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“Pertencimento está na terra, mas também onde você faz a luta”, diz Carlos Juann, do povo Pankararu

Carlos Juann Silva, 24 anos, morador do Real Parque, zona sul de São Paulo, saiu do Piauí com intuito de retomar suas raízes indígenas e se reconhecer em um novo território. Em São Paulo há 10 anos, o jovem conta que decidiu se mudar por não se sentir pertencente ao lugar em que vivia e não ter sua origem e identidade reconhecida pela família. No bairro do Real Parque, Carlos afirma ter sido acolhido pelo povo Pankararu, e assim deu início ao seu processo de autodescoberta.

Atualmente Carlos trabalha na Fundação Florestal, órgão do Governo do Estado de São Paulo, no Programa de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) Guardiões das Florestas, que remunera pessoas indígenas que contribuem com a preservação das Unidades de Conservação do Estado de São Paulo.

Como foi seu processo de retomada com o povo Pankararu?

Eu sinto que foi uma conexão e reconexão, foi uma conexão com o povo que eu ainda não conhecia, mas uma reconexão também comigo, porque a partir do encontro com eles eu pude começar a entender mais sobre mim, porque muito do que está na essência da cultura do povo Pankararu, lembra, não propriamente dita eu diria, mas a cultura da minha família. […] Eu cresci em uma bolha. Então depois que conheci o povo Pankararu, eu entendi que a minha bolha era muito mais do que só aquela e que eu precisava fazer esse resgate. Eu comecei a mudar um pouco o caminho, porque no começo eu não buscava fazer essa retomada, mas vivenciando todo o tempo que passei, eu fui entendendo que isso também sou eu, essa movimentação aqui que a gente chama de Real Parque.

Quais são os elementos de conexão que você tem com o povo Pankararu?

O primeiro elemento que eu vejo é a questão da migração para São Paulo que foi erguida por imigrantes nordestinos e dentre eles muitos indígenas. […] Eu me identifiquei muito com a luta entendendo essas movimentações que são feitas aqui e a conexão veio disso. O pertencimento está na terra, principalmente onde você nasceu, mas também onde você faz a sua luta, onde você se sente acolhido, onde você acaba tendo uma estrutura para poder pisar. Então esse eu diria que é um outro elemento importante de conexão que eu vejo enquanto famílias indígenas. Então seja o simples ato de estar na sua terra ou uma coisa mais específica de recobrar o nome do povo, que é o que eu tenho feito.

Como foi quando você se reconheceu como indígena? Como está sendo esse processo?

Quando eu percebi que tinha acontecido parecia que foi muito de imediato, mas já tinham passado muito tempo com essas vivências com o povo Pankararu nesse sentido de que antes de conhecê-los eu sentia um vazio muito grande que eu não conseguia atribuir a nada pessoal, não me encaixava em nada. Eu não gosto de nada e só pensava ‘nossa, eu sou estranho’, mas depois de passar por todas essas coisas que a gente vai percebendo, vivenciando e internalizando, depois de mais ou menos dois anos que eu conheci o povo Pankararu. Então seis anos atrás foi quando percebi que eu estava fazendo [essa] retomada. Eu estou buscando de volta o que é meu agora, a diferença é que eu estou fazendo isso com ajuda, com o apoio, com uma família que me alimenta, que me dá carinho, que me dá apoio no que eu preciso e torna muito mais fácil.

Quais são os desafios que você tem enfrentado como jovem indígena que está se redescobrindo?

Um dado interessante é que os grupos indígenas têm um índice muito mais elevado de taxa de suicídio do que outros grupos, exatamente porque envolve toda essa questão de diáspora, de migração forçada e a falta de entender por que estamos nessa situação, […] mas o que mais pesa é exatamente essa dificuldade das pessoas de entenderem que são vivências diferentes, é um dos maiores problemas para quem está em processo de retomada, está todo mundo muito machucado. 

E como está sendo para você esse processo de mostrar tudo que vem descobrindo e compartilhando com a sua família? 

Estão em meio a um processo de resistência […] é que eles me criaram falando “Ah, a gente é moreno, a gente é pardo”, e isso sabendo que era indígena. Quando a minha ficha caiu de entender que eles não queriam fazer esse resgate porque não só crescerem entendendo que aquilo era ser atrasado, mas também que não daria em nada, que eu não teria um futuro se eu tentasse buscar as minhas raízes, então já é um outro peso em cima de como eles veem marginalizadas as próprias raízes. […] Entendi que a necessidade deles de impedir a minha retomada era o medo de que isso fosse fazer com que eu não pudesse me sustentar. Hoje em dia meio que está passando esse processo, porque eles estão vendo que eu ainda consigo fazer esse resgate e trabalhar na área que eu gosto de estudar, que é a área indígena e ambiental.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

“A gente é indígena onde estiver”, diz Ketelyn Andrade, indígena do povo Pankararu

Ketelyn Andrade, 20, moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, é indígena do povo Pankararu, que assim como muitos do seu povo vieram de Pernambuco para São Paulo, por questões socioeconômicas envolvendo o território. A jovem foi uma das participantes do Encontro Anual Pankararu 2024, realizado em agosto, no bairro do Real Parque, distrito do Morumbi, na zona sul de São Paulo.

Através do que aprende com os mais velhos, Ketelyn conta que está comprometida em passar os ensinamentos ancestrais para as próximas gerações de Pankararus, assim como já faz com seu irmão e primos. 

Em qual papel você se vê na continuidade da sua cultura?

