamento governamental.

Avenida Paulista – Foto: @Menino_do_drone

No dia 25 de junho ando pela cidade, não êxito em procurar os contrastes, na Avenida Paulista muitos jovens pertencentes às classes mais abastadas, homens adultos vestidos de terno e gravata ou mulheres com saltos que custam o salário de um estagiário andavam ao lado da fome. Por toda Avenida desde a Consolação até chegar ao Parque Trianon era possível ver famílias inteiras em situação de rua, muitas crianças. O Censo da População em Situação de Rua 2019 divulgado em 2020 revelou que São Paulo teria a maior população de rua do Brasil, 24.344 pessoas e em sua maioria homens e negros, a fome tem cor neste país.

Para além do desprezo dos que se consideravam os verdadeiros cidadãos daquele lugar, poderia destacar as nuances do mundo do trabalho, muitos jovens em cima de uma bicicleta, muitas vezes sem máscara, com uma mochila térmica nas costas escrita Ifood, a informalidade ali se choca com a estabilidade de quem descia de roupa social dos prédios para ir almoçar.

Ao mesmo tempo, me chama atenção que não necessariamente quem tem poder aquisitivo toma mais cuidados contra a COVID-19. Nesses choques de realidade eu não sou apenas quem olha, mas faz parte daquela dinâmica, e penso que talvez a única coisa que unisse essas pessoas dos prédios com os entregadores de aplicativo fossem as máscaras de pano parecidas.

Contudo, me lembro que todos são trabalhadores, é fato, são as nuances do mundo do trabalho no capitalismo. Me reencontro com a crueldade de quem conta a história do Ifood como a narrativa empreendedora dos sonhos, isso me corrói.

Enquanto observo esses entregadores, em sua maioria homens jovens passarem rapidamente, me dou conta que já estou adentrando o Parque Trianon, sempre lotado de PM’s em volta, sempre sem máscaras, me pergunto a função do Estado, mas dentro do parque vejo jovens do colégio Dante caminhando, sorrindo, comendo no parque, uma vida tranquila, se destacam pois na frente do parque passam e se sentam pessoas em situação de rua que muitas vezes pedem comida, o desespero da fome mora ao lado da tranquilidade.

Nessa narrativa eu também evito olhar para muitas dessas famílias, eu tento, assim como aprendemos durante a vida na cidade, é um fato, eu não poderia ajudar todos. A fome me entristece, não por existir, mas por ser o fim que possui um planejamento governamental.

Estou em São Paulo, a selva e cidade mais rica, nesse momento lembro do aviso da minha mãe para prestar atenção no aumento de roubos na Avenida Paulista, não era minha primeira vez andando ali, mas eu relembrava desse aviso. Era a falta de política pública, era a ausência de Estado ou a presença de um Estado com um fim planejado onde nós morremos? Ou vamos nos matar?

Era fato, eu estava em meio a riqueza, mas o dinheiro não estava distribuído. 

A Avenida se torna aqui a forma mais simples de analisar os contrastes e os aumentos das vulnerabilidades na pandemia, nesse momento estou trabalhando meu olhar, me lembro de Roberto Cardoso de Oliveira, a presença da universidade nessa narrativa passa também a ser um fator importante sobre o recorte do meu olhar.

O trabalho informal está presente ali, na figura dos entregadores da Rappi ou Ifood e nos motoristas de aplicativos como Uber, são diferentes nuances que apresentam uma realidade óbvia, a pandemia não é igual para todos e esse governo com certeza agravou os problemas relacionados ao desemprego.

Nessa hora me lembro de um domingo, 4 de abril onde eu estava também na Avenida Paulista, porém desta vez dentro de um Uber, era Domingo de Páscoa e o motorista não parecia muito animado, no fim do nosso percurso uma mulher adulta com dois filhos pequenos bate no vidro do carro, ela pedia algo para dar de comer aos filhos, era a fome e a informalidade na minha frente, era se entristecer por trabalhar em um feriado e não ter o que comer no feriado. Eu não tinha nada além de uma barra de chocolate com cereja que quando dei para ela senti vontade de chorar, relembrar isso não é me enaltecer, mas relembrar o olhar. Com quais olhos nós estamos observando nossa realidade?

Novamente, no dia 12 de abril pego outro Uber também em direção à Avenida Paulista, em poucos minutos o motorista que era um rapaz jovem, simpático e bem aberto me conta sua história: formado na área de tecnologia saiu do Pará para ‘tentar a vida’ em São Paulo, a informalidade que era temporária era atravessada por uma entrevista importante que ele tinha às 15h, seu pedido era a torcida para que conseguisse a estabilidade, o sonho era chegar ao topo do capitalismo. Aqui eu já treinava meus ouvidos para abandonar minhas crenças, mas ele ainda carregava o afeto e eu realmente torço por esse rapaz até agora. 

A realidade é sensível. 

Dentro de todas essas narrativas que reescreverei após ler alguns artigos sobre trabalho e juventude, relembro um trecho que fala do trabalho no sentido tripalium que segundo ALBORNOZ é um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes ainda munidos de pontas de ferro, no qual agricultores bateriam o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasgá-los e esfiapa-los … A tripalium se liga ao verbo do latim vulgar tripaliare, que significa torturar.

Nessas narrativas a maior parte das pessoas não pareciam ter escolhido seus postos, ninguém escolhe trabalhar na informalidade onde se você não corre risco você não come. Além disso, essas narrativas são marcadas por meus encontros com pessoas jovens, isso me sensibiliza, qual nosso futuro? Nossos males? Nossas doenças? Existiria um remédio para após o fim planejado? 

O fato é óbvio e claro, estamos morrendo como o planejado. 

“O que eu vou ser quando eu crescer? Quer dizer, se eu crescer, se eu não morrer.” 

Facção Central, 12 de Outubro

“A gente tá fazendo uma revolução”, afirma Aline Brito, mãe, sapatão, educadora e periférica

0

Como o dia do orgulho LGBT atravessa a vida das sapatonas que são da quebrada? Como é ser sapatona, periférica e mãe? Essas são algumas das perguntas que permeiam essa reportagem. Vamos falar sobre as lutas por visibilidade, amor, afeto e construção familiar entre corpos que nem sempre são lembrados no Dia Internacional do Orgulho LGBT.

Aline e Alexandra com suas crianças e seus cachorros tomando um sol na varanda de sua casa (Creditos: Fernanda Piccolo)

Hoje, dia 28 de junho, é o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Data marcada pela revolta da comunidade LGBT contra uma série de invasões da polícia de Nova York aos bares que eram frequentados pela comunidade. Essa luta se deu em diversos eventos e protestos de ruas que ficou conhecido como a Rebelião de Stonewall Inn.

O Brasil já foi palco do maior protesto LGBT do mundo, ação que aconteceu em São Paulo e chegou a somar 5 milhões de pessoas na rua em 2017 e entrou no recorde mundial do Guinness Book. O primeiro evento aconteceu no ano de 1995, no Rio de Janeiro. A mobilização começou dentro da 17° conferência da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex, e ocupou as ruas de São Paulo pela primeira vez em 1996.

Atualmente, um dos marcos nessa luta é a Parada do orgulho LGBT, evento que acontece anualmente na Avenida Paulista e que conta com grandes marcas e mídias estampando as cores das bandeiras LGBT.

Mas o que é ser lésbica na quebrada? O que é ser lesbica moradora do Capão Redondo? O que é ser lésbica, moradora da quebrada e mãe? O que é dupla maternidade? Como é constituir família sendo uma corpa preta, sapatão e de quebrada? Como é para os corpos que não são vistos dentro do dia internacional do orgulho LGBT?

Aline Cristina Brito da Costa Custódia, 24 anos, nascida em Santos, moradora do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, território onde trabalha como educadora social na Fábrica de Cultura e Alessandra Santos de Oliveira, 30 anos, confeiteira independente. Elas são as mães de Jamal e Jawari, e criadoras do perfil no instagram Maternidade Sapatão, onde elas compartilham a maternidade entre corpas sapatões como algo possível e o dia a dia de duas mães de quebrada.

“Com a página Maternidade Sapatão, a gente se tornou referência pra quebrada sabe, confesso que eu me tornei referência para mim mesma, porque agora quando eu abro o instagram e vejo o maternidade, fico ‘olha existe um casal de duas mães pretas sabe’, eu fico muito emocionada com a nossa história”, conta Aline Brito.

Ela afirma que ama ser mãe, principalmete ser uma mãe preta: “Ser mãe é foda, eu amo ser mãe, e o que eu mais gosto é de ser mãe preta, e eu acho que as mães pretas são muito zikas, ta ligado. Confesso que as mães pretas são verdadeiras deusas mesmos, espero um dia me tornar uma mãe tão foda quanto a minha mãe sabe, é a questão do revolucionario, né”, afirma Aline Brito.

