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Saúde da população preta: Kemetic Yoga e Autocuidado nas periferias, uma possibilidade de produção de mais saúde

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A necessidade da criação e fortalecimento de políticas públicas que promovam saúde para e com a população preta, levando-se em consideração suas especificidades.

Sirlene Santos, moradora do Parque Taipas (Foto: Rodrigo Zaim)

Em julho de 2020, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo publicou o Boletim CEInfo Análise: Saúde da População Negra. Apesar do boletim apresentar “avanços na implementação de políticas públicas voltadas para a saúde da população negra”, fica evidente a necessidade de ampliação das políticas públicas e da criação de soluções distintas das existentes hoje, que considerem as especificidades relacionadas a esta população.

Mas, antes de apresentarmos alguns detalhes referentes à saúde da população negra presentes no boletim, é preciso apontar a urgência de melhoria na coleta dos dados que subsidiam as análises, pois, como o próprio boletim apresenta, dos 9 sistemas de informação existentes na cidade, 7 apresentam completude da variável raça/cor abaixo de 80% nos dados coletados, ou seja, a informação sobre raça/cor das pessoas atendidas não é informada na grande parte dos sistemas e, assim, mesmo que seja possível apontar as desigualdades existentes no que se refere à produção de saúde no município, estes dados acabam analisando apenas uma parte do que de fato acontece.

Imagem extraída do Boletim CEInfo Análise: Saúde da População Negra – p.14
Imagem extraída do Boletim CEInfo Análise: Saúde da População Negra – p.29

Contudo, quando se observa a taxa de mortalidade em decorrência da mesma doença, Hipertensão Arterial Sistêmica, no ano de 2017, nas pessoas maiores de 60 anos, pode-se perceber que a taxa é maior na população preta, 169,3 mortes a cada 100.000 habitantes, seguida da população parda, com 132,5 mortes a cada 100.0000 habitantes. A proporção também apresenta a desigualdade ao se olhar para os menores de 60 anos.

Imagem extraída do Boletim CEInfo Análise: Saúde da População Negra – p.30

Cruzando-se essas duas informações: a redução dos casos de Hipertensão Arterial Sistêmica na população negra entre 2008 e 2015; e a maior mortalidade de 2017 por decorrência desta mesma doença entre a população negra, e comparando-se à população branca, pode-se intuir que a atenção em saúde dada aos casos diagnosticados e o acompanhamento dos mesmos para o seu tratamento, a fim de se evitar o óbito, tem o racismo institucional como fator possivelmente originário da desigualdade percebida.

Assim, deve o município criar políticas públicas que atendam às necessidades e especificidades da população preta e parda da cidade a fim de ampliar o acesso à saúde, bem como apresentar propostas de cuidado quando diagnosticadas as doenças.

Para entender algumas possibilidades conversamos com Sirlene Santos, 42, educadora física e terapeuta. Moradora da Brasilândia por décadas, hoje reside no Parque Taipas, no Quilombo da Parada, onde realiza parte de suas atividades e participa da gestão do espaço. 

Para ela, a busca pelo conhecimento ancestral da população preta deve ser considerada como possibilidade de cuidado e tratamento, especialmente dessa mesma população, e que algo essencial para a produção de saúde é o autocuidado, passando pela prática da Kemetic Yoga e pela alimentação saudável como produtores de saúde.

Sirlene Santos, moradora do Parque Taipas (Foto: Rodrigo Zaim)

“Toda prática de autocuidado é um portal que está relacionado também com autoconhecimento e autoestima. São três pilares.” Sirlene, conta que quando começou a pesquisar mais sobre a importância do autocuidado na população preta e passou a praticar e disseminar o que aprendia, muitas pessoas enxergavam esse movimento como algo individualista, egocêntrico, que se distancia da ideia de comunidade de cuidado.

Mas, ela diz que é justamente o contrário, “é como quando se está num avião e tem uma turbulência, primeiro você coloca a máscara em você para depois poder colocar no outro. É preciso cuidar primeiro de si para depois ter como cuidar do outro. Ninguém salva o outro não estando primeiro salvo. É preciso se olhar, não tem lógica você não estar bem e querer ajudar os outros, vai ajudar com o quê?” – questiona.

Dentro de seu processo de ampliação do conhecimento para cuidado da população preta, conta que em 2015 começou a praticar capoeira Angola na escola Mutungo conduzida pelo mestre Zelão e foi onde teve contato com a Kemetic Yoga onde todos os movimentos priorizam a saúde integral. 

“Em 2016 foi-me apresentada a Kemetic Yoga, que é africana. Eu comecei a praticar. Em 2018 houve uma formação. A princípio eu não mostrei interesse. Não me sentia preparada para a formação. Em 2019, o Mestre Yirser Ra Hotep, esteve no Brasil e fez uma palestra. Haveria uma formação com ele e quando eu decidi que já estava pronta para participar, não tinha mais vaga. Mas, quando chegou no final de setembro surgiu uma vaga e eu fui, fiz a formação em dezembro, num processo de imersão, muito importante, com 10 a 12 horas de prática por dia.”

Sirlene Santos.

Sirlene Santos, ministrando Kemetic Yoga, Casa Lúdica (Foto: Tásia)

Sirlene explica que Kemetic é a palavra original para se referir ao que hoje é conhecido como Egito (que seria uma palavra colonizada pelos gregos), que significa “terra das pessoas pretas”. Ela conta que “…há registros que trazem os vestígios de uma prática rotineira, cotidiana de feita pelos povos que habitavam as margens do Nilo. Essa prática teria migrado para a etiópia e da etiópia para a Índia, e essa prática ficou popularizada como Yoga.”

Ela conta ainda que a Kemetic Yoga contribui na produção de saúde integral porque olha para a pessoa em sua totalidade: “um corpo que sente as emoções, que sente as energias, um corpo templo, um corpo inteiro. Por ser africana, é uma prática que afeta diretamente o corpo preto, que sempre está em estado de alerta, e dentro da prática a gente trabalha justamente o relaxamento. É possível esse corpo relaxar? Essa é a proposta, trazer o “seneb” que significa saúde em abundância.”

Qual a relação entre o Kemetic Yoga e o autocuidado?

“Está ligada ao autocuidado porque o nosso corpo tem dificuldade de relaxar, de se tranquilizar, de estar em paz. Através das práticas a gente traz a automassagem, as práticas meditativas e as técnicas respiratórias, além da postura, não somente física, mas que mexe com as energias bloqueadas, o fato de estarmos sempre alerta atrapalha a gente a se expressar. Dentro das práticas de Kemetic Yoga a gente vai desbloqueando as energias estagnadas. É uma reestruturação, uma restauração, unindo o corpo que está fragmentado. ”

E Sirlene completa que esta relação não tem a ver com o indivíduo, pois “não se está somente olhando para si, mas, principalmente para a comunidade preta.”.

“No movimento Kemetic Yoga Brasil nossa visão é popularizar esse conhecimento para conscientizar o povo preto que é necessário parar para se cuidar. E não é algo só físico. E aqui entra a questão da alimentação. O que que te alimenta? Você se nutre ou você está adoecendo? Você se alimenta ou você se enche? Não somente o que come, mas, um filme, uma leitura, um ambiente, tudo isso te alimenta, qual é o propósito com o qual você está levando a vida?”

Sirlene Santos, preparando uma refeição saudável (Foto: Rodrigo Zaim)
Imagem extraída do Boletim CEInfo Análise: Saúde da População Negra – p.36

Mais uma vez é preciso perceber que é possível a criação ou fortalecimento de políticas públicas que promovam saúde para e com a população preta, levando-se em consideração suas especificidades.

Sirlene nos conta que um fator que ajudou a decidir fazer a formação em Kemetic Yoga foram os vários pedidos que vinham dos coletivos de pessoas pretas e que cuidam do corpo preto nos mais diversos locais da cidade para ela levasse práticas de meditação e antes ela o fazia como praticante e agora se sente mais capacitada como instrutora. 

Diz ainda que enquanto educadora física, isto lhe tem impulsionado, apesar da percepção ainda existente de que a proposta seja apenas algo do corpo, muitas vezes descolada da mente, como se o movimento fosse apenas para fora, apenas a técnica, apenas algo mecânico, se limitando à estética, e o desafio é duplo por primeiro apresentar a proposta de autocuidado como relevante para a população preta e também para conseguir apresentar como a tríade corpo, mente e espírito.

Como você enxerga o autocuidado nas periferias, especialmente na Brasilândia?

“É impressionante como as pessoas que têm se disponibilizado a cuidar do outro não têm cuidado de si. As pessoas têm estado muito entregues à militância, mas não se cuidam. No ano passado tentamos trabalhar com pessoas que cuidam de outras pessoas, porque vimos que nós que estamos nessa frente, ficamos sempre pelo outro, no extremo. E quando a pessoa pausa, começa a se perceber e a falar não… as pessoas estranham. Mas, é preciso fazer esse movimento de se cuidar para poder cuidar do outro. Cuidar de quem cuida é urgente!”

