Opinião

Vocês ainda estão aí? Pois bem, nós também, apesar dos pesares

Na esteira das repercussões do Oscar para "Ainda estou aqui", sinto falta de uma crítica mais complexa sobre o filme e sobre o próprio contexto da ditadura pela ótica periférica.

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Certa vez na minha adolescência perguntei para minha avó o que ela lembrava do período da ditadura, ela me disse com olhar reflexivo: “Naquele tempo as escolas eram melhores…”. Sabendo de outra perspectiva, pelo olhar de minha mãe, entendi que aquela era uma resposta evasiva ou até tendenciosa.

Minha avó como muitas outras pessoas, passou os anos 60 mantendo o país em pé enquanto os milicos destruíram o Brasil e os brasileiros.

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Migrante mineira, ela chegou muito nova a São Paulo e não teve tempo de ser criança. Com 13 era babá e servente numa mansão nos jardins e morou no “quartinho de empregada” por anos. Teve seu primeiro aborto com 15, e anos depois, ao conhecer meu avô, logo engravidou. Mudou de emprego e foram para Piraporinha, periferia da zona sul de São Paulo, na conquista da casa própria. 

Era passadeira numa loja de roupas de rico na Oscar Freire, quando aconteceu o golpe militar. Viveu o Ai5 e outras arbitrariedades quase ilesa, se matando de trabalhar, como era comum a qualquer pessoa de quebrada naquele contexto. 

É importante dizer, minha avó não era uma mulher conservadora, católica fervorosa, que por força moral fez vista grossa às aberrações que ocorriam embaixo do seu nariz. 

Minha avó era macumbeira, no começo dos anos 80 tornou-se desquitada e mãe solteira de duas filhas, uma de cada cor. Sua casa vivia cheia de jovens hippies e suas filhas eram ligadas à cena cultural e política da época. 

Logo essa resposta soou mais intrigante pra mim. Ocorre que certa vez em uma conversa com meu tio avô, na cozinha da minha vó, uma bomba caiu no meu colo. Sei lá porque motivo falávamos da luta armada e alguém falou do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Tio Chico gritou: “Eu fiz parte disso aí”.

Falou e deu uma lapada no copo de cachaça como quem tomava um café. Minha avó retrucou: “Eu lembro, foi quando você chegou todo quebrado aqui em casa pra eu cuidar né?”.

Espantado eu falei: – Como assim tio? Você foi do MR8, você que hoje defende o Maluf? 

Ele me disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra e falou que conheceu a esposa do Lamarca, uma tal de Iara. Falou que não gostava muito da punhetagem intelectual dos integrantes do grupo, gostava mesmo era de dar tiro, extravasar a raiva. 

Meu tio avô era um homem negro e conhecia, já antes do golpe, o ódio, o desrespeito e a vida dura. Conheceu a pobreza antes de ler Marx. Bem diferente de muitos de seus companheiros de MR8. 

No meu batizado, no ano em que se “encerrava” a ditadura, uma foto conformou uma das imagens que mais me marcou ao longo da vida. Eu no colo de minha avó ao lado deste meu tio avô, meus pais, e amigos na frente da igreja Nossa Sra de Piraporinha. 

Um destes amigos, um homem negro retinto de black power altivo, Jimmy, um fanzineiro, sindicalista, um artista militante. Essa foi uma das últimas fotos que tiraram dele. Simplesmente ninguém nunca mais o viu. 

Eu nasci com a redemocratização, mas essa imagem me diz que para pessoas pretas e periféricas, a redemocratização de verdade nunca aconteceu totalmente. E essa não é só uma chaga da ditadura, é resquício muito mais antigo de algo que pouca gente põe na conta quando faz análise política do nosso país, a perpetuação das mazelas da escravidão.

Nós, o povo negro, indígena e periférico desta nação, que sempre estivemos a margem de tudo, ainda estamos aqui, apesar do estupro colonial, apesar da falta de políticas de reparação, apesar do subemprego, da fome, da moradia precária, da falta de acesso à direitos, apesar da ditadura, apesar das moléstias, apesar da PM, apesar do Bolsonarismo. 

Aí refaço a pergunta que o mestre Edson Cardoso, histórico pensador e militante do movimento negro faz há anos: “Como ainda estamos aqui apesar de tanta coisa?”. Em suas próprias análises há um caminho, “eles não contavam com nossa profunda capacidade de resistência”. 