“O amor é um bagulho muito negado, muito negado pra mulher preta né, então eu acho muito foda a gente ter uma família com duas mães pretas, de ter essa resistência, e ser esse amor preto, a gente ta fazendo uma revolução.” Aline Brito

 Brito conta como esse amor nasceu e como o território do Capão Redondo, que é onde elas moram hoje, foi a terra desse amor. “A gente se conheceu na sarrada do brejo, que era uma festa né, só de sapatão e bissexual, aí depois começamos a trocar ideia pelas redes sociais, e aí papo vem e papo vai, ela me cozinhando, 5 meses depois, a gente se trombou no Capão”.

Ela compartilha que o Capão Redondo sempre esteve presente na vida e história de amor das duas. “O Capão sempre esteve presente na nossa vida, na nossa história de amor. Nosso primeiro beijo foi no Capão, e depois se trombamo lá de novo, e desde então a gente tá junta né, desde 11 de abril de 2018, é nossa data mesmo, porque é isso, a gente é sapatão, é intensa”, afirma.

Aline e Alessandra foram morar juntas em 2019, quando já sentiam que não conseguiam ficar mais uma longe da outra e nem ficar se deslocando de um canto para outro da cidade para viver esse amor de pertinho.

“Quando foi em 2019, a gente decidiu morar juntas, porque é isso né, eu morava lá na Cidade Tiradentes, no fundão da leste e ela morava na zona sul né, lá na Chácara Santana, era 3 horas né, mó rolê atravessando a cidade, a gente vinha ficava dois, três dias na casa dela, ficava dois, três dias na minha casa né, daí a gente chegou a conclusão que já estávamos morando juntas, só que tava pagando dois aluguel”, relata Aline.

Ela conta que quando percebiam já estavam o mês todo juntas e não conseguiamos mais ficar longe uma da outra, então resolveram ir morar juntas e alugar uma casa maior. “A gente já tinha uma ideia de alugar uma casa grande, com quintal, com espaço para ter cachorro e tudo, com dois quartos, um para nois e outro para estudar, pra jogos, quem sabe filhos”, conta. 

“A gente conseguiu registrar os meninos certinho, inclusive a gente foi o primeiro casal a registrar dois filhos legítimos no nosso nome, um casal de duas mães, no cartório de Capão Redondo”

Creditos: Fernanda Piccolo

Alinexu, como Aline Brito é conhecida na sua quebrada, conta que a vontade maior dela e da sua companheira Alessandra, serem mães, veio de quando elas cuidavam da bebê de uma amiga para ela ir trabalhar.

“Uma amiga nossa, aqui da quebrada, teve uma bebê, é mãe solo, tava sempre no corre, não tinha com quem deixar a bebê e começamos a cuidar dela aos finais de semana, e aquilo mexeu com a gente. E a Dessa é uma bebezinha pretinha a coisa mais linda, ela chegava aqui bem cedo, às vezes ela fica dois dias aqui sabe, e aquela coisa de dar comida, trocar a bebê, dar banho, tudo e tal. Foi mexendo com a gente, coçando o útero né”, compartilha Aline.

Aline e Alessandra sempre tiveram e compartilharam dos planos de serem mães e construir uma família: “Até que um belo dia, a Ale, falou ‘mano é isso, eu quero ter um bebê, eu quero ser mãe, tô pronta, acho que tá na hora, a gente pode ter um bebê, né?’. E eu vamos, e a gente sempre trocou muito, sempre foi algo que estava dentro dos nossos planos, casar, de ser mãe, de ter uma família”, afirma.

Com o objetivo e planos conjuntos, Brito conta que então começaram a pensar na fertilização caseira e no processo de fertilização em vitro, que consiste na coleta dos gametas fora do útero para transferir o embrião depois.

“Começamos a pensar em como, pensamos na fertilização caseira, até pelo preço e tudo.. Por que para gente que é LGBT ter filho, tem muito a ver com uma questão social. Se você for fazer uma fertilização em vitro, que foi o nosso caso, é muito caro, é tipo 30, 40 mil, é um absurdo, não era nosso plano inicial fazer em vitro, mesmo que fosse até juntar esse valor né, juntar 40 mil reais para o tratamento, era muito dinheiro, a gente ia trabalhar a vida inteira, e guardar dinheiro para ser mãe, e a gente queria ser agora”, relata Aline. 

“Colocamos o pé no chão, ‘vamos ser mães, vamos fazer uma fertilização caseira, mas se der certo, como vai ser’, pensamos em ficar uns dois anos aí guardando um dinheiro, pra ter esse pé de meia mesmo sabe”

Alinexu conta que o plano de esperar esse tempo mudou, quando elas tiveram a chance de engravidar com o apoio de uma clínica. “Passou um tempo e Orixá abençoou a gente grandemente, uma mina que a gente conhece foi fazer útero solidário em uma clínica, aí lá eles estavam precisando de uma mina preta, de preferência de pele escura que quisesse doar óvulos e em troca ganharia a gestação, engravidar através do método de ovodoação compartilhada”, compartilha.

A moradora do Capão Redondo afirma que de início ficaram receosas se deveriam aceitar ou não. “O bagulho era pá pum assim, já ir na clínica, começar o tratamento, eles estavam com uma urgência, e a gente ficou pensando quando será que vamos ter essa oportunidade de novo né, e ainda mais de uma forma acessível assim. Inclusive é isso, esse método de ovodoação compartilhada que as clínicas têm feito, tem fortalecido várias mães de quebrada aí, a se tornarem mães, aí a gente aceitou”, coloca Aline.

Elas começaram o tratamento em dezembro de 2019 e “Dia 20 foi a transferência dos embriões pro útero da Ale e dia 28 de fevereiro a gente comprou o teste de gravidez de farmacia e deu positivo, e o mais doido é que foram transferidos dois embriões pro útero da Ale, ‘e aí será que vai vir gêmeos?'”, comenta.

“Esse plano de ser mãe, de ter filhos, de formar uma família tá ligado, viver aquele continho de fadas mesmo sabe, talvez a gente só tenha essa oportunidade de engravidar na vida, então que venha dois logo” 

Creditos: IsabelliVasco

Aline também conta como foi o processo de lactação e que o plano delas dentro dessa maternidade era também ter uma amamentação dupla.

“Eu passei pelo processo de introdução da lactação, a gente sabia que era possível a questão da dupla amamentação e a gente contatou uma obcestricia aqui da quebrada bem foda, inclusive é ali do Jangadeiro, fomos conversar com a Nabe, e ela disse que era super possível sim, e que ia foratalecer a gente nisso”, relata.

Ela conta que com a ajuda de uma profissional, também da quebrada, começou o processo de introdução da lactação: “é simples, é fácil, e eu falo que é fácil porque eu era das pessoas que pensava, ‘será que tem que fazer uma cirurgia ou algo assim?’, e não é, precisa fazer o uso de uma medicação, precisa de auxílio com os estímulos, com aquelas bombinhas sabe de tirar leite, e tem que ser acompanhada, eu fui acompanhada pela Nabe”, ela reforça que não é apenas ir na farmacia e comprar o remédio, é necessário auxílio e acompanhamento profissional. 

“É todo um processo, e é isso, comecei a produzir leite, estou produzindo, estou amamentando, mas fica aí o salve para as minas de quebrada que é possível sim, duas mães amamentar, ou até se você adotar um bebe, é possível amamentar, a gente divide a amamentação e da para os dois”

 A educadora conta que a ideia do instagram surgiu a partir de uma procura das duas na rede por famílias de duas mães pretas, ou dois pais pretos e não encontraram. “Decidimos por nosso corre na internet através do Maternidade Sapatão, passando nossa vivência de quebrada, e também para mostrar que é possível pras sapatão de quebrada aí, pras mina que é possível sim, a gente formar nossa família de dupla maternidade, de dupla paternidade, que seja com adoção, que seja com fertilização caseira, que seja com a fertilização em vitro”.

Ela afirma que mostram o dia a dia real delas como mães pretas e periféricas: “A gente mostra nosso corre de quebrada mesmo, das mães que vão comprar roupa lá no japoneses Santo Amaro, é isso, a gente mostra que é possível, e mostra como podemos ser uma mãe de quebrada normal”.

Brito relata como foi o processo de registro das crianças, já que elas foram o primeiro casal homoafetivo a registrar dois filhos no cartório do Capão Redondo, território que de novo marca os passos mais importantes do casal.

“A gente conseguiu registrar os meninos certinho, inclusive a gente foi o primeiro casal a registrar dois filhos legítimos no nosso nome, um casal de duas mães, no cartório de Capão Redondo, nossos filhos bem de quebrada mesmo, eles só não são mais de quebrada porque eles nasceram no Hospital São Paulo, lá pra Vila Mariana [risadas]”, conta Aline que complementa ressaltando que queriam que as crianças tivessem nascido no M’Boi Mirim, mas o hospital estava com foco de atendimento a covid-19.

