Home Blog Page 7

“A minha presença fala por si só”, diz Maria Preta sobre ancestralidade e caminhada no rap 

MC Maria Preta, 26, moradora de Poá, Região Metropolitana de São Paulo, é MC, rapper e participa de diversas batalhas de rima, como a Batalha Dominação. É a partir dessas vivências e lugares que frequenta que a artista elabora sua carreira como um corpo indígena em diáspora.

Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, Maria Preta fala sobre os reflexos da sua ancestralidade e identidade na construção da sua visão de mundo.

Como é o seu processo criativo?

Meu processo criativo sempre foi muito intuitivo. Minha arte simplesmente vem, não é algo que eu pedi ou estudei para fazer, embora eu estude sempre. Isso vem da minha vivência, sabe? Quando comecei a me entender como uma pessoa indígena em diáspora, percebi que nunca fui vista só como uma mina preta de quebrada. Tinham vários estereótipos que me colocavam e eu não entendia porquê. Quando entendi que isso vinha da minha ancestralidade indígena, isso começou a influenciar diretamente na minha arte e no meu trampo.

Como sua ancestralidade também reflete no seu processo criativo?

Eu sempre soube que minha bisavó era indígena, mas não entendia a importância disso até encontrar outras pessoas no meu meio artístico e social que também se identificavam como indígenas. Minha avó é do povo tupi-guarani, veio do Paraguai, mas a gente sabe pouco da história dela. Eu cresci com ela falando tupi e dialeto, então isso faz parte de mim. Na minha arte coloco propositalmente essa vivência e temas que acho importante. Eu sempre reafirmo que aqui é terra indígena, que o ‘Pindorama’ veio antes de ‘Brasil’. Mesmo que eu não fale sobre isso o tempo todo, minha presença, enquanto um corpo indígena e em diáspora, eu sempre vou estar imprimindo isso de uma forma ou outra, ainda que eu não fale no palco a minha presença fala por si só.

Você já enfrentou obstáculos por ser quem você é, tanto no rap quanto em outros cenários artísticos?

A gente sempre enfrenta obstáculos, né? No rap, desde que eu saio de casa já encaro olhares. Seja no trem, seja quando eu chego na quebrada, tem atravessamentos. Racismo, etnocídio, tudo isso acontece e a gente sente. O rap é um meio muito machista, a gente sabe disso, mas enquanto estamos fazendo a gente vai mudando o jogo. Por exemplo, hoje a final da batalha foi eu e a Laura, uma referência enorme para mim. Quando a gente está lá, [estamos] reafirmando e mudando as coisas. Essas pequenas ações são revolucionárias, minha existência é revolucionária, então a gente segue pregando o que acredita, mesmo sabendo dos desafios.

Quais suas referências e seu meio de apoio na cena?

Brisa Flow, Ana Bya, Katu Mirim, Quilabi, essas pessoas me ajudaram a enxergar minha vivência como uma pessoa originária. A gente precisa de referência para existir, né? Estamos abrindo caminhos para quem vem depois e até para quem veio antes. Minhas influências não são só de pessoas cis ou mães, mas também de pessoas trans e não-binárias que atravessam minha vivência por a gente entender mesmo que esse lugar [é] ocupado por diversos tipos de corpos […] A arte transforma, inclusive [nós] artistas, e minhas referências me moldam e me mudam.

Quem é Maria Preta e quem é Vitória Maria? Como elas se conectam?

Eu tenho aceitado e trazido para a minha vida, muito recentemente, a Vitória. Por mais de 10 anos eu vivi apenas a Maria Preta e só vivi para ela. Essa pergunta é especial porque estou me reencontrando enquanto indivíduo, não artista, embora, desde que eu era só a Vitória, sempre tenha sido artista. Mas quem é a Maria longe dos palcos? Eu comecei a me conectar com isso ao entender que as pessoas endeusam artistas, visualizam-nos de forma diferente. Tenho me reconectado com a pessoa que talvez eu tenha sido criada para ser, com as versões que em algum momento neguei. Estou num momento de reencontro comigo mesma, abraçando meus defeitos, traumas e dores. É aí que a Vitória encara a Maria, nesses momentos de cura e reencontro. Ser artista no palco é fácil, mas fora dele é que a coisa pega. Minha arte reflete o que sou. Antes tentava ser algo que não sou, mas sou muita coisa.

Onde a Maria Preta quer chegar? Qual vai ser o lugar dela no futuro?

Eu acredito muito que quem planta, colhe. O que tô plantando é tipo um pé de abacate: demora para dar fruto, mas quando dá, é rico e nutritivo. Eu quero ficar rica, sustentar minha filha com dignidade, ocupar espaços, pagar minhas contas sem dor, saca? E também ajudar outras pessoas. Acho que todo favelado quer isso: dignidade. Não é nem só sobre dinheiro, é sobre viver com dignidade, estou nessa busca.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola. 

“A primeira barreira do artista é sempre ele mesmo”, afirma Ganjão, rapper de São Vicente 

João Pedro Tavares, 23, conhecido pelo nome artístico Ganjão, é do município de São Vicente, litoral de São Paulo, e há sete anos iniciou sua trajetória artística através das batalhas de rima como MC de rap e funk. Desde 2017, é organizador da Batalha do Caoz, que acontece na Praça Infante Dom Henrique, em São Vicente, com foco em pautar a representação de mulheres, pessoas trans e fomentar debates sociais pouco pautados na região, segundo o artista.

Ganjão conta sobre os processos de se manter enquanto artista independente e como se deu a construção da Batalha do Caoz, criada para a inclusão da comunidade LGBTQIAPN+ nas batalhas de rima, e se tornou um local de encontro para todos os interessados na cultura hip hop. 

Nesses dez anos de caminhada, qual foi a primeira barreira enfrentada para entender o seu eu artista?

