Home Blog Page 65

“Jaraguá é meu lugar de paz na cidade”, diz Jessica Cabral sobre ser mulher, preta e bissexual na quebrada

0

Jéssica Cabral compartilha suas vivências enquanto mulher, negra, periférica e bissexual na série Relatos LGBTQIA+, e conta também como a quebrada acolhe sua existência.  

A auxiliar de limpeza e articuladora cultural Jessica Silva Cabral, 22, nasceu no Jaraguá, zona noroeste da cidade, mas mora há 13 anos no bairro de A.E Carvalho, localizado no distrito de Itaquera, na zona leste de São Paulo. Jéssica foi uma das articuladoras do Projeto Sancas, ação de lazer e cultura no território.

“A minha participação nesse projeto veio para eu entender que sou também uma base para quebrada, para entender minha identidade aqui, hoje em dia todo mundo que passa por mim, fala, ‘ah, eu já fiz o projeto e tal’, foi muito legal poder construir algo aqui dentro”, compartilha.

A articuladora conta que, no momento, seu principal foco é trabalhar e passar um tempo com sua namorada. “Sou uma jovem pobre, que tá sempre no corre de não se lascar, determinada, focada em fazer dinheiro, ganhar dinheiro. Minha vida é trabalhar, e agora que eu namoro, é trabalhar e ficar com a minha namorada”.

Atualmente ela mora com a mãe, o padrasto e o irmão: “Nossa convivência é bem cada um na sua. A gente gosta de ver novela juntos, e de final de semana tomar uma, a gente não tem muito essa coisa de fazer refeições juntos, ou esperar um ao outro para jantar, mas somos unidos da nossa forma, cada um no seu quadrado”, relata.

Jéssica conta que começou a perceber sua sexualidade através de uma música que ela ouviu e que seu entendimento enquanto mulher bissexual veio em torno dos 12 ou 13 anos de idade. “Foi quando eu comecei a me interessar, foi quando meu corpo começou a mudar e ter vontade de estar com outras pessoas”, afirma. 

“Nessa época eu lembro bem que eu virei pra mim mesma e fiquei ‘nossa eu acho que eu gosto de meninas e meninos’. Eu lembro que vi na TV a música ‘meninos e meninas’, e aí fiquei ‘putz, eu sou assim mesmo’. E foi isso que me marcou, que eu lembro de pensar já naquele momento sobre essa sexualidade.”

Jessica Cabral

Jessica relembra que com 13 anos falou para sua mãe sobre o que estava sentindo em relação a sua sexualidade, mas na época sua mãe não entendia muito bem e considerava que era coisa de indeciso.

“As pessoas leem os bissexuais enquanto confusos né, eu sofria muito bullying na escola, não tinha autoestima nenhuma, sempre achei que os meninos não iam se interessar por mim, então eu escolhi as meninas, e disse que era lésbica, fiquei dos 13 aos 19, e atualmente eu tenho uma liberdade muito maior dentro da minha casa”,

Ela conta que já conversou com sua família sobre sua bissexualidade, já namorou homens e mulheres que apresentou para a família e hoje tem o respeito deles. “Tem um entendimento, acho que as conversas e eu entender eles também implicou muito para que as visões deles sobre minha sexualidade mudassem também, mas hoje consigo dizer em casa que não sou indecisa, é uma escolha, e nós bissexuais existimos”.

Nascida em Jaraguá, ela afirma que o lugar que se sente segura na cidade é na quebrada. “Eu me sinto segura lá na casa da minha avó no Jaraguá, onde eu gosto de estar. Um lugar que me traz memórias de infância, que me traz tranquilidade, que me traz conforto e muita segurança”. 

“Acho que aquela quebrada lá no Jaraguá é meu lugar de paz na cidade, onde consigo ser eu sabe, me encontro comigo lá.”

Jessica Cabral

Jessica afirma que ser uma mulher preta e bissexual na cidade passa desde a fetichização desses corpos, aos estigmas criados diariamente.

“Ser lgbt na cidade de São Paulo é um inferno, é uma fetichização sem fim, tudo gira em torno do que você faz ou deixa de fazer com os gêneros que você se relaciona, com homens ou mulheres, tudo acaba se resumindo a relação sexual, ainda mais que tem os estigmas da mulata exportação e da negra raivosa”, afirma Jéssica que sente apontamentos desde colocações como “uma negona dessas ficando com mulher”, até alguma fala que se posicione, onde surgem mais comentários: “olha lá a sapatão falando, essa é mesmo”. 