Ou como bem diz a mestra Conceição Evaristo, “eles combinaram de nos matar, e nós combinamos de não morrer”. E resistimos de muitas formas viu. Não só pegando em armas, ou nas greves, nos movimentos estudantis, mas também simplesmente trabalhando e mantendo os filhos vivos, como fez minha vó.

Mas o que tudo isso tem a ver com o filme “Ainda estou aqui” de Walter Salles?

O filme e o olhar de quem o fez

Antes de fazer minha análise, vi as inúmeras críticas de vários outros pensadores, principalmente das pessoas negras e periféricas que respeito, atento a seu ponto de vista e ao que de novo minha contribuição poderia somar no debate. 

O fato é que para além da importante crítica, a falta de representatividade da perspectiva periférica acerca da luta contra a ditadura e suas consequências atuais, achei quase tudo contraproducente e por vezes até um tanto maniqueísta, muito característico do momento da esquerda atual, confusa quanto ao real inimigo.

Digo isso porque o ponto mais importante pra mim não é sobre o quão é válido que tenhamos um novo filme sobre a ditadura num contexto de ascensão global das extremas direitas, ainda que isso também seja válido. Um filme, no limite, é só um filme e muitas vezes as pessoas se esquecem disso. E ainda que as provocações e as ideias possam nos levar a ação, não é um filme que vai para a rua, que muda estruturalmente o país, ainda que este em questão tenha motivado coisas importantes, principalmente junto a comissão da verdade. 

O ponto em que quero me concentrar é no porque as políticas públicas e privadas de financiamento estão concentradas nas produtoras e diretores da burguesia brasileira? Porque nós que vivemos outras histórias da ditadura não temos recursos para produzir nossos filmes com nosso ponto de vista? 

O filme de Walter Salles é muito bom, como foram seus filmes anteriores “Diários de motocicleta”, “Abril despedaçado”, “Central do Brasil”. 

É o mínimo que se espera de alguém que desde cedo teve tudo ao seu favor.

O que também não diminui o mérito do diretor, mas sim confirma a importância da grana na consolidação das carreiras de diretores e seus filmes. Um bom exemplo é que o filme “Marte Um”, de Gabriel Martins (Filmes de Plástico), em 2023, estava sendo cogitado para representar o Brasil no Oscar, mas Gabito, homem negro da periferia de Minas Gerais, não tinha recursos como Walter, para injetar na campanha do filme a nível internacional. 

Em si, “Ainda estou aqui” tem muitas qualidades, uma fotografia sensível, que amplifica a atuação, além do magnífico trabalho de CGI (imagens geradas por computador) na pós, para recriar a paisagem do Rio de Janeiro da época.

Uma narrativa construída com primazia, um controle incrível do tempo das cenas, o que dá profundidade e reflexividade a personagem de Eunice Paiva. Uma montagem primorosa que te põe dentro do estado de alerta e de tensão da época.

Uma atuação imensa da Fernanda Torres e das personagens secundárias, contando inclusive com atores periféricos, como é o caso de Aguida Aguiar, de Itaquera e de Fagundes Emanuel Ferreira, de Perus, com pequenas participações, mas um importante dado de construção de carreira. 

Algo que muitos críticos importantes falaram foi da construção da personagem Zezé, vivida pela atriz Pri Helena. Um importante elo da relação dos protagonistas com os filhos. Zezé, apesar de poucas falas, vive situações emblemáticas, como quando fica com os filhos mais novos de Eunice e Rubens, enquanto ela, o marido e uma das filhas mais velhas estavam presas sendo interrogadas.

O que se levantou muito foi o fato de a única personagem negra não ter tido grandes falas e ter sua subjetividade pouco evidente mesmo nas pequenas participações, o que é fato, mas também não é uma especificidade deste filme, mas sim uma característica geral do cinema e da televisão brasileira. O mestre Joel Zito Araújo já denunciava isso no final dos anos 90, vale a pena assistir ao filme “A negação do Brasil” (2000).

O que me deixa cansado com essas análises de modo geral é que qualquer ponderação feita nesse sentido me parece uma construção minha dentro do filme do Salles ou da história escrita no livro de Marcelo Rubens Paiva. No livro, aliás, a personagem Zezé sequer existe.

Toda vez que algo me incomodava na narrativa (e essa personagem Zezé me incomodou muito), eu pensava que isso também dizia sobre mim, sobre minha história e não sobre o filme do bilionário. Aí me lembrava que se quisesse que algumas perspectivas fossem aprofundadas teria que eu mesmo fazer o trabalho e que essa não seria mesmo a abordagem de Walter Salles. 