A primeira barreira do artista é sempre ele mesmo. Primeiro tive que entender que o que eu estava fazendo era arte, e aí fui expor depois. No começo era muito difícil saber se aquilo ali podia ser algo, porque antes estava só querendo me expressar. No final das contas percebi que era mais eu ter fé no que acredito, no que eu faço,  para conseguir fazer as outras pessoas também acreditarem em mim.

Como você quer que o público receba sua arte no primeiro contato? 

No hip hop a gente tem aquela parada de resistência que muitas vezes a galera já chega numa ideia de que ‘Ah, porque é hip hop, porque é funk é sujo, é violento’. Eu sinto que na real o que mais falo é sobre amor e resistência, não é tanto em relação a destruir, mas sim construir. Eu quero que as pessoas entendam isso, que vejam a minha arte como uma parte de mim, não como algo contra as pessoas.

Como surgiu a ideia da batalha do conhecimento no seu território e qual a importância disso?

A Batalha do Caoz começou porque a gente já [tinha] esse papel de fazer as batalhas de rima. Encostava um bonde só de mulheres, porque eu não tinha feito a transição ainda, mas aí toda a batalha a gente ouvia uma rima machista. Às vezes havia homofobia, transfobia e pensamos que não íamos mais fazer esse movimento de ir para as batalhas, [assim] criamos um espaço para a gente. Então a Batalha do Caoz surgiu nessa intenção de criar um espaço para as pessoas se sentirem bem de rimar. Sempre falo que foi uma semente que a gente plantou lá em 2017, que hoje é uma árvore grande com frutos, folhas e galhos enormes que acaba colhendo as outras pessoas, mesmo não sendo mulher, não sendo pessoa trans e LGBT, por ser um espaço mais tranquilo, uma batalha diferente [com] intuito diferente, é mais fácil das pessoas começarem a rimar e de aprender o que é o movimento hip hop.

Como você enxerga o desenvolvimento e futuro da sua carreira musical e da batalha? 

De um tempo para cá eu tenho [buscado] profissionalizar tanto a batalha quanto a minha carreira, acho que uma coisa não se solta da outra, porque faço a batalha e sou o Ganjão, o cantor. Então quando eu me apresento, geralmente, eu falo sobre a batalha e quando eu estou na batalha as pessoas [me veem] apresentando. A gente está caminhando para um lugar de profissionalizar, de ter mais recursos, de ter uma equipe para ajudar a fazer as coisas, porque é muito difícil ser independente. Tenho estudado para conseguir editais de cultura e fazer mais do que só por mim e pelos nossos, podendo profissionalizar as pessoas, pagar cachê, alimentação e transporte. Eu enxergo a gente bem grande daqui a um tempo, de um ano para cá muita coisa já mudou e eu tenho certeza que ano que vem muita coisa ainda vai mudar.

Como o seu corre agrega o território em que você vive?

Quando eu comecei a participar desse tipo de movimento não só como público, via muita coisa que não me agradava e achava que era só eu. Quando comecei a pontuar esse tipo de coisa que não me agradava, percebi que tem outras pessoas que também não se agradavam. Acho que quando começo a falar sobre a minha realidade, minha vivência, outras pessoas também acordam e elas continuam a acordar outras pessoas. Sinto que quando a gente começa a viver de arte, cultura, música e movimento social, conseguimos aprender muita coisa, passando para outras pessoas que se não tivessem contato com você não teriam aprendido também. É meio que uma troca de informação, de valores e um vai ajudando o outro sempre. 

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Crespinhos Dança: projeto utiliza a dança charme para fortalecer identidade negra nas infâncias

0

Inspirado no baile charme, movimento cultural de fortalecimento da identidade negra nas décadas de 1970 e 1980, o Crespinhos Dança apresenta para crianças e adolescentes a dança charme com intuito de estimular o protagonismo negro desde a infância, através do resgate desse ritmo que nasceu na periferia e marca gerações. 

“A gente começou com a ideia de produzir conteúdos e ações voltadas para o protagonismo preto. Esses conteúdos e ações são para todas as crianças, porém, é feito por crianças e adolescentes pretos”, explica Renata Moraes, 40, produtora cultural, articuladora e moradora do bairro Praça Seca, que fica no distrito de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. 

Formado por crianças e para crianças, o Crespinhos Dança existe desde 2015, e é um dos projetos da produtora e coletivo Crespinhos SA, assim como o Bailinho da Crespinhos, que são eventos de baile black, e a artista mirim Elis Mc, que atuam de forma integrada. A iniciativa foi fundada por Renata, que realiza os projetos em coletivo e com parcerias, como a do Luis Marques, que é dançarino, coreógrafo e coordenador do Crespinhos Dança. 

Atualmente o grupo é composto por 13 crianças e adolescentes, com idades entre 7 e 17 anos, junto com seus responsáveis, em sua maioria mães, que participam de modo contínuo. As atividades, como os aulões, também são realizadas por essas crianças e abrangem as demais infâncias dos locais onde são realizadas as ações. “A gente gosta do Luiz puxando [as atividades], mas sempre [com] uma criança no comando também para elas [as crianças] se identificarem”, explica a produtora. 

A rotatividade de membros é constante por se tratar de um projeto formado por crianças. A participação no grupo é gratuita e os encontros acontecem no Centro Cultural Dyla Sylvia de Sá, aos sábados ou domingos, com duração de 3 a 4 horas.

Geralmente, os encontros semanais são iniciados com a Renata que propõe alguma atividade, roda de conversa ou reflexões sobre direitos e deveres das crianças. “Desde muito nova a criança pode ter essas ideias sobre direitos e identificar coisas”. Racismo, assédio e discriminação são exemplos dos temas abordados.

“É um grupo para dançar, se conhecer e se fortalecer. O processo é criança e responsável, mãe e pai”

Renata Moraes, produtora cultural, articuladora e criadora do Crespinhos SA.