(Foto: Bruna Ferreira)

“A quebrada em si me respeita, me acolhe, mas fora dela, eu sou só mais uma pessoa querendo chamar a atenção. Como a sociedade enxerga uma pessoa preta LGBT? Como pessoas que querem chamar atenção e existe uma invalidação das nossas sexualidades, gêneros, estilos, gostos, é perturbador”

Jessica Cabral

Cuidados e construções de laços durante a pandemia 

Jéssica começou a namorar durante a pandemia da covid-19. Ela conta que possuem uma ótima relação com a família uma da outra. “Todas as vezes que eu fui visitar minha sogra sempre fui muito bem recebida, muito bem acolhida, respeitada, e acredito que a mesma coisa se faz aqui em casa”, afirma. 

“A gente senta junto para beber e conversar, tenho a intimidade também de ter levado ela na casa da minha avó sabe, que foi a casa que eu fui criada, e toda a minha família, avó, tios, primos, adultos, crianças, evangélicos, macumbeiros adoram muito ela, e tem um boa relação com a gente junta”.

Jessica Cabral 

A moradora da zona leste acredita que por terem iniciado a relação durante a pandemia, aumentou o laço familiar. “O engraçado é que acaba sendo um namoro lgbt a moda antiga sabe, onde o casal frequenta a casinha uma da outra, almoça com a sogra, e acho que por ter começado essa relação bem na pandemia e por sermos mulheres periféricas, isso aumentou muito o laço familiar”

Assim como a pandemia afetou muitos corpos pretos, periféricos, pobres e lgbtqia+, o de Jessica também foi afetado. Ela conta que sua rede de apoio é sua família e amigas da quebrada: “São pessoas que estão por mim, somos as mulheres dos corres, correndo todo dia de um b.o”.

Ela conta que sua saúde mental foi afetada, e que muitas pessoas da sua família pegaram covid, entre eles seu avô, que não resistiu. “É muito difícil perder alguém assim, estamos todos aqui bem sentidos ainda, meu psicológico está bem ruim, e estou tentando trabalhar na positividade, na fé, estou em um momento de reflexão”, afirma.

Jessica fala que “a vida não mudou muito para quem está aqui”, que trabalha presencialmente durante a pandemia, e não parou em momento nenhum: “Só diminui quando a busca por faxinas deram uma parada também, mas o medo de contaminar alguém de perto sempre esteve comigo né, desde o começo, eu sigo tomando cuidado e com as precauções necessárias, máscara, álcool em gel, distanciamento máximo que der, porque não tem como ser o estipulado né”.

Mesmo com todo cenário da pandemia, Jéssica diz que tem que olhar para o futuro e tenta enxergar algo bom, apesar de muitas perdas.

“De acordo com meus planos pra ficar bem mesmo eu preciso voltar a fazer meus projetos, ajudar de novo na quebrada, a ajudar as pessoas daqui a terem outras perspectivas, preciso de conseguir um emprego melhor, que ganhe mais, preciso viver mais a vida sem ser só no trabalho, ou então mudar de país mesmo, talvez ir para Europa”, finaliza. 

O acesso ao celular precisa virar política pública

0

Nesse tempo histórico, o acesso ao celular não pode definir quem vive e quem morre. Quem acessa serviços públicos ou quem é excluído por eles.

Estudante do Cursinho Popular Ubuntu

Estudantes de escolas públicas não conseguem acessar o ambiente de ensino remoto, mães chefes de família dividem o celular com filhos entre trabalho, estudos e entretenimento, bancos e casas lotéricas registram diariamente uma série de aglomerações formadas por moradores das periferias e favelas que não conseguem pagar suas contas, por meio de plataformas digitais ou receber o pagamento de benefícios sociais do governo.

Esse é o cenário de milhões de brasileiros e brasileiras que em sua maioria dão forma a estética cultural, social, econômica e política do cotidiano de territórios periféricos espalhados por todo o Brasil.

Desempregados, atuando no mercado de trabalho informal, dependentes de recursos governamentais para garantir a alimentação básica na mesa ou totalmente excluídos de qualquer forma de geração de trabalho e renda. Essas são características macroeconômicas que definem a cara dessa população brasileira que tem se tornado alvo da desigualdade digital.