“nois é o primeiro casal de mulheres a registrar duas crianças no Capão mano, mas tá lá na legislação que quando chega com declaração da clínica, o papel de recém nascidos e nossos rg, eles tem que registrar, o casal não precisa estar casado, no caso da fertilização em vitro não precisa”

A quebrada como espaço de afirmação e construção identitária

Creditos:Fernanda Piccolo

“Eu não me sinto tão representada, na questão do lgbtqia+, eu acho que inclusive é uma bandeira muito conhecida pelos homens gays, tão sempre lá no movimento, os homens gays, brancos, quando vai umas mulher, é umas mulher branca, quando vai pessoas trans, são homens trans brancos, mulheres trans brancas, é muito diferente da vivência, a gente que é da quebrada, a gente tem uma vivência mais vida loca, mais miliduca com as minas travesti tá ligado”, coloca Aline sobre questionar essa representatividade do orgulho lgbtqi+ que ainda não chega em seus corpos e muito menos em seu território.

Aline relembra que não é apenas um dia de representatividade que a mídia precisa divulgar, mas mostrar um cotidiano diário pela sobrevivência que pessoas lgbtqia+ precisam ter dentro da quebrada;

“Como as minas travesti, preta, que tava la no corre a mó tempão, ta ligado, os manos trans aí, que tão no corre pra pagar 200 conto em uma ampola de hormônio, ai quando levanta essas bandeiras do lgbtqia+ na internet, por exemplo, eu vejo uma galera branca ta ligado”, coloca Brito, questionando o modelo de representatividade que invibializa outros corpos da mesma comunidade.

“E se não tá representando a quebrada, não me representa, tá ligado, e é isso”

A educadora ressalta que existe artista de quebrada trazendo essa narrativa, porém ainda acredita que é pouco perto de toda grandeza territorial que o território possui e não é reconhecida.

“Tem por exemplo a Jup do Bairro, que é aqui da quebrada, que é aqui da zona sul, a gente tem a Lin da Quebrada lá do fundão, lá da zona leste, são as minas da quebrada que já estão chegando no rolê, mas eu acho que ainda tá faltando um pouco mais sabe”, afirma Aline.

Se reapropriar de termos pejorativos e transformar isso no seu objeto de fala. “Eu sou sapatão, eu sou da quebrada, a gente que é da quebrada a gente se reapropria do sapatão, é isso mesmo, eu sou sapatão”, reafirma Aline, reforçando que já existe uma cultura sapatão de quebrada com suas vestimentas e modos. 

“Mas falando assim de nós, da sapata de quebrada, com bermudão, chinelão, camisão e tal, muita de nós assim já nasce sapatão, já vem pro mundo sendo sapatão”

Ela aponta que apenas pode falar sobre o que vive, que é ser uma sapatão na quebrada: “Eu gosto de falar que eu tenho muito orgulho de ser sapatão, não falar orgulho de ser lbtqia+, eu falo sapatão, é o que eu sou, é a bandeira que eu levanto, que eu represento, eu acho quando eu falo orgulho de ser lbtqia+ eu to levantando outras bandeiras, não to falando que eu não tenho que levantar a bandeira das minhas trans, das minas bi, só que eu acredito muito também de lugar de fala, tá ligado”.

 O amor cura

creditos:Binho Cidral

Aline conta que Alexandra mora perto de sua família, porém sua avó teve dificuldade para aceitar sua escolha em amar outras mulheres. “Embora ela tenha o espaço no quintal da vó dela, a vó dela falou que é isso, ‘o diabo não vai fazer filho aqui no meu quintal, então já que você quer se relacionar com mulher você pode se retirar daqui’, então tá bom, é isso, aí ela foi pra fora, morar com outra mulher”, compartilha Aline sobre o momento fase que sua companheira saiu de casa por sua avó não aceitar suas escolhas.

“Aí ela se reaproximou da família dela, morando comigo, mas aí nos role de família, nos eventos, eu não podia entrar na casa da vó da Ale, só na casa do pai da Ale, e eu só podia ficar no máximo, na casa da vó dela até o quintal”

Aline conta que o restante da familia de Ale era totalmente receptiva: “Lá no quintal da família dela mora a tia, o pai, a sobrinha, morava o primo e todo mundo lá gosta de mim, todo mundo super me aceita, ai quando a avó ia pro culto, era engraçado que a tia falava assim, ‘olha a vó foi pra igreja, vem aqui com a Aline que ela foi pra igreja’, aí quando a Dona Lurdes ia pra igreja eu entrava lá, comia, jantava de boas”, conta Aline, que quando a avó da Ale estava elas não tinham esse convívio antes dos filhos chegarem na família.

Porém, quando os bebês chegaram algo se modificou, todas as crenças que sua avó tinha construído foram modificadas quando pegou os gêmeos no colo.

“Aí depois que os meninos nasceu ela ficou meio embaralhada, falou mano, como assim, duas mulheres, dois filhos, ela só tem 80 né, pra ela entender e absorver tudo isso foi um grande processo, e é isso, ela entendeu, absorveu, hoje eu posso super entrar no quintal”, conta Aline, que afirma não carregar ressentimentos desse processo por entender suas vivências e crenças.

“Eu entendo também que o cristianismo é foda, que a igreja é foda mesmo, pega sua mente, é tipo isso pra uma mulher que é cristã sua vida inteira, que tem 80, ai eu querer chegar do nada e falar, sou mesmo, mulher da Alexandra e tal, aceita ai, sendo que naturalmente ela ja compreendeu isso”

Aline ainda detalha como o comportamento da avó de Alessandra mudou depois da convivência com os bebês. “O orixá já clareou a cabeça dela, que é isso a neta dela é sapatão, além de ser sapatão é mãe, com uma outra mulher sapatão que tem dois filhos sabe, e ela é bisavó dos meninos, então ela super apaixonada também pelos meninos, ela adora, a gente acha engraçado”.

A avó tem dificuldade de falar o nome das crianças, Jamal e Jawari, mas “quando ela ta aqui do lado, ela fala, eu não peguei esse daqui no colo, me dá esse aqui, e fica, agora me dá esse daqui, e ela não sabe falar o nome dele, que é meio difícil, e a gente achou muito engraçadinho, muito fofinho tá ligado, então é isso”, conta Aline.

Ao falar sobre o futuro de sua família, Aline e Alessandra trazem como referência o documentário chamado Brazil – Jurema e Nicinha, que fala sobre o amor de duas mulheres aos 43 anos, que moram na favela da Rocinha do Rio de Janeiro.

“É esse legado que a gente quer deixar, é o legado da Nicinha e da Jurema, é do amor, de resistência, de 40 anos aí, formando filhos, netos, tá ligado. E essa queda também, a gente tem sempre essa questão da solidão da mulher preta, tantas minas preta solitária no mundo, aí é isso sabe, a gente ser duas mulheres preta que se amam já é uma puta revolução, porque é isso, o amor preto, o afeto, é negado sim pra mulher preta”, finaliza Aline. 

Ocupação Artística Canhoba lança programação virtual de teatro, circo e mágica

0

A mostra #CanhobaOnline traz atividades mensais que contam com apresentações e bate-papo com os artistas que fazem parte da ocupação localizada em Perus, zona norte de São Paulo. 

Foto do Núcleo Absurda Confraria

 Começa neste sábado, dia 26 de junho, a programação teatral da #CanhobaOnline, a mostra virtual da Ocupação Artística Canhoba. Com curadoria do Grupo Pandora de Teatro, a programação conta com uma atividade por mês e será transmitida pela página do Facebook e pelo canal no Youtube da Ocupação Artística Canhoba de forma gratuita.

A Ocupação Artística Canhoba prevê atividades até dezembro de 2022 neste formato virtual. As apresentações artísticas deste ano serão realizadas pelos grupos As Tapijás Cia de Teatro, Núcleo Absurda Confraria, Ereoatá Teatro de Bonecos, Cia da Varanda, Cia. Teatral Enchendo Laje & Soltando Pipa, além das apresentações dos mágicos Edson e Kevin Iwasaki.

Sede do Grupo Pandora de Teatro, coletivo responsável pela curadoria da temporada #CanhobaOnline, a Ocupação Artística Canhoba é um espaço público localizado em Perus, zona norte de São Paulo e que foi construído em 2010 pela prefeitura. Porém, a obra foi paralisada e em 2016, em parceria com moradores locais, artistas e coletivos, o espaço foi revitalizado e se transformou em um polo cultural aberto ao público.

Confira a programação: 

Temporada #CanhobaOnline

Onde assistir: Facebook e Youtube – Ocupação Artística Canhoba 

Espetáculo teatral “As Contadeiras e seus Canteiros” com As Tapijás Cia de Teatro
26 de junho de 2021 (sábado), às 18h.

Sinopse: História de uma garotinha muito curiosa que procurava sempre entender o significado das coisas. Um dia ela teve o desafio de encontrar o significado de seu nome e com isso descobriu muito sobre si mesma e sobre sua ancestralidade.
Duração: 15 minutos | Classificação indicativa: Livre
Com bate-papo após a apresentação sobre o tema “Criação a partir do território”.


Próximas atrações:

Espetáculo teatral e circense “Circo de Bolso” com Núcleo Absurda Confraria
31 de julho de 2021 (sábado), às 18h.