O fato é que a Zezé lembrou muito a minha avó, principalmente na cena onde ela questiona Eunice sobre o salário e sua suposta naturalidade com a presença dos milicos observando a casa. Pois nesse momento estabeleci um vínculo entre a história da família Paiva com a minha, ainda que um abismo social nos separasse. 

Nesse momento refleti um pouco sobre o fato de que ser uma pessoa “quase da família”, nesses contextos, não imprime densidade de relação suficiente para que pessoas como a Zezé ou minha vó, tivessem compreensão geral do que significava a ditadura. Podiam bem passar alheias já que o que importa para pessoas nessa posição de subserviência é que cuidem dos filhos, limpem a casa, lavem a roupa.

Mas no fim, o salário é o limite. Como anda a família de Zezé? Como ela ficará com a demissão? Não está em questão.

A dor da família Paiva não é menor que a de ninguém, pois ainda que abastados, a classe média alta representada estava e está muito mais perto de mim enquanto condição social, do que dos bilionários que cortejam, do que da própria família do bilionário que dirigiu o filme.

A ditadura tornou-se essa mácula tão pesada na história brasileira porque talvez tenha sido a primeira vez que pessoas brancas de classe média tenham sido tratadas como a maioria negra, indígena e pobre desse país foi e é tratada historicamente. 

A primeira vez que filhos brancos e bem nascidos da aristocracia nacional foram presos e torturados, a primeira vez que alguém da família é sequestrado e some, a primeira vez que seus amigos e parentes são assassinados apenas por pensarem de forma dissidente. 

Muita gente boa acordou da vida de segurança e privilégio após o pesadelo da longa noite ditatorial brasileira e passou a se entender como povo, como campo artístico, de esquerda, progressista, etc. Outros já entenderam esse período como um sinal de que se quisessem manter o status quo, precisavam caminhar na linha do sistema sem tomar partido. 

Eunice Paiva foi talvez essa pessoa, aliás, toda a família Paiva, gente que mesmo já flertando com o pensamento progressista, teve de acordar de um sonho difícil para se posicionar definitivamente enquanto povo. Não há demérito nisso (antes tarde do que nunca). Eunice foi uma importantíssima batalhadora das causas sociais junto dos movimentos indígenas, na luta por direitos humanos e da comissão nacional da verdade, os filhos também se engajaram e lutam por diferentes pautas de esquerda até hoje. 

Um momento pouco comentado do filme mostra esse choque de realidade. Na cena com a professora da escola dos filhos que também havia sido presa e torturada, Eunice pede que ela diga que esteve com seu marido na polícia, pois ela foi a única que o viu, diz que ele pode estar em perigo, a professora responde “todos estamos em perigo”. É como se o despertar viesse na melodia e nos versos de Erasmo: “não vou ficar calado, no conforto acomodado, como muitos por aí”. 

O cineasta Walter Salles, na história real, estava entre os amigos de Marcelo Rubens Paiva, brincava quando criança na casa onde tudo ocorreu. Seu pai, o banqueiro Walther Moreira Salles, foi Ministro da Fazenda do governo João Goulart, quando o então deputado Rubens Paiva exercia seu mandato pelo PTB. 

Estaria então o Waltinho, a partir de seu lugar de classe, produzindo um cinema com um viés de transformação social? 

Os bilionários e nós (os outros) 

Muita calma nessa hora, não é tão simples assim, a família Salles está entre as famílias banqueiras mais antigas do país, são os donos da rede Itaú – Unibanco e tem quatro membros na lista da Forbes dos 10 mais ricos do Brasil. Walter Salles é o 3° cineasta mais rico do mundo. Perdendo apenas para o Steven Spielberg e o George Lucas.

É importante dizer que estes 10 multi bilionários representam 1% da pirâmide social e estão a anos luz da classe média alta e das demais faixas empobrecidas do país. 

A minha tese é que o filme, e talvez toda a trajetória artística dos irmãos cineastas João e Walter Salles, tenha sido calcada na superação da história errônea de seu pai, que apesar de ministro de Jango, foi um dos articuladores internacionais do golpe, cedendo documentação privilegiada para o governo norte americano, por meio do embaixador dos EUA Lincoln Gordon, sabendo que as reformas de Goulart gerariam prejuízos aos seus negócios no Brasil e no estrangeiro (dados da UERJ). 

Por um lado é interessante saber que a fortuna herdada com o fim da democracia nos anos de chumbo esteja retornando como uma reflexão, que no momento atual denuncia as arbitrariedades da ditadura e suas consequências na contemporaneidade. 