A provocação final que Sirlene nos deixa para reflexão é que nas periferias falta muito essa visão de que é preciso primeiro se cuidar para depois cuidar do outro, ou mesmo para realizar as suas tarefas. E que entende fazer parte dessa semente que ainda está sendo plantada. “Talvez outros terapeutas da região tenham outras percepções. Mas, eu percebo que a própria militância, ativistas, ainda não entenderam a importância do autocuidado.”

E você, como tem praticado o autocuidado e o cuidado comunitário?

Desculpa, estou atrasado

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Escrevi esse texto dentro de um ônibus pois estava atrasado para entregá-lo. Ao começar a escrita, me veio a reflexão: o tempo está passando rápido ou nós que estamos apressados?

Segundo Pesquisa de Mobilidade Urbana de 2018, moradoras e moradores da cidade de São Paulo gastam 2h43 por dia para se deslocar para todas as suas atividades. Estamos perdendo tempo?

Quando estava na faculdade, uma professora indicou um documentário para a turma assistir: “Quanto Tempo o Tempo Tem”. Eu, sem tempo, não assisti. Esses dias, falando sobre os mistérios do tempo com um amigo e que tudo está muito corrido, indiquei o documentário para ele. Será que ele vai assistir? Bom, espero que ele tenha tempo.

Esse primeiro parágrafo na verdade foi uma certa enrolação. Eu não sei muito bem como começar a escrever minha coluna “deste mês”. Talvez pedindo desculpas? Sou tão entusiasmado com os mistérios do tempo que me perco muito nele. Sendo jornalista, entendo como funciona as relações de uma redação: pesquisa de pauta, marcação de entrevistas e uma coisa muito importante: o deadline, que é o tempo limite para o texto ser entregue. Eu vou abrir aqui para vocês, mas espero que só fique entre a gente, hein? O meu deadline nesta coluna é todo dia 30 de cada mês. Estou escrevendo no dia 4… Do mês seguinte.

Também na faculdade, enquanto pensava em temas para meu Trabalho de Conclusão de Curso, o famoso TCC, isso ainda no meu segundo ou terceiro ano (ora ora, eu estava adiantado), anotei no bloco de notas do celular – que é a mesma ferramenta que utilizo agora – a seguinte ideia: “Dormitórios: a periferia que não tem tempo pra sonhar”. Esse tema não foi esquecido, ele foi desdobrado, aprofundado e virou “Quebrada de corpo e alma: a visão periferiana da comunicação e cultura no extremo sul da cidade de São Paulo”, meu trabalho de conclusão de curso apresentado no final de 2019 e que deu origem a esta coluna.

Nas correrias da vida, escutamos a todo instante: “sem tempo, irmão”, “estou com pressa”, “estou atrasado”. Em um dia qualquer, aproveitando o tempo livre, estava assistindo a série “Dark”, da Netflix, que acabou virando minha série favorita, e refleti sobre a seguinte frase da série: Por que a gente fala isso, ter tempo? Como podemos ter tempo quando é ele que nos tem?

Cheguei em uma conclusão: Somos apressados, mas reféns do tempo. A falsa ideia de ser donas e donos do tempo causam alguns problemas indiretos, como ansiedade, doença que afeta cada vez mais as juventudes e está muito presente também nas periferias. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o país que mais sofre de ansiedade no mundo: 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população). 

Nas bordas principalmente, somos pressionados a correr contra o tempo. Nas quebradas, sobretudo as mulheres, se desdobram para trabalhar o dia todo, chegar em casa e ainda ter tempo para cuidar do lar, dos filhos e talvez dormir, isso ainda muito efeito de uma sociedade machista, que vê o homem culturalmente apenas como provedor ou a figura do homem não existe nesses lares, mas isso é uma conversa para um futuro texto. Jovens saem de madrugada para trabalhar depois correm direto para a faculdade. As vezes, chegando em casa, precisam preparar a famosa marmita para o outro dia, ou até mesmo estudar um pouquinho para não ficar para trás, perdido no tempo. O quão complexo é não ter tempo para descansar?

Eu, que sou cheio dos clichês, deixo aqui mais um: aproveite o seu tempo (com responsabilidade), repense suas prioridades e saia um pouco do celular. Assim que a vacina do coronavírus chegar, faça um favor para si mesmo: VIVA! Não sabemos o tanto de tempo que temos, mas sabemos o tanto de tempo que já passou. 

Jogo expõe o pensamento computacional na visão de jovens da quebrada

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Criado conceitualmente durante um curso de pensamento computacional, o jogo Tabuleiro de Ori é uma iniciativa de jovens das periferias de São Paulo para transformar a música em um instrumento educativo para mergulhar na história da população negra brasileira.

Creditos: Rodrigo da Selva

 “É o seguinte mano, esse jogo é pra legitimar para amanha ou depois um pretinho na escola falar assim: ‘se você pensa que minha história  parte da escravidão você tá muito enganado, nós somos seres milionários, tá ligado ‘. Eu acho que a grande resposta do Ori é essa”, explica Magda Souza, uma das seis jovens moradoras das periferias de São Paulo, que usaram o pensamento computacional para elaborar o jogo Tabuleiro Ori.

Souza faz parte de um grupo de seis jovens que participaram do programa de formação Programaê, um curso que convida jovens das periferias a construir um guia para construção do pensamento computacional.

Ao longo do curso, os jovens transformaram suas vivências sociais na quebrada em um plano pedagógico focado na difusão do pensamento computacional nas escolas públicas das periferias de São Paulo. Para isso, eles construíram um plano de aulas a partir dos conhecimentos adquiridos no projeto.

Durante esse processo de formação, Ana, Myke, Glória Maria, Gustavo e Macrô, parceiros de Magda no curso, decidiram criar um jogo para descolonizar o entretenimento musical através do pensamento computacional, utilizado para estimular a introdução da lógica de programação, que é empregada na maioria dos dispositivos tecnológicos.

O objetivo deles é contribuir com a ampliação do repertório de jovens das periferias, a partir de um jogo que estimula o contato histórico com a música preta no cotidiano de alunos de escolas públicas. Na prática, o grupo está usando técnicas de Gamificação para transformar a cultura, história, música e o pensamento no jogo Tabuleiro Ori, um instrumento pedagógico para descolonizar a cultura musical nas periferias.

creditos: Rodrigo da Selva

“O jogo incentiva o aprendizado dentro do tema, então você sempre vai caminhar pra chegada e se você tiver alguma dificuldade no caminho você vai aprender com a pergunta que você tirar no card, através do mediador. O foco é sempre aprender o conteúdo e no meio do jogo ir aplicando o pensamento computacional”, explica Ana Luiza, 26, umas das co-criadora do Tabuleiro Ori, moradora do Jardim Sonia Inga, que atua como cantora, compositora, poeta e articuladora.

Se por um lado a vivência dos jovens na quebrada se tornou uma grande aliada que contribuiu no processo de elaboração do jogo, a introdução do pensamento computacional e suas complexidades tecnológicas foi um grande desafio. “A maior dificuldade pra mim no caso, foi aplicar o pensamento computacional dentro do jogo”, afirma Magda Sousa, 25, moradora do Morro do Índio. 

A produtora cultural ressalta que a universalização da leitura do jogo foi uma grande dificuldade, pelo fato dele ter que atingir diferentes públicos. “O grande lance foi quando a gente entendeu que precisava aplicar pra todo mundo né, que o professor tinha que chegar na sala de aula e conseguir aplicar, desde um professor de escola particular a um professor de uma comunidade ribeirinha”, complementa.

A ideia de descolonizar a cultura musical através da gamificação surgiu devido ao fato do grupo de jovens ter uma ligação natural com diversos estilos musicais, entre eles o hip hop. “A maioria das pessoas que estam no grupo já trabalha com esse rolê. Foi muito mais fácil trabalhar a parte de pesquisa nessa questão”, aponta Magda, que antes da pandemia atua produzindo eventos de batalhas de rimas nas periferias da zona sul de São Paulo, por meio da ocupação do espaço público.

Segundo a compositora Ana Luiza, jogo vai provocar os alunos de escolas públicas a mergulhar na história afro-brasileira e indígena como uma forma de resgate, ressignificando o conhecimento e valorizando a cultura afro-indígena, através da música. “É sempre o foco valorizar a música dentro da cultura preta mesmo, de valorizar a nossa música”.

Além do Tabuleiro Ori, o curso Programaê também serviu como plataforma para os jovens criarem um plano de pedagógico, composto por quatro aulas com duração de 50 minutos cada. O conteúdo didático é voltado para alunos das disciplinas de Música e Geografia, que estão cursando o 9° ano do Ensino Fundamental II em escolas públicas das periferias.

Ana Luíza acredita que o maior propósito do jogo é mostrar pra a juventude que ela pode ocupar o espaço que ela quiser conhecendo a sua história e do seu território. “A gente pode estar na área tecnológica, a gente pode estar na área que a gente quiser, usando a nossa linguagem principalmente”, finaliza...