“A gente faz esse aulão e depois [tem] a intervenção da Elis Mc [uma artista mirim] que dança e canta”, menciona Renata, ao pontuar que essa interação entre as crianças gera impacto positivo e direto por elas se identificarem. Ela conta que isso é evidenciado com o retorno que o coletivo recebe a partir do carinho das crianças em forma de abraços, pedidos de fotos e de novas atividades.

As atividades são variadas, algumas têm um direcionamento social e outras são voltadas para o comercial. No âmbito social, o coletivo realiza encontros, piqueniques, rodas de conversa com os pais, aulões, oficinas e eventos como os bailes blacks. Essas ações geralmente ocorrem no parque Madureira, na Praça Mauá, em bibliotecas e centros culturais.

As parcerias comerciais de campanhas publicitárias com produção de conteúdos como vídeos, jingles, fotos, divulgação e editais é o que possibilita financeiramente que o coletivo e as ações sociais gratuitas aconteçam.

Movimento cultural

Para Renata, o charme é um movimento que muitas pessoas não têm mais contato com frequência e que geralmente desperta o interesse de adultos. No projeto é o fio condutor artístico que encontraram para levar a ideia de fortalecimento e autoestima. Ela conta que pais já procuraram o coletivo para tentar lidar com a situação de racismo vivenciada pela criança, tendo a iniciativa como um espaço de acolhimento. “[Mas] a sociedade é preconceituosa e a gente não vai acabar com racismo”, pontua.    

O charme teve início nos anos 80, e se tornou uma expressão cultural importante para a juventude negra nas periferias da época. A música que mistura Soul e o R&B, que é um ritmo mais lento, segundo Renata, dá origem aos passos de dança que, no Brasil, é chamado de charme. “Surge da galera saindo para se encontrar nos clubes, a maioria morava em comunidade”, aponta Renata. 

Ela coloca que entre os elementos da dança o tapete vermelho no qual o dançarino performa, é um símbolo para as pessoas negras. Entrar num tapete vermelho [dançando], ser o destaque não é fácil e para pessoas pretas isso é muito complicado, porque a gente não foi ensinado a estar nesse local”, diz.

“A gente foi ensinado a estar atrás, aplaudindo, idealizando, querendo estar ali e aí quando isso se inverte ou quando isso vira uma coisa para todo mundo, é realmente enriquecedor. Você vê no semblante tanto da criança, do adolescente [e] do adulto, quanto isso é importante”, explica Renata sobre como através da dança charme é possível fortalecer a autoestima e o senso de pertencimento independente da idade.

O projeto também utiliza a literatura como ferramenta de autoconhecimento para as crianças. “A gente trabalha com as poesias do Sérgio Vaz, [que é um parceiro], e a gente faz algumas intervenções poéticas”, conta Renata.

O grupo é composto por 90% de pessoas que são de periferias e favelas, e a atuação em escolas públicas também estreitam as relações com os territórios. “Durante o ano inteiro a gente visita duas escolas públicas por mês. Abrimos essa agenda no início do ano, os educadores entram em contato e agendam até dezembro”, compartilha.

Segundo Renata, apresentar diferentes movimentos culturais amplia a perspectiva que crianças e adolescentes têm sobre o que é cultura negra e periférica, além de proporcionar trocas entre gerações. “A geração que viveu aquilo [baile charme] consegue se conectar com a geração de agora, [assim] as duas conseguem dialogar e dançar juntas”, finaliza.

Moradora de Parelheiros conta sobre novas perspectivas de vida a partir do acesso à educação 

Natural do município de Garanhuns, Pernambuco, e atualmente moradora de Parelheiros, zona sul de São Paulo, Roseane da Silva, 52, é empreendedora e estudante do Cieja Lélia Gonzalez. Com uma barraca de doces e pano de pratos, ela foi uma das comerciantes presente no aniversário de 20 anos da unidade educacional, realizado em parceria com o coletivo Sertão Perifa, na Praça do Trabalhador, em Parelheiros, no mês de setembro.

Roseane conta que não teve a oportunidade de estudar na infância. Após um processo de abandono do pai e da mãe, o que a levou a morar com a avó, a comerciante começou a trabalhar aos 12 anos, e aos 17 anos se mudou para São Paulo. Somente aos 52 anos que Roseane encontrou a possibilidade de estudar e iniciar a alfabetização, o que segundo ela representa um recomeço em sua trajetória e a chance de novas perspectivas sobre sua vida ao olhar para si.

Quais são as lembranças mais marcantes da sua trajetória?

Eu nasci em Pernambuco, Garanhuns, perto de Recife. A minha infância não foi fácil. Fui criada com a minha avó, minha mãe veio embora para São Paulo e depois quando eu estava com 17 anos foi me buscar, não tive estudo. Comecei a estudar agora com 52 anos. Casei nova, [aliás] não casei, minha mãe falou ‘aprontou vai embora daqui de casa’. Então me enviou [para] um casamento também [com] sofrimento. Se eu falar que minha infância foi boa eu estou mentindo. Foi muito sofrimento, muita tristeza, porque eu cresci lá sem pai. Eu me separei. Fiquei quatro anos na cadeira de rodas [e] voltei a andar. Passei [por] momentos difíceis de saúde e agora comecei a estudar. Agora que estou começando a engatinhar, ser feliz, ter oportunidades.  

Você pode nos contar um pouco sobre sua vida antes de voltar a estudar? O que fazia e como eram os seus dias?

Eu era do lar. Eu vivia num casamento de sofrimento, eu era escrava num casamento que não existia, por isso que eu falei para você que muitas coisas mexeram no passado, é como abrir uma ferida, né? Eu estou abrindo agora.

O que te motivou a voltar para escola nesta fase da vida? 