Sinopse: O espetáculo é encenado por um acrobata-músico e uma palhaça arauto, que homenageia artistas que ocupam espaços não consagrados da arte, como o entorno de um picadeiro, as feiras livres, os festejos na praça, os corredores de metrô, entre outros.
Duração: 40 minutos | Classificação indicativa: Livre
Com bate-papo após a apresentação sobre o tema “Desafios na criação para o formato digital”.


Espetáculo teatral “Metamorfose” com Ereoatá Teatro de Bonecos
28 de agosto de 2021 (sábado), às 18h.

Sinopse: O espetáculo apresenta a rotina de um senhor sertanejo, vivendo as dificuldades da seca que assola o sertão. Em seu universo solitário, ele acaba descobrindo um mundo além das fronteiras da imaginação.
Duração: 30 minutos | Classificação indicativa: Livre
Bate-papo após a apresentação sobre o tema “Processo criativo e reflexo dos dias atuais na obra”.

Espetáculo teatral “RIP – Reflexões e Investigações Pandêmicas” com Cia da Varanda
25 de setembro de 2021 (sábado), às 18h.

Sinopse: O espetáculo é inspirado na obra de Samuel Beckett com personagens que trazem à cena a complexidade da humanidade com suas dores e anseios, diante de um cenário insólito sem perspectivas de mudança.
Duração: 18 minutos | Classificação indicativa: 12 anos
Com bate-papo após a apresentação sobre o tema “O Teatro e o Absurdo Cotidiano”.

Espetáculo teatral “Grajaú – Uma Cartografia da Exploração” com Cia. Teatral Enchendo Laje & Soltando Pipa
30 de outubro de 2021 (sábado), às 18h.

Sinopse: Peça em que crianças narram histórias de suas famílias, que migraram das regiões nordeste e sudeste do país para o território do Grajaú, em busca de melhores condições de vida.
Duração: 54 minutos | Classificação indicativa: 12 anos
Com bate-papo sobre “Como fazer teatro na periferia em meio a tantas perdas?”.

Espetáculo circense “Mitate” com Mágicos Edson e Kevin Iwasaki
27 de novembro de 2021 (sábado), às 18h.

Sinopse: Principais representantes da arte mágica da comunidade Nipo Brasileira, os artistas fazem uma apresentação que revive o ilusionismo tradicional japonês baseado em Tezuma, que é considerada patrimônio cultural intangível do Japão. Uma performance baseada na expressividade figurativa em cada movimento, executada com precisão e leveza.
Duração: 30 minutos | Classificação indicativa: Livre
A atividade contará com bate-papo sobre “Mágica para não mágicos” após a apresentação

Tik Tok vira espaço cultural para artistas da M´Boi Mirim

0

À base da cultura do faça você mesmo, artistas da quebrada contam como tem usado a rede social como uma estratégia para gerar audiência para o seu trabalho, atraindo a atenção de centenas de milhares de seguidores, inclusive de vizinhos.

Choks durante a gravação de suas coreografia (Imagem: Mano Batom)

Devido aos impactos da pandemia que causaram o fechamento de equipamentos públicos de cultura nas periferias de São Paulo,o dançarino, coreógrafo e professor de dança Matheus Oliveira, morador do Jardim Tupi, bairro da zona sul de São Paulo, transformou o seu perfil no Tik Tok num espaço virtual para ganhar visibilidade e atrair seguidores interessados em valorizar o seu trabalho artístico.

Esse caminho, segundo ele, foi uma forma de combater o ‘horror’ causado pela pandemia no seu trabalho. “esse momento de pandemia ta sendo um horror total, não só pra mim, como para diversos outros profissionais na área pelo fato de os estúdios estarem fechados e as aulas presenciais não estarem rolando”, conta.

O professor de dança afirma que muitos colegas de trabalho optaram pelas aulas online, no entanto, ela acredita que isso tem um preço para quem ensina e para quem quer aprender. “Não é a mesma coisa. O contato direto se faz necessário para que as coisas aconteçam devidamente e da melhor forma possível”, enfatiza.

Mesmo com essa opinião formada, o artista da dança conta que encontrou através das gravações de suas coreografias para publicação no Tik Tok um meio para divulgar seu trabalho.”As redes sociais tem sido um meio de muita importância nesse quesito. Vem sendo efetivo pois vem chegando mais pessoas que curtem e passam a acompanhar.”

Por isso, Matheus vem apostando em produções constantes de vídeos, por acreditar no poder de engajamento da Tik Tok, uma rede social que vem trazendo muitos frutos para o seu trabalho.”Cheguei no TikTok na segunda semana de janeiro através de alguns amigos. O engajamento lá é relativo pois depende de diversos fatores, mas felizmente eu venho tendo bons resultados e a galera se mostra presente comentando e novos seguidores chegam constantemente, então posso dizer que tô feliz com o avanço”, relata.

O perfil do dançarino chama-se @ochokz e conta com mais de 38 mil seguidores. Em menos de seis meses de trabalho, ele já acumulou mais de 190 mil curtidas em suas publicações. À base do faça você mesmo, todos os seus vídeos que registram as suas coreografias são gravados pelo celular e editado por um aplicativo chamado Inshot.

Além de gravar, ele também produz o próprio roteiro das coreografias, um acúmulo de funções que vale a pena, pois os conteúdos acabam viralizando rápido. “Existem os challenges que são o que mais viralizam dentro da plataforma em si, que nesse caso não necessita de muito tempo de preparo, ainda mais por serem curtos e fáceis, para pegar são mínimos minutos e pra gravar também, no geral não é trabalhoso, exceto pelo suporte que é necessário, como por exemplo alguém pra gravar e equipamentos”, explica.

 “Tenho um vídeo que chegou quase a um milhão de visualizações”

“Eu via muitos amigos comentando e pedindo para eu baixar pela conta deles, aí eu tive curiosidade e criei, mas depois eu fui achando interessante os videos, então eu comecei a mostrar um pouco do bairro onde eu moro, achei legal e comecei a produzir bastante vídeo”, explica Rodrigo Santos, 26, morador do Parque Cerejeira, região da M´Boi Mirim, zona sul de São Paulo.

Através do seu perfil @digocods, o morador produz vídeos utilizando dublagens da quebrada. “Eu gosto de assistir um vídeo de alguma dublagem, para ver se é legal mesmo e se encaixa comigo, ai se eu achar que é bem isso que eu procuro, eu assisto ele antes, estudo primeiro e depois começo gravar”, descreve Santos, citando a maneira como produz os conteúdos em seu perfil no Tik Tok.

Santos costuma ser exigente consigo mesmo, para garantir um padrão de qualidade na produção dos seus conteúdos. “Às vezes eu gravo um, e se eu não gosto vou fazendo até achar um que eu me identifico, porque eu gosto de ser bem chato nessas partes, se eu já vejo que uma fala não ficou encaixada direito, quando é dublagem, ai ja faço de novo”, conta o dublador, afirmando que leva em média dez minutos para gravar um vídeo com boa aceitação dos seguidores.

Ele gosta de enfatizar esses pontos de qualidade, porque um único vídeo do tiktoker já chegou a atingir quase um milhão de visualizações. “Eu tenho uns quatro ou cinco vídeos que tiveram bastante visualizações, mas eu tenho um que chegou a quase um milhão”, revela.

O dublador vê nessa exposição que a rede social permite uma maneira de abordar a sua visão sobre a subjetividade do morador da quebrada. “Eu gosto de fazer algo diferente, que eu vejo que muitos fazem igual, gosto de fazer do meu estilo, do meu jeito”, enfatiza ele. Através da identidade dos conteúdos que ele produz, outros jovens em seu bairro o reconheceram na rua, um fato que marcou a sua trajetória. “Já vi meninos aqui, muleque novinho, que falou assim: ‘Ai Digo, eu vi seu vídeo lá no Tik Tok, vou gravar uns também achei dahora’. Acho que já é um incentivo pra eles não estarem fazendo nada de errado, o Tik Tok já é um distração”, conclui.

Geolocalização: aplicativo de encontros une casal na quebrada e reduz tensões da pandemia

0

Conheça a história de dois amigos que se conhecem desde os tempos de escola, e que se reencontram e formaram um casal na pandemia, guiados pela curiosidade de saber quem do bairro onde moram mantinha um perfil em aplicativo de encontros.

O casal Gabriele e Pedro celebram juntos o reencontro através do app de relacionamentos Imagem: Gabriel Mendonça

“O match do reencontro” é com essa expressão que o casal Gabriele e Pedro definem a união deles durante a pandemia de coronavírus, após a jovem resolver baixar o Tinder, app de encontros e relacionamentos, de maneira despretensiosa, apenas pela curiosidade de saber quais as pessoas de seu território estavam utilizando a plataforma de relacionamento online na quarentena.