App registra em tempo real situações de aglomeração no transporte público

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O grupo de pesquisa Rede de Mobilidade da Periferia desenvolveu o aplicativo Sufoco, com o objetivo de criar uma rede colaborativa de dados que podem ajudar a mapear e relatar problemas no transporte público, uma rotina comum vivenciada por moradores das periferias e favelas de São Paulo.

live de apresentação do aplicativo sufoco

 Passar sufoco no transporte coletivo faz parte da rotina do morador da quebrada, porém em meio a pandemia do novo coronavírus a condição de má qualidade do serviço público que oferece acesso a cidade, ganhou outro significado: o risco dos passageiros serem contaminados pela covid-19.

Foi pensando nisso que a Rede de Mobilidades da Periferia, um grupo de pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), formados por pesquisadores e estudantes que moram e vivem o cotidiano das periferias, criou o aplicativo Sufoco, para mapear de maneira colaborativa e em tempo real os alertas dos passageiros que estão em situação de aglomeração no transporte público de São Paulo.

O professor de geografia Ricardo Silva, 43, morador da Penha, distrito da zona leste da cidade, leciona na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Ele revela que suas pesquisas deram embasamento para criação do app, pois nas entrevistas com as pessoas sempre aparecia o tema da lotação. “Eu fui estudar transporte e mobilidade, e especialmente no doutorado eu percebi nas pessoas quando fazia as entrevistas, elas reclamavam muito sobre essa questão da lotação, mas não é um tema muito levado em consideração, até mesmo do campo da mobilidade”.

Silva afirma que a partir de suas pesquisas ele entendeu que o problema de mobilidade urbana vai além do planejamento da cidade. “A mobilidade como um direito né, não simplesmente como mercadoria. A mobilidade como mercadoria é isso: um transporte lotado que atende os interesses mercadológicos, pras grandes corporações, é interessante que se tenha o transporte lotado, dá mais lucro”, explica.

A partir desses estudos, o professor concluiu também que para mudar essa lógica de superlotação no transporte é necessária uma modificação de pensamento. “Direito à cidade é pensar o transporte público, gratuito, de qualidade e a cidade acessível né, de outra maneira para além dessa lógica mercadológica”.

O professor relembra que o ponto de partida para criação do app foi marcado pela realização de debates e diálogos com as pessoas, para construir junto a elas uma proposta de ferramenta digital, em formato de mapeamento colaborativo, na qual os passageiros do transporte público pudessem denunciar as situações de superlotação.

Em meio a esse processo, o professor sempre buscou formas de mostrar o quão letal seria a pandemia de coronavírus para os moradores das periferias e favelas de São Paulo. “No começo da pandemia, em março, eu fiquei muito atento em produzir mapas e buscar dados, que de alguma forma pudesse revelar a letalidade do coronavírus nas periferias”, conta.

Para a Rede Mobilidade da Periferia, o importante é garantir a utilização da tecnologia para que as pessoas tenham autonomia e voz para fazer denuncia sobre a situação do transporte público. “Imagina a construção de mapas a partir dos interesses das pessoas que vivem nos lugares, ou que sofre as dificuldades no dia a dia, como a mobilidade e revelar esses problemas, a partir das vivências delas”, argumenta o professor que integra o grupo de pesquisa.

Com o app funciona? 

O app Sufoco possibilita que os usuários qualifiquem o reporte de situações de lotação escolhendo o tipo de coletivo como ônibus, metrô e trem. Além disso, a partir dos dados relatados pelos passageiros será possível acessar informações sobre qual linha tem maior recorrência de lotação, qual linha que tem mais lotação, seja ônibus, metrô e trem.

Para que esses dados transpareçam a realidade que os moradores estão vivendo dentro do transporte público nesse momento, a Rede Mobilidade da Periferia entendeu que os próprios usuários de ônibus poderiam fazer isso em tempo real.

“Esses dados com esses problemas podem ser as próprias pessoas, as pessoas que estão nessa condição de lotação do transporte. Elas podem ajudar a construir um mapa de maneira colaborativa”, diz Ricardo, apontando o processo natural de alimentação de informações pelo qual o app pode funcionar, onde o objetivo é fazer com que as pessoas pudessem produzir suas próprias informações, a partir de suas vivências, a fim de transformá-las em dados.

Essa produção de dados independente tem que divulgar mais pra comunidade

Serginho Lima

Serginho Lima, morador do Jardim Eliane, zona leste de São Paulo, participou da fase de testes do app como colaborador comunitário. Ele conta como foi a experiência. “Você coloca a linha e o app dá algumas questões para você escolher se está usando o transporte como lotado, com aglomeração, sem aglomeração ou se você não conseguiu entrar. Eu achei bastante simples”, relata o morador.

Segundo Lima, durante o uso do aplicativo, ele sempre relatava que usava a linha de ônibus do bairro na categoria lotado e que não tinha horário específico para a linha estar em estado de lotação, ou seja, não dependia dos horários de pico para isso acontecer.

Em meio a essas experiências, o morador relata que o descaso da prefeitura com o transporte público em seu bairro é recorrente. “A gente tem duas linhas aqui dentro do bairro que é a 253F, que todos os anos a gente tem que ficar brigando porque eles queriam até tirar daqui a linha, dizendo que teria que otimizar”, conta Lima, afirmando que além disso, o índice populacional no bairro não para de crescer, o que aumenta ainda mais a demanda por um transporte público que atenda a demanda de moradores.

Ele faz questão de compartilhar a indiferença que sente em relação aos órgãos públicos que deveriam pensar o planejamento da vida nos territórios periféricos. “Se vê que ninguém tem proposta para transporte público, não tem plano pra periferia”.

O morador ressalta que a produção desses dados pode ser uma oportunidade para cobrar medidas mais efetivas, prevendo que mostrará mais a realidade do bairro. “Eu acho que p formato desse aplicativo é uma coisa muito boa, porque você não tem nos meios oficiais dados para refutar inclusive questões que a própria Secretaria Municipal de Transporte coloca, não existe nada pra gente refutar nesse sentido, então essa produção de dados independente tem que divulgar mais pra comunidade”, finaliza.

Jovens querem construir primeiro laboratório de informação de Parelheiros

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Como acessar informação sem direito à internet? Como construir informação e contar sua própria história sem uma infraestrutura de equipamentos para isso? A proposta de criar uma Lab de Acesso à Informação na quebrada nasce a partir destes e de outros questionamentos. Conheça essa história.

Créditos: coletivo ArquePerifa

Segundo dados da Fundação Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), 7,5 milhões de pessoas no Estado de São Paulo com mais de 10 anos nunca acessaram a internet, o equivalente a 23% dos paulistas. Então que tipo de informação é produzido no ambiente virtual onde existe uma generosa parcela da população é impedida de participar das discussões nas plataformas digitais?

Essa foi a pergunta que mexeu com as integrantes do coletivo Arqueperifa, iniciativa criada por jovens comunicadoras que fazem projetos de impacto social nos distritos de Parelheiros e Marsilac. Juntas, elas pretendem através de uma campanha de financiamento coletivo, criar o primeiro laboratório de informação de Parelheiros.

A ideia de criar o projeto surgiu durante uma formação pedagógica, onde as integrantes do Arqueperifa visualizaram um problema em seu território: a precarização do acesso à informação, e como solução desse problema, as jovens começaram a sonhar e prototipar a criação de um Laboratório de (In) formação e Inovação, construindo um espaço físico para produção e difusão de conhecimento nos territórios de Parelheiros e Marsilac.

A partir de uma série de pesquisas nos dados demográficos da cidade de São Paulo, as jovens comunicadoras descobriram que juntos os distritos de Parelheiros e Marsilac somam ¼ da extensão territorial da cidade de São Paulo, com cerca de 200 bairros, dos quais 70% são irregulares. E uma dessas consequências de moradias irregulares é o fato de o distrito ter o menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do município.

Segundo Julia Biaggioli, 21, uma das integrantes do Arqueperifa, a internet de fibra óptica só chegou no meio da crise gerada pela pandemia. “Aqui a internet de fibra óptica chegou agora, chegou no meio da pandemia, então a gente levou essa problemática”, explica ela, argumento e expondo um dos motivos centrais para consolidar a ideia de criar o laboratório de informação no território.

Diante desses dados e relatos de suas vivências no território Júlia apresenta outro questionamento que o grupo trouxe no processo de elaboração da ideia. “Que informação é essa que o publico ta acessando? Eles, os moradores têm televisão coisas assim, mas qual é a informação que está sendo passada?”, questiona ela.

Através dessas descobertas, as integrantes do coletivo fazem uma analogia com o fato histórico de ser morador da periferia e conviver em meio às desigualdades. “A nossa realidade é de gente que tem sempre que estar correndo atrás do pão, não tem tempo pra parar pra pensar, pra articular, não tem mano. O pão é pra ontem, a comida é pra ontem, a água é pra ontem”.

Após elaborar o projeto de construção do laboratório de informação, as jovens se depararam com as primeiras dificuldades no caminho, onde a principal é o fator financeiro. “Na prática o maior desafio é o dinheiro mano”, afirma Julia.