[É um desejo] muito antigo, porque agora eu estou vivendo para mim. [Tem] 7 anos que eu estou separada. Estou vivendo para mim agora. Eu posso, trabalho por conta, vendo pano de prato, recebo dinheiro do governo, mas eu faço aquele dinheiro do governo multiplicar na minha vida, porque tenho problema de saúde. Eu tenho diabetes [e] reumatismo, através do trabalho da infância que eu tive que hoje carrego esse problema de saúde, [momento] que eu poderia ter brincado, curtido a vida como adolescente ou como criança e eu não sabia o que era aquilo. A minha infância foi trabalhar e hoje eu sou feliz porque eu tenho minhas netas, minha filha, um filho que eu vivi para ele, mas ele não [viveu] para mim.

Como você ficou sabendo sobre o Cieja e o que te fez escolher essa escola para retornar aos estudos?

Foi através de uma pessoa, eu estava fazendo pano de prato e ela me indicou aqui, fiquei na fila de espera e Deus abriu a vaga para mim e eu sou feliz, nunca é tarde para recomeçar.

E agora que está estudando, quais são os seus próximos sonhos e objetivos?

Enquanto eu tiver esperança eu quero ir [o] mais longe que Deus permitir, que nós podemos fazer para as pessoas os planos de Deus, então ele aprovando fazer isso hoje, amanhã Deus faz outra coisa na nossa vida, mas eu estou feliz de estar aqui na escola.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Pai de santo aponta a educação como instrumento de combate à intolerância religiosa

Setembro é um mês encantado em vários territórios. Mês em que é celebrado o dia de São Cosme e Damião, momento no qual muitas comunidades afro-religiosas comemoram as crianças encantadas, os erês e ibejis. Exatamente em setembro, dia 28, no evento de 20 anos do CIEJA Lélia Gonzalez, localizado no Parque Maria Fernandes, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, que encontramos Fernando Oliveira, 51, com sua encantaria, ao contar sobre sua relação com a educação e religiosidade. Morador do bairro Jardim São Rafael, na Cidade Dutra, zona sul de São Paulo, ele é estudante, pai de santo e presidente do grêmio estudantil da instituição.

A figura de Seu Fernando carrega muitas referências visuais. Com seu chapéu panamá de cor branca e fita vermelha, os dedos das mãos enfeitados com anéis de búzios e tridentes, e no pescoço sua corrente de São Jorge, é possível identificar a religiosidade como algo importante na sua vivência. Após ter migrado de Pernambuco para São Paulo, aos 15 anos, ele conta que ter voltado a estudar, já adulto, contribuiu para potencializar o papel que exerce enquanto liderança no território. 

O presidente do grêmio estudantil fala do papel emancipador que a educação tem dentro da sua comunidade religiosa afro-diaspórica.

Qual é a sua trajetória na educação?

Na juventude eu não pude estudar porque nós viemos para São Paulo, minha mãe passou por dificuldades, então nós tivemos que trabalhar para ajudar em casa. Agora, depois de adulto, vim procurar uma escola para aprender a ler e escrever por que o ser humano no Brasil se não tiver estudo ele não é ninguém. Tem muitas portas que são fechadas, aí quando você começa a estudar é que você começa a entender e a procurar boas melhorias para sua vida. É o que eu estou fazendo hoje.

E qual a função que a educação tem na potencialização do seu papel de liderança?

Um zelador de santo tem que saber ler, tem que saber escrever. Se você não souber uma cultura e não buscar conhecimento você não tem como passar isso para um filho de santo. Ter acesso a essa educação institucional, principalmente o estudo, para [nós] que não [sabemos] ler, abre uma porta espiritual, porque se você não está bem contigo mesmo, você não consegue estar bem com outras coisas. Então com isso tudo eu vivia muito deprimido. Cheguei em tempo de depressão e ansiedade, então eu voltei a estudar. Eu voltei a viver de novo.

Você acha que as religiões de matriz africana devem ser abordadas na educação a fim de combater o racismo religioso?

Sim, mas principalmente ter representantes nossos em Brasília, né? Porque tendo mais gente lá é garantido que vamos ser mais respeitados.

Qual o papel educacional que uma comunidade religiosa tem dentro de um território periférico?

O papel principal é tirar da cabeça dos outros que é coisa do diabo. Diabo para nós não existe, a religião cura e benze. Nós não pregamos mentiras. Minha espiritualidade veio da África, da senzala, foram os negros que trouxeram e isso não é coisa do diabo.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

“Consigo ter base para o sustento da minha família”, afirma doceira sobre renda através da venda de morangos

No dia 28 de setembro, aconteceu a comemoração dos 20 anos do CIEJA Lélia Gonzalez, em parceria com o coletivo Sertão Perifa, na Praça do Trabalhador, em Parelheiros, zona sul de São Paulo. Entre os comerciantes que vendiam seus produtos, Eliana Gorete, 54, se destaca com seu sorriso e a venda de espetos de morango com chocolate. Moradora de Embu Guaçu, a doceira trabalha de forma independente há seis anos.  

Eliane ficou conhecida como “Moranguinho”, e conta que quando começou a vender nas ruas tinha muita insegurança por falta de experiência e por não saber se os clientes iriam gostar de seus produtos. Mesmo diante da ansiedade, ela seguiu com seu trabalho e atualmente vende em pontos fixos na cidade de São Paulo, e em eventos culturais junto da família.

Como surgiu o interesse de trabalhar com doces?

Eu comecei fazendo um curso de artesanato e vi o de gastronomia do Sebrae. Minha filha fez também, ela me ajuda, daí eu tive a ideia do morango gourmet. Morango com chocolate e coco acho que dá bom também, e seguimos fazendo esse trabalho junto com a família. Às vezes preciso de ajuda de terceiros, mas vamos para vários lugares e faço amizades também.

Como você iniciou o seu trabalho com os morangos em diferentes lugares?

Fui numa festa vender meus morangos e lá outro rapaz me chamou, e na festa dele o jornal de Parelheiros me viu, tirou foto da minha barraca e dos meus doces, até que eu fui parar no Rincão, que é um clube com seis piscinas aqui no Jaceguava, aí fui trabalhar lá e [fui] sendo convidada para vários outros lugares.

Como você se tornou “Moranguinho”?