Quando tem alguma representatividade em algum outro local eu procuro sempre estar ajudando. Também representando, porque eu levanto muito a pauta de sermos [indígenas] do contexto urbano, porque algumas pessoas desconsideram ser indígena e ser Pankararu por conta de morar no contexto urbano, no meio da cidade de São Paulo. Então isso é uma das coisas que a gente representa muito, que não é só porque estamos no meio da cidade que deixamos de ser indígenas. A gente é indígena onde estiver.

Como enxerga a interação cultural entre os mais novos?

A gente sempre preza e procura falar mais com os mais novos. Explicar para eles as nossas culturas, eu me considero uma mais nova, né? E cada dia que passa eu aprendo bastante, mas também tem meu irmão que as coisas que aprendo também procuro passar para ele, tem meus primos. A gente sempre preza bastante para eles terem o entendimento e conhecimento, porque um dia não estaremos aqui.

Como esse evento, os rituais e tradições reforçam essa relação?

Aqui é uma forma da gente agradecer. O evento é super importante, porque é uma forma de se conectar com a nossa espiritualidade. Durante o ano todo a gente pede proteção, saúde, esse é o momento que a gente pode estar agradecendo. [Também ter] nosso momento de ritual, de espiritualidade, coisas que a gente não consegue fazer com frequência, e isso é super importante, [com o encontro] a gente consegue ter essa conexão, graças a esse evento que a gente faz todo ano.

Como enxerga o futuro dos povos indígenas em relação ao território?

Eu vejo um povo com muito mais força, a gente conquistou bastante coisas, mas ainda creio que tem mais coisas para conquistar. Vejo nossa população crescendo, vejo mais Pankararus, mais indígenas e eu vejo uma uma força maior onde a gente possa lutar com os nossos parentes, onde a gente possa ter voz, poder falar e ter [nossa] voz escutada.

O que mantém essas tradições tão vivas ao longo do tempo?

[Passar] para os mais jovens e [praticar] nossos rituais, nossas crenças, a gente permanecer. Mesmo longe da aldeia, mas que continue agradecendo, continue acreditando, crendo, tendo fé. Passar para eles todas as nossas histórias, para que eles tenham consciência de ‘poxa, [são] meus ancestrais, né?’. Os povos mais experientes passaram por uma dificuldade [que] antigamente foi uma luta imensa só para poder ter o que tem hoje, então é sempre procurar melhoria para o seu próprio povo.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

       

Falha na aplicação da lei se torna obstáculo para educação antirracista na primeira infância

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“Capoeira tem uma série de fundamentos, é tão complexa que até hoje não [se] consegue definir se é luta, dança ou música”, é a partir dessa multiplicidade de funções que Joice Teixeira contextualiza sobre a prática. Segundo a educadora e cofundadora da coletiva N’Kinpa – Núcleo de Culturas Negras e Periféricas, quando reconhecida enquanto fundamento histórico, intelectual e filosófico do povo negro, a capoeira tem o potencial de ser uma ferramenta antirracista, inclusive na educação infantil.

Esse potencial da prática é vivenciado no cotidiano, como no caso da Maria Vitória, de 5 anos. “A minha filha é tão pequena e já sofreu racismo de uma coleguinha que falou que ela era uma criança preta, pobre e feia”, relata Silvia Cristina, mãe da Maria Vitória. Silvia é analista de relacionamento e junto com a filha moram no bairro Cidade Domitila, localizado no distrito de Jabaquara, zona sul de São Paulo. 

Maria Vitória mostrando uma das atividades que aprendeu com a capoeira. (foto: Pedro Oliveira)

Maria Vitória é ativa, se equilibra nos brinquedos do parquinho, corre e pula. No entanto, na hora da conversa ela é concentrada, presta atenção e fala pouco, mas muito sinaliza. Ela conta que gosta de brincar de capoeira e que quando crescer quer ser médica, para cuidar de crianças. 

A pequena comenta que outro dia na escola subiu no escorregador e acabou caindo, chorou, mas voltou a brincar. Assim como na capoeira que ensina como cair e levantar, ela já estava desbravando o brinquedo novamente. O relato da vivência da Maria Vitória com a capoeira é o corpo em movimento.

Maria Vitória se equilibrando. (foto: Pedro Oliveira)
Maria Vitória no escorregador. (foto: Pedro Oliveira)

“Infelizmente, aproximadamente com três [ou] com quatro anos, elas [as crianças] já [são] racializadas e conseguem contribuir para o fomento do racismo”, explica Jussara Santos, que é pesquisadora das infâncias, educadora, trabalhou na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, na área de educação infantil e atualmente é consultora da ONG CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades).

Desde 2023, Maria Vitória estuda na EMEI Cruz e Souza e foi por lá, através do projeto ‘Terreiros Nômades: Macamba faz Mandiga – Saberes Afrodiaspóricos nas Corporeidades da Cena’, da coletiva N’Kinpa, que ela teve os primeiros contatos com a capoeira e com outras manifestações culturais de origem africana. 

“A capoeira é a cultura dos nossos ancestrais. Então, ela vem agregando ainda mais no conhecimento e no fortalecimento dela [Maria] como uma criança negra”, 

Silvia Cristina, mãe da Maria Vitória, de 5 anos.

Joice, que também é pós-graduada em Cultura Afrodiaspórica e pesquisadora das culturas de origem africana, menciona que a N’Kinpa e as ações realizadas pela coletiva, que tratam de culturas originárias, africanas e afrodiaspóricas por meio da arte e da música, são sempre bem acolhidas pelos pequenos. “Na escola, com as crianças é espetacular, porque elas se entregam. Nós, adultos, que ensinamos às crianças serem racistas”, aponta a coordenadora da coletiva.