Para que esse sonho continue sendo algo palpável na vida das jovens que fazem parte do coletivo, elas decidiram investir tempo, dedicação e conhecimento na produção de comunicação com linguagem periférica, para construir uma campanha de financiamento coletivo, em busca de viabilizar fundos para consolidar a ideia. “É por isso que a gente quer ter esse financiamento coletivo, pra gente se organizar, porque tem muita coisa pra oferecer, projetos que já tá no papel e já tá pronto pra ser feito”, relata Júlia.

 Como será o Laboratório de Informação da Periferia?

 Após a locação de espaço e montagem de infraestrutura, o espaço do laboratório de informação da periferia será localizado na região central de Parelheiros. O coletivo Arqueperifa entende esse ponto do bairro como um local estratégico do território para acessar o maior número de moradores possível.

Ali é onde ficam a igreja central, os comércios, e a gente quer que fique na zona central, que é por onde todas as pessoas das pontas do distrito acessam, desde o Marsilac até a Barragem, até quem vêm do outro lado, normalmente as pessoas passam por ali, então a gente quer começar nossas ações pela área central de Parelheiros”, explica Laura da Silva, 19, integrante do coletivo que mora no Jardim Embura, um dos bairros que fazem parte do distrito

Laura é comunicadora, produtora cultural e estudante de geografia. Segundo ela, estar no centro de Parelheiros é estratégico para acessar mais pessoas. “A centro de Parelheiros é uma região que conta com mais internet, por ser um local que tem bastante comércio, então a gente pretende ter um pacote de dados maior, para que as pessoas possam utilizar a internet para trabalho e estudo”, diz.

As jovens pensaram que a partir da infraestrutura do laboratório de informação, será possível criar produtos comunicativos como exposição fotográfica, podcast, documentário, fanzines, lambe, grafite, a partir das vivências dos moradores do território, mas para isso sair do papel, elas já possuem um orçamento para viabilizar a compra de equipamentos para sustentar a produção dos conteúdos.

No interior do laboratório, o coletivo projeta que os usuários tenham acesso a computadores, espaço de Cowork para trabalho, estúdio de foto e vídeo, ilhas de edição, além de um espaço dedicado ao desenvolvimento de novas tecnologias.

Mesmo com essa aderência ao universo digital, Laura, aponta uma característica importante do laboratório, que segundo ela, é preciso produzir informações offline antes do digital, incentivando a literatura periférica e trazendo formações para jovens. “Neste espaço vai ter uma biblioteca. Essa biblioteca vai ter materiais, livros, textos de autores que são de Parelheiros, Marsilac, ou conteúdos que falam sobre esse lugar e trazem conhecimentos importantes sobre esses territórios”.

Uma das integrantes do Arqueperifa, Luara Angélica, 20, que integra outro coletivo da região, o Juventude Politizada de Parelheiros, faz uma reflexão sobre o impacto de dialogar com a juventude do território. “Eu acho imensurável o impacto que vai ter na vida dos jovens. Essa juventude que já está voando, vai voar ainda mais”.

Após enfatizar o valor do projeto para os jovens de Parelheiros, Laura lembra de um fato importante na história do coletivo, que logo no início da pandemia do novo coronavírus começou a produzir e compartilhar os efeitos da pandemia na quebrada, por meio do podcast: o lugar de quarentena. “A gente decidiu falar na internet como o nosso território estava vivendo essa pandemia, e falar disso, expor isso é trocar com pessoas sobre isso, eu acho que já impactou e impacta a vida de vários jovens das várias pessoas que ouviram nosso podcast”, conclui.

Inteligência periférica: juventude periférica segue se reinventando

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 Na primeira reportagem da série “Inteligência Periférica”, contamos sobre o contexto histórico do desemprego em São Paulo e compartilhamos um pouco da história do DJ Dagoma. Nessa segunda reportagem da série, você vai conhecer a trajetória do jovem Josiel, morador do distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, que nos últimos nove meses precisou criar três formas diferentes de gerar renda.

Atuando como entregador, Josiel Santo, 18, trabalha no mercado informal há cerca de quatro anos. O jovem mora no Parque Bologne, bairro pertencente ao distrito do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, e seu principal instrumento de trabalho era a sua bicicleta, que no momento encontra-se quebrada. Era com ela que ele circulava pela cidade para garantir parte da sua renda.

Josiel já trabalhou com muitas coisas, mas a decisão de iniciar no ramo informal se deu principalmente por ser mais lucrativo. “Me chamaram para sair a noite e eu estava sem dinheiro, só tinha 5 reais. Eu pensei: ‘eu vou precisar de mais’. Eu fui no mercado, comprei uma caixa de pastilha e fui vendendo. Quando a caixa acabou eu já tinha 25 reais livre só para mim, e aí eu não parei mais”, conta o jovem que começou no trabalho informal como vendedor ambulante.

Antes da pandemia da covid-19, Josiel circulava pela cidade produzindo poesias. Estudava música, grafite e elementos do hip hop no Centro Cultural Mocambo, na zona sul de São Paulo. A partir da sua arte, era convidado para cantar e recitar em alguns eventos. Em 2019, por exemplo, interpretou um dos personagens da websérie Pense Grande Sua Quebrada. Com a pandemia, tem feito trabalhos esporádicos na região.

“Eu trabalhei um tempo com a pandemia e agora eu faço uns bicos para ajudar a comunidade. Os bicos que eu faço para comunidade é carregar uma areia, uns blocos para os vizinhos, ajudar uma tia ali com a sacola descendo da perua. Sempre querendo ajudar sabe.”

De vendedor ambulante a entregador, o jovem acredita que existem formas mínimas do poder público contribuir com a população que garante seu sustento através do mercado informal: “Primeiramente deixando os marreteiros trabalharem nas estações, e fazendo mais ciclofaixa para o ciclista”, compartilha Josiel.

Após nove meses do início da quarentena, Josiel passou a trabalhar com a produção e venda de máscaras de tecido. “Assim, pelo fato da quarentena algumas obras parou, como o ramo de máscara de proteção para o covid-19, eu estou na produção de máscara. A reprodução de máscara tá bombando, agora eu virei costureiro”, conta o jovem que iniciou o trabalho com essa nova demanda em outubro de 2020.

Josiel Santo. Foto: arquivo pessoal

Cor e o CEP influenciam o mercado de trabalho  

PNAD Contínua – Divulgação: Julho de 2020 / Elaboração: Flávia Lopes – Info Território

Para muitos moradores das periferias, a cor da pele e o endereço de onde vêm, está diretamente ligado às oportunidades que encontram disponíveis no mercado de trabalho com carteira assinada, considerado o mercado formal.

Gênero, orientação sexual, raça e classe social são fatores históricos utilizados como mecanismo de marginalização nas relações de trabalho. O núcleo voltado para estudos sobre o Trabalho no CEP – Centro de Estudos Periféricos, grupo de pesquisadores da Unifesp, aponta que esse cenário de esquecimento de parte da população acontece há muito tempo.

“O Estado brasileiro nunca promoveu políticas de reparação histórica para a população negra, que sempre se virou sozinha ou com o apoio dos seus iguais, seja na construção de moradia ou fazendo algum bico, como conta o livro Cidade das Mulheres, de Ruth Landes. Eram mulheres negras antes escravizadas que foram para as ruas de Salvador vender quitutes para sobreviver no pós abolição”

compartilha os pesquisadores Cleberson da Silva, Nataly de Oliveira, Egeu Gomez, e Matheus de Carlos do núcleo de Trabalho do CEP.

A situação não é diferente para quem trabalha como vendedor ambulante, entregador, ou em outras áreas do trabalho considerado informal. DJ Dagoma, que compartilhou sua trajetória no primeiro episódio da série “Inteligência Periférica”, conta que já sofreu preconceito em questões de trabalho, inclusive no trem.

“Geralmente as pessoas quando entra assim para vender, elas já enrolam a mão na bolsa. Mas sabe o mais foda que eu vejo? As mulheres enrolam a mão na bolsa e fica piano, mas o cara branco que está engravatado, todo bonitinho ali, é o cara que é o batedor de carteira, tá ligado. Eu sofro um preconceito de um lado, mas ela está do lado de um ladrão. Então tipo é muito louco isso aí. Eu sofro no trem, já sofri em outros trabalhos, tá ligado!? Eu sofro preconceito sim, por eu ser preto”, relata o arte educador e vendedor ambulante.

A costureira Valdirene Rodrigues, moradora de Sapopemba, região leste de São Paulo, acredita que sua cor não tem relação com suas relações de trabalho. “Sou de Pilão Arcado, Bahia e minha família toda é de lá. Me considero uma mulher parda, mas para o meu ponto de vista, assim não tem tanta diferença, acho que a cor não interfere no trabalho não”, compartilha a costureira que também nos contou como tem sido para ela esse momento da pandemia em relação ao seu trabalho. Valdirene foi uma das entrevistadas da série “Inteligência Periférica”.

“Eu trabalho com o público e nem todo público gosta de um neguin né.” 

Josiel do Espirito Santo

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Para os pesquisadores do núcleo de Trabalho do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp, a ausência de políticas públicas de qualificação e formação para o mercado de trabalho voltado a adolescentes e jovens negros, prejudica o acesso e o desenvolvimento de uma carreira.