“Eu estava desanimada na quarentena, aí resolvi meter o loco, eu já tinha parado de mexer no Instagram. Então eu fui baixar o Tinder, queria descobrir quem eram as pessoas da região que estavam no Tinder”, conta a atriz Gabriele Rocha, 21, moradora do Jardim Novo Santo Amaro, zona sul de São Paulo.

Devido a pandemia, Gabriele teve que se afastar das suas atividades profissionais, com isso ela utilizou o app de relacionamento online para inventar uma persona, e sua atuação foi a figura de uma ‘Sugar Baby. “Procuro alguém para satisfazer meu prazer, se quer sair comigo vai ter que me bancar”, descreve ela em sua biografia no Tinder.

No entanto, a personagem criada por Gabriele não foi o bastante para passar despercebido pelos olhos do seu colega de escola Pedro, o seu companheiro atual. Ele reconheceu os traços da namorada devido ao convívio na época da escola, e ela  imediatamente o chamou no chat para iniciar uma conversa.

“Não foi exatamente a biografia que me chamou atenção, o que me despertou atenção mesmo foi ela me chamar como já me conhecesse, eu estranhei e pensei: ‘quem é essa doida?’, já tem biografia de doida, será que é doida?”, relembra Pedro Damasceno, 19, morador de Parelheiros, que naquele momento não conseguiu reconhecer Gabriele, mesmo assim, motivado pela curiosidade do seu perfil nada comum passou seu número de telefone para prolongar a conversa.

“Peguei o número dele, salvei e não chamei, ai eu mexendo no celular vi os status do pessoal, notei o status dele, ai pensei: ‘como assim eu não chamei o Pedro? Como que estou vendo o status dele? Quando eu o chamei, ele falou que ainda tinha meu número salvo da época da escola, porque a gente se conheceu na época da escola né por uma amiga”, relata Gabriele, afirmando que a partir deste momento começou a resgatar suas lembranças com Pedro desde a época em que se conheceram na escola.

“A Gabi foi uma das quatro garotas que eu achei diferente na escola, que me despertou, me cativou em alguma coisa, que se destacava, não só porque era inteligente, tinha alguma coisa ali que na época eu não sabia definir o que era”, diz Damasceno.

A partir do encontro virtual, as memórias afetivas dos amigos de escolas foram sendo ativadas e se tornando cada vez mais fortes, refletindo diretamente na frequência do diálogo entre eles. “A gente passou três dias conversando bastante”, complementa Pedro, lembrando que após essa fase, eles decidiram marcar o primeiro reencontro.

 O reencontro

O casal Gabriele e Pedro celebram juntos o reencontro através do app de relacionamentos Imagem: Gabriel Mendonça

No dia 2 de abril, Gabriele convidou Pedro para ir em sua casa, e assim que ela viu que estava chegando foi para o portão de sua casa espera-lo. “De repente começou a fazer um sol, parecia que ele era o brilho, parecia que ele era o sol, ai eu falei: ‘nossa o Pedro não é mais o Pedrinho, é o Pedrão, cresceu né, aí eu fiquei olhando Aquele brilho descendo do sol junto com ele e já deu um negocinho no coração”, descreve.

Enquanto Gabriele estava vislumbrando com o semblante do crush que estava a poucos metros do seu portão, Pedro só pensava nas características marcantes da amiga de escola que ainda eram nítidas na sua memória. “Ela abriu o portão pra mim com um sorriso, com um batom vermelho e um sorrisão, essas são a três coisas que eu mais amo na Gabi: a consciência social, o lado artista dela e o sorriso dela. E a gente falou quase o mesmo tempo: pensei o dia inteiro em você”, recorda.

E depois de alguns dias de trocas de sentimentos intensos, o casal fez uma reflexão de como essa união os fortaleceu para enfrentar um momento tão caótico, como a pandemia. “Depois do namoro ficou mais colorido, deu pra não enxergar um pouco mais o que estava acontecendo ao meu redor, não que esteja fugindo, apenas me abastecendo”, Conta Pedro. Para ele, a nova companheira de vida significou coragem para enfrentar as adversidades do cotidiano. Já para Gabriele, a união trouxe esperança.

“Eu me motivei, eu voltei para escola sabe, ele participou um dia desses da aula, gravou sabe, estou alegre, tenho vontade de sonhar sabe, antes não tinha nem vontade de sonhar, não vou sonhar porque não vai acontecer, pra que sonhar? Eu sempre fui uma pessoa muito otimista, mas ano passado a pandemia me fez não ser a Gabriele, mas quando eu me reencontrei com o Pedro eu voltei a ser a Gabriele, aquela que olha no espelho e fala: nossa eu sou gostosa”, conclui a atriz.

UmSoh online: trabalhando com música em tempos de pandemia

0

As pessoas que nos conhecem gostam de nos associar a um casal fofinho que fazem coisas legais, e confesso que é massa sermos vistos como referência de família e amor preto, mas trabalhamos muito para produzir letras, beats, vídeos e todo tipo de conteúdo para um dia chegarmos a um patamar estável, onde finalmente estaremos vivendo da nossa música.

Jordan Fields (Bixop) e Lena Silva

Para quem não sabe, BiXop e eu somos muito mais que um casal. Somos Umsoh, uma dupla que através da música, difunde cultura preta e entretenimento. As pessoas que nos conhecem gostam de nos associar a um casal fofinho que fazem coisas legais, e confesso que é massa sermos vistos como referência de família e amor preto, mas trabalhamos muito para produzir letras, beats, vídeos e todo tipo de conteúdo para um dia chegarmos a um patamar estável, onde finalmente estaremos vivendo da nossa música. Buscamos por esse reconhecimento.

Queremos que as pessoas conheçam a nossa história, o nosso corre juntos, mas que saibam que incentivando os trampos, com uma indicação, um comentário sincero, já nos fortalece como profissional e fortalece a comunidade considerando toda a equipe envolvida no processo de produção. Todo artista, principalmente o artista independente, investe o que não tem para que a sua arte chegue em algum lugar.

Antes da pandemia começar, fizemos um cronograma extenso para a finalização do álbum Longa Jornada” e as gravações de uma série de vídeos clipes que ficaram pela metade. Com a onda do covid-19 e a primeira quarentena em março de 2020, nos deparamos com a impossibilidade de fazer shows e qualquer outra coisa.

Passamos a observar mais as redes sociais para entender como reinventar nossas estratégias e promover uma live, fenômeno que tem recebido muito destaque desde o início da pandemia, ideal para incentivar as pessoas a estarem em casa vivenciando uma nova forma de se divertirem e a serem mais solidárias com o outro. 

Uma pesquisa realizada pelo Google, responsável pelo Youtube, mostrou que 85 milhões de brasileiros assistiram à lives de shows durante a quarentena. O formato de show transmitido de forma online teve grandes alcances e fez sucesso em meio a pandemia. Entre as dez lives musicais mais assistidas no Youtube, oito delas são de cantores brasileiros.

Pensei que seria uma boa organizar um show online para divulgar o álbum, mas antes eu assisti diversos lives show de rap, samba e sertanejo de todos os níveis, dos mais famosos aos artistas mais locais para entender melhor a dinâmica e fazer algo mais próximo a um show de verdade, levando ao público qualidade e informação.

Escolhi a data perfeita para falar e cantar sobre a vida, amor e resistência, 12 de junho de 2020, Dia dos Namorados. Solicitamos os serviços de transmissão stream com os parceiros @vulcams e tivemos a participação do @Quebradagroove com Jonatas Noh no trompete e na machine, e também utilizamos o espaço do Centro de Mídia com o apoio dos parceiros Desenrola e Não Me Enrola.

Eu pensei em um cenário básico, com algumas referências de livros, quadros e discos. Escolhi o figurino que combinasse com as cores e durante os diversos ensaios fomos acrescentando ideias coletivas que enriqueceram o espetáculo. 

Confira a live completa: 

O retorno foi positivo, tivemos a interação dos amigos e pessoas que nos admiram. Ficamos muito satisfeitos. Cogitamos a possibilidade de fazer uma live ao mês, porém o processo é trabalhoso e cá estamos, a quase um ano do nosso primeiro show live… espero que tenha deixado aquele gostinho de quero mais, pois estamos melhorando a nossa performance e nível de produção.

O poder das lives, o aumento de engajamento e a interação do mundo inteiro nas redes sociais, nos proporcionou conexões com pessoas que assistiram o vídeo clipe Black Is Back In Style que alcançou mais de 10 mil visualizações e passaram a acompanhar nosso trabalho.

Participamos de festivais e parcerias em projetos com produtores aqui no Brasil e nos Estados Unidos, muitas vezes sem nem precisar sair de casa, mas quando é necessário realizar algum trabalho externo, tomamos todos os cuidados usando máscara, álcool em gel e mantendo o distanciamento social.

Este ano, no Dias dos Namorados estaremos online lá no Instagram @UmSoh para trocar uma ideia descontraída com vocês sobre afeto, sinergia e também sobre o novo vídeo web com a canção “Pretty Song” que iremos lançar nos próximos dias no canal do YouTube UmSoh que inclusive, convido vocês a se inscreverem e apertarem o sininho de notificações, e a seguirem o nosso instagram @Somos_Umsoh para acompanharem as novidades que estão por vir.