Capoeira e educação

O principal impacto que o ensino da capoeira tem sobre as crianças que vivem nas periferias, e que estão na primeira infância, é a desmilitarização dos corpos, como aponta Joice. “O sistema colonial militariza os corpos. Sentado em fileira, um olhando para a nuca do outro e o púlpito. Todas as vezes que a gente leva as culturas africanas, aí já vem com o estado laico, que nunca foi laico, e não vê o quanto, o tempo inteiro, a gente está vivenciando corporalmente a cultura religiosa cristã”, explica.

Jussara menciona que por parte das pessoas brancas, esse aprendizado dos valores civilizatórios africanos não deve se dar por meio da apropriação, mas através da ampliação do entendimento e percepção de mundo. A capoeira vai contribuir para toda e qualquer criança, porque ela parte da cosmovisão africana, então nós conseguimos aprender um projeto de sociedade antirracista a partir da capoeira, que traz a circularidade, a ludicidade, o axé”, coloca a educadora e pesquisadora das infâncias.

Para Joice, a educação tem um papel fundamental nesse aspecto de ampliar as narrativas e possibilidades de se enxergar e existir no mundo.

“Quando eu trago outras perspectivas, dos povos originários, da afrodiáspora, dos povos africanos em sua plenitude, desde a primeira infância, eu estou trazendo também para essa criança branca o imaginário de que ser humano é o corpo de uma forma geral e não somente o sujeito branco. A educação vem trazendo uma única versão em que o humano é [apenas] o sujeito branco”

Joice Teixeira, cofundadora da coletiva N’Kinpa.

Jussara e Joice apontam que o racismo, que também está nos direcionamentos do que será ensinado ou não nas escolas, afeta o desenvolvimento das crianças, de modo que, as crianças negras, tendem a ter autoestima baixa, sentimento de inferioridade e insegurança. “Para as crianças brancas, eu trago esse imaginário de que elas não são superiores e para as crianças pretas de que elas não são subalternas”, afirma Joice.

Aplicação das leis

O ensino da capoeira nos estabelecimentos de educação foi reconhecido como lei em 2021. A Lei 17.566 determina que o ensino da capoeira deve ser integrado à proposta pedagógica de educação das escolas da rede municipal de São Paulo. Porém, Jussara menciona que essa lei não é aplicada. A pesquisadora atuou de 2020 a 2023, no Núcleo de Educação Étnico-Racial (NEER) da Secretaria Municipal de Educação (SME), e participou da construção do Currículo da Cidade, de 2022, que contém orientações pedagógicas antirracistas para professores da rede municipal.

A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo confirmou que a lei municipal ainda não foi regulamentada e informou que criou “um Grupo de Trabalho através da Portaria SME N° 4.964/2024, com participação de membros de segmentos da Pasta e representantes da sociedade civil, mestres de capoeiras, acadêmicos e membros de coletivos voltados à promoção da capoeira na cidade de São Paulo”. 

Segundo a SME, “o objetivo é construir uma proposta estruturada de implementação da capoeira em todas as Unidades Educacionais da Rede Municipal de Ensino, discutindo formas e procedimentos a serem desenvolvidos.”

Segundo Jussara, o mesmo acontece com a lei federal 10.639, que existe desde 2003, e determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em todo currículo escolar, mas não é amplamente posta em prática.

A pesquisa Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, realizada em 2022, pelo Geledés e o Instituto Alana, obteve resposta de 1.187 secretarias municipais de educação, equivalente a 21% dos municípios do país, e constatou que dessas secretarias, 71% não aplicam a lei federal, ou realizam pontuais ações voltadas para o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas.

“As leis surgiram de ativismo para poder ter possibilidades de trabalhar [nas] instituições ou dentro das políticas públicas, e mesmo [assim] a gente ainda não consegue trabalhar, porque elas ainda não são aplicadas e às vezes não são nem conhecidas”, menciona Joice, cofundadora da coletiva N’Kinpa, que realiza o projeto ‘Terreiros Nômades: Macamba faz Mandiga – Saberes Afrodiaspóricos nas Corporeidades da Cena’.

Falha na aplicação da lei se torna obstáculo para educação antirracista na primeira infância
Joice Teixeira no encontro Terreiros Nômades e a Comunidade, que aconteceu na EMEI Cruz e Sousa, com a participação do mestre Tião Carvalho. (foto: Pedro Oliveira)

Ela também comenta que já trabalhou em uma escola que não tinha nada sobre a cultura ou história afrodiaspórica, e que chegou a sofrer violência racial nesse espaço. Joice afirma que lidar com a burocracia, com o sistema colonial das instituições e alcançar o entendimento de que as perspectivas de mundo e as manifestações de origem africana não se limitam a religiosidade e ao entretenimento, são os principais desafios para aplicar a educação antirracista nas escolas.  

“O nosso maior desafio é a gente, por exemplo, falar de Exu como filosofia e não como religião, porque ele também pode ser, mas ele não é somente. Esse é o grande desafio de trabalhar culturas originárias, afrodiaspóricas e africanas, porque é pluri, não é mono, e a forma como a colonização e as instituições, [sendo] a escola é uma delas, quer trabalhar [é] fazendo com que a gente caiba nesse lugar. Como se eu quisesse ações antirracistas sendo racista”, finaliza Joice.

Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem A Primeira Infância como Pauta Prioritária, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital, e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

“O artesanato é parte principal de nós indígenas”, diz Alaide Feitosa, cacique do povo Pankararé

Alaide Feitosa, 73, moradora de Osasco, região metropolitana de São Paulo, é artesã e cacique do povo Pankararé, da cidade de Paulo Afonso, na Bahia. A artesã esteve presente no Encontro Anual Pankararu 2024, realizado em agosto, no bairro do Real Parque, no distrito do Morumbi, na zona sul de São Paulo, e ao longo do evento compartilhou ensinamentos a partir de suas produções.  