São muitos os cenários que apontam o celular como um divisor de águas na vida de milhões de brasileiros. O impacto é ainda mais profundo na vida da população preta, pobre e periférica, moradora de territórios onde o acesso a internet ainda é um gargalo estruturante para se conectar com o mundo digital.

Produzida pelo IBGE e divulgada no início da 2020, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC), apontou que a cada quatro brasileiros que têm acesso à internet, três usam o celular como principal aparelho para acessar a web.

Num contexto regional, a pesquisa TIC Domicílios 2019 publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) mostrou que as famílias que moram em áreas de maior vulnerabilidade social na Região Metropolitana de São Paulo usam o celular como principal ferramenta de conexão com a internet.

Na Região Metropolitana de São Paulo, 61% dos usuários residentes em áreas de baixa vulnerabilidade acessam a internet, por meio de celulares e computadores, já nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, 70% dos entrevistados usam exclusivamente o celular como interface de acesso à rede.

Desde a chegada da pandemia de covid-19 no Brasil, já se passaram 16 meses, e esse cenário apontado nessas pesquisas que antecedem o período pandêmico, marcado pelas medidas sanitárias de isolamento social, crescimento de crises políticas e econômicas, provavelmente se intensificou, gerando novos danos severos, não somente ao direito da inclusão digital, mas sim, o direito à vida.

Em alguns contextos bem pontuais, aplicações móveis que visam o impacto social em massa da população estão cada vez mais levando em consideração o baixo consumo de memória e de pacote de dados dos aparelhos, ampliando desta forma o número de pessoas beneficiadas por esse tipo de configuração em seus smartphones.

Porém, é preciso se ater ao contexto da fome, das situações de extrema pobreza que afetam os moradores das periferias e favelas. Como manter o uso de um celular de forma contínua quando o armário da cozinha não tem um saco de arroz ou de feijão? Vender o celular na loja de assistência técnica da quebrada para muitas pessoas é uma solução rápida e paliativa para conseguir uma quantia suficiente para comprar mantimentos para dois, três ou até mesmo um dia para a família.

Por outro lado, ter um celular na pandemia significa também ter um meio de se comunicar com parentes, amigos, instituições públicas, trabalho e ações solidárias, responsáveis por garantir a sobrevivência de muitos moradores das periferias e favelas nesse período.

Para participar de uma ação solidária é necessário realizar um cadastro em núcleos comunitários de doações para garantir que cada morador será comunicado sobre a data, local e horário das doações de alimentos, kit de higiene e marmitex.

Mas como ser beneficiado por essas ações se muitas famílias tiveram que desfazer dos seus celulares para comprar comida? Como os articuladores comunitários conseguem atingir os moradores que estão incomunicáveis?

Esse é um praticamente invisível que passou desapercebido por governos e empresas durante todo o período de maior tensão da pandemia de covid-19. As organizações sociais, coletivos, movimentos sociais e líderes comunitários lidaram com essa situação a todo instante e sentiram na pele o nível da desigualdade digital nas periferias.

O acesso ao celular não pode definir nesse tempo histórico quem vive e quem morre. Quem acessa serviços públicos ou quem é excluído por eles, mas as próximas pesquisas mostraram como isso aconteceu e poderá continuar acontecendo, a menos que estudos demográficos sejam colocados em prática para embasar a construção de políticas de Estado para reduzir os danos gerados pela pandemia.

É hora das Empresas e Governos escutarem a sociedade civil e repensar a sua maneira de fazer política pública. O futuro de milhões de moradores das periferias e favelas, pessoas que constroem a história desse país depende dessa colaboração.

Rede contra o genocídio luta contra impunidade da violência policial nas periferias

0

Iniciativa organizada de maneira territorial em diversos bairros e cidades da Região Metropolitana de São Paulo oferece apoio jurídico às vítimas de violência policial nas periferias. 

Ação cultural em memória ao Lucas na favela do amor, Santo André, Vila Luzita. 

A partir da escuta e do diálogo feito com familiares de vítimas de violência policial dentro das periferias e favelas de São Paulo, a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio vem desde 2017 buscando de forma organizada realizar a proteção de moradores que sofrem violações de direitos praticados pelo Estado brasileiro.

“Através da informação e da coletividade dentro da quebrada, a gente busca se proteger desse estado genocida, buscando os cuidados na perspectiva de reduzir os danos diante dessa pandemia. É um trabalho coletivo”, afirma Márcia dos Santos, articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo.

