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Construção

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Filho de pai pedreiro, uma parte da minha história (e de tantas outras pela quebrada) pode ser contada através do bloco, pedra, areia e cimento. 

Favela Fim de Semana, Jd. São Luís, zona sul, 2019 – Foto: DiCampana Foto Coletivo

Caminhando pelas periferias é possível reparar em objetos, formas e cores. Não raro dá para enxergar vários blocos laranjas subindo um muro e uma nova casa sendo construída. Filho de pai que virou ajudante de pedreiro após perder o emprego em uma fábrica, cresci no meio de blocos, areia, pedras e cimento, então essa paisagem para mim é comum. Não dificilmente eu era solicitado para carregar alguns blocos em troca de umas moedas para um sorvete. Era alegria na certa. Quando o serviço era grande então, eu me sentia o próprio patrão, convidando algum colega da rua para passar a tarde toda carregando bloco. Eu não sabia, mas ali estavam sendo construídas histórias. Um espaço aberto agora se tornava moradia ou comércio, sendo aberto mais um capítulo para a história do meu bairro.

Papai tinha problemas com bebida alcoólica. Por diversas vezes “passavam a perna nele” e o dia de serviço não era remunerado. Eu ficava triste não só porque minha família não iria ter dinheiro para a mistura naquela noite, mas eu sentia como se a construção e meu pai não tivessem sido valorizados. Era como se o artista tivesse terminado a obra e não ser lembrado. Essa percepção, óbvio, eu tenho hoje, com vinte e tantos anos. Naquela época mesmo eu só queria o trocado para o sorvete.

E a periferia continua se expandindo. Meu pai faleceu quando eu era adolescente e parou de construir. Desde então, eu continuo sua história. Mas agora, ao invés de carregar blocos e erguer muros, eu carrego palavras e construo pontes. Pontes entre um passado não tão distante de um pai pedreiro e um futuro de um filho metido a jornalista, que faz da periferia não apenas sua moradia, mas sua razão de escrever.

Bom, esse texto é um pouco mais curto do que estou acostumado a fazer. Mas é proposital. Assim como as construções de quebrada, ele tem um prazo para começar, mas nunca para terminar. Com um puxadinho aqui, uma reforma ali, essa coluna vai tomando forma e sendo construída com ajuda de você, que lê o que eu tenho a dizer. Obrigado por também ser pedreiro ou pedreira da minha história.

Solidariedade digital: página cria outdoor de doações para moradores

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Através de perfil no Facebook, a página Piraporinha City está criando uma rede de solidariedade digital, ajudando moradores a receber alimentos e propostas de emprego durante a pandemia de covid-19.

Patricia Ferreira com seu filho William Ferreira (Foto: Igor Ferreira)

Desde que a crise econômica gerada pela pandemia de coronavírus afetou os moradores das periferias e favelas, a página Piraporinha City, iniciativa comunitária que divulga de maneira séria e cômica os acontecimentos que fazem parte do cotidiano dos moradores do Jardim São Luís e Jardim Ângela, impactando mais de 60 mil seguidores, passou a desempenhar o importante papel de aproximar moradores das periferias que podem doar alimentos de pessoas que podem ser seus vizinhos e estão passando por muitas dificuldades financeiras, falta de emprego e alimentos dentro de casa.

Uma dessas pessoas que utiliza a página para solicitar doações de alimentos para a sua família é Patrícia Ferreira, 49, moradora do Jardim Santa Margarida. Ela está sobrevivendo através de pedidos de doações que divulga na página Piraporinha City.

Hoje suas maiores fontes de arrecadação de alimentos vêm das ações de solidariedade digital organizadas pela Piraporinha City. Ferreira conta que logo no começo da pandemia perdeu seu emprego de condutora escolar, a partir de então ela vem contando com o apoio da rede de solidariedade digital criada pela página para sustentar seus filhos. “Como eu tenho um filho especial acamado, a página publica coisas do meu filho para me ajudar com a dieta, fralda ou até mesmo com meu serviço de condutora escolar, a gente coloca lá na página essas informações que me ajuda muito”, descreve a moradora.

 “Hoje eu recebi mais de 30 mensagens de famílias precisando de cesta básica”

Durante a entrevista com um dos organizadores da página, obtivemos a informação que mais de 30 pedidos de doações haviam chegado na sua caixa de entrada do Facebook para serem publicados ao longo do dia. “No início da pandemia a gente postava individualmente quando alguém estava precisando de alguma coisa, porém hoje, somente na parte da manhã eu recebi mais de 30 mensagens de famílias precisando de cesta básica, pedindo leite, arroz e produtos de higiene”, conta um dos produtores de conteúdo da Piraporinha City, que preferiu não se identificar devido algumas ameaças que eles recebem por se posicionar politicamente nas periferias.

Ele enfatiza que com o agravamento da pandemia e do desemprego, semanalmente a página reserva um espaço de anúncios para mapear onde está acontecendo doações de alimentos e a partir desse momento o próprio seguidor começa a informar nos comentários quais organizações ou igrejas estão fazendo doações de alimentos.

O administrador da página ressalta que além das doações, a Piraporinha City também procura divulgar vagas de emprego. “Toda semana também a gente posta em relação de vagas de emprego e muitos seguidores já conseguiram emprego através das nossas postagens”, afirma.

O administrador explica que para organizar o crescente fluxo de pedidos de doações, foi preciso adotar uma política de privacidade para preservar os dados de contato das pessoas que precisam de ajuda. “A gente não gosta de expor o contato da pessoa nas redes sociais, só quando a pessoa quer expor mesmo, normalmente funciona assim: a gente faz a solicitação e posta na página , ai algum grupo de doadores ou alguma instituição entra em contato com a gente, aí a gente repassa o contato da pessoa que precisa das doações”, explica.

A Piraporinha City existe desde 2013, porém ficou inativa durante três anos, e em 2016 começou a distribuir conteúdo, que segundo o administrador é criado pelos próprios seguidores, que fornecem informações sobre doações, oportunidades de emprego, situação do trânsito local, entre outros assuntos relevantes para os moradores.

 “Graças a Piraporinha City eu paguei meu aluguel esse mês”

Ruth no celular (Foto: Bruno da Silva)

“Eu só recebo só 180,00 do bolsa família, eu estava muito preocupada, não sabia o que fazer, ai eu falei: vou pedir ajuda na página Piraporinha City, pois eles sempre me ajudam, ai eu fui lá e pedi ajuda, pra ver se alguém podia me ajudar a pagar o aluguel porque eu não estou conseguindo vender bala e nem água no farol”, conta Ruth Costa, 24, moradora do Jardim Leônidas , localizado no distrito do Campo Limpo, zona sul da cidade.

Ela trabalha vendendo balas no farol, uma atividade empreendedora comum no cotidiano do morador da quebrada, mas que em meio pandemia ficou mais difícil de ser executada, devido aos protocolos sanitários. Para a moradora, a sua situação ficou ainda mais complica pelo fato dela ter problemas mentais e não ter um suporte de políticas públicas do governo. “Eu sou especial, tenho problema mental, não consegui encostar no INSS ainda, estou há três meses esperando o INSS e até agora nada”, conta ela.

Enquanto o apoio do governo não chega até Ruth, ela afirma que ao recorrer a página para pedir ajuda, o engajamento dos seguidores foi imediato. “As pessoas do grupo me ajudaram, pediram meu Pix e depositaram na minha conta, me chamaram no WhatsApp e graças ao Piraporinha City eu paguei meu aluguel desse mês”, revela.

Mesmo contato com o apoio da página para suprir essas emergências financeiras, Ruth conta que o acesso à internet ainda é uma barreira para conseguir receber doações por meio de soluções digitais.. “Não ter acesso à internet é muito ruim, a gente fica longe da família, dos amigos, não tem como se comunicar, não tem como falar com ninguém, a gente fica isolado no mundo, não tem como você falar com ninguém é muito ruim”, finaliza a moradora.

Centro de Mídia M’Boi Mirim realiza oficinas virtuais de vídeo projeção

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Vídeo mapping e graffiti digital são alguns dos temas abordados na formação gratuita, que é uma iniciação para o mundo da vídeo projeção. As inscrições para as atividades estão abertas até o dia 22 de abril.

 O Centro de Mídia M’Boi Mirim, espaço de trabalho compartilhado e formação para comunicadores, empreendedores e agentes culturais das periferias, realiza entre os dias 26 e 29 de abril a Semana de Cultura Digital, uma formação gratuita de vídeo projeção organizada em parceria com o Coletivo Coletores.

A oficina de vídeo projeção faz parte da Semana de Cultura Digital, evento que foi adaptado para o ambiente virtual devido a pandemia de covid-19. Em parceria com o Coletivo Coletores, a oficina acontece de maneira gratuita e os interessados devem se inscrever por este link.

O objetivo da formação é promover uma série de diálogos sobre arte, tecnologia e cidade. Os encontros são temáticos e acontecem de forma virtual e gratuita. Para participar, é necessário ser morador(a) das periferias e ter mais de 16 anos. Serão disponibilizadas 30 vagas e as inscrições estarão abertas até o dia 22 de abril ou até o número de inscritos ser atingido.