Eu fui chamada para um evento para fazer maçã do amor e comprei 200 maçãs. Fiz o teste, ficou linda e no outro dia ficou ruim, não dava para fazer com chocolate. Chegou uma moça que me chamou “oi moranguinho, eu soube que você não conseguiu fazer as maçãs do amor”, e eu não entendi como ela sabia. Ela pediu 30 maçãs para levar e fazer, e no outro dia [me trouxe] elas prontas. Depois levou as outras 170 maçãs e trouxe prontas [também]. Eu perguntei porque ela estava me ajudando, e ela me disse que Deus disse pra ela me ajudar, depois disso, me chamam só de Moranguinho.

Qual o ponto crucial que mudou a sua vida depois que você iniciou com os morangos?

Aprender que existem vários tipos de morango, não existe só um morango, tem o que aguenta três dias na geladeira, outros não. Foi um desafio aprender isso, eu sofri muito, porque eu já comprava o morango e ele não durava e hoje já sei como fazer. Tem 10 tipos de morango aqui em São Paulo, no Rio com outros nomes também, agora eu já sei como conservar, cuidar, preparo meus chocolates, criei o meu morango gourmet e deu certo. Eu aprendi muito para conseguir fazer como faço hoje.

Como uma mulher periférica, como você enxerga a mudança que o seu trabalho trouxe para sua vida socialmente?

Mudou muita coisa porque eu comecei fazer amizades com várias pessoas e não só ganho dinheiro, trabalha comigo minha filha, meu irmão, cunhada, genros. Então  mudou bastante coisa que hoje consigo ter base para o sustento da minha família.

Onde você se imagina daqui alguns anos?

Já [tem] seis anos que eu trabalho com os morangos de chocolate, tenho ponto fixo na praça de Embu Guaçu e em Parelheiros. Tem evento que eu vou e sou convida, [como na] ilha do Bororé, e no último sábado eu consegui fazer uma feira de gastronomia e artesanato que consegui um espaço de um amigo que tem um bar e restaurante. Eu [levei] barracas de doces, marcas de artesanato, brechó, contratei um cantor e foi um sonho que eu realizei. Quero ir mais para isso também, fazer coisas além dos morangos com chocolate.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.


“Educação e arte não andam separadas”, diz Jô Freitas sobre acesso à cultura nas periferias

Nordestina, nascida em Paulo Afonso, município da Bahia, Jô Freitas chegou em São Paulo aos 5 anos. Atualmente moradora do Itaim Paulista, zona leste da capital, a escritora diz que seu primeiro contato com a arte aconteceu a partir de políticas públicas. Assim começou a entender as linguagens do corpo, da musicalidade, do teatro e descobriu o sarau, espaço no qual iniciou sua jornada como poeta e escritora contando sobre as periferias e roças que morou.  

A escritora conta que sua trajetória na poesia se conecta ao encontro que teve com saraus periféricos como Pretas Peri, Cooperifa, Sarau de Sacolinha, Elo da Corrente e os Novos Barretos. Jô compartilha como foi o processo da publicação de seu primeiro livro “Goela Seca”, as adversidades de crescer em um contexto com poucos recursos educacionais e a conquista de se mostrar escritora para pessoas tão significativas em sua vida.  

Como iniciou sua trajetória na poesia?

A minha trajetória na poesia se inicia através do Projeto Vocacional, que é um projeto de políticas públicas. Na periferia, principalmente naquela época, anos 2000, não tinha muitas ações artísticas. E aí eu sempre com aquela necessidade de me expressar e não sabia como seria essa expressão. Foi [no] teatro vocacional que comecei a fazer que fui conhecendo alguns escritores da literatura brasileira, [como] Guimarães Rosa, Carolina Maria de Jesus. Eu não via isso na escola e a partir do teatro eu conheci a cena de saraus que estavam bombando nas periferias de São Paulo. O sarau O Que Dizem os Umbigos foi que me apresentou essa multiplicidade de arte, de literatura e de poesia. Foi quando comecei a fazer minhas poesias [e] performances. Fui circulando vários saraus da cidade de São Paulo.

Como você entende a conexão do território do qual você veio com o que você vive hoje?

Acho que quando a gente é da periferia a gente pauta muito território, né? Até porque a gente quer criar uma identidade e pertencimento àquele lugar. Meu primeiro território foi a roça lá de Paulo Afonso, na Bahia, e aí na vinda dos meus pais para a periferia do Jardim Camargo, que fica na zona leste, é um cenário muito hostil para crianças que vinham de um outro cenário, da roça. Então tinha muita violência. Eu vim de um lugar que meus pais chamam de invasão, porque se tem um espaço ocioso, esse espaço é para a comunidade. É preciso ocupá-lo e eu acho que é essa a noção de pertencimento sobre a periferia, e fazendo com que os próprios moradores ressignifiquem aquele espaço. De alguma maneira se cria um espaço cultural. A gente fazia um sarau que é o Sarau Pretas Peri que era em um terreno baldio. Com dois anos de atividade a gente conseguiu uma construção da praça e com [essa] construção a comunidade começou a ocupar. Nessa ocupação de compartilhamento desse espaço as relações foram melhorando, então muitas vezes a gente acha que a arte a cultura não modifica o seu território, [mas] modifica.

Como vê a importância da relação entre arte e educação? E dentro da sua construção artística?

A educação nessa minha construção artística foi bem conflituosa, porque eu fui uma estudante que não tinha muito um conteúdo que estivesse próximo do que eu me entendia enquanto ser humano. Quando a gente fala sobre a lei 10.639 que é a obrigatoriedade do ensino afro-brasileiro preto nas escolas, quando eu fui estudante não tinha isso. A gente coloca um aditivo muito determinante para uma história de massacre. Para mim, foi se [conectando] um pouco para a arte que eu consegui ir para a educação e ressignificar. Quando a gente tem um povo que sabe da sua história, a gente também consegue entender as nossas raízes, e a educação é responsável por isso, só que a gente precisa caminhar em rede. Toda uma comunidade também pode ser suporte para uma transformação na educação. 