Gratidão padre Jaime e padre Eduardo, educadores populares!

0

Padre Eduardo e padre Jaime, dois irlandeses de origem, dedicaram suas vidas a caminhar com os empobrecidos no Brasil. Se tornaram educadores populares, corporificando as palavras pelo exemplo de vida.

Padre Jaime e Padre Eduardo

A periferia sul de São Paulo durante décadas teve em sua defesa dois guerreiros de primeira hora: Padre Eduardo e padre Jaime, dois irlandeses de origem, dedicaram suas vidas a caminhar com os empobrecidos no Brasil. Se tornaram educadores populares, corporificando as palavras pelo exemplo de vida.

Pelo modo simples de viver e caminhar, Eduardo e Jaime usaram o corpo para conscientizar as pessoas, nos mais difíceis, arriscados e polêmicos momentos, lá estavam caminhando com o povo em busca de mudanças. Exemplos da práxis freiriana, assumiram uma fé engajada desde a década de 1970.

Assim, com os pés no barro ao lado povo, fizeram das igrejas as quais eram responsáveis, espaços de acolhida, de cuidado, de encontros, de formação e organização popular, como as Comunidades Eclesiais de Base, os Clubes de Mães, as Caminhadas pela Vida e Pela Paz, as Escolas de Cidadania, o Fórum Social Sul, e tantas outros trabalhos e lutas.

Participaram incansavelmente de atos e manifestações por melhorias sociais, por moradia, por transporte, pela democracia, por educação, pelo fim do genocídio, além do apoio aos movimentos sociais, a famílias, aos jovens e tantos outros grupos ou pessoas que frequentava ou procura a paroquia ou sociedade Santos Mártires.

Dessa forma, Jaime e Eduardo alteraram as realidades em que estavam inseridos, transformaram as periferias onde atuaram em espaço de luta e esperança. Nas localidades marcadas por violência, pobreza e incerteza, a presença desses dois irmãos de fé se tornava luz, porto seguro para muitos grupos, referência para movimentos e ativistas sociais.

A casa deles era a casa de tantas pessoas em situação de rua e violência, ponto de encontro de freiras, leigos e tantos outros que professavam outro credo religioso ou nenhum credo, centro de pesquisas e formulação de políticas públicas.

Agora, é chegada a hora de agradecermos a esses combatentes e deixá-los partir com a certeza de que realizam o melhor trabalho possível. Depois de quase 100 anos (soma dos anos de Jamie e Eduardo no Brasil) dedicados ao Brasil e ao povo periférico, eles decidiram voltar à terra de seus familiares.

Contudo, o legado deixado é enorme, milhares de pessoas atendidas nos equipamentos que eles ajudaram a levantar, dezenas de movimentos e fóruns que discutem e lutam pelos periféricos, centenas de leigos e lideranças políticas formadas na escola da vida e de luta de Jaime e Eduardo.

Dos principais ensinamentos desses mestres, fica que a prática religiosa que caminha com as questões sociais e políticas, salva vidas e transforma realidades, nos ensinaram também que a busca pela sociedade do bem viver exige diálogo entre grupos diversos, religiosos e não religiosos. Mas sem dúvida a maior herança deixada por eles, é a ESPERANÇA. Devemos continuar mantendo a chama da esperança acesa!

Portanto, a partida de Eduardo e Jaime nos traz a responsabilidade e o compromisso de darmos continuidade as lutas por eles assumidas durante décadas. Mais do que nunca, neste período de retrocesso dos direitos sociais que estamos vivendo, os ensinamentos desses mestres precisam prevalecer: conscientizar o povo, lutar com povo, colocar o pé no barro (“a cabeça pensa onde os pés pisam”, lembram), e ter ESPERANÇA.

Eduardo e Jaime, partam com a certeza de que vocês foram os melhores professores que podíamos ter tido, seguiremos a história, emanem energias de onde vocês estejam, continuaremos JUNTOS! Gratidão!

Viva padre Eduardo, Viva Padre Jaime, Viva a luta do povo Periférico!

Padre Eduardo e Padre Jaime junto a rede de cursinhos populares Ubuntu.

Rafael Cícero de Oliveira e Thaís Cizauskas

“Já aconteceu de acabar a luz”: a rotina do home office na quebrada

0

Morador da periferia de São Paulo compartilha as adversidades no seu dia a dia, como a instabilidade de internet, barulhos externos, má comunicação no ambiente virtual corporativo, e o cansaço psicológico, que impedem a possibilidade de construir uma rotina saudável de trabalho dentro de casa.

Patrick no momento do seu trabalho em casa (foto: Vania Silva)

Desde o começo da pandemia de covid-19, em abril de 2020, quando ela começa atingir os moradores das periferias e favelas, Patrick Silva, 24, morador do Parque Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, trabalha como agente de relacionamento no formato home office.

A maior parte da rotina do morador acontece dentro de casa, um local de trabalhando, no qual ele vive adaptando os pequenos cômodos como um escritório. Para ele, uma das principais vantagens de trabalhar em casa é a autonomia para gerir o tempo. “Em casa já é bem mais tranquilo você tem mais liberdade de fazer o que quiser, inclusive ficar no fone de ouvido, tomar café toda hora sem ter que precisar ir comprar, então em casa a gente tem mais liberdade, digamos assim”, afirma.

O tempo que Silva gastaria da sua quebrada até seu trabalho é de 45 minutos, e normalmente ele utiliza esse tempo para compor sua rotina, dando atenção às demandas de cuidado pessoal e tarefas domésticas, e com isso, ele consegue fugir do caótico trânsito de São Paulo.

“É bem tranquila, geralmente nas pausas eu ajudo arrumar as coisas de casa”, conta Patrick, que divide o espaço da casa com sua mãe. “Mesmo sendo um pouco pequeno acredito que tem um bom espaço, já a concentração é tranquila, às vezes eu acabo me distraindo um pouco, porém é bem tranquila”, explica o agente de relacionamento, que montou uma estação de trabalho na sua casa para fazer as tarefas diárias da empresa.

Um dos aspectos que ele julga negativo no home office é o aumento da circulação de pessoas nos finais de semana na viela ao lado da sua casa. Segundo o morador, conforme o número de pessoas aumenta, o barulho causado por elas impacta diretamente as reuniões de trabalho.

“Aqui na viela tem bastante movimentação, inclusive no dia de sábado né. No geral, a gente não tem muita reunião, mas quando tem barulho eu falo: ‘olha tá tendo um pouquinho de barulho aqui em casa e para não incomodar vocês eu vou deixar o áudio mudo e falar só quando for necessário”, revela.

Outro ponto que gera alguns impasses durante o home office é computador utilizado para realizar as tarefas de trabalho. Esse é um ponto importante lembrado pelo morador como um diferencial para ter êxito ou problemas inesperados no dia-dia. “Quando começou o home eles me mandaram um desktop, claro fiquei feliz e grato ao mesmo tempo, depois de um ano trocaram e o equipamento, que é bem abaixo do que eu esperava”, confessa Patrick.

A partir do momento que o equipamento foi trocado pela empresa, Patrick diz que a infraestrutura já deixou a desejar, forçando-o a se locomover até o escritório da empresa. Mas o computador não é a única motivação que já o levou até a empresa para trabalhar, a instabilidade da internet também já contribuir para gerar esse contratempo. “Já aconteceu de acabar a luz e eu tive que ir até lá, e se a internet deixa na mão eu posso ir até a empresa, e isso já aconteceu”. 

Ansiedade 

Para Silva, essa forma de gestão de pessoas que estão fazendo home office afeta diretamente a sua saúde mental. “Às vezes eles pedem para ficar até um pouco mais tarde para concluir as demandas, e eu fico, mas meu psicológico não quer, mas meu corpo quer, entendeu? Só que incomoda, porque fica doendo a vista, as costas doem um pouco de tanto ficar sentado o dia inteiro olhando para o computador”, revela o morador.

“Quando o nosso superior começa a cobrar demais eu fico um pouco desmotivado pela falta de empatia deles, e isso abala, porque fico preocupado em não entregar a minha meta no dia”, compartilha o morador, enfatizando que enxerga nessa virtualização do trabalho um aumento da cobrança de seus chefes.

Mesmo com esse impacto negativo nas questões físicas e mentais causadas pelo novo local de trabalho, Patrick considera que trabalhar dentro de casa o afasta do ambiente tóxico das relações desgastadas dentro da empresa. “Às vezes a gente não está bem com um determinado colega de trabalho e às vezes até com o próprio chefe”, confessa.

Ele finaliza a entrevista afirmando que gosta da liberdade de ir e vir ter uma rotina fora de casa, e enfatiza que o home office acaba sendo mais confortável para si, do que para a realização das tarefas de trabalho. “Eu gosto de sair, mesmo que seja a trabalho, pelo fato de ver alguns amigos na hora do almoço, comer fora, ir em algum lugar e dar risada, isso tudo é bem bacana. A única vantagem é que você não precisa ter que ficar toda hora falando com o seu superior”, conclui.