Criadora da Associação Indigena Pankararé, Alaide busca preservar e transmitir a cultura indígena no contexto urbano na periferia de São Paulo, através do artesanato e da educação, o que aponta ser essencial para a continuidade das tradições dos povos indígenas.

Alaide Feitosa, cacique do povo Pankararé. Foto: Lauane da Silva

Como que a tradição indígena e os seus ensinamentos sobre o artesanato influenciam no seu território?

O artesanato é a parte principal de nós indígenas. É onde a gente fortalece mais a nossa cultura. Sempre [vou] passar para os jovens o que aprendi com os meus avós, com os meus pais, e passar para os mais novos é muito importante para nós.

Quais são os materiais usados para a produção dos artesanatos e onde buscam?

Para fazer os artesanatos é preciso buscar cabaça, coité – que é para fazer os marakas, fibra de caroá para fazer saias e bolsas. Buscamos na Bahia, [pois] a aldeia fica próximo à cachoeira de Paulo Afonso.

Como a educação e a conscientização do artesanato na escolas ajuda com a valorização da cultura dos povos indígenas?

Com as palestras que faço nas escolas vejo que tem algumas escolas que não tem interesse e agora tem algumas que mostram [esse interesse]. Quando faço palestra nas escolas sempre falo que é falta de respeito colocar cartolina para crianças desenharem e cortarem, e falar que está representando os indígenas, porque o que nos representa é a coroa, pena e semente, não o papel.

Qual a importância de passar esses ensinamentos para os seus filhos e netos?

Fico muito contente. A minha cultura é onde eu estiver e sinto que após a morte do meu pai eu tive a obrigação de manter o legado e passar para frente a nossa cultura. Já fui em várias conferências em Brasília e tenho orgulho do meu povo.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Mestre em psicologia discute acesso a saúde mental de atletas das periferias

Em frente ao Centro Educacional Unificado (CEU) Inácio Monteiro, localizado na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, o coletivo Love Skate CT realiza diversas atividades educativas, culturais e sociais que estimulam o desenvolvimento de jovens atletas de skate no território. Uma das iniciativa do projeto é a realização de sessões de psicologia radical, que visa cuidar da saúde mental e emocional de crianças e adolescentes que sonham em ser atletas profissionais.

Dentro do espaço cultural Love CT há uma sala que abriga cerca de 30 crianças e adolescentes numa manhã de sábado. Com olhos e ouvidos atentos, eles participam da palestra de Alberto da Silva Santos, 38 anos, mestre em psicologia pela PUC, conhecido no território como Tobé.

O especialista em psicologia do esporte conversa com os futuros atletas sobre os desafios de manter a concentração, foco nas atividades, controle de emoções em situações difíceis, entre outros assuntos. Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, Santos conta como uniu a psicologia do esporte com o skate para trabalhar com crianças e adolescente no coletivo Love CT.

Alberto da Silva Santos, psicólogo esportivo e Nicolas Santos, repórter do VCRP. Foto: Lucas Patrick, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia (VCRP)/Agosto 2024.

VCRP: Como você enxerga o acesso de atletas das periferias ao acompanhamento psicológico?

Alberto da Silva: O pessoal que é atleta e consegue ter suporte psicológico geralmente é quem tá em Clube como cadete, de forma geral, a galera não tem muito (acesso), não que não reconheçam a importância, não tem porque ainda é caro né? Até eu que cobro barato, na verdade é complicado porque já é caro pra realidade daqui, então a galera tem pouco acesso e não é um serviço disponível nos equipamentos públicos, como é algo bem específico de fato, dificilmente consegue por um valor social ou preço mais baixo, então a galera reconhece, alguns conseguem correr atrás de alguma forma, mas nem todo mundo consegue acessar.

VCRP: Você nota mudanças nos atletas que passaram por esse acompanhamento psicológico?

Alberto da Silva: O skate não é uma parada que acontece isolada da sociedade, então, ele fica à mercê também de todos os produtos sociais relacionados ao racismo, exclusão, preconceito e por aí vai, então quando o skatista periférico tá lá naqueles ambientes, aquelas feridas de alguma forma gritam e depois de um trabalho de psicologia do esporte o que eu tenho observado, assim como efeito, é o empoderamento que essa pessoa tá fazendo lá né? Porque a psicologia do esporte não é só uma parada de trabalhar motivação e concentração, às vezes é acolher sentimentos que nunca foram acolhidos como uma tristeza de violência racial ou exclusão. Então quando essas pessoas têm esse espaço para que essas dores e feridas sejam acolhidas e genuinamente reconhecidas é quando elas conseguem tirar um peso das costas, para conseguir estar bem lá e consciente de tudo que tá acontecendo, e entendendo a sua própria história sem medo e sem receio, sendo que são do tamanho que são.

VCRP: Por que ex-atletas também precisam desse acompanhamento psicológico?

Alberto da Silva: A gente vê jogador de futebol que jogou na Itália, mas depois de muitos anos depois de ter se aposentado quando foi ver tá morando no seu carro importado, sem grana nenhuma mais, então é isso que a gente chama de transição de carreira, ela é mais complexa para os atletas que não vem de famílias com posses, que vem de quebrada, então é algo complexo de se trabalhar, e nós estamos falando também de atletas em sua grande maioria pessoas pretas, e aí junta isso vem todos os reflexos do racismo. Tem muita gente que não consegue fazer essa transição de carreira de maneira adequada, primeiro porque a sua vida profissional enquanto atleta não lhe rendeu frutos o suficiente, então essa pessoa ela sempre foi atleta profissional mas teve que se dedicar a alguma outra atividade para se manter.