As atividades serão realizadas pela plataforma do Google Meet. Os encontros acontecem das 19h às 21h e cada um deles apresentará um tema específico relacionado com a vídeo projeção, serão eles: vídeo mapping, vídeo guerrilha, projeção em shows e graffiti digital. 

A ideia é que a formação seja uma iniciação à vídeo projeção. Não há formação de VJ, profissional de vídeo projeção nas faculdades. Muitas pessoas também não sabem o que é necessário para se fazer vídeo projeção. Então, se você é um produtor cultural, você pode descobrir como esse recurso pode ampliar a experiência visual da sua atividade. Ou se você viu uma vídeo projeção e quer aprender como ela acontece. Ou ainda, se você é do graffiti, do audiovisual, ou de outras linguagens artísticas, pode acrescentar a vídeo projeção ao seu trabalho. O mais interessante da formação é que ela pode abrir possibilidades

Toni Baptiste, coletivo coletores

Coletivo Coletores 

Criado em 2008 pelos artistas visuais Toni Baptiste e Flávio Camargo, o Coletivo Coletores é de São Mateus, na zona leste de São Paulo. O Coletores atua com instalação, stencil, web art, fotografia, interfaces de baixas tecnologias, game art, vídeo mapping e publicações impressas. Já participaram de inúmeras atividades nas periferias e também realizaram exposições, palestras e intervenções artísticas na Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Dakar (Senegal), Red bull Station, FILE- Festival Internacional de Linguagem Eletrônica, Instituto Tomie Ohtake, entre outros.

Para conhecer o trabalho do Coletivo Coletores, acesse seu perfil no instagram.

Semana de Cultura Digital do Centro de Mídia M’boi Mirim 

 26, 27, 28 e 29 de abril

19h às 21h, pelo Google Meet – somente inscritos

Para se inscrever, acesse o formulário aqui.

Terapeutas criam estratégias de atendimento remoto para moradores das periferias de SP

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Entrevistados afirmam que a realização de terapia por meio de plataformas de reunião ou chamadas de voz via celular fazem parte de uma medida emergencial para democratizar o acesso a saúde mental, demanda que cresceu generosamente junto com as desigualdades sociais que se agravaram durante a pandemia. 

Integrantes do coletivo PerifAnálise. (Foto: Adalberto Bussola)

Você já parou para pensar na importância de obter autoconhecimento para cuidar da saúde mental? Você acha que esse é um papo furado ou coisa de gente fresca que não sabe como gastar dinheiro e acaba investindo em consultas para falar dos problemas do cotidiano para pessoas desconhecidas que nem conhecem as suas reais necessidades físicas e mentais?

As perguntas acima fazem parte da cultura de muitas pessoas moradoras das periferias e favelas que não conhecem ou não tem acesso ao serviço de um psicólogo ou psicanalista.

Ao entender que a pandemia iria gerar um grande passo para trás, devido ao encerramento de diversas políticas públicas que garantiram acesso a direitos sociais importantes para a população pobre brasileira, um grupo de moradoras das periferias, formado por psicólogas começou a refletir sobre os efeitos do ‘bolsonarismo’ e o modo do presidente Jair Bolsonaro enfrentar o coronavírus.

Esta motivação política levou a criação do PerifAnálise, coletivo formado por mulheres da quebrada que atendem moradores das periferias que desenvolveram problemas de saúde mental durante a pandemia de covid-19.

“A periferia é a que mais sofre com a ascensão do bolsonarismo, é nesse momento que a gente começa estudar psicanálise”, afirma Paula Jamele, psicóloga clínica que atua no PerifAnálise, coletivo de profissionais que oferecem atendimento terapêutico a moradores das periferias.

O PerifAnálise foi fundado em agosto de 2018, com o objetivo de cuidar do bem estar mental do moradores da periferia e democratizar a psicanálise. “A gente começou a construir a possibilidade de ter um dispositivo clínico, que pudesse estar próximo da periferia, já que a psicanálise é sempre tão centralizada, sempre tão distante da periferia, e que muitas vezes acaba acontecendo de uma forma nem tanto democrática, então no primeiro momento a gente pensa em construir um dispositivo clínico que a periferia pudesse acessar”, acrescenta Jamele.

Mesmo com uma ideia boa para ser colocada em prática, a chegada da pandemia impediu imediatamente os atendimentos presenciais, assim o grupo passa imigrar o contato com os pacientes para o ambiente online, outro desafio a ser enfrentado nesse momento turbulento de luta pela vida.

Ao firmar o compromisso de fazer atendimentos online, a psicóloga clínica afirma que o coletivo ganhou bastante visibilidade no Instagram, uma plataforma que atraiu muitas pessoas interessadas em conhecer mais sobre o PerifAnálise, fato que resultou inclusive no crescimento do projeto e geração de novas oportunidades.

Essa transformação no atendimento ao público exigiu do PerifAnálise uma adaptação ao cenário da escassez de recursos digitais que os moradores da periferia têm em plena era da quarta revolução industrial, puxada principalmente pelas novas tecnologias.

“Estou atendendo uma analisante que mora na periferia e desde o início ela me disse: ‘olha minha internet não tem um bom sinal’ e desde então, a gente faz análise por chamada de voz, e a gente vai pensando em outras possibilidades que a tecnologia permita”, relata Jamele.

Segundo a psicóloga, analisante é a pessoa que recebe o atendimento terapêutico e está na condição se passar por um processo de acompanhamento das suas necessidades de cuidado com a saúde mental.

Ela reforça que existe uma diferença entre o serviço de internet disponível no centro da cidade e na periferia. “O que é uma internet da periferia em comparação para uma região mais central? Tem isso, a gente foi percebendo ao longo do tempo é percebe até hoje”, aponta Jamele.

Com o atendimento reduzido a chama de voz, ou seja, sem ver a expressão facial do paciente, Jamele relata a importância do áudio e da escuta ativa da voz para acessar o subconsciente dos seus pacientes. “Uma presença por chamada de voz, ainda que não se possa ver a imagem um do outro é um elemento muito importante, porque a voz pra psicanálise vai dizer muito do aspecto inconsciente também”, explica.

Atenta ao diálogo com Jamele, a colega de profissão Emília da Silva, 30, moradora da Cidade Tiradentes ressalta que o atendimento online não é algo presente no cotidiano dos estudantes universitários. “Essa questão do online nunca foi muito abordada pelo menos na minha faculdade, eu sabia que existia, mas pouquíssimas pessoas faziam, já tinha ouvido ou lido algo sobre fora do Brasil, mas aqui no Brasil não”, conta ela, afirmando que já iniciei sua atuação profissional com o atendimento no ambiente digital.

A psicóloga Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo, problema essa questão da grade pedagógica e enfatiza que falta uma disciplina e estudos voltados para o atendimento online nas universidades.

As ferramentas tecnológicas utilizadas por Emilia para realizar o atendimento são aplicativos que os analisantes já estão familiarizados no seu cotidiano. “Eu costumo atender mais pelo whatsapp, pensando muito na memória do celular, e se for por alguma outra plataforma, como Google Meet ou Skype, vai da demanda do analisante, eu espero ele colocar essa procura pela facilidade”, descreve.

Ao trazer essa questão da flexibilidade de escolha de aplicativos para o atendimento, ela faz uma ponderação sobre o uso do whatsapp e a memória dos smartphones dos analisantes. “O whatsapp chega até ser impessoal em alguns momentos, mas eu espero da pessoa né, muitas pessoas não têm capacidade de baixar vários aplicativos e tem essa questão da memória do celular”, argumenta.

“Eu acho que o online é mais uma possibilidade”

Rosimeire Bussola

Rosimeire Bussola é moradora de São Mateus e integrante do PerifAnálise. Para ela, a experiência com atendimento online é atribuindo a uma nova maneira de se fazer psicanálise e torna-la mais acessível para o morador da quebrada.

“A gente vê que existe uma infinidade de outras possibilidades, eu acho que o online é mais uma possibilidade, tem muita gente já estudando, debatendo e conversando sobre essa ferramenta que gente chegou para ficar, e a gente consegue ver efeitos interessantes, tanto nos efeitos da clínica convencional, quanto em relação à estrutura física”, analisa.

Bussola entende a criação desse espaço online como uma ação emergencial, para que pessoas tenham um lugar para falar das suas dores. “Quando a gente se disponibilizou em ouvir as pessoas elas vieram e com a pandemia, além da gente inventar formas de poder atendê-las, essas pessoas também se reinventaram”, explica.

A visão solidária do morador da periferia, que busca de alguma forma ajudar o próximo a superar determinado problema é algo presente em uma das experiências de atendimentos online realizado por Rosimeire.

Pude perceber o quanto as pessoas davam importância para esse espaço de escuta, tive experiência de pegarem celulares emprestados pra poder sustentar a presença os atendimentos, e ouvi coisas do tipo: olha eu moro aqui na favela, então é muito barulho, vou precisar encontrar outro lugar”, confidencia a psicóloga, afirmando que esse relato aponta para as condições da vulnerabilidade social do indivíduo, mas aponta também para uma busca de solução para continuar contando suas questões no espaço terapêutico online.