Arte e educação estão totalmente ligadas quando a gente fala sobre essa linguagem no qual eu pertenço que é a literatura. [Estamos] entrando nos espaços educacionais a partir dos professores. Quando a gente entende que a educação tem que ser transgressora, que a educação tem que ser liberta, precisa ser plural para vários corpos, para várias identidades, a gente começa a entender que é o nosso lugar de potência, é um lugar que a gente precisa estar. Então a educação e arte são irmãs gêmeas, elas não andam separadas, até porque [estamos] formando pessoas tanto nas artes, quanto no plano educacional. Eu ainda acredito que são os professores os nossos grandes aliados para que a gente consiga uma emancipação, uma noção de pertencimento sobre a vida.  

Como foi desenvolver toda essa sua comunicação não-verbal para interpretar as suas poesias no palco?

Acho que tenho um mérito de ser nordestina, mas por outro lado eu sempre fui uma criança muito calada, não por timidez, muito retraída, minha família sempre foi muito um lugar de “para não se expressar tanto”. Tem muito isso, você não fala sobre os seus sentimentos, não fala sobre seus desejos. Então foi essa criança que tinha uma energia que foi controlada e aí as artes para mim foi esse lugar que fui encaixando, essas peças quebradas que foram tirando de mim. E alinhando com o que eu era, mas sobretudo me comunicando com o meu bairro e com as pessoas que eu acredito. Além de falar [e] escrever eu leio bastante, ouço bastante histórias [de] pessoas, então quando eu entendo que a comunicação com essas pessoas é muito simples, no sentido de é só você estar, ouvir e tentar dizer dentro das suas palavras também a sua trajetória. É porque se conecta com o outro, porque a gente está falando sobre todo um território, que seja a periferia, quilombo, aldeia, roça, [estamos] falando sobre uma massa de pessoas que acham que a arte é muito elitizada, só está nos grandes centros e que só aquilo é bom, e não, a gente tem uma comunicação que é genuína da vivência, do respeitar também quem veio antes, e está muito conectada com a ancestralidade, porque esse é o ponto.

Como foi conseguir publicar um livro de maneira independente?  

Sendo de uma família que não pôde estudar, eu sou uma escritora, uma pessoa da palavra, isso para mim é muito valioso. É um presente poder apresentar para os meus pais e para tantas pessoas, que às vezes não tem essa percepção de potencialidade de si ou do outro, de que é possível. E aí eu escrevo dentro disso como uma forma de vingança, no lugar em que me queriam não letrada como tantas pessoas, no lugar que me queriam servindo o outro, eu sou escritora. A sabedoria não vem através da academia, não vem por escrever um livro, a sabedoria também é de vida e é pela possibilidade de olhar o mundo de formas diferentes todos os dias. Para mim, [o] livro “Guela Seca” é traçar e escrever outra história. Inclusive para as pessoas que vão chegar depois de mim, para meus familiares e para tantas outras pessoas que têm a generosidade de me ouvir. Para mim, mais do que escrever, é ser lida. E mais do que falar, é ser ouvida.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Médica destaca ginecologia natural como possibilidade de saúde preventiva nas periferias

0

Embora nem sempre tenha tido essa nomenclatura, a ginecologia natural faz parte da vida de pessoas que têm útero há gerações. Presente, inclusive, nos hábitos de pessoas que vivem nas periferias que obtiveram esses saberes com suas mais velhas. Práticas como o consumo de chás, plantas e os banhos de assento são alguns exemplos desses cuidados ancestrais.

Priscila Amorim, médica especialista em ginecologia, conta que a ginecologia natural se trata de um cuidado baseado nos saberes ancestrais que não são os saberes da ginecologia moderna ocidental, tendo como base o funcionamento do ciclo menstrual e como ele se relaciona com a vida. “A ginecologia e a obstetrícia são ciências relativamente modernas [que] foram roubadas das mulheres. [Antes já] existiam as parteiras, as mulheres que se cuidavam [e] usavam os seus [próprios] remédios”, menciona.

Priscila Amorim é médica especialista em ginecologia natural. (Foto: Isabel Isbovoda)

A especialista aponta que na ginecologia natural o corpo é analisado no seu contexto biológico, social e espiritual. No sentido social passa pelo entendimento das relações que esse corpo carrega. “O corpo de uma mulher negra tem uma representação [diferente do] corpo de uma mulher branca, o corpo de uma mulher gorda vai ter um outro tipo de opressão”, explica. No aspecto espiritual, Priscila ressalta que não tem haver com religiosidade, mas com a intenção e uma crença de alcance da cura. 

“Algumas coisas não serão totalmente possíveis, porque vai depender do quão oprimido esse corpo vai estar”, coloca Priscila ao ressaltar que as opressões podem se dar em diferentes sentidos, como um relacionamento abusivo, jornadas de trabalho excessivas, entre outras.

A percepção do ciclo menstrual também é um cuidado importante nessa prática, pois, segundo a médica, plantas e ervas medicinais podem ser uma forma acessível de aplicar a prática no cotidiano.

“Fundamental é não usar anticoncepcional, porque para você poder saber e perceber as questões é importante [manter o ciclo], mas ainda assim é possível [aplicar a ginecologia natural] porque você pode ter [e utilizar] uma planta”

Priscila Amorim, médica especialista em ginecologia

Por estar ligada aos processos de autoconhecimento, a ginecologia natural ainda pode ser usada como uma ferramenta de diagnóstico precoce. “A partir do momento que você conhece como o seu corpo funciona você consegue perceber rapidamente quando alguma coisa não está como costuma ser, e aí buscar ajuda”, comenta.

Indústria farmacêutica

Priscila buscou a ginecologia natural como ferramenta para lidar com as necessidades das pacientes que atendia. “Quando eu acabei a residência eu achava que a ginecologia não era muito resolutiva para as mulheres. O que eu via era muito anticoncepcional e cirurgias. Eu não via as pacientes felizes, elas voltavam com novos problemas”, coloca.