VCRP: Como a cobrança extrema realizada pela sociedade afeta os atletas negros e periféricos?

Alberto da Silva: Quando a gente fala de atletas negros e periféricos, essa questão da cobrança após uma falha é muito mais pesada. Não se perdoa falha de pessoas brancas como se perdoa a falha de pessoas negras, periféricas, nordestinas ou indígenas, e aí quando a gente fala dessa cobrança, a gente fala dos mesmos contrastes sociais que acontece na sociedade de uma forma geral. Dá para pensar numa cobrança externa e como isso pouco a pouco se torna uma auto cobrança e ao longo do tempo se torna algo interno para o atleta. Hoje em dia, tem muito atleta pedindo desculpa por não conseguir alcançar o quarto lugar, mas como assim? Você está entre os quatro melhores atletas de uma competição! Por que está pedindo desculpas? Essa é uma forma como a nossa sociedade age de modo geral.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

A importância do CAPS e tratamentos adequados para pessoas em sofrimento psíquico #29

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Nesse episódio falamos sobre como pensar o cuidado em saúde mental está relacionado a eliminação de todas as formas de manicômios, o que inclui as comunidades terapêuticas. 

Com a participação da Elaine Vasconcelos e da Claudia Moraes, do Fórum Popular de Saúde Mental da Zona Leste de São Paulo, e também da Rosimeire Bussola, psicóloga, perifanalista e integrante da PerifAnálise, o episódio aponta o que esses espaços representam para população preta e periférica, e como iniciativas das quebradas contribuem para fortalecer políticas públicas de saúde mental e psicossocial.

Capoeira angola: prática é apontada como ferramenta de aprendizagem na primeira infância

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“Quem te ensinou a nadar? Foi o marinheiro. Foi o peixinho do mar”. No embalo da canção “Peixinhos do Mar”, que a Amora, de 5 anos, ao cantar junto de sua mãe, Micheline Farias, demonstra o que a capoeira significa para ela. Desde 2022, Taiane Vitória, que prefere ser chamada de Amora, pratica capoeira, “porque dá para fazer estrelinha”, explica a pequena ao contar sobre seu movimento favorito. 

Embora tenha começado aos 4 anos, Amora já tinha contato com a capoeira. “[Ela] cresceu dentro de um espaço de arte e cultura, e a capoeira é algo que já acontecia dentro desse espaço. Então, desde pequenininha [quando] ela estava engatinhando eu tenho foto dela enquanto o [mestre] Renato fazia as aulas [de capoeira] com as crianças maiores”, conta Micheline Farias, 49, mãe da Amora. 

A família mora no bairro Jardim Colégio, no distrito do Capão Redondo, na zona Sul de São Paulo, e as aulas da Amora acontecem no Núcleo de Acolhimento e Valorização da Educação (NAVE), no bairro Jardim Maracá, no mesmo distrito, com o mestre Renato Nato.

“Quando eu chego, me sento ali na roda. O professor manda a gente pôr o tatame e aí a gente faz estrelinha, ponte, bananeira, martelo”, compartilha Amora. Entre os movimentos da atividade, Amora conta que deseja aprender a fazer bananeira sem colocar a cabeça no chão, apenas com os braços apoiados e com os pés para cima.

Quando o assunto é instrumento, ela diz que o berimbau é o seu favorito e que aprendeu a tocar nas aulas de capoeira. Entre os amigos que fez nas rodas, ela cita o Lorenzo Miguel e a Camila, e diz que para além de brincar, “a gente precisa fazer tudo o que o professor faz primeiro”. 

Através das vivências na capoeira que envolve o contato com instrumentos, brincadeiras e cantigas, Amora diz que também aprende sobre a história do povo negro durante as atividades. “Ele [o mestre Renato] põe filme pra gente assistir de homem preto e fala como é ser preto”, conta.  

Entre os reflexos da prática, Kamila Gomes, iniciada na Capoeira Angola desde 1999, e integrante do Instituto de Capoeira Angola Alagbedé (ICAA), destaca que o trabalho da capoeira também é uma estratégia política. “Uma maneira da gente formar pessoas empoderadas dentro do processo de luta antirracista para que eles também façam seus desdobramentos e isso começa na primeira infância”.

“A primeira infância é o momento do brincar. A criança chega ao mundo e vai aprender através da brincadeira. A gente consegue brincar muito através da capoeira. Tem ferramentas e tecnologias dentro [desse] universo onde a gente consegue criar brincadeiras e momentos de ludicidade.”

Kamila Gomes, iniciada na Capoeira Angola desde 1999, que também é treinela, habilitada para dar aula de capoeira angola e guardiã do saber tradicional.

O brincar e a ludicidade são os principais elementos que conectam a primeira infância e a capoeira. As possibilidades de desenvolvimento para crianças de até 6 anos são muitas. Desde a construção de valores à consciência corporal, como destaca Kamila Gomes e Ricardo de Souza, que atuam com pesquisa e educação infantil a partir das práticas da capoeira angola.

“Capoeira é filosofia de vida, ela tem essa perspectiva de transformar o ser humano para que descubra o que ele é. A capoeira não ensina de fora para dentro, ela faz com que a pessoa externalize o que ela é”, pontua Kamila, que ressalta, conforme o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), sobre a origem Bantu da prática, vinda do continente Africano, e que trabalha com o pensar, o sentir e o fazer.