Uma das coisas que torna os valores acessíveis no coletivo é a flexibilidade de preços na sessão, onde é adequado para cada morador, de acordo com suas condições econômicas no momento de buscar a terapia. “Isso que a gente faz de combinar com cada pessoa, com cada analisante de que ela possa pagar aquilo que ela consegue no momento”, diz Rosimeire, abordando que através desse questionamento ela busca durante as sessões trazer uma maior consciência sobre o valor do dinheiro. “Ao longo do acompanhamento das sessões, a própria pessoa vê quanto quer e quanto vai pagar inclusive isso acaba sendo o acompanhamento da própria análise, qual é a função do dinheiro para vida de cada pessoa”, acrescenta.

Douglas Felix é psicólogo e sócio proprietário do espaço terapêutico Canto Baobá. (Foto: Katia Lopes)

“Atendemos pessoas na laje, banheiro, praça, já atendi também na frente do ponto de ônibus”

Douglas Felix

Outro projeto que se propôs a oferecer um espaço de cuidado para a saúde mental da população preta e periférica é o Canto Baobá, iniciativa que oferece terapia com ênfase em questões raciais, gênero e orientação sexual. A clínica foi idealizada pelo psicólogo Douglas Felix, 36, antes da pandemia e hoje também utiliza o ambiente online para atender os analisantes.

“A gente foi ser perguntando quem era essas pessoas que estavam na clínica de psicologia e como esses psicólogos estavam recebendo mesmo, quando a gente começou a construir o projeto, nossa ideia sempre foi atender essa população periférica, porque a gente lembrou muito da nossa história”, relembra Felix, abordando como os motivos para criar a empresa.

Para o psicólogo que saiu do Parque Santo Antônio, na zona sul de São Paulo e foi morar na Bela Vista, região central, as sessões de terapia ficaram mais intensas nesse novo formato online. “Eu vejo que as sessões ficaram muito mais profundas, porque agora eles conseguem mostrar pra gente de uma forma mais concreta o que eles querem dizer, ou o que eles querem dizer”, analisa Felix.

Douglas entende o cenário no qual estamos vivendo torna a terapia um serviço essencial pra cuidar da saúde mental da população. “Essa pandemia fez a gente repensar novas formas de construir e ser psicólogo, de chegar a outros espaços, de levar a psicologia de uma forma diferente, ou até mesmo tirar esse estereótipo, essa forma que psicologia é só pra quem precisa, a gente vai vendo que a saúde mental tinha que ser muito mais trabalhada nas políticas públicas, pelos nossos governantes”, opina.

Um dos argumentos do psicólogo para tornar a terapia um serviço essencial ou uma política pública é a questão dos fatores sociais que causam as doenças invisíveis que atingem principalmente os moradores das periferias.

“Quando você pensa em uma doença quem vai somatizando no corpo, o quanto tem a haver com a história dessa pessoa, principalmente em pessoas periféricas né, ela não tem a escolha de fazer um home office, ela tem que ir lá fazer o trampo dela, então ela tem que ser colocar em risco, a gente vai pensando o quanto de outras violências estruturais foram acontecendo com essa pessoa”, reflete o psicólogo.

Ana Albuquerque e sócia de Douglas na construção do espaço terapêutico Canto Baobá. (Foto: Juliana Ribeiro)

A psicóloga Ana Albuquerque, 29, é sócia de Felix na construção do Canto Baobá, conta que os atendimentos têm circulado em torno de temas e debates focado em desigualdades sociais. “A gente tem trabalhado falando muito do social e tentando aliviar culpas singulares que vão sendo internalizadas, o que é só mais uma estratégia das violências e opressões também”, explica.

De olho na mobilidade que as plataformas digitais oferecem, a psicóloga revela que tem realizado atendimentos nos locais mais diversos. “Atendemos as pessoas na laje, banheiro, praças, e já atendi também na frente do ponto de ônibus, onde dava pra encontrar ali um espaço, a gente foi tentando ter a criatividade e trazer essa pessoa, então vamos continuar pensando e criando o que dá para fazer”, conta Albuquerque.

Ela também morava na periferia, mais precisamente na Freguesia do Ó, região noroeste de São Paulo. A psicóloga revela mais uma vez são as desigualdades sociais são temas recorrentes nos atendimentos realizados por ela. “Muito da ansiedade vem de uma angústia, do eu não posso ficar em casa, eu vou pegar transporte, eu vou chegar do trabalho, eu vou faltar, eu moro com toda minha família, não tenho tantos cômodos aqui, é a ansiedade é despertada a partir do eu posso passar todo dia, posso transgredir todo dia, e a gente tem trabalhado muito isso, e a gente tem trabalhado muito para que essa culpabilização não seja singular.”

A psicóloga finaliza a entrevista falando do quão importante é se adaptar às condições de cada pessoa, pensando no acesso à internet, para ela ter acesso ao cuidado com a sua saúde mental. “Nem todo mundo tem um lugar pra fazer terapia com privacidade e a gente precisa pensar também como a internet não chega a todos os lugares?”, questiona ela, esclarecendo que fazer uma triagem dos analisantes é o ponto de partida para gerar uma inclusão social. “Hoje a gente pensa em um caminho de triagem, de entender a realidade de cada pessoa, e o fechamento do valor é individual, de acordo com cada realidade, cada história e com cada pessoa”, conclui. 

Terapeutas da quebrada transformam plataformas de reunião em consultórios

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Uma motivação política levou a criação do coletivo PerifAnálise, formado por mulheres da quebrada que atendem moradores das periferias que desenvolveram problemas de saúde mental durante a pandemia de covid-19.

Time de psicanalista do coletivo PerifAnalise creditos Adalberto Bussola

 Você já parou para pensar na importância de obter autoconhecimento para cuidar da saúde mental? Você acha que esse é um papo furado ou coisa de gente fresca que não sabe como gastar dinheiro e acaba investindo em consultas para falar dos problemas do cotidiano para pessoas desconhecidas que nem conhecem as suas reais necessidades físicas e mentais?

As perguntas acima fazem parte da cultura de muitas pessoas moradoras das periferias e favelas que não conhecem ou não tem acesso ao serviço de um psicólogo ou psicanalista.

Ao entender que a pandemia iria gerar um grande passo para trás, devido ao encerramento de diversas políticas públicas que garantiram acesso a direitos sociais importantes para a população pobre brasileira, um grupo de moradoras das periferias, formado por psicólogas começou a refletir sobre os efeitos do ‘bolsonarismo’ e o modo do presidente Jair Bolsonaro enfrentar o coronavírus.

“A periferia é a que mais sofreria com a ascensão do bolsonarismo, é nesse momento que a gente começa estudar psicanálise”, afirma Paula Jameli, psicóloga clínica que atua no PerifAnalise, coletivo de profissionais que oferecem atendimento terapêutico a moradores das periferias.

O PerifAnalise foi fundado em agosto de 2018, com o objetivo de cuidar do bem estar mental do moradores da periferia e democratizar a psicanálise. “A gente começou a construir a possibilidade de ter um dispositivo clínico, que pudesse estar próximo da periferia, já que a psicanálise é sempre tão centralizada, sempre tão distante da periferia, e que muitas vezes acaba acontecendo de uma forma nem tanto democrática, então no primeiro momento a gente pensa em construir um dispositivo clínico que a periferia pudesse acessar”, acrescenta Jameli.

Mesmo com uma ideia boa para ser colocada em prática, a chegada da pandemia impediu imediatamente os atendimentos presenciais, assim o grupo passa imigrar o contato com os pacientes para o ambiente online, outro desafio a ser enfrentado nesse momento turbulento de luta pela vida.

Ao firmar o compromisso de fazer atendimentos online, a psicóloga clinica afirma que o coletivo ganhou bastante visibilidade no Instagram, uma plataforma que atraiu muitas pessoas interessadas em conhecer mais sobre o PerifAnálise, fato que resultou inclusive no crescimento do projeto e geração de novas oportunidades.

Essa transformação no atendimento ao público exigiu do PerifAnalise uma adaptação ao cenário da escassez de recursos digitais que os moradores da periferia têm em plena era da quarta revolução industrial, puxada principalmente pelas novas tecnologias.

“Estou atendendo uma analisante que mora na periferia e desde o início ela me disse: ‘olha minha internet não tem um bom sinal’ e desde então, a gente faz análise por chamada de voz, e a gente vai pensando em outras possibilidades que a tecnologia permita”, relata Jameli.

Segundo a psicóloga, analisante é a pessoa que recebe o atendimento terapêutico e está na condição se passar por um processo de acompanhamento das suas necessidades de cuidado com a saúde mental.

Ela reforça que existe uma diferença entre o serviço de internet disponível no centro da cidade e na periferia. “O que é uma internet da periferia em comparação para uma região mais central? Tem isso, a gente foi percebendo ao longo do tempo é percebe até hoje”, aponta Jameli.

Com o atendimento reduzido a chamada de voz, ou seja, sem ver a expressão facial do paciente, Jameli relata a importância do áudio e da escuta ativa da voz para acessar o subconsciente dos seus pacientes. “Uma presença por chamada de voz, ainda que não se possa ver a imagem um do outro é um elemento muito importante, porque a voz pra psicanálise vai dizer muito do aspecto inconsciente também”, explica.