Por outro lado, revela o quanto a concentração de riqueza torna simples o acesso à produção cinematográfica no país, ainda que sua grana seja fruto da supressão de direitos dos mais pobres. 

Essa é a grande questão, não quero que Walter ou João deixem de fazer seus filmes, até porque são bons no que fazem (há muitos outros, muito piores e mais perigosos), mas deveriam os mesmos mais do que fazer grandes mausoléus de concentração da memória do país, como o IMS, incentivar de forma contundente a produção de cinema popular periférico. Injetando, de forma desburocratizada, recurso nas iniciativas realmente independentes. 

O filme ganhou o Oscar como uma produção “independente”, mesmo que do próprio bolso dos Salles tenha sido injetado 45 milhões de reais, e recentemente ainda recebeu do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) um investimento de R$ 32 milhões para a Conspiração Filmes que co-produziu o longa, na perspectiva de internacionalização da obra. 

Com 1% dessa grana manteríamos nossa escola de cinema na quebrada Ibira Lab, por mais de 1 ano. Estruturaríamos dezenas de cineclubes ou bancaríamos a produção de muitos filmes de diversos coletivos que produzem seus trabalhos com zero de investimento. 

Como classe artística eu não vou pixar o filme para ganhar aplauso como fizeram alguns críticos, até porque isso favorece a extrema direita que odeia a arte e os artistas, mesmo que não odeiem o fato de serem bilionários. 

Mas como classe social, independente do filme, não posso deixar de questionar o quanto as consequências dessa burguesia vampira, herdeira dos nossos piores algozes, segue limitando nosso avanço social e artístico. 

E nesse sentido, é importante que o investimento público e privado comprometido, tenha coragem de colocar recursos de forma real na produção de filmes que contem a história da ditadura pelo olhar da periferia. Temos muito ainda por falar, da vala de Perus à Santo Dias, das comunidades eclesiais de base à luta operária, um universo todo ainda deve ser explorado e revelado em sua complexidade. 

Que nestes 61 anos do golpe militar possamos vislumbrar um futuro onde a história seja retomada pelas mãos dos trabalhadores, que tenhamos um olhar nítido e diverso sobre as mazelas que acometem desde sempre nosso povo. Que estejamos fortalecidos para não sermos reféns das fake news das indústrias corporativas de comunicação. 

No mais é luta, afinal, ninguém tá puro e precisamos ser estratégicos para tomar o que é nosso de assalto. Pois nós não somos do tipo que é exilado, não estamos nas listas de desaparecidos, não temos direito a julgamento e sabemos o porquê.

Clóvis Moura, em ‘Brasil: raízes do protesto negro’, diz: “Todo preso é um preso político”, a miséria amplificada pela ditadura criou o cenário favorável para a violência e a barbárie que se prolifera como cultura nas quebradas ainda hoje. 

Sabemos quem nos apoiará quando a corda arrebentar do lado mais perseguido. A academia do Oscar, por exemplo, se recusou a demonstrar solidariedade ao cineasta palestino Hamdan Ballal, depois de ser agredido por colonos israelenses e ser sequestrado e torturado pelo estado sionista, fruto de uma guerra alimentada pelo mesmo país que lhe deu a estatueta de melhor documentário por “No Other Land”. 

Não lutaremos sozinhos e desvalidos contra os monstros do capital, precisamos de gente alinhada, teórica e fisicamente. Na disputa pelas mentes precisaremos de acadêmicos e cineastas, pedreiros e cozinheiras, tudo que nos direcione para além de nossas raivas particulares e das humilhações sistêmicas, revelando os verdadeiros algozes e nos impregnando de dignidade. Jessé Souza falou recentemente em uma entrevista, articulando o filme “Ainda estou aqui” ao seu mais recente livro:

“Imagina um mês com os melhores jornalistas desse país, explicando para o povo da periferia e dos interiores do país quem são seus inimigos de verdade, quem está roubando você, o Itaú, o BTG pactual, o Bradesco. Tenho certeza que em um mês teríamos coisas revolucionárias acontecendo. Mas esse cara está acostumado a ver Fernanda Torres e mãe nos comerciais dizendo o como são lindos esses bancos.” 

Penso que cada vez mais é melhor que as famílias Montenegro e Salles façam filmes como “Ainda estou aqui” e menos propagandas de banco, isso é o mínimo da parte deles. Do nosso lado, os cães ladram e a caravana não para!

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica a narrativa dos conteúdos de seus colaboradores colunistas.


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