Desenvolvimento motor, cognitivo, psicológico, consciência corporal, percepção de espacialidade, de tempo e de musicalidade são aspectos despertados através do brincar, que junto do aprendizado sobre ancestralidade e a história do povo negro também se conecta com os benefícios que a capoeira angola proporciona para crianças. Principalmente na faixa etária até os 6 anos, fase em que é formado 90% das conexões cerebrais dos seres humanos, conforme mostra o levantamento feito pela plataforma Primeira Infância Primeiro, realizada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Professora na Universidade Estadual do Tocantins (Unitins), doutoranda e pesquisadora sobre a Capoeira Angola e o Candomblé Congo-Angola na construção de uma educação pluriversal, Kamila menciona os mestres Valmir Damasceno, Moraes, Cobra Mansa, mestra Janja, Fu-Kiau e a Makota Valdina ao citar a capoeira na perspectiva da primeira infância e a relação com a comunidade.

“Dentro da relação comunitária na capoeira, na comunidade de terreiro, tem uma função muito importante que é de adultos cuidarem das crianças. Pensando nessa relação de ancestralidade, solidariedade, circularidade, esses valores civilizatórios afro-brasileiros”, explica a pesquisadora.

Essa é a proposta do projeto Kinsa Kindezi, criado pela Kamila em homenagem a Makota Valdina, onde Kinsa significa cuidar e Kindezi, termo criado pelo filósofo congolês Fu-Kiau, seria a arte de educar. Através da capoeira, a iniciativa ensina sobre os valores africanos, com intuito de construir estratégias para ações antirracistas.

A relação com as crianças e famílias periféricas

Iniciativas independentes fundadas por agentes culturais nos territórios, são formas de aproximar as práticas da capoeira às crianças. Como é o caso do coletivo Quebrando a Cabaça e Espalhando Sementes, criado em 2015, pelo arte-educador Ricardo de Souza, conhecido como Ricardo Pépe, que atua com a capoeira angola voltada para a primeira infância. 

“Quando a gente trabalha a capoeira na primeira infância, a gente coloca que o responsável tem que estar junto [e] traz essa socialização”, menciona o arte-educador. Os projetos do coletivo incentivam a participação familiar como elemento fundamental para o aprendizado da capoeira pelas crianças. 

Embora o arte-educador aponte sobre a importância da participação dos pais nas aulas, ele também reconhece que, nas periferias, por necessidade, as famílias geralmente têm outras prioridades, além de ressaltar que muitas dessas famílias são matriarcais e de mães solo. “Os responsáveis estão muito corridos com seus trabalhos. O nosso trabalho é trazer eles [para] junto”, pontua.

As atividades do Quebrando a Cabaça e Espalhando Sementes acontecem de forma itinerante pelos territórios, mas Ricardo também atua regularmente nos Centros para Crianças e Adolescentes (CCAs) e nos Centros Educacionais Unificados. “São os lugares em que eu trabalho com mais crianças pretas”, comenta o arte-educador, que é morador do bairro Parque Pinheiros, na cidade de Taboão da Serra, em São Paulo.

É em um desses espaços que Ricardo realiza atividades, que o João dos Santos, de 6 anos, pratica capoeira angola desde 2023, no CEU Carrão / Tatuapé – Carolina Maria de Jesus, em São Paulo, junto ao arte-educador. Os pais de João, Juliana Solimeo, 36, e Hamilton Santos, 46, são professores, e colocaram o João na capoeira para que desde pequeno pudesse entender sua identidade. A família mora no bairro Penha de França, no distrito Penha, localizado na zona leste de São Paulo.

“Nós somos um casal interracial, então em que lugar o João vai se encontrar? Ele [tem que] ter claro que a declaração dele ser preto é uma declaração política [e] de resistência. E a capoeira [aproxima] da ancestralidade, da história, da raiz do povo preto escravizado no Brasil, [e isso] acaba fazendo com que ele se conecte com essa raiz negra”, comenta Hamilton, pai de João.

Foi através da Juliana, que admira e pesquisa sobre capoeira, que a família conheceu a vertente. “A capoeira Angola [é] mais lenta, tem a tradição [e] a história, a parte que mais me interessa. Porque infelizmente o Brasil ainda é muito racista e eu encontro na capoeira um espaço que transforma isso”, diz Juliana, mãe de João.

Hamilton conta que atualmente não tem se dedicado à prática, mas desde pequeno convive com a Capoeira Regional por influência do irmão. Por um tempo, já adulto, se envolveu com a capoeira angola. A pesquisadora Kamila afirma que crianças que permanecem na capoeira, geralmente, são aquelas que os cuidadores têm algum vínculo com a questão racial, ou quando tem algum responsável que já conhece a sua importância.

João, de 6 anos, já imagina o futuro a partir das aulas. “Quando eu crescer e tiver do tamanho do meu pai eu vou querer fazer capoeira”, comenta. Ele também conta que brinca muito nas atividades. “O que eu mais presto atenção é pular corda”. 

Além disso, o jogo do reloginho, brincadeira em que o professor gira uma corda no chão e as crianças tentam pular, também é uma das atividades favoritas dele. “[O dia mais legal na capoeira] foi quando o professor fez o reloginho pela primeira vez”, diz João.

Na área da musicalidade, João canta e toca durante as aulas. Seu instrumento favorito é o berimbau, mas ele diz que também gosta do agogô. “Cantando eu não sei tocar, mas comigo só tocando aí eu sei”, diz João, ao contar que deseja aprender a tocar enquanto canta.

Políticas públicas

Segundo Kamila, uma estratégia utilizada para que a capoeira chegue até as crianças das periferias é atuar nas escolas, pois a falta de lugares fixos para a prática é um fator que dificulta a realização das aulas com a primeira infância.