Atenta ao diálogo com Jameli, a colega de profissão Emília da Silva, 30, moradora da Cidade Tiradentes ressalta que o atendimento online não é algo presente no cotidiano dos estudantes universitários

“Essa questão do online nunca foi muito abordada pelo menos na minha faculdade, eu sabia que existia, mas pouquíssimas pessoas faziam, já tinha ouvido ou lido algo sobre fora do Brasil, mas aqui no Brasil não”, conta ela, afirmando que já iniciei sua atuação profissional com o atendimento no ambiente digital.

Emília da Silva

A psicóloga Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo, Vê problema na questão da grade pedagógica e enfatiza que falta uma disciplina e estudos voltados para o atendimento online nas universidades.

As ferramentas tecnológicas utilizadas por Emilia para realizar o atendimento são aplicativos que os analisantes já estão familiarizados no seu cotidiano. “Eu costumo atender mais pelo Whatsapp, pensando muito na memória do celular, e se for por alguma outra plataforma, como Google Meet ou Skype, vai da demanda do analisante, eu espero ele colocar essa procura pela facilidade”, descreve.

Ao trazer essa questão da flexibilidade de escolha de aplicativos para o atendimento, ela faz uma podenração sobre o uso do whatsapp e a memória dos smartphones dos analisantes. “O whatsapp chega até ser impessoal em alguns momentos, mas eu espero da pessoa né, muitas pessoas não têm capacidade de baixar vários aplicativos e tem essa questão da memória do celular”, argumenta.

 “Eu acho que o online é mais uma possibilidade”

Rosimeire Bussola é moradora de São Mateus e integrante do PerifAnálise. Para ela, a experiência com atendimento online é atribuindo a uma nova maneira de se fazer psicanálise e tornar-la mais acessível para o morador da quebrada.

“A gente vê que existe uma infinidade de outras possibilidades, eu acho que o online é mais uma possibilidade, tem muita gente já estudando, debatendo e conversando sobre essa ferramenta que gente chegou para ficar, e a gente consegue ver efeitos interessantes, tanto nos efeitos da clínica convencional, quanto em relação à estrutura física”, analisa.

Rosimeire Bussola

Bussola entende a criação desse espaço online como uma ação emergencial, para que pessoas tenham um lugar para falar das suas dores. “Quando a gente se disponibilizou em ouvir as pessoas elas vieram e com a pandemia, além da gente inventar formas de poder atendê-las, essas pessoas também se reinventaram”, explica.

A visão solidária do morador da periferia, que busca de alguma forma ajudar o próximo a superar determinado problema é algo presente em uma das experiências de atendimentos online realizado por Rosimeire.

Pude perceber o quanto as pessoas davam importância para esse espaço de escuta, tive experiência de pegarem celulares emprestados pra poder sustentar a presença os atendimentos, e ouvi coisas do tipo: olha eu moro aqui na favela, então é muito barulho, vou precisar encontrar outro lugar”, confidencia a psicóloga, afirmando que esse relato aponta para as condições da vulnerabilidade social do indivíduo, mas aponta também para uma busca de solução para continuar contando suas questões no espaço terapêutico online.

Uma das coisas que torna os valores acessíveis no coletivo é a flexibilidade de preços na sessão, onde é adequado para cada morador, de acordo com suas condições econômicas no momento de buscar a terapia. “Isso que a gente faz de combinar com cada pessoa, com cada analisante de que ela possa pagar aquilo que ela consegue no momento”, diz Rosimeire, abordando que através desse questionamento ela busca durante as sessões trazer uma maior consciência sobre o valor do dinheiro. “Ao longo do acompanhamento das sessões, a própria pessoas vê quanto quer e quanto vai pagar inclusive isso acaba sendo o acompanhamento da própria análise, qual é a função do dinheiro para vida de cada pessoa”, acrescenta.

 “Atendemos pessoas na laje, banheiro, praça, já atendi também na frente do ponto de ônibus”

Psicologo Douglas do canto baoba creditos Katia Lopes

Outro projeto que se propôs a oferecer um espaço de cuidado para a saúde mental da população preta e periférica é o Canto Baobá, iniciativa que oferece terapia com ênfase em questões raciais, gênero e orientação sexual. A clinica tem como um dos idealizadores o psicólogo Douglas Felix, 36, antes da pandemia e hoje também utiliza o ambiente online para atender os analisantes.

“A gente foi ser perguntando quem era essas pessoas que estavam na clinica de psicologia e como esses psicólogos estavam recebendo mesmo, quando a gente começou a construir o projeto, nossa ideia sempre foi atender essa população periférica, porque a gente lembrou muito da nossa história”, relembra Felix, abordando como os motivos para criar a empresa.

Para o psicólogo que saiu do Parque Santo Antonio, na zona sul de São Paulo e foi morar na Bela Vista, região central, as sessões de terapia ficaram mais intensas nesse novo formato online. “Eu vejo que as sessões ficaram muito mais profundas, porque agora eles conseguem mostrar pra gente de uma forma mais concreta o que eles querem dizer, ou o que eles querem dizer”, analisa Felix.

Douglas entende o cenário no qual estamos vivendo torna a terapia um serviço essencial pra cuidar da saúde mental da população. “Essa pandemia fez a gente repensar novas formas de construir e ser psicólogo, de chegar a outros espaços, de levar a psicologia de uma forma diferente, ou até mesmo tirar esse estereótipo, essa forma que psicologia é só pra quem precisa, a gente vai vendo que a saúde mental tinha que ser muito mais trabalhada nas políticas públicas, pelos nossos governantes”, opina.

Um dos argumentos do psicólogo para tornar a terapia uma serviço essencial ou uma política pública é a questão dos fatores sociais que causam as doenças invisíveis que atingem principalmente os moradores das periferias.

“Quando você pensa em uma doença quem vai somatizando no corpo, o quanto tem a haver com a história dessa pessoa, principalmente em pessoas periféricas né, ela não tem a escolha de fazer um home office, ela tem que ir lá fazer o trampo dela, então ela tem que ser colocar em risco, a gente vai pensando o quanto de outras violências estruturais foram acontecendo com essa pessoa”, reflete o psicólogo.

Psicologa Ana Alburquerque do canto baoba creditos Juliana Ribeiro

A psicóloga Ana Albuquerque, 29, também idealizadora da clinica e sócia de Felix na construção do Canto Baobá, conta que os atendimentos tem circulado em torno de temas e debates focado em desigualdades sociais. “A gente tem trabalhado falando muito do social e tentando aliviar culpas singulares que vão sendo internalizadas, o que é só mais uma estratégia das violências e opressões também”, explica.

De olho na mobilidade que as plataformas digitais oferecem, a psicóloga revela que tem realizado atendimentos nos locais mais diversos. “Atendemos as pessoas na laje, banheiro, praças, e já atendi também na frente do ponto de ônibus, onde dava pra encontrar ali um espaço, a gente foi tentando ter a criatividade e trazer essa pessoa, então vamos continuar pensando e criando o que dá para fazer”, conta Albuquerque.

Ela também morava na periferia, mais precisamente na Freguesia do Ó, região noroeste de São Paulo. A psicóloga revela mais uma vez são as desigualdades sociais são temas recorrentes nos atendimentos realizados por ela. “Muito da ansiedade vem de uma angústia, do eu não posso ficar em casa, eu vou pegar transporte, eu vou chegar do trabalho, eu vou faltar, eu moro com toda minha família, não tenho tantos cômodos aqui, é a ansiedade é despertada a partir do eu posso passar todo dia, posso transgredir todo dia, e a gente tem trabalhado muito isso, e a gente tem trabalhado muito para que essa culpabilização não seja singular”,

A psicóloga finaliza a entrevista falando do quão importante é se adaptar às condições de cada pessoa, pensando no acesso a internet, para ela ter acesso ao cuidado com a sua saúde mental. “Nem todo mundo tem um lugar pra fazer terapia com privacidade e a gente precisa pensar também como a internet não chega a todos os lugares?”, questiona ela, esclarecendo que fazer uma triagem dos analisante é o ponto de partida para gerar uma inclusão social. “Hoje a gente pensa em um caminho de triagem, de entender a realidade de cada pessoa, e o fechamento do valor é individual, de acordo com cada realidade, cada história e com cada pessoa”, conclui.

1 de abril nunca foi mentira

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Não precisamos esquecer a tristeza, mas lembrar quem nos deixa assim.

Jardim Piracuama, Campo Limpo, zona sul, SP/20 – Foto: @Dicampanafotocoletivo

Eu gosto muito de escrever, pois, a escrita materializa o pensamento, e a história que se faz diariamente. Milhões de relatos não vão para os livros de história, perspectivas variadas e múltiplas não conseguem ser todas apreendidas pelos pesquisadores. Em grande parte a narrativa de quem tem o poder é que conta, estratégia que levou para os livros de história que alfabetizam a população, uma versão corrigida da vida de milhares de pessoas em um determinado tempo da história. Assim se constroem os reis, heróis, vencidos e perdedores.

De tempos em tempos, revelações são feitas como que desfazendo manipulações que levaram milhares de pessoas a acreditar em determinado fato e condenar outro. Estamos exatamente nesse turbilhão de confusões. Políticos acusados se tornam inocentes e inocentes réus.