“As vagas de trabalho para quem tem pouca qualificação formal, ou uma qualificação tardia, são geralmente mal remuneradas, o que resulta no desejo de tentar alguma atividade que possa remunerar melhor”, finaliza o núcleo de estudos.

Já existia um desemprego e desalento na população negra antes da pandemia. Porém, a pandemia acarretou em agravamento do desemprego e das dificuldades econômicas, sobretudo para as mulheres negras, que são maioria dentre os/as trabalhadores/as informais. Some-se a isso que ainda há resistência da sociedade em regularizar algumas atividades e assim garantir direitos básicos para esta parcela da população, tenhamos como exemplo a PL das domésticas que gerou grande descontentamento das elites.

Núcleo de trabalho do Centro de Estudos Periféricos 

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Inteligência periférica: como trabalhadores “informais” sobreviveram ao desemprego e à pandemia em 2020

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Na primeira reportagem da série “Inteligência Periférica” contamos sobre o desemprego nas periferias de São Paulo com uma análise histórica do núcleo de pesquisa do Centro de Estudos Periféricos e como esse cenário reflete na vida de um DJ, que durante a pandemia precisou parar de dar aulas para evitar aglomerações, e após alguns meses voltou a gerar renda com o trabalho de vendedor ambulante nas linhas de trem da CPTM em meio à pandemia de covid-19.

Diante das crises de desemprego, falta de segurança física, emocional e financeira, trabalhadores informais têm usufruído da sua inteligência estimulada pela necessidade de sobrevivência e causada pela ausência de direitos sociais, para adaptar estratégias de geração de renda sem apoio do governo, cenário que existe desde antes da pandemia de covid-19.

Um dos impactos sociais gerados pela covid-19 nas periferias e favelas de São Paulo, logo nos primeiros meses da pandemia, foi a necessidade do fechamento parcial ou total das atividades empresariais de iniciativas fomentadas por micro empreendedores, além dos trabalhadores informais, expondo a fragilidade das condições de trabalho desses profissionais que há muito tempo lidam com a falta de assistência do poder público.

O trabalho autônomo e informal não é algo novo para muitos moradores das periferias do país, que na ausência de vagas de trabalho com carteira assinada, com o sucateamento das relações de trabalho, e o racismo institucional e estrutural, criam suas próprias possibilidades para gerar renda. Muitos encontraram no mercado de trabalho informal uma solução para não depender do emprego com carteira assinada.

Uberização da vida, evolução do bico, empreendedor periférico, desocupados e trabalhador autônomo são alguns dos termos que tentam ilustrar o cenário de precarização das relações trabalhistas no qual vivem essas pessoas. Mas afinal, desde quando essa realidade passou a fazer parte da vida de quem mora nos territórios periféricos? 

Contexto Histórico: o desemprego nas periferias de São Paulo

Desde 1990, quando ocorreu um forte processo de desindustrialização na capital paulista e muitas vagas de trabalho e emprego desapareceram em decorrência da guerra fiscal, os trabalhadores das periferias enfrentam a ausência de políticas públicas de geração de emprego e renda, especialmente na cidade de São Paulo.

Essa análise histórica foi realizada pelo grupo de pesquisadores Cleberson da Silva, Nataly de Oliveira, Egeu Gomez e Matheus de Carlos, que atuam no núcleo de trabalho do CEP – Centro de Estudos Periféricos da Unifesp, iniciativa que propõe centralizar o seu olhar acadêmico e social para a produção de conhecimento sobre o cotidiano dos territórios periféricos.

“Não houve uma preparação dos trabalhadores que permaneceram na cidade para trabalhar em outras atividades que demandam um maior domínio da economia do conhecimento, e tampouco aos jovens que chegavam ao mercado de trabalho”, afirma o grupo de pesquisadores do CEP.

Com o agravamento da crise de desemprego, eles avaliam que para além de atingir adultos e idosos, sobrou para a juventude a tentativa de concorrer a uma vaga de trabalho formal em programas de primeiro emprego, como Aprendiz. “Muitas das oportunidades eram em empresas públicas como o Correio e Caixa Econômica Federal. Como as vagas não são suficientes, para a maior parte restou os chamados ‘bicos’ e diversas formas de trabalho precarizado”.

A ausência de assistência para as necessidades dos moradores dos territórios periféricos reflete diretamente nas formas que eles encontram para se reinventar e garantir uma renda no final do mês.

Segundo o Centro de Estudos Periféricos, a falta de oferta de trabalho próximo aos locais de moradia, resulta em enormes deslocamentos realizados diariamente pela população periférica.

“Uma das alternativas encontradas pelos trabalhadores das periferias foi criar as empresas de garagem. Uma garagem pode se transformar em um ponto comercial rapidamente para gerar renda para o proprietário do imóvel e complementar uma aposentadoria, ou para um aposentado iniciar algum negócio, mas os jovens também têm usado as garagens para montar salões de beleza, lanchonetes, cyber cafés, tabacarias, etc”, analisa os pesquisadores.

“Os trabalhadores da periferia encontraram o empreendedorismo como estratégia de sobrevivência e não como o ideal propagado por homens brancos dentro de um escritório.” Núcleo de Trabalho do Centro de Estudos Periféricos. 

O grupo de pesquisa dedicado a compreender as transformações sociais nas relações de trabalho explica que trabalho informal não significa ilegalidade. “Entendemos que o termo empreendedorismo está relacionado a quem trabalha de forma autônoma, por conta própria, seja sozinho ou em pequenos grupos, geralmente familiares. Comércio informal é aquele que se dá de maneira não regular quanto ao estabelecimento, no que é referente ao alvará de funcionamento, licenças e outras permissões, mas cujo produto comercializado não é ilegal ou oriundo do tráfico. O trabalho informal é aquele que não atende às leis trabalhistas vigentes”, finaliza. 

Pesquisa Seade – Janeiro 2020 / Elaboração: Flávia Lopes – Info Território

Correria hoje, vitória amanhã

O primeiro trabalhador informal que nós entrevistamos é o Paulo dos Santos, mais conhecido como DJ Dagoma. Ele atua como Dj, arte educador, e também vendedor ambulante dentro dos trens da CPTM. O Dj começou a trabalhar como ambulante a partir do convite de um amigo, que emprestou 20 reais para a compra da primeira mercadoria, isso ainda no início dos anos 2000. Na época, Dagoma trabalhava olhando carros no Cartório de Carapicuíba, região oeste de São Paulo.

“Ele me emprestou 20 reais, e a caixa de paçoca era 10 reais cada. Eu comprei duas caixas e comecei com duas caixas de paçoca. No final do dia eu tinha vendido 10 caixas de paçoca. E aí eu comecei a ir e estou até hoje. Ele faleceu já faz anos, e hoje eu estou aí, vai fazer 20 anos no trem, no mercado informal”

conta o Dj e arte educador, que por muitos anos teve o trabalho como vendedor ambulante sua principal fonte de renda.

Atualmente Dagoma mora na região da Luz, bairro central de São Paulo, mas nasceu e cresceu em Carapicuíba, zona oeste da cidade. O Dj e arte educador já trabalhou com carteira assinada, mas relata que encontrou no trabalho informal melhores possibilidades. “O que fez eu mudar é porque eu ganho mais do que eu trabalhar registrado. Porque registrado eu não ganho o que eu ganho, e eu vi que eu também posso ter MEI – Micro Empreendedor Individual, né!?”, conta o DJ.

“Eu vi que eu registrado recebia aquele salário no mês, eu pagava as contas e ficava duro. E tinha que esperar virar o mês para poder receber de novo, ou chegar no dia 20 para pegar vale. Então o que me fez mudar, quando eu caí dentro do trem, foi ver uma realidade totalmente diferente. Falei ‘mano, meu porto seguro financeiro’, tá ligado”, compartilha Dagoma.

A principal fonte de renda do Dj antes da pandemia do coronavírus era como arte educador: dando aula e tocando em eventos culturais. “Eu não estava mais indo muito para o trem. Estava mais só fazendo a arte, tocando, dando aula, e aí devido a pandemia brecou tudo, né!? Aí eu fiquei sem fazer minhas atividades. Eu ia para o trem de vez em quando, quando eu pegava promoção, e era difícil estar indo”, relata.

DJ Dagoma – Arte: Flávia Lopes

Para o arte educador, poderiam existir mais possibilidades de apoio pensando também na sua atuação artística: “Como eu vejo que o poder público pode ajudar a gente é na Secretaria de Cultura, para Casas de Cultura, promoção de eventos, isso eles podem ajudar, ajudar muito. Essa é uma ajuda que eles poderiam, abrindo os editais, e é isso”.

Com a divulgação e execução do Plano São Paulo pelo governo do Estado, alguns serviços não essenciais começaram a retomar as atividades com a capacidade reduzida conforme cada fase do plano de reabertura. Para o DJ Dagoma, a reabertura trouxe algumas mudanças.