“Eu percebo que quando a gente tem espaços de capoeira estáveis, os pais sentem mais segurança de se relacionar com essa comunidade da capoeira, porque se torna um lugar de referência, [isso] exige um trabalho mais consistente de anos”, destaca Kamila.

Ricardo aponta que o acesso à capoeira para as crianças que vivem nas periferias é uma questão de política pública. Assim como Kamila, que comenta sobre a falta de incentivo e recurso público para os professores da modalidade e a valorização dos mestres.

“[A capoeira nas periferias] é acessível desde que você tenha um mestre que consiga fazer esse trabalho lá dentro, tem mestres que fazem, mas é um trabalho bem difícil trazer a periferia para dentro da capoeira”, comenta o arte-educador.

João encerra a conversa cantando que “na capoeira tem que ter sal, tem que ter tempero”, uma canção do Mestre Liminha. E além de tempero, Kamila e Ricardo pontuam que a capoeira também tem que ter políticas públicas para chegar até as crianças das periferias e garantir o que lhes é de direito, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como o acesso à educação, ao lazer, à cultura, à convivência comunitária, direitos que podem ser alcançados através da capoeira.

Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem A Primeira Infância como Pauta Prioritária, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital, e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

Jovem skatista quer representar a Cidade Tiradentes nas Olimpíadas

Há dois anos, Guilherme Bittencourt, um menino de 12 anos que mora na Cidade Tiradentes, zona Leste de São Paulo, mantém a rotina de acordar às 7h da manhã todos os sábados, para participar das atividades educativas e culturais promovidas pelo projeto Love CT, que atua para aproximar crianças e adolescentes do território do skate como prática esportiva e cultural.

Guilherme Bittencourt, skatista. Foto: Lucas Patrick, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia/Agosto 2024.

Incentivado pelo pai e pelos aprendizados obtidos no projeto, Guilherme conta que encontrou no Skate uma paixão que pode mudar o seu futuro. Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, ele afirma que tem o sonho de participar das Olimpíadas e trazer uma medalha para sua quebrada.

Guilherme Bittencourt, skatista e Luau Queiroz, repórter e aluno da 8ª edição VCRP. Foto: Lucas Patrick, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia/Agosto 2024.

VCRP: Como surgiu o seu interesse pelo Skate e quando você e quando você?

Guilherme: Foi um amigo que me convidou, porque eu estava no meu prédio de boa, ele chegou e falou: “Ah, vamos ali fazer uma aula”. Falei não mano, é muito chato, skate é para criança. Depois mudei de ideia e no primeiro dia não gostei muito, mas aí o segundo dia eu já achei mais interessante, depois foi aí que meu pai, o tio fotógrafo [educador do projeto], o Celo [fundador do projeto]  e os professores começaram a me incentivar. Ai faz dois anos que estou aqui.

VCRP: Quais são os seus maiores sonhos?

Guilherme: Quero ser um atleta profissional e me preparar para as Olimpíadas e assim trazer uma medalha para o Brasil.

Guilherme Bittencourt, skatista. Foto: Lucas Patrick, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia/Agosto 2024.

VCRP: Quais são os desafios que você enfrenta para ser um skatista na Cidade Tiradentes?

Guilherme: As pessoas não ajudam quando ficam passando na única pista que a gente tem para treinar. A gente precisa ter uma pista aqui que dá para treinar tranquilo. Também treino na rua, aí precisa tomar cuidado para não bater nos carros.

VCRP: O que você precisa hoje para se tornar uma atleta?

Guilherme: Eu tenho que ter educação e respeito, preciso respeitar o meu pai e os professores e seguir em frente. Sobre o investimento, o primeiro skate veio daqui do Love CT, e hoje já tenho três, sendo um profissional, mas para ter um bom mesmo preciso ter uns dois mil reais.

VCRP: Se você conseguir ser tornar um atleta, qual será o impacto na sua família?

Guilherme: Meu pai vai ficar muito orgulhoso! Meu pai desde o começo acordava 5 horas da manhã, a gente se arrumava em casa e subia 6 horas para pista, então se eu for para as olimpíadas e trazer uma medalha eu realizarei meu sonho e do meu pai.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Mulheres negras e cultura geek: quem pode fazer cosplay?

Em julho deste ano, a Fábrica de Cultura de Diadema, localizada na Grande São Paulo, recebeu a 4° edição do Perifacon, evento que traz uma perspectiva periférica para o universo geek, que envolve games, filmes, desenhos e animes. Entre atrações musicais, feira de quadrinhos, mangás e atividades interativas, se destaca a imagem de uma garota, Maria Clara, 15, caracterizada de um personagem conhecido do universo geek, o Ash Ketchum, mestre Pokémon do desenho mundialmente famoso. A jovem que faz cosplay há 6 anos, é moradora de Itaquera, zona leste de São Paulo, e chegou no evento realizado em Diadema, junto à família.

Há um tempo atrás, uma garota negra fazendo cosplay de um personagem masculino e branco poderia ser motivo de controvérsia, mas ao longo do Perifacon é possível perceber que o contexto do evento possibilita essa nova abordagem. 

“Sempre fui nerdzinha, mas só hoje sinto que a cultura geek está mais aberta para ver uma mulher negra fazendo cosplay de qualquer personagem”.

Daniele participou do evento como Princesa Mononoke.

Durante o evento, Maria conhece outra figura que se destaca entre o público, a Daniele, 39, moradora da Vila Maria, zona norte de São Paulo, e que faz cosplay há 3 anos. Para essa edição do Perifacon, Daniele se vestiu de Princesa Mononoke, uma guerreira protetora da floresta de um filme, que leva o mesmo nome, lançado em 1997. 