Em Outubro de 2018, ocorreu a oitava eleição presidencial, após a promulgação da constituição federal de 1988. Após o golpe de 2016 contra a primeira presidenta eleita no Brasil Dilma Rousseff, o Brasil se vê em um momento de desesperança política e no calor da inquisição de todos os políticos corruptos do Brasil, fez dessa eleição o ato de maior retrocesso político.

Nosso Napoleão, sem partido, se fez presente nas páginas históricas da democracia tupiniquim, com promessas contundentes e práticas abomináveis. Nesse ponto da história, nosso Napoleão surge da queima suposta da corrupção, não queria conquistar outros territórios, muito pelo contrário, pelo que temos acompanhado.

Nesses dois anos vivemos as ações históricas mais sombrias, trajetória de tempos nefastos da direita, reviver o obscurantismo, onde Deus e o dinheiro estavam acima da ciência e da vida. Nosso Napoleão não acredita na ciência, na história, nem mesmo na política. A história brasileira já se apresentou como tragédia em 1968 e agora como uma farsa democrática. De 2018 a 2021, o fantasma do golpe militar assombra nossos dias e tantos trabalhadores comuns envolvidos pela férrea máscara mortuária do nosso Napoleão.

” (…) Todo um povo que pensava ter comunicado a si próprio um forte impulso para diante, por meio da revolução, se encontra de repente transladado a uma época morta, e para que não se possa haver sombra de dúvida quanto ao retrocesso, surgem novamente as velhas datas, os velhos nomes, os velhos éditos que já se haviam tornado assunto de erudição de antiquário (…).” 

18 Brumário de Karl Marx

Temos nossas particularidades, mas uma em comum. Nós fazemos nossa história, mas não como queremos, pois, a escolher lados da história no Brasil é um processo obscuro, temos olhado para as sombras políticas da vidas projetadas na caverna, recriam dessas sombras o mesmo mal com outra roupa.

Grande parte do Brasil sabia que esse Napoleão não traria nada de novo, pois fora da caverna estava mais que óbvias suas intenções. Mas um país que não investe em conhecimento não tira seu povo da caverna, poucos relutam na tentativa de uma descolonialidade da escola e na busca de um real avanço democrático. A internet, nossa caverna moderna, cheia de fakes de vida e ideias, foi a principal ferramenta para eleição de nosso algoz.

Talvez o povo quisesse de fato que o fim da corrupção ocorresse com as roupas da inquisição, mas a burguesia brasileira que se colocou de forma ambígua, como sempre, na defesa dessa inquisição, sabia estar metade atolada nessa negociata de direitos que se tornou a política brasileira. Bem se vê no desmonte dos direitos trabalhistas para exploração regulamentada da força de trabalho.

Como em uma receita belicosa nosso povo se vê cheios de impostos que esmagam a classe trabalhadora e tomados por discursos religiosos que vêm de toda parte em uma catequização massiva e doentia, enfraquecendo nossa luta em todo território, tomando nossas lideranças por meros pastores de ovelhas de um sistema envelhecido contaminado pelo neoliberalismo metamorfo do negacionismo.

Assim como em tempos remotos da história do capitalismo, a burguesia brasileira torna nossas lutas em mercadorias e as mercadorias em lutas maiores. A história sempre se repete de forma diferente em cada momento, em cada contexto, mas sob o manto do capitalismo sempre como exploração. Em nosso território, a exploração da terra e do povo foi o ventre de seu nascimento, suas raízes mais perversas alimentadas pelo capitalismo e sua cara maquiada pela cultura parecem sempre familiares de mais, que mal conhecemos de onde vem o açoite, por mais perverso que se apresente.

A burguesia tomou as frentes de luta, tudo se tornou uma luta socialista, transpor rio, beneficiar banqueiros, construir avenidas para carros, construir transportes com o couro dos trabalhadores, comercializar direitos, vender a educação como um estilo de vida.

Como descrito nos livros da história burguesa, eles sabem que toda a informação, tecnologia, educação, os movimentos sociais, a cultura popular, são armas utilizadas por eles para suas conquistas com dois gumes, que tudo que criaram para sua permanência e controle ameaçam também sua existência. Como dizia Marx, as liberdades burguesas ameaçam o seu domínio de classe, por isso nesse momento endurecem suas rédeas contra a classe trabalhadora.

No disfarce de que a vida boa é uma dádiva de Deus ou da meritocracia, assistimos pessoas morrem de fome e de outros males em decorrência da fome, subnutrição, desnutrição, se morre de COVID-19 e mais todas outras doenças do mundo que ainda não tem cura. Nossa hipertensão, nossa, diabetes, nossa retenção de líquidos, herdados das correntes da escravidão se tornam mais um ponto fraco para nossa morte, como se a COVID-19 tivesse saido da cabeça um homem branco.

O ódio das pessoas pelos valores das lutas revolucionárias são fortes, mas estão sendo vendidos pela propaganda, qualquer antagonismo entre o mercado e os valores sociais, direitos a diversidade racial e de gênero, os direitos humanos e o socialismo estão na mídia que vende de forma escancarada por meio da indústria da beleza que movimentou 166,8 bilhões em 2019, por exemplo, de outros mercados, e continua crescendo mesmo com a pandemia varrendo o país. Os capitalistas não se importam que o povo morra, com tanto que eles enriqueçam, mais e mais.

Gosto de comparar a história, olhar para o passado e ver traços dela, no presente, o mais importante desse processo é pensar sobre o que está acontecendo, seus motivos, seus impactos futuros e minha responsabilidade mesmo que pequena em todo esse processo. Nunca foi tão importante que cada um de nós se sinta sujeito da história. Não podemos ficar em casa porque o governo não tem se comprometido em manter um auxílio, pois não trabalhar significa impacto no bolso da burguesia.

O povo elegeu esse presidente, nosso Napoleão, acreditando na possibilidade do fim da corrupção e a burguesia em seu enriquecimento absoluto sem restrições, podemos ver hoje com 2 anos de supressão de nossos direitos, quem está sendo atendido.

O baixo investimento em educação e atualização tecnológica, desemprego, violência, escassez de moradias, precarização do SUS, falta de medidas contra a fome. A grande chave deste sistema de exploração, a desigualdade social, segundo o relatório da ONU, de 2019, no Brasil 1% da população concentra 28,3% da renda total do país.

Nenhum desses problemas foram realmente enfrentados por esse governo com vias a extinguir os reais problemas brasileiros, mas com sua capacidade tola e irresponsável ele conseguiu nos trazer adversidades que nem imaginamos que viveríamos.

Eu sou uma mulher periférica e me sinto ameaçada pelo Chefe de Estado do meu país, coisa mais séria que nunca vivi. Que a gente nunca esqueça e saiba nas sombras reconhecer o cheiro da carniça política que alguns trazem, a mídia popular e autônoma tem ajudado muito nesse momento, pensar o hoje para entender o amanhã.

Não precisamos esquecer a tristeza, mas lembrar quem nos deixa assim.

O boom das adoções e o abandono de pets na pandemia

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Você deve estar se perguntando o que você tem a ver com isso, mas se por acaso te passou pela mente adotar ou abandonar um amiguinho quatro patas, por favor leia esse texto até o final.

Lena e Jordan com Jersey e Jequié. Foto: arquivo pessoal

Adotamos dois cachorros na pandemia e não foi por solidão, nem depressão como acontece na maioria dos casos. Ano passado o Beat, nosso vira-lata de estimação morreu e deixou um vazio enorme, principalmente para minha mãe que é deficiente auditiva. O cachorro não era só um pet, ele lhe servia de ouvidos quando nós não estávamos em casa.

Dois meses depois da perda do Beat sentimos a necessidade de adotar um filhote. Procuramos nos grupos de adoção no Facebook, uma ferramenta que por sinal funciona muito bem! A todo momento, fotos e depoimentos eram postados por pessoas de todo lugar do estado. Demorou para encontrarmos o dog pretinho como queríamos, até que apareceu no feed a foto do Jersey. Foi amor à primeira vista.

Bom, você deve estar se perguntando o que você tem a ver com isso, mas se por acaso te passou pela mente adotar ou abandonar um amiguinho quatro patas, por favor leia esse texto até o final.

Com o início da pandemia houve uma explosão de adoção de pets e o principal motivo foi a carência das pessoas em busca de companhia durante a solidão do isolamento social.

A ONG União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), que fica na Zona Norte em São Paulo, registrou um crescimento de 400% na procura por cães e gatos. Muitas pessoas, infelizmente, não levam em consideração que um pet é para sempre. Eis a problemática que temos que lidar: o aumento repentino de abandono de cães. Pessoas têm usado a pandemia como desculpa para se desfazer de seus pets.

Segundo um levantamento da Ampara Animal, houve um aumento de 70% de cães, gatos, entre outros bichos domésticos abandonados no Brasil . A falta de instruções e de conhecimento dos tutores sobre o comportamento natural dos animais, os cuidados e gastos que requerem é um dos motivos de abandono e de maus-tratos.

Uma pesquisa realizada em 2019 pelo Instituto Pet Brasil aponta que a população de cães e gatos alojados em organizações não governamentais (ONGs) e instituições é de cerca de 172 mil. 96% desses animais são cães e os outros 4% são gatos.

Fora desse quadro, existem quase 3,9 milhões de animais em condições de vulnerabilidade, aqueles que vivem sob cuidados de famílias abaixo da linha de pobreza ou que vivem nas ruas. O Sudeste é a região com a maior parte dos animais nessa situação, com mais de 78 mil.