“Eu voltei a tocar, aula não e eventos também não. Agora eu estou fazendo live para os grupos que não tem DJ, aí eu dou suporte como DJ para os grupos, né? E estou fazendo umas lives eu mesmo individual. O trem moio, não tá dando pra trabalhar mais no trem. E é isso né mano, vamos seguindo né, quem não luta tá morto”

compartilha o DJ.

Nesse período, Dagoma começou a participar das lives depois que parou com as vendas no trem, que no início da pandemia estava dando retorno.

“Até eu entrei e comecei a ganhar um dinheiro com as promoções que eu tava buscando em umas docerias, como aqui no centro, fora do centro. Mas aí agora os cara reforçou a segurança e não tá dando mais para trabalhar. Hoje você não vê muito marreteiro dentro do trem, né. Você nem vê na real marreteiro, né. Isso é foda né mano, porque era o ganha pão não só o meu como de vários”, conclui Dagoma.

DJ Dagoma é um dos exemplos de vários trabalhadores que mesmo com a pouca ou nenhuma assistência do Estado, buscou caminhos para continuar seu corre e sua luta. Na próxima reportagem da série “Inteligência Periférica”, você vai conhecer o Josiel, jovem morador da zona sul de São Paulo que assim como Dagoma, continua construindo seu próprio caminho para gerar renda, fortalecendo a comunidade e a si mesmo. 

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Para realizar Enem, jovens das periferias precisam estudar, trabalhar e sobreviver à pandemia

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 Como a pandemia de coronavírus afetou a rotina e a saúde mental de jovens moradores de territórios periféricos que estão se preparando para realização da prova do ENEM?

Willian Souza Santos, 19, morador do Capão Redondo e Bianca Nobre, 17, moradora do Alto do Riviera no Jardim Ângela.

Divididos entre os estudos, trabalho e a nova rotina moldada pela pandemia do novo coronavírus, a juventude periférica vem encontrando uma série de desafios para se manter firme no propósito de realizar o Enem e ingressar no ensino superior por meio do Prouni, programa do governo federal que garante ao estudante de escolas públicas a possibilidade de aumentar as chances de conquistar vagas em universidades públicas e bolsas em instituições privadas de ensino.

Mas e a saúde mental dessa juventude periférica, como anda? Qual é o impacto de um bom temperamento emocional para realizar a prova do Enem? Conversamos com estudantes que estão passando por esse processo árduo de se dividir entre estudos, trabalho e família, para aprofundar essa discussão sobre o Enem e o acesso ao ensino superior para quem mora nas periferias.

Um desses jovens é Willian Souza Santos,19, morador do Capão Redondo. Ele estuda em casa para realizar as provas do Enem e conta que já está há três anos tentando ingressar em uma universidade pública. “Já tô há três anos tentando o Enem, meus pais vieram da Bahia atrás de uma vida melhor em São Paulo, e eles não chegaram a terminar o fundamental. Minha mãe é secretária e o meu pai é carpinteiro, então eu seria o primeiro a conseguir”, conta ele, relatando o histórico profissional e educacional da família.

O estudante comenta sobre seu nervosismo com os cenários de futuro e fala sobre suas angústias. “Minha expectativa para o vestibular é preocupante, até porque pelo momento em que estamos vivendo, já existe a insegurança por ter vindo de uma escola pública, ser negro, estou nervoso. Eu quero fazer psicologia em uma Federal, especificamente, a Unifesp por gostar da grade curricular deles”, comenta.

O jovem faz questão de descrever como a pandemia afetou sua rotina de estudos e suas motivações para continuar estudando sozinho. “Eu quis estudar sozinho por não aguentar mais fazer cursinho, visto que já fiz dois anos. Eu estudo a partir das áreas que tenho mais dificuldade, que no caso é matemática. Sigo um cronograma e tento estudar todos os dias, eu uso o celular, principalmente o YouTube com vídeo aulas gratuitas. A pandemia afetou a minha rotina, porque eu estudava principalmente nas bibliotecas públicas, onde me dá mais concentração, além de todo adoecimento mental que causou em mim e no bairro também”. 

Willian Souza Santos,19, morador do Capão Redondo.

Vestibular e saúde Mental 

Estressado com a chegada e os preparativos para o vestibular, o estudante relata o desgaste da sua saúde mental. “O vestibular me causa nervosismo e muita pressão, e eu sei que não é só comigo, mas também as pessoas ao meu redor, as pessoas que moram onde eu moro e também querem entrar em uma universidade pública. A pandemia só veio para agravar isso, porque é a primeira vez que vamos lidar com uma prova tão importante como o Enem em um cenário tão turbulento e incerto, que é difícil até pensar na prova”.

Ele acredita que uma boa saúde mental é fruto de um estado de bem estar emocional. “Saúde mental para mim é você se sentir mentalmente bem, conseguir lidar com as coisas de forma tranqüila e sem estresse”, conta.

Willian faz questão de enfatizar que tudo o que está passando tem uma forte ligação com a forma como o Governo lida com as políticas públicas ligadas à educação e a juventude. “O Estado parece não se importar muito com os jovens estudantes e trabalhadores, especialmente quando se trata de saúde mental ou o processo de estudo para o Enem em ano de pandemia. Isso fica claro quando vemos a propaganda feita pelo MEC, em que a mensagem transmitida sugere que nós temos que dar um jeito de estudar de qualquer forma e quem não tiver recursos, como internet, computador e livros, já é excluído do processo seletivo antes mesmo de fazer a prova. Em virtude do desdém que o governo tem para com os jovens pobres, pretos e periféricos que nem eu por exemplo.”

“Os cursinhos populares nos impulsionam a continuar nessa luta de ocupar as faculdades públicas que é nosso lugar por direito”

A moradora de Poá Stefany Santos Lourenço,18, estuda no cursinho popular Uneafro Brasil. Mesmo com o suporte dos educadores da organização de educação popular, ela compartilha algumas inseguranças sobre o futuro da sua trajetória como estudante universitária. “Estudo durante três anos, realizei a prova do Enem duas vezes, quero fazer História na USP, mas sigo muito insegura, mesmo sendo um sonho sempre tenho a sensação de que não vou conseguir”, afirma ela, enfatizando que todos os seus planos foram afetados: “desde pequenos até grandes planos foram afetados e quando isso acontece vem o sentimento de frustração e nossa saúde mental fica em estado crítico”.

A estudante comenta como a pandemia afetou sua rotina de estudos, e as dificuldades de conseguir em casa um espaço e estrutura para estudar para o Enem. “Antes da pandemia eu tinha um planejamento de estudos para o ano inteiro e com a chegada da pandemia precisei trabalhar mais e não consegui acompanhar o ritmo dos estudos que eu tinha antes e em casa dificilmente consigo estudar. Geralmente o espaço que tenho é na cozinha onde todos transitam, fazendo muito barulho e não consigo me concentrar, tudo se tornou mais difícil com o distanciamento”.

Lourenço finaliza falando sobre a importância do cursinho na sua vida e no território. “Os cursinhos populares são de enorme importância nos impulsionando a continuar nessa luta em ocupar as faculdades públicas que é nosso lugar por direito, a Uneafro me ajudou a ter outra visão de mundo, não somos apenas um cursinho, fazemos um trabalho com a autoestima, militância e vida, e é de extrema importância nas periferias que nós jovens se sentimos reconhecidos e com pertencimento de fazer de algo”.

Outra estudante de cursinho popular é a Bianca Nobre, 17, moradora do Alto do Riviera no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. A aluna da Rede de Cursinhos Populares Ubuntu relata suas dificuldades de estudar em casa. “Para mim, as maiores dificuldades de estudar em casa é a falta de contato humano né, aquele calor da sala de aula, isso fez eu me sentir muito só, e perder bastante motivação, eu também tive que me adaptar a um modelo de ensino à distância que ele requer mais disciplina, e era uma disciplina que eu costumava ter mais em sala de aula, então esse tipo de estudo online também é um pouco dificultoso pra mim”, compartilha Bianca.

Outro ponto bem importante descrito pela estudante aponta a desigualdade social sobre a infraestrutura para estudar dentro de casa, tanto no contexto familiar, quanto no acesso a materiais, e enxerga isso como privilégio quando pensa em seus amigos e até no seu território. “Eu tenho sorte de tanto minha família, meus amigos, e o cursinho também me apoiarem bastante nessa jornada, mas eu vi relatos e situações de pessoas que deixaram de estudar, tenho acesso à internet, computador, celular, e me sinto bem privilegiada quanto a isso, porque eu sei que não são todas as pessoas aqui da periferia que tem, mas mesmo assim eu acho difícil, não substitui a sensação de sala de aula, é difícil me adaptar a ficar olhando pra uma tela no vídeo e não me distrai, não me sentir só”.