É como esse olhar de coletividade que Márcia, migrante nordestina de Alagoas, estudante de psicologia na Universidade Cruzeiro do Sul, reflete sobre o direito à vida nos territórios periféricos.

“Cada território tem o seu modo de funcionar, sua cultura, seu jeito e chegando aqui na zona leste, eu constatei o tamanho de vulnerabilidades que existem no local, e uma delas é perceber que o território de São Mateus é construído através de ocupações, ocupações que nesse tempo de pandemia cresceram bastante”, define ela.

A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio tem um formato de atuação territorial que inclui os moradores no processo de discussão sobre as violências cometidas pelas forças de poder do Estado, gerando uma série de conexões territoriais que atraem também novos articuladores que se formam politicamente nesses espaços de diálogo. E foi assim que a moradora de São Mateus conheceu o grupo de defensores de direitos.

“Eu conheci a Rede através da Katiara, uma das coordenadoras, em uma reunião que ela veio participar aqui em São Mateus. Eu achei muito importante e fundamental que também tivesse aqui no território essa rede ativa, porque diante das violências que ocorrem no território como um todo, é de grande importância que tivesse alguém que pudesse representar essa comunidade dentro da rede, e ter esse suporte através desse articulador para a comunidade”, relembra. 

Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio marca presença em manifestação para defender o direito à vida. (Foto: Repórter Popular)

Violação de direitos 

A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio segue obtendo uma demanda de trabalho que não para de crescer, devido ao constante acontecimento de casos de violência do Estado. As situações de violência policial perseguem os moradores das periferias que estão dentro de suas casas, andando nos becos e vielas ou curtindo momentos de lazer nos bairros onde vivem.

É nesse cenário que Maria Edjane Lacerda, 38, se envolveu pela primeira vez com a Rede e se tornou uma articuladora do seu bairro, na zona sul. Ela é moradora do Capão Redondo e atua como gerente de serviços do SASF Capão Redondo III.

Após ver o filho da agente de saúde Simone Nascimento, 37, moradora do Parque do Engenho e mais dois jovens serem detidos e presos pela polícia militar enquanto jogavam futebol em uma quadra dentro de uma escola na mesma rua em que moram há mais de 20 anos, Edjane decidiu se mobilizar e encontrar caminhos para combater aquela injustiça.

Simone descreve que eram cerca de nove horas da manhã, quando houve um assalto de uma carga próximo da sua casa. Neste momento, a polícia estava atrás dos indivíduos que cometeram o crime, enquanto o seu filho estava com os amigos jogando bola na quadra da escola.

“A polícia entrou na escola e todos estavam lá, quando eles viram os jovens lá, eles começaram a atirar para cima, e eu escutei isso lá do meu trabalho. Aí os meninos começaram a correr por conta dos tiros, e aí nessa hora alguns conseguiram sair pelo outro lado da rua, meu filho e mais dois amigos se esconderam atrás da escola, aí o helicóptero os encontrou e lá foi forjado né”, relata a mãe de uma das vítimas.

Segundo ela, os policiais ficaram perguntando: ‘onde que tá a carga?’, ‘onde que está a carga?’, e os jovens sem saber do fato que estava acontecendo, pois tinham acabado de chegar na quadra, foram algemados e levados para a delegacia.

“São três jovens no bairro onde eu moro, com as famílias muito próximas, amigos dos meus filhos né? Então eu passo a acompanhar e articular com essas famílias em busca de justiça pela prisão indevida dos filhos dessas mulheres”, enfatiza Maria Edjane, sobre o trabalho que vem desempenhando com apoio da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio.

Edjane explica que acompanhou o processo desde o começo e o resultado do julgamento dos jovens saiu recentemente. “No decorrer desse processo que durou de novembro de 2020 até agora saiu a absolvição oficial dos meninos na última sexta-feira saiu”, conta ela, apontando um final feliz com a sua colaboração para criar um mecanismo de defesa dos jovens, presos injustamente pela polícia. 

Os atos são uma forma também de levar informação aos moradores das periferias que marcam presença nesses espaços de manifestação popular. (Foto: Leandro Godoi)

Acesso à informação 

A partir de cartilhas que informam como deveria ser a abordagem policial, elaborada pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, é realizado um trabalho de educação política com moradores dos territórios periféricos, para explicar o significado de termos como o juvenicídio e o genocídio.