Com tantos casos e mortes de pessoas vítimas do covid-19, fica mesmo difícil prestar atenção nos vira-latas, mas se observarmos bem, o abandono de animais nas ruas ou a procriação descontrolada, pode levar a problemas de Saúde Pública, como acidentes por mordeduras, atropelamentos, sarnas e infestação por pulgas e carrapatos até doenças mais graves, como a cinomose, raiva, leishmaniose, parvovirose e leptospirose, principalmente por serem animais que não estão vacinados, o que de consequência, aumenta a transmissão de doenças em seres humanos.

Além de ser cruel, é uma questão de saúde pública que necessita do envolvimento de todos os cidadãos e de promulgação de leis mais específicas, visando o controle de prevenção de zoonoses, a conscientização, a educação em guarda responsável e o bem-estar animal.

A presença de animais em situação de rua tem relação direta com o aumento da aquisição ou adoção por impulso e o posterior abandono desses animais.

E foi assim que, a menos de um mês, encontramos um filhote lindo, sozinho na frente da estação Capão Redondo. Uma fêmea pretinha igual a Jersey. Os comerciantes disseram que ela estava lá há três dias. A levamos para casa pensando em colocá-la em adoção, mas decidimos ficar com ela. Agora temos um novo membro na família, Jequié, em homenagem à cidade onde eu, Lena, nasci. Como o Jersey, que foi batizado com o nome do estado onde o BiXop nasceu. 

II Festejo Raízes do Riso exalta a comicidade negra e saberes indígenas com programação virtual

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Apresentações de teatro, circo, shows e oficinas fazem parte da programação do festival que reúne diversos artistas periféricos. 

Foto: Fernando Solidade

Entre os dias 05 e 11 de abril, o espaço formativo Terreiros do Riso organiza a segunda edição do festival “Festejo: Raízes do Riso”. Com mais de 70 convidados distribuídos em mais de 20 atividades gratuitas e virtuais, o evento traz como temática principal a comédia preta e saberes indígenas.

As atividades do festival incluem rodas de conversa, exibição de documentário, brincadeiras tradicionais, espetáculos, shows de circo, teatro, música e elas serão transmitidas pela página do Facebook e canal do Youtube do Terreiros do Riso. Além disso, há quatro oficinas que serão realizadas com turmas fechadas pela plataforma de reuniões Zoom.

O Festejo traz a memória e a força dos saberes tradicionais para fortalecimento do riso e da alegria como orientadores da luta, resistência, denúncia e celebração negra no Brasil. Por isso, o festival contempla uma variedade de formatos de atividades que celebram o lado cômico, como as apresentações de palhaços e artistas do riso. 

Quando percebemos alegria como um fundamento ético, presente na sabedoria afro-diaspórica e indígena, estamos falando de cura. Não a cura como a ciência ocidental fomenta, mas sim uma sabedoria ancestral, uma cura que sustenta e firma nossa alma.

Vanessa Rosa, idealizadora e produtora do Festejo

O “burburinho de abertura” será conduzido por Vanessa Rosa, no dia 04 de abril. Às 19h no dia 05, serão realizadas duas apresentações, uma com o babalorixá Rodney William com o tema “Exu é Alegria” e a outra com o professor Muniz Sodré, sobre o tema “Alegria é regência”. O grupo Pastoras do Rosário faz o show que encerra o primeiro dia do festival, às 20h.

O II Festejo Raízes do Riso é organizado pelo espaço Terreiros do Riso, que atua na região do Grajaú e Cidade Dutra, zona sul da cidade de São Paulo. O espaço promove experimentações no campo da alegria como fundamento ético, do riso e das comicidades afro-diaspóricas, afro-indígenas e dos saberes da periferia.

Serviço 

II Festejo: Raízes do Riso
De 05 a 11 de abril
Online via Facebook, Youtube e Instagram do Terreiros do Riso
Classificação indicativa: livre

Programação 

04 de abril
16h – Burburinho de abertura com Vanessa Rosa

05 de abril
19h – “Exu é alegria” – com babalorixá Rodney Willians
19h – “Alegria é regência” – com Muniz Sodré
20h – Show de Pastoras do Rosário

06 de abril
15h – Espetáculo “Aulas: Caminho” – com Fabio Soares da Silva
18h – Espetáculo “Apresentação Boizinho da aldeia”
19h às 21h – Oficina 1: Mateus: O Dono do Terreiro
Com: Mestre Martelo e mediação de Cibele Mateus (Ao vivo pelo Zoom. Necessário se inscrever por este formulário)

07 de abril
10h – Oficina “Educação, Cultura, Vida e Rezos: o brincar na cultura Guarani Mbyá” – com educadores do Centro de Educação e Cultura Indígena Tenondé Porã
15h – Gira de Conversas “Capoeira de Angola: Gingas, jogos e brincadeiras” – com Mestre Zelão
20h – Show de Coral Amba Vera

08 de abril
09h às 12h – Oficina “Pororoca do Riso” – com Coletivo Catappum (Ao vivo pelo Zoom. Necessário se inscrever por este formulário)
13h – “Circo Guarany: Uma viagem no tempo” com exibição do documentário: “Minha avó era palhaço” e Gira de Conversa com Família Xamego
19h – Espetáculo “Quizumba” – com Rainhas do Radiador
20h – Espetáculo “Catappum!” – com Cia Catappum

09 de abril
09h às 12h – Oficina ” Peças, Danças de Guerreiro e Jogo de Espada” – com Mestra Yara e Maria Fabrisleny (Ao vivo pelo Zoom. Necessário se inscrever por este formulário)
15h – Embolada de Terreiro I – com Terreiros do Riso e convidades
19h – Gira de Conversas “Festejos e Performances na Diáspora Negra” – com Saloma Salomão, Nirele Nepomuceno e mediação de Cibele Mateus

10 de abril
09h às 12h – Oficina “Devolve meu quadril: relações entre quadril, comicidade e desobediência” – com Deise de Brito (Ao vivo pelo Zoom. Necessário se inscrever por este formulário)
15h – Gira de Conversas “Matriarcado, Territórios e Ancestralidade” – com Bartira Menezes, Cristiane Rosa, Yakuy Tupinambá, Dona Didi e mediação de Vanessa Rosa.
18h – Encantaria “Mulheres Negras na Função” – com Carolina Ferreira, Lilyan Telles, Luz Cabocla, Mafá Santos e Raquel Franco.
20h – Show “Bambaê e Cacuriá” com Família Menezes

11 de abril – Cantos de Encerramento
10h – Show de Jongo do Tamandaré
14h – Espetáculo “Auto do Negrinho” – com Terreiro Encantado
16h – Embolada de Terreiro II – com Terreiro do Riso e convidades
20h – Shows de Gê de Lima “Samba e Diversidade”, com participações especiais de Mestra Aurinda do Prado e Danna Lisboa. 

Educação: a arma poderosa contra as violências

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Tudo passa pela educação, cada parte da sociedade acaba refletindo nela assim como ela reflete a sociedade, é uma troca constante, não existe escola, por exemplo, sem comunidade. Pensar educação é pensar que passei por ela, alguém facilitou meu conhecimento para que hoje eu conseguisse escrever esse breve texto.

Greve da educação em 2019. Foto: João Victor Santos (@joaovictorsantosh)

Quando falamos de educação, o que vem à sua cabeça? Talvez uma sala de aula com muitos alunos, uma escola rígida ou até mesmo algumas memórias de sua época de estudante… mas a educação apesar de ser de fato um facilitador da aprendizagem e estar inserida no ambiente escolar, engloba muito mais que isso.

Tudo passa pela educação, cada parte da sociedade acaba refletindo nela assim como ela reflete a sociedade, é uma troca constante, não existe escola, por exemplo, sem comunidade. Pensar educação é pensar que passei por ela, alguém facilitou meu conhecimento para que hoje eu conseguisse escrever esse breve texto.

Então como ela poderia estar isolada somente a repassar os conhecimentos sobre alguma área? Afinal, já que temos na sala de aula alunos que irão socializar ali e que também convivem em sociedade, assim como professores e os demais funcionários, e isso se repete em faculdades, cursos etc. Ela pode ser uma arma poderosa para nos libertar ou simplesmente pode nos aprisionar mais ainda.

Aprendemos que a violência se inicia no ato, mas isso é mentira. Uma violência se inicia muito antes e muitas vezes é um ato “repassado”, sabe quando vemos crianças repetindo o que os adultos fazem? Esse seria o modo mais simples de explicar como uma educação violenta ou repassada com essa linguagem pode alimentar ainda mais uma sociedade cruel para se viver.

Mas por quê a educação?  

Porque ela é a chave de entrada para nós. É a partir desse convívio, dessas às vezes seis horas dentro de um lugar chamado escola, que aprendemos a ler, escrever, fazer contas, desenhar, momentos históricos, sociológicos, filosóficos e sobre outras pessoas, sobre como o “outro” é, e sobre como a sociedade será.

Nossa mania constante de em escolas repreender sempre meninas ou reproduzir na fala machismo, sexismo, misoginia aumenta as chances daquelas crianças e jovens serem também reprodutores com as próximas gerações. É claro que a educação não é responsável por todo o pacote de violência, porém pode ser a maior ALIADA no combate dela.