Pretos e a mais valia da vida: quais espaços estão prontos para nossa presença?

0

Ricardo Lima, jovem negro estudante na USP, sofria com bullying e racismo de colegas, docentes e da própria instituição. Seus pedidos de ajuda foram ignorados e no dia do suicídio nenhuma ação foi realizada para evitar sua morte. No dia 28 de maio, seus amigos realizaram um ato na USP em sua homenagem e cobrando providências em relação às práticas de racismo institucional dentro da universidade.

Ato em memória de Ricardo Lima, vítima de bullying e racismo institucional e se suicidou no dia 25 de maio de 2021. Foto de Felipe Dowson.

Terça-feira, 25 de maio de 2021, por volta do fim da tarde um estudante preto matriculado no curso de Geografia da USP morreu por suicídio dentro da residência estudantil daquela que ostenta o titulo de “maior Universidade da América Latina”. Ricardo Lima da Silva, era mais um estudante preto da Universidade de São Paulo, residia no Crusp, conjunto habitacional da Universidade localizado dentro do campus Butantã (Cidade Universitária).

A condição que propicia uma situação limite como essa se sustenta em violências cotidianas que corpos pretes sofrem diariamente: racismo e necropolítica. Dessa maneira, são negados direitos básicos, levando a autodepreciação, segregação e a vulnerabilidade social. Não é à toa que a população preta e jovem é a que mais se suicida. 

Segundo dados do Ministério da Saúde, divulgados em 2019, a cada 10 jovens que se suicidam, seis são pretos. É importante salientar que esse índice vem crescendo ao longo dos últimos anos, enquanto que o suicídio entre pessoas brancas diminui.

O que leva uma pessoa a ceifar a própria vida se não um sofrimento e uma pressão impostas por uma sociedade doentia que moí vidas humanas? E que vidas são essas que têm suas mortes espetacularizadas, omissas e “insignificantes” para essa troca de valores que perpetua a mais valia da vida? As vidas pretas aparentam obter o menor dos valores. 

Dos gatilhos que nos rodeiam diariamente, aprendemos desde cedo a nos podar, pisar em ovos e estar sempre atentos conosco e ainda com o nosso ao redor. Talvez seja esse nosso “defeito de cor”: ter que suportar demais, ter que seguir suportando sem nos rebelarmos, não somos ensinados a reagir ao oposto dos algozes que seguem ensinamentos da normalidade sobre atacar nossos corpos e história.

Foto de Felipe Dawson

Ou quem sabe nosso “defeito de cor” é ser quem somos nessa estrutura racista. 

Me questiono o quanto Ricardo teve que suportar por ocupar um espaço de direito “democrático”. Mas que nossa ocupação, o simples fato, de ter ocupação preta gera desconforto na estrutura social do país que foi erguido por mãos de trabalho escravo. O fardo de ser racializado se junta ao fardo de ter que ocupar lugares. E isso vai para além do discurso de empoderamento. É sobre pararmos para avaliar quais os custos das nossas conquistas. Um título acadêmico não deveria custar a saúde mental e desconforto de ninguém. 

Estamos sempre no discurso de como população pobre e preta ter que ocupar e “ocupar” tudo e todos os espaços, mas que tal agora pensamos em ferramentas que possibilitem a permanência dos nossos nos espaços que queremos representatividade. A “ocupação” desses lugares e instituições sem o alicerce de políticas de inclusão e acesso (para além das cotas sociais), necessitamos de acolhimento, pertencimento, pois a “representatividade” de estar ocupando pode se tornar fardo ao nosso povo.

O nosso “defeito de cor” nem ao menos é nosso, é do racista que não se enxerga dentro e como reprodutor na manutenção da estrutura. 

Não temos dúvida que houve pura negligência com o aluno Ricardo por parte da USP e suas entidades representantes. Mais do que isso, houve racismo institucional, bullying e omissão de ajuda

Assim como o Ricardo, todas as pessoas racializadas e pobres que passaram ou que estão no meio acadêmico, já se depararam com a maneira que o racismo estrutural é perpetuado. Da burocracia à omissão, somos diariamente alvos das mais variadas formas de violência dentro dos espaços. 

O que nos choca é um espaço que se diz “intelectual e culto” não ser a maior e nem a melhor universidade se você for preto e pobre. O que vemos nesses espaços é um epistemicídio aliado à negligência. De que adianta as cotas raciais isoladas de uma política de permanência que assegure nossa saúde física e mental?

Não existe uso político desta tragédia que afetou nosso amigo Ricardo. Sabemos que a permanência de pessoas pretas e pobres dentro da universidade sempre será um ato político, assim como sua ausência será pauta reivindicatória entre nós! O que se discute aqui são questões para além do imediato como políticas de permanência estudantil, qualidade de vida e bem estar social, empenhadas à uma comunidade que vem sendo, historicamente, negligenciada.

Do Ricardo aos tantos jovens pretes e pobres das quebradas, frutos de cursinhos populares, fica nosso incentivo, força, alegria e preocupação com eles ao lutarem e ocuparem a tão sonhada vaga na faculdade pública. Que adotemos o uso das políticas públicas de permanência com maior seguridade para a cuidar dos nossos jovens sonhadores, que ingressam nesse sistema cheio de sonhos, desejos e vontades de mudar a estrutura.

Ao Ricardo e a todos os nossos mortos, desejamos que “Olorum os recebam, de braços abertos” e aos que ficam desejamos que as dores sejam curadas e que a luta por dias melhores não seja em vão.

Foto de Felipe Dawson

Como os trabalhadores da cultura de Heliópolis estão sobrevivendo à pandemia?

Estudo do Observatório De Olho Na Quebrada aponta que 84% dos artistas de Heliópolis tiveram seus trabalhos afetados pela pandemia em 2020. 

Com cerca de 200 mil habitantes, a Cidade Nova Heliópolis tem o histórico de ser uma das favelas mais antigas de São Paulo. Um dos seus principais legados para a configuração cultural da cidade está na formação do bairro constituído por famílias das regiões norte, nordeste e centro do país.

Uma das moradoras de Heliópolis que representa esse cenário de construção do bairro é Gabrielle Santana, 23, artista e educadora, que nasceu em Cuiabá, capital do Mato Grosso. Ela é conhecida dentro do território como MC Leona, uma das integrantes do grupo Crew Marretas do Hip Hop. A pandemia afetou negativamente a atuação profissional da moradora dentro do território. 

“Os shows marcados foram cancelados, os cachês não foram recebidos”

Gabrielle Santana é artista e educadora social.

“Os shows marcados foram cancelados, os cachês não foram recebidos. Trabalhei o meu lado artístico especificamente nas redes sociais. Como educadora, o trabalho dobrou, pois trabalhamos em home office e presencialmente com o horário reduzido, o que causou o aumento do nível de ansiedade e reflexões sobre saúde mental. Todos da minha área estão saturados e desgastados mentalmente, os celulares não estão aguentando o excessivo uso”, relata Santana.

A educadora atende jovens e crianças no Centro para Crianças e Adolescentes – CCA Mina, equipamento comunitário administrado pela UNAS, uma organização social atuante em diversos projetos de combate as desigualdades sociais em Heliópolis.

Atenta à importância de cobrar ações do poder público para apoiar os agentes culturais de Heliópolis durante a pandemia, a moradora enfatiza a sua participação no estudo realizado pelo Observatório De Olho Na Quebrada, iniciativa que atua na apuração de dados oficiais e produção de pesquisas para criar estratégias e políticas públicas para o combate à Covid-19.

Mc Leona foi umas das artistas da Favela de Heliópolis que foi afetada pela crise gerada pela pandemia nos agentes culturais do território. (Foto: Andreas Ciero)

“Acho extremamente importante essas pesquisas para levantarmos dados e entendermos o contexto que profissionais da cultura, assim como eu, estão vivendo nesse momento. Sabendo das necessidades, a resposta para os problemas se torna mais fácil”, acredita ela.

Ela enfatiza o papel do poder público para fornecer dados confiáveis nesse momento difícil da sociedade. “O Governo poderia facilitar o acesso à informação, diminuir as burocracias ou se disponibilizar a ensinar os artistas que não entendem esses processos e criar novos editais, ajudar o dinheiro a circular entre nós artistas também, que precisamos sobreviver.”

Desde 2020, o Observatório De Olho Na Quebrada vem realizando uma série de pesquisas dentro dos territórios periféricos. Uma dessas investigações aborda os impactos da pandemia nos trabalhadores da cultura de Heliópolis, uma das maiores e mais antigas favelas da cidade, localizada na divisa da zona sul com o lado leste do município.

A partir dos dados obtidos ao longo da pesquisa, os pesquisadores que fazem parte do Observatório de Olho na Quebrada visam ajudar a comunidade a lutar pelos seus direitos. O estudo foi realizado entre os meses de junho e julho de 2020, com o suporte de um formulário online e contou com a participação de 50 trabalhadores da cultura, dentre eles artistas, produtores, educadores, técnicos que residem em Heliópolis, entre os meses de junho e julho de 2020.