A médica pontua que um eixo importante da ginecologia natural é a fitoterapia. “Que é o conhecimento e a identificação das plantas, e uso delas como medicamento”. Nesse sentido, as plantas medicinais podem ser usadas de diferentes formas: pode comer, tomar o chá, banhos de assento, consumir através de tinturas que extraem o princípio ativo das plantas com álcool ou, dependendo do caso, aplicações na pele com óleo medicado.

A fitoterapia, sendo o uso de plantas e ervas medicinais, é uma das bases da ginecologia natural. (foto: Isabel Isbovoda)

Segundo ela, a maioria de suas pacientes recebem bem a indicação desses tratamentos e preferem essas alternativas. Priscila também pontua que financeiramente a ginecologia natural é acessível e por isso não tem valor para o mercado. “São plantas que têm uma facilidade de acesso, como o orégano”, exemplifica. “Para que a indústria farmacêutica vai estudar isso se ela não vai ganhar nada?”. 

“Existe uma questão do ego do próprio profissional dentro da medicina. O que leva muitas vezes essas mulheres que sempre usaram recursos naturais e tradicionais para autocuidado omitirem essas informações para o profissional, porque elas têm medo de represália”, comenta. “Talvez o que precise mais seja a gente acolher esses conhecimentos do que as pessoas já têm, o que precisa fazer como extra [é] a humanização do cuidado”, diz a médica.

Para Priscila, a validação e o fortalecimento da ginecologia natural podem ser alcançados através da pesquisa acadêmica e essa também seria uma forma de lidar com o ceticismo e preconceitos que existem para ampliar o conhecimento sobre o tema. “Meus colegas médicos muitos acham que é uma medicina menor, que não funciona”.

Com pós-graduação em fitoterapia, pela Associação Brasileira de Fitoterapia (Abfit), Priscila conta que é com as parteiras, doulas e terapeutas populares que ela mais aprende e que essa troca de aprendizado também se dá com as pacientes.

A médica menciona que a prática não faz parte do SUS, no entanto ela não sinaliza isso como um problema. “Falta na medicina um olhar com mais profundidade sobre a saúde da mulher, sobre a ginecologia com mais complexidade. A minha impressão é que a ginecologia ficou dentro da medicina como uma coisa menor, meio negligenciada”, analisa.

Imagem feita no encontro sobre ginecologia natural que foi realizado por Bel Saide, do qual Priscila participou. (Foto: Isabel Isbovoda)

Ela ressalta que esse cenário tem se modificado e a retomada dos saberes ancestrais sobre a saúde das mulheres é uma das formas de reivindicar que a medicina moderna trate as pessoas, de modo geral, com mais humanidade.

“A gente [precisa] entender que essa pessoa não é [uma doença], essa pessoa é fulana, ela mora em tal lugar e ela vive de tal jeito e como isso impacta na vida dela”. A médica coloca que é fundamental que haja comunicação e que a paciente seja informada sobre os riscos e as possibilidades que ela tem nos atendimentos médicos, algo que geralmente as pessoas procuram e encontram ao optarem pela ginecologia natural.

Mulheres criam fundo comunitário para lançar livro com 22 autores no Campo Limpo

A professora Sandra Regina de Souza, moradora do Jardim Panorama, bairro localizado em Taboão da Serra, conta como um fundo comunitário contribuiu para o projeto Mulher Rendá viabilizar o lançamento do primeiro livro, que incentiva  mulheres comuns do cotidiano periférico a escreverem as suas histórias de vida através de poesias, textos e ilustrações.

A publicação foi exibida pela primeira vez na Feira Literária da Zona Sul, evento anual que fortalece autores e editoras independentes das periferias, por meio de atividades de incentivo a leitura na Praça do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo.

Com um corredor cultural repleto de livros, expositores realizavam vendas e vivências com o público. Entre os expositores está a professora Sandra, integrante do Projeto Mulher Rendá, que relata ao Você Repórter da Periferia com muito orgulho a trajetória de construção livro “Mulher Renda”, produzido a partir da colaboração de 22 coautores iniciantes na produção de narrativas por meio de poemas, textos e ilustrações.

O fundo comunitário irá viabilizar um novo livro produzido por jovens moradores das periferias. Foto: Nicolas Santos, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia (Setembro de 2024).

VCRP: Quando surgiu a ideia de criar um livro?

A gente teve a ideia de criar um livro quando a gente participou da Bienal do Livro e uma das organizadoras, a Joveci Fernandes quis criar um grupo só de mulheres e nós montamos um grupo de 22 mulheres, que hoje são autoras de diversas idades, religiões e gêneros.

VCRP: Como funciona o fundo comunitário para sustentar as atividades do projeto Mulher Rendá?

Eu escrevo desde os 15 anos e desde então a gente tem pedido muita ajuda política para lançar um livro e a gente nunca conseguiu, sendo funcionária pública a gente não pode ter CNPJ, com isso, a gente construiu um grupo sustentável. A gente tem uma poupança mensal de R$ 150 onde o grupo conta com mais de 20 pessoas e contribui todo mês. Essa poupança sustenta todo o trabalho do grupo, a ilustradora, as corretoras e todos os eventos que realizamos.

VCRP: Após a publicação do primeiro livro, quais são os próximos passos?

Queremos trazer mais pessoas para essa formação, porque o livro tem uma formação literária e uma formação filosófica, onde as pessoas precisam se descobrir e são pessoas que nunca escreveram e quando eu convido para participar do grupo ela se surpreende, porque vence o medo e depois consegue escrever.

VCRP: Quais foram as dificuldades durante a publicação do livro?

A dificuldade é aprender né? Éramos leigos, então nós tivemos muitos erros, como tamanho de página, número de página, onde cabia, “o que era miolo?”, então a gente foi aprendendo com essas situações, então várias vezes os miolos do livro voltava, a gente corrigia, não cabia na página, a gente tinha que organizar o texto. Então nós tivemos alguns atropelos  nesse sentido.