“Esses materiais são distribuídos nos atos ou nas ações que a gente faz na comunidade, num diálogo muito claro e objetivo, de forma que qualquer pessoa compreender”, afirma a articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio

Mas as ações de conscientização sobre os direitos civis da população preta e periférica não param por aí. A iniciativa também leva denúncias para o Ministério Público. “Nós solicitamos reuniões com o Ministério Público, somos atendidas em reuniões, direcionamos casos para as denúncias, cobramos do Ministério Público as respostas, já emitimos documentos sobre a câmera que fica alojada na roupa do policial, que não pode e não deve estar desligada”, conta Edjane.

Fruto desse trabalho de acompanhamento dos casos de violência policial, a Rede produziu e emitiu um documento para Secretaria de Segurança Pública, informando e solicitando que se policiais utilizam a câmera desligada, ele precisa assinar um termo de culpabilização diante dos seus atos.

Essa foi uma das estratégias encontradas para cobrar respostas do Ministério Público e da Secretaria de Segurança Pública sobre ações efetivas contra os policiais que cometem abusos de poder durante as abordagens.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou que em julho deste ano não houve registro de mortes por violência policial nas operações dos 18 batalhões da Polícia Militar de São Paulo, onde os policiais utilizam as câmeras corporais. Ao todo são 3 mil câmeras que fazem o registro de áudio e vídeo das abordagens.

“Para nós é inadmissível que um policial execute um jovem na comunidade e ele permaneça rondando essa comunidade, ele causa medo, ele causa terror e aí a gente já solicitou inclusive um projeto de lei pra que esses policiais possam ser afastados desses territórios, já que muitas vezes eles não são afastados do seu cotidiano profissional, que eles possam, pelo menos, não estar no território onde eles cometeram esses assassinatos”, conclui Edjane

“O desânimo é muito grande”: pandemia afeta motivação de estudantes do Jardim Aracati

Além da falta de motivação dos estudantes, o ensino remoto impôs uma série de desafios para uma mãe de 9 filhos que estão em fase escolar. Em alguns casos, os professores tentam dar algum estímulo, já em outros, é a tecnologia quem os deixa na mão.

Richalyson de 12 anos e Rebeca de 11, são filhos de Patrícia Paulo de Oliveira.

Os filhos de Patrícia Paulo de Oliveira, 37, moradora da Cidade Ipava, um dos bairros que fazem parte do Jardim Aracati, território localizado no fundão da M´Boi Mirim, zona sul de São Paulo, foram impactados de maneira severa e negativa pela plataforma de aprendizagem de ensino remoto. Ela é mãe de 10 crianças, sendo que nove deles são estudantes de escolas públicas da região.

Ela relata que tem acesso à internet, mas que não possui um computador em casa para auxiliar os filhos durante esse período longe da sala de aula, considerando que o tablet disponibilizado pela prefeitura de São Paulo, segundo ela, não se mostrou tão eficaz quanto o esperado.

“Deram o tablet para as crianças, mas pelo menos pra mim aqui está dando problema, não funciona, não entra o código, não faz nada. Já levamos na escola, disseram que era pra fazer ‘isso e isso’, mas mesmo assim não resolveu. Pra mim está a mesma coisa, não mudou nada”, desabafa Patrícia.

Durante a pandemia, a mãe dos estudantes conta que a escola ajudou com algumas cestas de alimentos para as famílias, mas as mães só ficaram sabendo por que uma mãe passava a informação de que estavam distribuindo os alimentos.

“Eles deram o cartão Alelo e as cestas básicas, e isso ajudou bastante, mas de estudos eles não falavam nada, não ligavam, se a gente não fosse atrás não ia saber de nada. Eles não avisam nada pra gente. Daí pediram os números de celular para montar o grupo no zap e até agora nada também”, conta Patrícia.

Mesmo com tantos problemas enfrentados por Patrícia, como mãe de nove filhos estudantes, ela termina sua fala com um olhar de esperança por dia melhores em meio a tantos desafios. Acho que também muita gente aprendeu nessa pandemia, trabalhar, pensar, estudar, ajudar as pessoas que precisaram, mesmo com tantas perdas.”

Richalyson de 12 anos e Rebeca de 11, são filhos de Patrícia e sentem dificuldade para acessar o tablet oferecido pela escola.