Essas duas mulheres, de diferentes gerações, se unem através da paixão que compartilham pela cultura geek e refletem sobre suas vivências dentro desse universo, a forma que são vistas nesses espaços e a importância do cosplay na liberdade de expressão de seus corpos.

Vocês se lembram qual foi o primeiro personagem que fizeram cosplay?

Daniele: Meu primeiro cosplay foi a Garnet, do Steven Universo.

Maria Clara: Eu sempre me vesti de Akatsuki, mas primeiro cosplay mesmo foi a Alice da Alice no País das Maravilhas, mas eu sempre gostei de me vestir de personagens.

Ambas escolheram personagens femininas como primeiro cosplay, no caso da Garnet em específico, uma mulher preta com um significado muito forte. Você acredita que essa escolha se deu pela identificação com a personagem ou por achar que enquanto mulher negra você precisava fazer cosplay de uma mulher negra?

Daniele: No começo não tinha tantas personagens negras, a única que tinha era a tempestade, e a Garnet, além de ser uma personagem que tem um humor muito parecido com o meu, ela era parecida comigo e a questão de ser uma mulher negra me ajudou a fazer o cosplay, teve essa identificação.

Você acha que o cosplay influencia na sua liberdade de expressão com seu corpo?

Maria Clara: Geralmente eu não uso roupas curtas e decotadas e eu gosto muito de usar essas roupas, por isso quando faço cosplay sinto a liberdade de usar esse tipo de roupa.

Aqui na Perifacon nós vemos uma diversidade maior de pessoas com diversos cosplays, você acha que em eventos com um contexto não periférico isso também acontece?

Daniele: Hoje eu acho mais comum ver pessoas pretas fazendo cosplays, é mais aceitável, eu por exemplo, fazer cosplay de uma personagem que é branca, me sinto à vontade nos lugares que vou de fazer o cosplay que quero pois já teve uma construção desse espaço.

Você encontra alguma dificuldade por ser uma mulher negra dentro da cultura geek?

Maria Clara: Bastante, por que eu sou geek mesmo, sabe? E é difícil encontrar outras mulheres negras que também sejam, então eu vim pra cá fazer cosplay e aparecer já é uma coisa né? Eu estar fazendo cosplay de um personagem que é um homem branco também é impactante, mas decidi fazer mesmo assim e estou sendo muito feliz.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

“Fui ao cinema uma vez só, quando tinha 17 anos”, diz moradora de 57 anos de José Bonifácio, na Zona Leste de SP

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A 1º Mostra de Cinema Experimental reuniu cineastas e admiradores do cinema independente nas periferias no Centro Educacional Unificado (CEU) São Pedro, localizado no distrito de José Bonifácio, na zona leste de São Paulo. O encontro debateu os desafios para produzir e acessar o cinema nas periferias, uma realidade que não é acessível para todos os moradores.

No mesmo local do evento, a funcionária do (CEU) São Pedro, Dona Nilcéia, 57, que também reside no distrito de José Bonifácio, relata que só foi ao cinema uma vez em toda sua vida, quando tinha 17 anos. Esse contraste social do acesso ao cinema nas periferias reforça a importância de iniciativas como a Mostra de Cinema Experimental para aproximar os moradores do cinema de forma gratuita.

Segundo dados do Datafolha sobre hábitos culturais dos moradores de São Paulo (2017), quanto maior a idade dos entrevistados, menor o indicativo de frequência diante das telonas. Na faixa etária de 45 a 59, 31% dos entrevistados faz uso frequente do cinema. Entre 60 e 79, 15%. E acima dos 80 anos, 11%.

Com um espaço multiuso recém construído que propicia a exibição de filmes, o CEU São Pedro vem atraindo o interesse de integrantes de coletivos que produzem cinema nas periferias de São Paulo de forma independente, para ampliar o debate desta arte nas periferias.

VCRP: Você já foi alguma vez ao cinema, tem o costume de ir?

Fui, mas foi há muito tempo atrás. Fui uma vez só, quando tinha 17 anos. Lá na Avenida São João, num cinema de rua que acho que nem existe mais.

VCRP: A senhora lembra de que filme assistiu?

Não lembro, faz muitos anos. Mas gosto muito de filmes de comédia ou romance quando estou assistindo em casa.

VCRP: O que a senhora acha que falta para acessar o cinema hoje em dia?

Me falta tempo, né? O dia a dia é muito corrido. A gente já tem aquela programação: sai do serviço pra casa e de casa pro serviço.

VCRP: O que a senhora acha que poderia melhorar para as pessoas irem mais para salas públicas de cinema, como essa do CEU São Pedro?

Poderia ter mais divulgação aqui na comunidade, o pessoal ter mais informações, sabe? Porque as pessoas vêm aos CEU´s e não sabem os projetos daqui. Mas a  criançada adora cinema, minhas netas vão sempre.

VCRP: Onde as suas netas vão para ir ao cinema?

No shopping Aricanduva ou Shopping Itaquera. Uma vizinha minha trabalha num cinema e às vezes ela ganha uns convites e distribui pra criançada. Aí vai aquela turma, né?

VCRP: Você já trouxe elas aqui no CEU?

Ainda não porque trabalho aqui não tem nem um ano. Quando entrei, a sala ainda não estava pronta. Falei pra minha filha: “Ó, vai ter cinema no CEU, é legal trazer as meninas pra cá”. Até combinamos de vir quando o cinema estivesse implantado, só que é muito corrido, acaba não dando tempo. Quero aproveitar agora o período de férias e juntar toda a galerinha!