VCRP: Qual o propósito que vocês querem trazer para a periferia com a atuação do grupo?

O propósito é abrir uma cooperativa trazendo estudantes, jovens e crianças para praticar a escrita e tirar da vulnerabilidade, tirar da rua e fazer com que essas crianças e esses adolescentes reflitam sobre a vida. E se a gente conseguir fazer esse CNPJ, vamos para cima dos governos e das questões políticas para conseguir conquistar esse espaço.

Herança torta de um cineasta de quebrada

0

Aos meus filhos João, Flora e Taiguara.

Meus amores, dia 08/10 agora seu pai vai celebrar o início de uma Mostra sobre seus 20 anos de correria no audiovisual.

Quero começar pedindo desculpas, por fazer vocês realizarem trabalho infantil nas minhas produções, por fazê-los faltarem muitas vezes na escola, por obrigá-los a dormir tarde na falta de rotina do papai, seja por trabalho ou simplesmente boêmia.

Realmente desculpa, seu pai nunca pôde e talvez nunca poderá oferecer a vocês algo além de idéias e (in)tenções políticas, confrontos imagéticos rasos e vinganças coloniais malacabadas. 

Lutei com as armas que tinha

Filhos, perdão. Provavelmente nem aquele pichuleco que todo cineasta pós morte deixa de direitos autorais ou co-autorais eu deixarei. Comecei a vida na arte dizendo que não cometeria o mesmo erro de seu avô, meu pai, que entregou seu ouro em canções que foram da censura ao estrelato de boteco, quase sempre sem garantir um vintém pro almoço do dia seguinte, estava muito ocupado sendo feliz com suas próprias criações, vivendo na música o que eu vivi no cinema, a errância de não querer ser dono de nada além do sorriso da platéia, fosse de um grande teatro ou de uma meia dúzia de gatos pingados num botequim. 

Meus queridos, saibam que não fiz por mal, eu até critiquei as atitudes dos mais velhos que me legaram essa maldição da pobreza financeira e da riqueza cultural. Mas não consegui ser diferente. 

Sabe meus filhos, até os praguejei, disse que não fizeram o sucesso merecido porque nunca foram capazes e dedicados à devida profissionalização.Descobri tardiamente o que eles já sabiam de fato, o mercado nos leva suave com sua cenoura inalcançável enquanto aproveita o passeio no nosso lombo pobre e utópico.

Filhos, desculpa mesmo, não consegui romper o ciclo, não consegui ser outro que não essa cópia revoltada de seus avós, um pouco mais estudado, um tanto mais experiente, igualmente subaproveitado, vilipendiado, eternamente romântico como eles. 

Os que enfrentaram com poesia e esperança aquela ditadura antiga que se metamorfoseou nessa distopia fake que não conseguimos enfrentar. Digo, eu pelo menos não, da rua as redes, nada fez sentido, optei por sobreviver com os pares na quebrada onde nasci e nas outras que me forjaram no caminho das lutas. Sempre tentando não adoecer e minimamente entregar uma arte suja e ultrajante como somos, eu e meus iguais.

Posso lhes dar pouco, dicas simplórias e filosofias vãs, como as que critiquei dos meus antecessores. Até aquilo que achei que não incorreria em erro, como contratos e outras formalidades que dão segurança na fragilidade das relações eu pequei, nada que produzi se sustenta além dos créditos finais dos filmes. 

Fui e talvez seja sempre juvenil nisso de dar preço, prazo e ordenamento jurídico em minhas obras artísticas, essa arte que tantos gostam de vangloriar como coletiva, mas que explora do mesmo modo como as biroscas e metalúrgicas que seu velho passou antes de se achar cineasta. 

Meus amados, não lhes direi para não seguir esse caminho, aliás não contem comigo para induzir caminho algum. Eu simplesmente não sei como cheguei aqui e muito menos pra onde vou na altura dos meus quase quarenta anos. E isso não é só um clichê nostálgico, contudo, sou grato ao sonho!

Só posso dizer-lhes que para além das tragédias, tropeços e engodos, vivi momentos lindos, experiências incríveis que sem a câmera jamais teria vivido, coisas únicas e finitas, como últimos relatos de mestres, puxões de orelha de anciãs, derradeiros gritos de gente anônima e infindável como tudo que mora nas profundezas do mar ou da terra, prioritariamente periféricas, pretas, dissidentes de gênero, de classe, enfim. 

Operei os discursos e desejos de gente muito parecida com aquelas que cresci vendo na casa de sua bisavó, putas, matadores, bêbados, ladrões, bichas, hippies, caipiras, trabalhadores comuns, mulheres, indígenas, pretos, mestiços e toda ordem de gente que, contra tudo e contra todos, sempre tiveram muito a dizer e quase nunca foram ouvidas.

20 anos, acreditam? Nem dou conta de processar, vivi na intensidade máxima, meu corpo e minha alma pagam o preço da velocidade que apliquei nos motores.

É que gente como eu não tem segunda chance, sabe, não pode dar errado, só pega o rabo do foguete e vai se equilibrando entre a utopia e os boletos.

20 anos não são 20 dias, e eu posso até me considerar bastante jovem pra média de vida da Faria Lima, mas vocês sabem, meu prazo de validade é periférico e frágil como uma roseira no lixão. Por isso é importante celebrar.

Dedico-lhes essa mostra e toda minha obra, inclusive as feitas antes de vocês nascerem. Criei e procriei tudo pensando em um futuro ancestral, onde a violência não nos escravize e onde vocês possam exercer a potência e a coragem que lhes é patente. 

Tá tudo errado, eu não mudei muito o cenário, mas eu amo vocês e talvez um dia isso me salve, e por consequência, talvez também salve vocês!

Veja no link abaixo os locais e datas da mostra, espero vocês