Claro que nem sempre as crianças vão reproduzir tudo aquilo, mas vão absorver de alguma forma. A educação é poderosa e tem um lugar pra além de somente facilitar o acesso ao conhecimento, é na escola que muitas vezes são identificadas questões psicológicas, problemas familiares e tantas outras coisas. É nesse ambiente que seria possível evitar repasses de atitudes violentas.

A partir de um ensino mais aberto e que dialogue podemos mudar perspectivas, apenas por introduzir alguns assuntos ou por mudanças de atitude. Muita gente me diz como é bonito meu engajamento com a educação, contudo essas pessoas já reproduziram atitudes violentas próximo a mim.

Então elas são ruins? Não! 

Elas também receberam uma perspectiva social violenta e que é difícil parar de reproduzir, por isso esse não é um trabalho individual, é coletivo. Pensar educação é pensar comunidades, pessoas, trajetórias e TUDO NO PLURAL!

Mas como a educação pode mudar isso de fato?

A partir de práticas educativas dentro da escola que envolvam emancipação social, através de mudanças no sistema que temos, de formações na educação básica para isso, de projetos que envolvam as comunidades, de uma educação que pense o indivíduo como alguém ativo naquela relação e não um mero receptor, uma educação voltada para além das bordas técnicas contando com acompanhamento psicológico e psicopedagógico. Para fazer isso precisamos de todas as instituições sociais juntas, precisamos de mobilizações e de fiscalizações constantes, é um trabalho de formiguinha então? Sim, é. Mas que pode nos gerar resultados incríveis e uma sociedade menos violenta. Investir em educação é investir na mudança de toda estrutura social!

Olhando para os dados de violência contra a mulher podemos ver uma triste realidade. Em 2019 apontavam o Capão Redondo como sendo um dos lugares mais hostis para as mulheres estarem em São Paulo, um pedido de socorro foi feito a cada 20 minutos segundo as pesquisas. O Capão Redondo também é um lugar apontado como ainda desigual, é um lugar onde sabemos que os professores fazem o que podem e o que não podem pra salvar o ambiente escolar, e é lá que começa tudo!

A educação além de poder trazer ascensão social para as mulheres, permitindo-as ter independência, também pode ser a porta para lidar com reproduções de violência que os homens aprendem muito cedo. A escola precisa ser o lugar onde falamos sobre isso, por que se não for lá vai ser onde? Só iremos lidar com isso quando as mulheres morrem?

É claro, precisamos que o Estado faça o trabalho dele, não estou aqui dizendo que temos mãos para isso, contudo já existem nas periferias lugares que procuram introduzir esses assuntos, que tal ajudarmos? Que tal irmos ouvir também?

A educação tem um poder transformador, ela pode libertar e pode ser nossa única arma para diminuir a reprodução de violência, para salvar nossa quebrada e nossas mulheres! Falar em 8 de março, é falar em luta e na quebrada isso é ainda mais denso. A fala tem poder, nossa linguagem, nossas ações são poderosas para as próximas gerações!

“É muito fácil fugir mas eu não vou, não vou trair quem eu fui, quem eu sou. Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim, ensinamento da favela foi muito bom pra mim… Eu não preciso de muito pra sentir-me capaz de encontrar a Fórmula Mágica da Paz…”

Racionais Mc’s, Fórmula Mágica da Paz

“Somos seres políticos”: conheça a trajetória política de Keit Lima na Brasilândia

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Nordestina, periférica e engajada na participação política no território da Brasilândia, zona norte de São Paulo, Keit Lima é a última entrevistada da série trajetória política, que mostra a história de mulheres periféricas que dedicam parte de sua vida a construir a política institucional.

Nas eleições municipais de 2020, Keit Lima se candidatou a vereadora com filiação ao PSOL. Ela alcançou a marca de 11.355 votos, para ocupar uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo, mas não conseguiu se eleger. Hoje ela é vereadora suplente pelo partido que acolheu a sua visão política, enraizada na sua origem nordestina e periférica.

Keit mora Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo desde os oito anos. Ela nasceu em Recife e veio com a sua família para São Paulo em busca de acesso à educação, saúde e formas de melhorar de vida.

Hoje ela está cursando o curso superior de direito, sua segunda graduação pela Faculdade Zumbi dos Palmares. Entre os movimentos sociais que ela participa estão a Marcha de Mulheres Negras, Educafro, Mulheres Negras Decide e o grupo Mulheres do Brasil.

Essa trajetória de ativismo político começa dentro do ensino público, quando ela tinha 13 anos e estava cursando a sétima série na escola EMEF João Amos Comenius, localizada no Jardim Vista Alegre, no território da Brasilândia. Lá ela começou a ensinar crianças mais novas que tinham dificuldade no processo de aprendizagem para ler e escrever.

“Eu comecei no ativismo através da educação com 13 anos, porque eu realmente acredito que a educação é a forma mais eficiente para diminuir a desigualdade. A educação é meu principal ativismo, eu comecei como se fosse uma assistente para os professores, eu ajudava os estudantes de 1° a 4° serie que não sabiam ler, então eu dedicava algumas horas do meu dia para ajudar algumas turmas, as professoras destinavam alguns alunos e eu trabalhava aquele período junto com eles, e foi a partir daí que eu comecei”, relembra Keit.

Para chegar à Brasilândia, Keit saiu com sua família de Recife, no estado de Pernambuco, motivada pelo anseio dos seus pais para que ela e a irmã tivessem acesso a uma educação de qualidade e a serviços de saúde para um tratamento médico da sua avó, um dos motivos mais importantes para essa migração de estado.

“Eu vim pra cá com oito anos. Como muitas famílias nordestinas a minha também veio em busca de melhores condições de vida e também em busca de saúde pública, porque a minha avó tinha acabado de ter um AVC né, um derrame, então a gente também veio em busca de saúde pública e melhores condições para o tratamento dela”, conta.

A Brasilândia também foi o ponto de partida para conectar Keit com outros espaços da cidade de São Paulo. “A relação que eu tenho com a cidade parte desse território que está da ponte para cá né, tem que atravessar a cidade para ter acesso à educação e saúde, mas é um território que sou muito grata, onde eu luto por esse território.”

“Quando mainha fica com a filha da vizinha para ela ir à faculdade, isso é político”

Keit Lima

A moradora da Brasilândia usa a expressão “seres políticos” para afirmar que a política está presente em tudo na nossa vida, inclusive no cotidiano do morador das periferias. “Somos seres políticos e a política está aí nesse ser, nessa troca, de quando mainha fica com a filha da minha vizinha para ela poder ir para a faculdade, isso é político, para mim isso é muito político, quando a gente fala da política institucional a gente está falando sobre instrumentalizar as nossas lutas, então como que a gente instrumentaliza a nossa luta, as nossas reivindicações, as nossas pautas, as nossas dores, como a gente faz política pública para diminuir essa desigualdade, essa discrepância que existe através também da política institucional”, argumenta.

Para além da sua visão de políticas públicas e luta por direitos no território da Brasilândia, Keit revela que atua em outras periferias de São Paulo, em parceria com movimentos sociais que apoiam a sua atuação e conta sobre a importância dessa conexão para se manter na ativa. “Eu também atuo em outros territórios periféricos organizada em movimentos sociais, então através desses movimentos a gente se encontra sobre esse lugar das dores né, as dores das favelas, das pessoas, das famílias periféricas, e também se encontra na luta, então é através dessa organização que eu atuo”, explica.

Ela destaca que a atuação dentro da Educafro foi um divisor de águas, para ela ultrapassar as barreiras sociais e geográficas dos territórios periféricos e vivenciar outras formas de fazer política. “Eu comecei a enxergar mais a política institucional no meu dia a dia através dos movimentos que eu construo especialmente a Educafro, eu fui a primeira mulher a ser coordenadora da escola de líderes, e aí eu tive mais presente, a política institucional começou a se tornar constante dentro das minhas articulações, porque até então meu ativismo era totalmente com a base, totalmente dentro das periferias, e a partir desse momento eu atuava dentro das periferias, mas fazendo um intermédio junto a política institucional, levando as demandas da base para a política institucional e o que muda a partir desse momento é ver o tamanho do descaso, de eu ir tentar conversar com parlamentar e ele simplesmente não atender”, revela.

Em meio ao diálogo sobre a importância de construir um diálogo com quem faz política institucional, ou seja, quem é eleito para representar os direitos e interesses do povo, a vereadora suplente pelo PSOL resgata uma lembrança de um fato ocorrido que foi fundamental para despertar nela essa vontade de construir um novo jeito de fazer política, compromissado com os moradores das periferias.

Ela conta que esse momento marcante aconteceu durante uma visita na Câmara dos Deputados Federais, em Brasília. “Teve uma militância específica em Brasília, que me causou muita revolta, onde eu fui com um ônibus cheio, formado em sua maioria por mulheres negras e mais velhas, tinha pessoas do Brasil todo, e aí três pessoas mais velhas passaram mal do lado de fora da Câmara dos Deputados sob o sol, porque três deputados específicos proibiram a nossa entrada, eles proibiram que a gente entrasse para conversar sobre política pública, sobre uma proposta de reivindicação nossa, e aquilo para mim foi inadmissível”, relembra.