Izabela Aquino, 17, moradora do Cidade Ipava, que está no terceiro ano do ensino médio e prestando vestibular para biomedicina. A  jovem apresenta relatos importantes sobre a rotina do ensino remoto. Ela estuda na escola estadual Maria Petronila Limeira dos Milagres Monteiro, que segundo a jovem, já foi considerada uma referência entre as escolas de Santo Amaro.

Ao comentar como tem sido a rotina de assistir as aulas na plataforma de ensino remoto, a estudante denuncia a falta de professores em diversas disciplinas da escola. “Até hoje, muitas turmas do Petrô ainda estão sem professor de matemática, biologia e português, e isso já está se tornando normal, não ter professor de muitas matérias.”

Izabela também reforçou sobre a quantidade de estudantes da escola dela que precisaram deixar de se empenhar nos estudos para se inserirem no mercado de trabalho, pois passaram a ser responsáveis para pagar as contas dentro de casa durante a pandemia, alguns até sozinhos, pois os pais foram demitidos dos seus respectivos trabalhos.

“Diante da pandemia que afetou a todos, mas principalmente as periferias, muitos dos meus colegas tiveram que parar de estudar para começar a trabalhar, nisso os professores viram que de 36 alunos, somente três ou quatro assistiam às aulas”

comenta a jovem.

Outro relato marcante da estudante é o processo de reprovação de alunos provocado pelas faltas nas aulas. 50% dos alunos da minha turma mudaram de turno, alguns acabaram repetindo de ano por causa de emprego, e outros mesmo sem realizar as atividades foram aprovados pelo Conselho”, diz Izabela.

Além desse cenário, ela conta que pelo menos 60% da turma dela entre meninos e meninas, desenvolveram ansiedade, por terem medo de não conseguir concluir o ano letivo. Segundo Izabela, o impacto da pandemia e do ensino remoto foi muito significativo e fez com que muitos jovens perdessem a vontade de estudar.

Izabela Aquino, 17 anos, estudante do 3º ano do ensino médio e se preparando para prestar vestibular para Biomedicina.

Quem também compartilha dessa opinião é o educador Paulo Soares Borges, professor da rede estadual há mais de dez anos, e que trabalha atualmente ministrando aulas tanto no ensino fundamental, quanto no ensino médio de uma escola do Jardim Aracati.

Paulo cita muitos exemplos diante dessa realidade, enfatizando a difícil rotina e não evolução dos jovens periféricos. Mesmo a escola realizando algumas ações para compensar o tempo perdido, as devolutivas de atividades curriculares são muito pequenas. Segundo ele, falar com estudantes sobre vestibular e mercado de trabalho deixou de ser um tema para se motivar em sala, para tratar questões de saúde emocional com os alunos.

“Temos trabalhado a questão da saúde socioemocional, trabalhando com eles através de vídeo chamadas em grupo, para ver se conseguimos fortalecer os estudantes. O desânimo é muito grande”, pontua ele.

O educador acredita muito no potencial dos jovens de quebrada e lamenta o crescimento do desestímulo notado no olhar dos alunos, onde muitos deixaram de se preocupar e procurar saber dos estudos. E aqueles que decidem ir ao método híbrido, vão apenas para socializar, mas não com intuito de estudar.

De acordo com a pesquisa que ganhou o nome de “Perda de aprendizagem na pandemia”, publicada em 2021 e realizada pelo Instituto Unibanco e pelo Insper, apenas 36% dos estudantes de escola pública conseguiram se inserir no método de ensino remoto, e a perda no desempenho acadêmico nas disciplinas essenciais (matemática e língua portuguesa), mesmo estabelecendo o modo híbrido e dinâmicas para recuperação de notas, sempre foi maior que 65%.

Neste momento, onde o acesso à internet tem uma clara interferência na vida de professores e alunos, está sendo discutida a aprovação da Lei nº 9.610/98, que garante acesso à internet nas escolas públicas de todo o país.

O presidente Jair Bolsonaro havia vetado em março a primeira versão da lei, mas o projeto voltou a ser discutido e está em processo de regulamentação. Ao ser executada, a lei destinará 3,5 bilhões de reais do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações para os estados brasileiros executarem em seus orçamentos.