A desmotivação de Bianca para com os estudos vem sendo combatida com o apoio da Rede Ubuntu, segundo ela, o cursinho tem ajudado a seguir em frente e se sentir mais forte nesse processo. “Eu me desmotivei de um tempo pra cá, então eu mantive o estudo, só que não no mesmo ritmo, não na mesma constância de antes, não todo dia por exemplo, não o tempo todo, igual era. Agora eu tento manter o que eu consigo, tento me respeitar, respeitar minha cabeça, só esperando que isso tudo passe, e eu consiga alcançar meu objetivo, o cursinho oferece muito apoio amigo, um apoio emocional, e é isso que me impede de desistir dos meus sonhos, os professores de lá também entendem o sofrimento do estudante, que eles já passaram por essas situações, e agora a pandemia potencializou essa insegurança, essa ansiedade, essa frustração”, conta a estudante.

Bianca finaliza comentando a importância do cursinho não só neste momento, para sua vida inteira. “Foi uma importância gigantesca, imensurável, porque além de professores eu encontrei pessoas que me inspiram diariamente, e eles acreditam no meu sonho junto comigo, então eu não tenho o que falar, e mesmo sabendo que eles também estão passando por dificuldades, porque não só os alunos, mas os professores também ficam mal nesse tempo, eles ainda estão aqui presente, tão conversando, isso eu acho que é essencial, ainda mais agora”.

Bianca Nobre, 17, moradora do Alto do Riviera no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo.

“Os alunos não são iguais aqueles do comercial do Enem né, a gente tem uma realidade muito dura” 

A coordenadora do cursinho popular Ubuntu, Agnes Roldan, 20, descobriu a existência da iniciativa em 2017, ano no qual, a universitária ainda estava cursando o ensino médio e hoje cursa Ciências Sociais na FMU.

Ela lembra como foi esse processo de sair do ensino médio e ingressar na universidade com apoio do cursinho popular. “Em 2017, no meio do ano eu ainda era estudante do ensino médio, descobri que existia um cursinho na periferia de graça. Isso não fazia muito sentido na minha cabeça, mas eu quis saber como era, onde era, recebi informações de como chegar no cursinho e cheguei. Um dos meus colegas de trabalho hoje é o Renato, que me recebe e me abraça, isso é bem marcante pra mim”.

Agnes recorda o importante fato de que após dois anos de ingressar como aluna, ela foi convidada para fazer parte do grupo de coordenação do cursinho. “Estudei o resto do ano na Ubuntu e ingressei na faculdade depois, os ajudei com algumas coisas de entrevista no ano seguinte, aí em 2019, o Renato, o mesmo que me recebeu em 2017 para ser aluna, me liga perguntando se eu não quero entrar na coordenação, e essa vai ser minha historia com o cursinho, muito próxima, quase uma família, e tem essa ligação de ser aluna e depois ser coordenadora”.

Em meio à pandemia, a coordenadora relata que foram necessárias uma série de adaptações no planejamento geral do cursinho e que medidas foram tomadas para de alguma forma aproximar as pessoas dentro da internet.

“De repente a gente precisa parar esse planejamento e mover tudo para uma realidade online, e na realidade online é difícil você manter essa afetividade na educação, o contato próximo, e aí a gente passou a tentar concertar isso, a gente faz lives aos sábados para eles terem aulas com os professores do cursinho, na semana eles estudam na plataforma do descomplica , tem uma equipe de redação para corrigir redação pra eles, além disso, a gente faz outras atividades”, conta Agnes.

Ela revela que neste momento, os alunos da Rede Ubuntu estão usufruindo de parcerias importantes para manter os sonhos de acessar a universidade acesso e energizados. “Eles estão passando por uma série de diálogos com um grupo de pesquisadores sobre como vai ser o futuro do trabalho, e como eles olham esse futuro, e teve parceria com a 4g Pra estudar, que ajudou demais a gente, pois os alunos puderam realmente ter acesso à internet e estudar e se concentrar nos estudos”, explica a jovem, afirmando que com a aproximação da data do Enem vai rolando um nervosismo entre os alunos do cursinho.

A coordenadora comenta sobre as propagandas que passa na televisão a respeito dos estudantes e fala sobre como é a realidade. “Os alunos não são iguais aqueles do comercial do Enem né, a gente tem uma realidade muito dura, muitos alunos estão trabalhando, fazendo jornada dupla, tripla, no meio de uma crise sanitária, isso gera tristeza, isso gera desesperança. Então você percebe que eles querem muito continuar, querem muito realizar o sonho de poder entrar em uma faculdade, mas o momento vai desanimando”, analisa.

Embora a coordenadora do cursinho popular enfatiza como eles estão cuidando e fortalecendo os seus alunos, ela prevê um futuro difícil para os estudantes de escolas públicas que moram nas periferias e favelas. “O cenário é difícil, o cenário daqui para frente prevê muita evasão escolar, infelizmente é uma coisa que eu consigo enxergar, é a relação que o governo está tendo com os alunos de escola pública nesse momento, ele prevê uma evasão escolar, uma evasão que já está acontecendo na realidade, por conta de um ensino remoto que não foi pensado nos alunos pobres né, que são a maioria de escolas públicas”.

Consciente do estado de abandono dos estudantes das escolas públicas na periferias, Roldan fala sobre como a Rede Ubuntu tem pensado a saúde mental entre os estudantes nesse momento. “É um coletivo que vem pensando essas ações, enquanto rede a gente fez algumas rodas de conversa com eles, pra pensar saúde mental, para trabalhar essa esperança, pra dizer estamos aqui, somos Ubuntu, e tem dado certo, tem sido muito gostoso esse momento, pra cuidar da saúde mental dos alunos, que é uma coisa que realmente pesa muito, na hora de você prestar vestibular”.

Agnes finaliza comentando sobre os posicionamentos do Estado referente à educação e a saúde mental dos jovens que estão estudando para o vestibular. “Se a gente vivesse no mundo ideal, a gente teria o estado que pensasse nas desigualdades, o estado deveria ter feito isso, pensando nos alunos, nos recortes dos alunos, pensando nos professores que estão tendo que trabalhar o dia inteiro, que tiveram salário cortado nessa época, então com acesso aos dados que ele tem, e com um pouco mais de pensamento nas desigualdades sociais que a gente tem, o estado poderia ter feito um serviço mais efetivo”, argumenta.

Olhando para esse cenário de desigualdade sociais na educação, avanço no número de casos críticos de saúde mental e escassez de direitos digitais, a psicóloga Mayra Ribeiro, 40, integrante da Uneafro Brasil, explica o que está acontecendo neste momento de pandemia com a juventude periférica e enfatiza que ela passará a viver várias transformações e pressões. “O que ta acontecendo com o jovem, que faz o vestibular, é ele tá se sentindo mal, deprimido, ansioso, isso não é doença mental, tá de boa, que bom que ele tá sentindo tudo isso, enlouquece ai, é a hora pra isso mesmo, vai ficar tudo bem, isso não é doença mental, é uma ansiedade natural, doença mental é realmente outra coisa”,

A psicóloga comenta como esse é o momento de romper com o tradicional jeito de utilizar de outros meios e formas para adquirir conhecimento e se fazer conhecimento. “Os próprios conteúdos online vão facilitando essa nova maneira de aprendizagem, através disso, dessa pessoa mesmo, ir lá, pegar o conteúdo que o professor colocou no Google Class, e dali ele mesmo ir procurando, e olhando, e que eles também passam a ressignificar esse lugar onde vivem, eu acho que também tem esse momento de ressignificar isso, saber que às vezes você vai conseguir ler, acompanhar o YouTube e tudo mais, na questão da concentração e do barulho, porque tem muita gente lá, é de novo não pensar no método tradicional, é pensar aqui, o foninho, a leitura, eu a tela, e um cantinho”.

A psicóloga fala sobre como a insegurança afeta os estudantes e ressalta o papel dos cursinhos surgirem como espaços de quilombo. “O jovem negro, como todo jovem ele é inseguro, o racismo pode fazer que ele fique ainda mais inseguro, mas não que isso tenha como ser mensurado, eu diria que a insegurança é complicada nesse momento, de mudança de vida que é o vestibular, então o cursinho popular é a ferramenta ancestral que fez o desenvolvimento da população negra, funciona pela diáspora, organizada em movimentos, como a ferramenta do quilombo, a periferia é aonde todos os negros foram alocados, por conta do racismo espacial, então o que eu acho dos cursinhos e a estrutura, é a única estrutura que até agora a gente conhece, que foi capaz de transformar a vida dos negros de vez até agora”.

Atenta aos impactos causados pela inexistência de políticas públicas que cuide da saúde mental da juventude, Mayra comenta sobre as posições do governo neste momento. “Eu acredito que nesse momento esse governo não tem nenhuma preocupação com a educação, eles são assumidamente que acreditam na força do braço, então qualquer coisa de achar que eles estão incentivando a educação é pura ilusão, porque eles falam abertamente que não ligam. Acredito que todos os jovens que estão prestando vestibular, ainda mais jovens de quebrada, têm plena consciência que na quebrada dele ainda tem problemas maiores a serem resolvidos, e que precisam ser pensados primeiro, antes da política pública da saúde mental dele, antes de estar realizando um sonho, importante lembrar que ainda a entrada para universidade, é a realização de um sonho”, aponta ela.