Ela descreve o sentimento que sentiu no momento e compartilha como conseguiu se organizar para a viagem em busca de diálogo com parlamentares. “Olhar e entender que se a gente não estiver lá ninguém sequer vai nos escutar sabe, não é interesse deles. Eu, essas mulheres e todas as pessoas que estavam ali tivemos que nos articular para ir trabalhar mais horas nos nossos trabalhos, faltar na faculdade, abrindo mão de estar em casa, para estar ali reivindicando, para estar ali construindo, e sequer fomos atendidos, e a ordem era todo mundo que estava com a camiseta da Educafro não iria entrar”, conta Keit, enfatizando que até hoje quando se lembra desse episódio da sua vida na política fica revoltada.

“Fico com raiva ao lembrar essas mulheres caídas no chão, porque a pressão caiu, porque estavam horas sob o sol. Então não dá mais, não dá mais, esse foi o meu estopim para pensar o que precisamos fazer para isso nunca mais acontecer, para que a gente não precise passar por isso, então nós precisamos estar lá, porque aí seremos nós que estaremos dialogando, somos nós que não vamos permitir isso”, acredita.

Diante dessas recordações que revelam um momento tenso da sua trajetória política, a ativista lembra que a ideia de se candidatar a vereadora em São Paulo é coletiva e não partiu só dela. “A ideia de me candidatar foi construída e decidida coletivamente, ninguém faz nada só e muito menos eu, eu venho de movimentos sociais, eu acredito nesse projeto político construído de várias mãos, então é a partir desse lugar que eu venho”, conta ela, apontando a importância de consolidar um projeto político construído coletivamente pelos movimentos sociais, tanto pelo movimento negro, periférico ou de mulheres.

Ela acrescenta que o importante mesmo é reivindicar e colocar as pautas e as dores da população pobre e periférica com muita seriedade e comprometimento. “Fiquei muito feliz de estar na construção de uma cidade mais justa, mais democrática, onde a periferia não seja tratada com descaso”, enfatiza ela, apontando a sua gratidão por sua candidatura representar a construção de um projeto político coletivo.

Keit faz questão de esclarecer que diferente de outros candidatos que disputam as eleições, a sua ação política não termina na campanha eleitoral. “O que eu reivindico é que todos os corpos tenham os seus direitos garantidos, então que bom que disputamos essa narrativa, que bom que conseguimos alcançar muitas vidas periféricas, que bom que eu trouxe esse debate de ser, de fazer e mostrar que a política é nossa, que a gente que tem que estar lá, então trazer esse debate para as periferias continua e vamos continuar construindo porque a nossa luta não para”, conta.

Ela afirma que não existe outro caminho se não a política institucional para construir um mundo menos desigual e democrático. “A política institucional nada mais é do que a ferramenta para construção de uma sociedade mais justa, uma ferramenta para fazer políticas públicas e diminuir desigualdades”, reforça a vereadora suplente, destacando que esse é o ponto de partida para a construção de um projeto coletivo de cidade, estado e país onde todas as vidas têm a sua humanidade garantida, assim como diz Sueli Carneiro: ‘a nossa humanidade não é negociável, todos tem o seu direito de existir’. 

A pandemia na Brasilândia

 Keit ressalta que enxerga a Brasilândia como um lugar de muita potência, e que neste momento de pandemia seus moradores estão tentando sobreviver, devido ao descaso do poder público em relação aos serviços de saúde.

“Do lado de cá da ponte a gente sempre teve que lidar com o descaso do estado, agora com a pandemia isso está muito mais escancarado”, analisa Keit, afirmando que algumas pesquisas produzidas a partir de dados oficiais revelam que o fato de ser morador da periferia aumenta em 10 vezes mais a chance de morrer de complicações causadas pela covid-19.

“A Brasilândia por muito tempo liderou o bairro com mais mortes mesmo não sendo o com mais casos, o que deixa muito evidente o quanto que a gente não tem acesso a saúde pública de qualidade e óbvio que isso não começou agora, a gente sempre teve que lidar com isso antes da pandemia, se você fosse marcar um clínico geral aqui na Brasilândia demoraria 62 dias né, é mais ou menos a média para ser atendido é o que diz uma pesquisa, enquanto lá em Pinheiros são zero dias, essa desigualdade não começou na pandemia, só que agora está muito escancarado né”, relata a vereadora suplente.

Lima faz questão de deixar claro o significado da Brasilândia para ela que vive e atua na construção de algumas lutas por direitos sociais no território. “Eu comecei a ter a discussão sobre cultura aqui. É o lugar que eu fui para muito baile funk, onde eu curti muito a minha adolescência nos bailes, e é um território onde respira cultura, tem muita potência, mas infelizmente onde existe muito descaso do Estado perante as vidas tanto aqui da Brasilândia, como em todas as periferias da cidade, eu me construí como ativista pisando nesse território, e entendendo e lutando para diminuir essa desigualdade que existe dependendo de que lado da ponte você está”, afirma.

Um dos dilemas que conecta a Brasilândia a um colapso social na pandemia, de acordo com a visão política de Keit é a questão do isolamento social, uma escolha importante para preservar a vida, que não é acessível a todos dos moradores. “O isolamento não chegou aqui, porque as famílias têm que escolher entre morrer de fome ou morrer de covid, nunca teve nenhum amparo do Estado para que as famílias periféricas pudessem fazer isolamento e tivesse comida na mesa, a pandemia chegou e vira e mexe aqui não tem água”, denuncia ela, apontando um cenário de calamidade pública

Segundo a moradora, uma saída para amenizar essa situação tem sido a atuação dos líderes comunitários que estão mobilizando ações comunitárias no território. “Os líderes comunitários se levantam e ajudam, tá chegando sabão nas casas, tá chegando álcool em gel, tá chegando cesta básica, é tudo através dos líderes comunitários, somos nós que estamos fazendo, é através da gente que está sendo feito algo, porque queremos a periferia viva, e a gente não abre mão disso, e é por isso que a gente se levanta para que isso aconteça, nas periferias”, aponta a vereadora suplente, enfatizando que até o momento “o estado chegou” no território.

 “A desigualdade tem cor, gênero e território”

Keit Lima

Lima comenta que não existe e nunca existirá um real Estado de democracia, sem que mulheres pretas, indígenas e periféricas estejam dentro da política institucional, como construtoras de política pública.

“Essas mulheres precisam ser escreventes de políticas públicas, porque a gente sabe que a desigualdade tem cor, gênero e tem território, então são essas pessoas que sentem diariamente na pele o impacto da desigualdade que tem que estar lá escrevendo e fazendo política pública junto com a população, então se política pública não chega à periferia, se política pública não chega às pessoas pretas, não chega aos indígenas é porque não são essas pessoas que estão fazendo”, argumenta.

Ela também comenta sobre a importância desses corpos estarem ocupando esse espaço político para a política ter a cara do povo brasileiro. “A gente não chega a uma real democracia enquanto o parlamento não for a cara do povo, enquanto o povo não estiver lá sendo representado em sua totalidade, sendo representado com seu corpo e com as suas pautas, com a seriedade e comprometimento, é por isso que é muito importante eleger mulheres pretas, indígenas e periféricas.”

Ela revela que umas das suas principais reivindicações que passam pela política institucional se baseia na efetivação de direitos básicos à existência humana. “Eu acho que o desafio é a violência constante que meu corpo carrega né, esse corpo de mulher preta, gorda, periférica e nordestina, mas eu não volto atrás, não dá mais para aceitar esse genocídio em curso contra as vidas periféricas e pobres. A cada 23 minutos tomba um corpo, não dá mais, não aceito, reivindico e essa reivindicação também perpassa pela política institucional,” esclarece.

Em uma linha do tempo, ela acredita que só está aqui pelos acúmulos de aprendizados fruto das vivências em família. “Com 13 anos começo a ser voluntária da escola e começo a fazer trocas com os professores, diretora e vice-diretora, e aí eu começo a entender um pouco mais, eu saio daí com 17 anos, e já entro na minha primeira graduação. Com 22 anos eu já atuo como consultora plena em uma das melhores consultorias multinacional do mundo. Eu olho para aquele espaço e não encontro nenhum dos meus, eu olho para aquele lugar e não vejo gente periférica e preta”, questiona ela.

Ao questionar a estrutura de diversidade profissional na multinacional, Keit diz ter ficado incomodada com aquela situação presente no seu ambiente de trabalho, e com base nessa vivência ela passa a ter mais interesse em fazer algum tipo de mudança na vida dos moradores do território da Brasilândia, por meio de suas ações de voluntariado realizadas sempre aos sábados e domingos na Educafro. A partir desta inquietação surge a sua conexão pela luta antirracista e a favor pelo direito à vida dos moradores das periferias e favelas de São Paulo.

A partir do resgate das suas memórias, Keit encontra forças para continuar neste lugar de construir outra política institucional e ser referência para elaborar políticas públicas de combate às desigualdades. “A política institucional é um espaço muito bem alimentado para que gente preta, pobre e da periferia entenda que aquele espaço não é nosso, então a gente precisa passar por vários processos para entender que aquele espaço é nosso sim, que é a gente tem que estar lá”, finaliza.