MDH – Marretas do Hip Hop (Foto: Andreas Ciero)

“É de grande importância ter pesquisadores dentro da própria quebrada, pois conhecemos e vivemos a realidade do território”

Leticia Avelino é pesquisadora do Observatório de Olho na Quebrada

Nascida no Piauí e moradora de Heliópolis desde os três anos, Leticia Avelino, 21, atua como educadora de dança de freestyle. Ela faz parte do grupo dos trabalhadores da cultura que enxergaram na pesquisa uma forma de entender os impactos invisíveis causados pela pandemia de covid-19 na economia da cultura local.

“A pesquisa é muito importante, ainda mais para mim que sou artista na quebrada, é uma pesquisa destinada para os próprios moradores e diversos outros lugares para buscar possíveis ajudas e oportunidades para quebrada”, define ela.

Outro morador de Heliópolis que participou do desenvolvimento da pesquisa é o artista Gabriel Feitosa, 19, o artista e pesquisador explica a proposta de trabalho do observatório no território. “Moro no Heliópolis. Enxergo ele como um bairro de luta. Sou pesquisador no projeto De Olho na Quebrada, aqui levantamos dados sobre a população daqui e temos o objetivo de manter a memória de Heliópolis viva. Usamos toda a arte que reverbera ao nosso redor, música, dança, grafite e poesia. Trabalhamos com e para a comunidade”, conta.

Feitosa cita novamente a escassez de dados dentro sobre a vida nos territórios periféricos e a partir disso, ela explica o tema da pesquisa. “Quis ajudar na criação da pesquisa porque sou artista. Um dos 84% dos artistas de Heliópolis que tiveram impactos em seu trabalho devido a pandemia, e não existe dados oficiais sobre isso, por isso resolvemos realizar uma série de pesquisas.”

Para o pesquisador, trabalhar com arte e cultura nas periferias e favelas significa ter que se virar, ter uma vida dupla, tripla, pois a arte exige dedicação total. “Para um morador de Heliópolis que tem que lidar com todas as adversidades viver de arte é difícil. A pesquisa fala sobre como os artistas periféricos estão sendo prejudicados na pandemia. Foi feita pra comunidade e pela comunidade pelo De olho na Quebrada.”

Além de educadora de dança, Letícia participou do processo de produção da pesquisa. Ela ressalta que um dos maiores legados da pesquisa é a participação de moradores da quebrada no processo de elaboração e execução.

“É de grande importância ter pesquisadores da própria quebrada, pois conhecemos e vivemos a realidade do território, assim sabemos o que precisa ser de mais atenção e o que pode ser criado para ajudar, e assim se baseia nossa ação de Heliópolis para Heliópolis”, afirma a pesquisadora, ressaltando que essa iniciativa pode inspirar outros agentes culturais de outras quebradas a fazer o mesmo pelo seu território.

Ela acredita que a pesquisa pode dar mais voz para as demandas de políticas públicas urgentes no território. “É com a pesquisa que damos voz para aquilo que precisa ser falado e mudado, como um grito de socorro mesmo, sobre nosso território e nos mesmos, não há registros, não há dados, por isso a pesquisa. Ela também traz o impacto da visibilidade, impacta que as pessoas sabem que há luta, que alguém está lutando por nós.”

“Vários artistas da região foram prejudicados, não conseguiram se sustentar”

Felipe de Oliveira é rapper conhecido no território como Arkano

“Sou preto com a família vinda lá de Minas Gerais. Utilizo da linguagem do Hip Hop como elemento, meu trabalho é pensado para adolescentes, jovens e adultos”, enaltece Felipe de Oliveira, rapper de 37 anos conhecido no território de Heliópolis como Arkano. Ele faz questão de enfatiza que mora na divisa com o distrito do Ipiranga e que a favela onde ele mora “historicamente importante para a cidade”.

Assim com outros agentes culturais que entrevistamos na reportagem, Oliveira sofreu um grande impacto na sua agenda de shows. “As contratações de shows caíram drasticamente por causa do fechamento dos espaços culturais e privados, como casa de shows e espaços relacionados com a arte e cultura. Meu trabalho artístico quebrou em mais de 90%. Vários artistas da região foram prejudicados, não conseguiram se sustentar, precisaram de auxílio, cestas básicas, tiveram que recorrer a solidariedade dos mais próximos, cenário muito triste”, relata.

O músico opina sobre como o poder público poderia apoiar os trabalhadores da cultura e fala sobre a lei Aldir Blanc, uma política pública de emergência cultural. “Reduzir a burocracia para acesso às verbas de recursos públicos emergenciais, muitas vezes é tanto documento a ser emitido e enviado que acaba por desestimular os artistas. E inda tem a lei Aldir Blanc no meio disso, que foi o mínimo que deveriam ter feito, acho que é melhor algum recurso do que nada, porém na minha visão, durante o período de maior necessidade dos artistas esse recurso não estava disponível ou era muito difícil para acessá-lo”, avalia.

Segundo o gestor e produtor cultural Gilson Marçal, 41, morador do Jardim Monte Azul no distrito do Jardim São Luís, zona sul da cidade, a Lei federal de Emergência Cultural Aldir Blanc veio para promover uma ajuda emergencial para artistas, coletivos e empresas que atuam no setor cultural e atravessam dificuldades financeiras durante a pandemia.

“Os eventos culturais foram as primeiras atividades a parar devido ao Covid-19, deixando no Brasil mais de um milhão de trabalhadores da cultura sem renda. O recurso vem do Fundo Nacional de Cultura (que tem três bilhões de reais) repassados aos Estados e Municípios de todo o Brasil. Cada Estado e Cidade precisou mandar um plano de trabalho para o Governo Federal e recebeu o recurso. São 3 linhas de apoio: 1) Renda de 600 reais para Trabalhadores e Trabalhadoras da Cultura / 2) Apoio a Espaços Culturais (subsídio) / 3) Editais, Prêmios e Chamadas Públicas”, explica o gestor cultural.

Para efetivação da Lei Aldir Blanc, o Estado é responsável por pagar a renda individual de 600 reais e lançar editais e a prefeitura local fica com a função de promover o apoio aos espaços culturais.

“No caso o Município ficou responsável pelos Apoios aos Espaços Culturais, o que é muito importante. Muitos destes espaços pagam aluguéis e contas que são pagas com os ingressos do público, do barzinho, dos produtos vendidos nos eventos. A lei fala em apoiar espaços físicos que têm CNPJ, Espaços Informais por meio de CPF, como também apoiar ‘teatro de rua e demais expressões artísticas e culturais realizadas em espaços públicos”, descreve Marçal.

A Prefeitura de São Paulo privilegiou no seu cadastro os Espaços Físicos com CNPJ, deixando de lado os Espaços Informais e Atividades que são realizadas em Espaços Públicos, como as Rodas de Samba, as Rodas de Capoeira, a Cultura Popular, as Artes de Rua e Eventos Tradicionais que ocorrem nas ruas dos bairros.

Ao avaliar os impactos da pandemia nos trabalhadores da cultura, Marçal lembra que os governo federal e municipal realizaram diversos ataques ao setor cultural bem antes da pandemia chegar com forças às periferias.

“Não tinha como prever ou evitar, mas se tivéssemos uma política cultural forte, que desse conta de apoiar o setor neste momento de crise, o estrago poderia ser menor. O Governo Federal ataca a arte e a cultura de forma verbal e de forma prática, com a extinção do Ministério da Cultura e a redução do orçamento. Quando olhamos para a Cidade de São Paulo não é muito diferente, o orçamento da Cultura foi cortado na Cidade e no Estado. No caso da Cidade, o Programa VAI 1 e 2, a Semana do Hip Hop, o Programa Vocacional, PIA (iniciação artística) tiveram seu orçamento reduzido e diminuíram seus atendimentos”, analisa.

O produtor enfatiza sua análise explicando o contexto dos trabalhadores da cultura neste momento. “Apesar da execução da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, os trabalhadores da cultura seguem em situação crítica, de alta vulnerabilidade e sem perspectiva de retomada das atividades culturais presenciais”.

Para contextualizar sua visão política e analítica sobre a situação dos trabalhadores da cultura, Marçal cita alguns números que demonstram sua preocupação com o setor. “Muitas casas de shows grandes e pequenas estão fechando. Só nos seis primeiros meses da pandemia 900 mil trabalhadores formais e informais perderam seus empregos e renda. Uma pesquisa do Itaú Cultural em novembro de 2020 revela que metade dos trabalhadores especializados em cultura perderam seus postos no último ano. O setor tem promovido ações para ajudar os trabalhadores da cultura e segue articulado à expansão e criação de Leis Municipais de Emergência Cultural, agora estaduais e municipais, para que seja possível promover mais uma nova ponte deste momento crítico até um controle da pandemia”, finaliza.