A psicóloga encerra deixando uma mensagem a todos que estão na caminhada de ingressar na universidade e no mundo acadêmico. “É sempre importante que essa pessoa que tá tentando ingressar na faculdade, entenda que ela tá realizando um sonho, e que vai ser muito bom, e por mais que seja uma jornada difícil, a jornada da intelectualidade é uma das mais bonitas que têm escolher viver sobre o pensar, sobre o ler, sobre ajudar as pessoas, enquanto se faz isso, através de pesquisa, artigo, entre outras coisas, é um dos maiores privilégios que alguém pode ter então boa sorte, se joguem”.

Por que falar de política é tão chato?

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 Sabemos que política é tudo que se faz na cidade, política não é somente eleição, os três poderes ou debates exaustivos de quatro horas. Política é comprar um pão e perceber que está caro, é mandar os filhos estudarem, é usar o SUS. Somos seres políticos e fazemos política o tempo todo, então por quê falar disso é tão chato?

Lutas estudantis, 2018 – Foto: João Victor Santos

Ao fazer essa pergunta eu me recordo de toda minha trajetória dentro da política, e até do que isso mais tarde influenciou nas minhas decisões e em como eu me enxergava. Sabemos que política é tudo que se faz na cidade, política não é somente eleição, os três poderes ou debates exaustivos de quatro horas. Política é comprar um pão e perceber que está caro, é mandar os filhos estudarem, é usar o SUS. Somos seres políticos e fazemos política o tempo todo, então por quê falar disso é tão chato? Já ouvi essa pergunta muitas vezes… 

Mais recentemente andando de Uber eu conversava com o motorista, foi uma conversa incrível e que me dizia muitas coisas sobre a população trabalhadora, ele sabia que era errado até mesmo ter eleição numa pandemia, ele repetia as frases que transmitiam decepção, contava histórias sobre parlamentares que só causavam indignação e me perguntou se eu pensava que era possível fazer valer as leis, se era possível algum candidato realmente honrar seus deveres. 

É neste momento que eu quis ouvir mais, eu queria entender e compreender as dores de ser um trabalhador informal numa pandemia em meio às eleições, e era nítido que haviam muitas informações na cabeça dele que causavam confusão, que demonstravam uma imensa decepção e que o faziam não se sentir representado. Ele não é o único, neste 2⁰ turno tivemos um número enorme de votos nulos, brancos e abstenções totalizando mais de três milhões.

Então todas essas pessoas são horríveis? Eu não vejo assim. Me lembro muito bem que cresci em partido e isso me gerou mais tarde um certo distanciamento além de críticas que carrego até hoje, e nas primeiras vezes que eu expus o que pensava fui ferozmente atacada por pessoas que estavam defendendo seus partidos, de fato não existiu um diálogo e aqui quero deixar bem claro que não é sempre assim, contudo essas situações e esse olhar da população de que “político é tudo igual” não surge à toa, é uma construção e muitos anos de discurso, de desilusão e de sofrimento da classe trabalhadora.
A periferia sempre sofreu, sempre sangrou, sempre foi violentada e ela entende isso, mas disseram para nós que a meritocracia existe, também disseram que basta eu lutar. Nada é tão simples e na política é igual, ter conhecimento de como funciona sua vida te gera muitas dores, ardores e te dá um poder imenso. Graças aos anos em meio a política eu entendi muita coisa, eu dialoguei de muitas formas e pisei em lugares que nunca pisaria, essa é uma responsabilidade que decidi assumir.
Então falar de política é desgastante porque fomos ensinados a pensar que a política tá isolada, que a cidadania mora longe de nós e que parlamentar “só rouba”. Falar de política é chato porque entendemos ela como algo à parte, como fruto de brigas e como fruto de profundas tristezas.

É possível mesmo assim construir diálogos?

Sim, durante aquela minha conversa numa viagem eu estava dialogando com outro trabalhador, eu não precisei de muita coisa pra isso e não houve nenhum tipo de briga durante…

A população quer viver, ela mesmo em meio a essa desesperança olha pro Estado e tenta acreditar, ela ainda quer e precisa falar. Somos nós que temos que ouvir os nossos, as nossas urgências. Nenhum trabalhador quer ou pensa em destruir o lugar onde mora votando em um representante sem pautas que contemplem ele, contudo somos obrigados a votar de quatro em quatro anos e até numa pandemia onde mais de 170 mil famílias perderam seus entes queridos o governo agiu de forma a privilegiar tudo para ocorrer a eleição, o trabalhador entende a briga de poderes e é isso que gera desilusão, é difícil acreditar que alguém realmente vá ser honesto.

O campo progressista teve uma votação expressiva na periferia, mesmo em meio a ataques, mesmo lutando contra poderosos, esse é o poder da população, esse é o poder dos nossos dialogando com os nossos. Não existe trabalhador burro, nenhum trabalhador aceitaria ser tratado como um bebê que não sabe de nada e nem deve! Essa eleição demonstra a força de dialogar, de olhar o outro, de construir. 
Quando pensei em batizar minha coluna de “PolitiKês” eu fiz isso pensando em todas as vezes que a política foi tratada na minha frente só como “politikês”, sem sua essência, sem diálogo. Pensei em ressignificar memórias de que a política é algo isolado ou ruim e foram essas memórias afetivas que alimentaram esse texto hoje também.
É preciso compreender que os nossos não são nossos inimigos, é preciso saber que a união tem sim um preço, o preço de engolir a seco o ego, o preço de ceder, o preço de ouvir o que não quer, contudo essa pode ser a única forma de continuar uma trajetória linda que temos na periferia. Eu decidi escrever esse texto após as eleições porque sei que alguns agora comemoram e outros se entristecem, mas a periferia mostra sua força seja criando forças para ir votar mesmo em meio a uma pandemia, seja apenas sobrevivendo mesmo com a taxa de desemprego alta e com a morte que nos assombra.
Esse politikês não acaba nesse texto, essa é só mais uma das formas que a periferia encontrou de expressar sua voz e suas urgências. Falar de política é chato e desgastante porque nossa vida cotidiana é massacrante, mas na política mora muitas das esperanças e muitas mudanças, a transformação só pode ser coletiva e a mobilização depende do espírito Ubuntu que vive aqui. É nóis por nóis e sempre será!

“É necessário sempre acreditar que o sonho é possível
Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível
Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase
Que o sofrimento alimenta mais a sua coragem…”

Racionais MC’s / A vida é desafio

Lidar com o dinheiro: Empreende aí revela dicas para auxiliar mulheres periféricas

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 O terceiro episódio desta temporada do Empreende aí Cast convida a jovem Beatriz Santos, que traz conceitos e dicas para gerenciar a parte financeira de negócios protagonizados por empreendedoras das periferias.

Foto: Safira Moreira/Olabi

 “Dinheiro é poder de escolha, mesmo dentro do seu negócio”, conta Beatriz Santos, jovem carioca formada em Administração e diretora executiva da Barkus Educacional, um negócio de impacto social. Junto com Luís Coelho e Jennifer Rodrigues, ela participa do terceiro episódio do Empreende aí Cast, o programa de podcast da escola de negócios da periferia para a periferia.

Neste episódio, a convidada conta sobre os conceitos básicos de gestão financeira, revelando dicas e experiências pessoais.  A ideia dessa troca é que a partir de agora, mesmo quem nunca organizou a parte financeira do negócio, passe a ter um controle maior sobre esta área.

A gente aprendeu muito nessa trajetória, nestes últimos quatro anos de Barkus, como organizar as finanças do próprio negócio. A gente percebia que não era algo tão fácil de encontrar e de entender. E que também não era tão parecido com as finanças pessoais, apesar de ter algumas conexões.

Beatriz Santos

A primeira temporada do Empreende Aí Cast traz uma convidada por episódio para compartilharem sua trajetória no empreendedorismo. Participando pela segunda vez desta temporada, Beatriz Santos compartilha suas experiências e conhecimentos. A jovem carioca tem graduação em Administração pela UFRJ e Universidade do Porto – UPorto e é pós-graduada em História e Cultura Africana e Afro-brasileira pelo Instituto Pretos Novos, pesquisando diversidade organizacional e finanças com foco em questões raciais.

Dicas, ferramentas e inspiração 

Criado por Luís Coelho e Jennifer Rodrigues, moradores da periferia do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, a Empreende Aí é uma iniciativa que busca motivar pessoas das quebradas na criação de seus negócios e na sua capacitação profissional no mundo do empreendedorismo. Neste conteúdo em formato podcast, a ideia é inspirar quem já pensa em criar seu próprio negócio ou quem deseja aprender como melhorá-lo. O podcast está disponível nas plataformas do Spotify e do Youtube.

A cada novo episódio, o Empreende aí Cast aborda assuntos diferentes dentro do empreendedorismo de periferia para que as mulheres responsáveis por seus negócios se fortaleçam e continuem prosperando.

Com mais de cinco anos de atuação, o Empreende Aí já realizou diversos cursos e palestras nas periferias e conta com a parceria do Itaú Mulher Empreendedora e a International Finance Corporation (IFC), organismo do Grupo Banco Mundial, para a realização do Empreende Aí Cast.