Para analisar esse cenário, o Desenrola entrevistou Kátia Alves, professora de educação infantil e diretora de produção cultural. Ela é graduada em pedagogia com especialização em Gestão da Educação Pública pela UNIFESP e integrante do Coletivo Territorialidades de Campo Limpo, que pensa e discute a importância dos territórios educadores.

Kátia pontuou os parâmetros da pandemia, que chega aos estudantes da rede pública agregando e evidenciando a precarização histórica do ensino nas periferias. Como, por exemplo, salas superlotadas, a falta de recursos pedagógicos e humanos nas escolas e com a necessidade de estudar remotamente, surgem problemas como a falta de equipamentos, como computadores com acesso à internet de qualidade, condições estruturais para estudarem em casa.

“Muitos não têm se quer uma mesa com cadeira que possa usar para o estudo”, afirma a pedagoga. Ela enfatiza que no mesmo aspecto das dificuldades dos estudantes estão os desafios dos colaboradores docentes em desenvolver o seu trabalho de forma remota sem os investimentos tecnológicos necessários juntamente com uma formação para uso das ferramentas.

“A entrega de tablet para os estudantes demorou a chegar e a democratização do acesso à internet se quer está sendo discutida como política pública. Como se sentir motivado ao estudo remoto, com falta de equipamento, internet de qualidade e local adequado para o momento de estudo?”, questiona Kátia.

Home office gera rotina exaustiva para mães das periferias de Osasco

Com ou sem o apoio dos seus parceiros, elas relatam a rotina de trabalhar, fazer comida, lavar roupa, estudar e ainda cuidar sozinha dos filhos. E escancararam uma realidade: toda maternidade é solo. 

Durante o expediente, Nathalia Jacob coloca um tapete no chão junto com as brinquedos favoritos da filha para poder se concentrar no trabalho. (Foto: Monique Caroline)

O coronavírus e o home office trouxeram demandas que não estavam presentes na rotina de mães moradoras de Osasco. Esse é o caso da analista de recursos humanos, Nathalia Tittz, 28 anos, moradora do Jardim Bela Vista, em Osasco, e mãe de Sophia. Em março de 2020, ela recebeu a notícia de que a pandemia iria paralisar as atividades da empresa e o serviço passaria a ser remoto.

Recém-separada do companheiro e com uma filha de 1 anos e 6 meses, uma nova jornada se iniciaria: voltar para a casa dos pais e conciliar o home-office com os cuidados de Sophia.

Mesmo com a grande mudança de rotina, a Analista diz que estar dentro ou fora de um relacionamento, não foi um dos maiores impactos nesse período:

“Para ela (a filha), foi bem complicado. Para mim já não, porque normalmente os cuidados do filho sempre ficam para mãe, não tem meio a meio”

enfatiza.

A maior transformação que Nathalia teve foi a adaptação para o novo modelo de emprego. Ter a ajuda dos pais Isaura e Valdemir, e da irmã Aline, dentro da rede de apoio, foi muito importante para esse processo.

No entanto, as dificuldades são presentes: “Tem dia que eu tenho que sentar ela no meu colo, colocar o fone de ouvido nela, fone de ouvido em mim e tentar prestar o máximo de atenção possível no trabalho”, comenta.

Sophia participa da maioria das reuniões de trabalho junto com a mãe. (Foto: arquivo pessoal/Nathalia Tittz)

Durante o ano de 2019, ela conseguia reservar um tempo maior para se dedicar aos estudos dentro da área de atuação e até sair com os amigos. Após o decreto da pandemia no Brasil em março de 2020, as coisas mudaram e o isolamento social fez com que ela se sentisse mais cansada. 

Hoje, “falta pique” por conta da intensidade de todos os cuidados que acontecem dentro de casa. “A gente tem que ser professora, a gente tem que ser mãe, a gente tem que ser dona de casa e chega no final do dia, a gente não dá conta de quase nada”, relata ela.

Rosimeire Bussola, psicóloga especialista em saúde da família e integrante do coletivo PerifAnálise, focado em atender moradores periféricos e democratizar o acesso aos atendimentos clínicos, conta que as consultas cresceram na pandemia, mas as queixas de exaustão e dificuldades maternas permaneceram no mesmo patamar.

“A periferia já vivia os efeitos da pandemia em certa medida e as mulheres periféricas também. O desemprego, as dificuldades de acessar vagas em creches, escolas e ter as crianças em casa… A gente percebia que essas coisas já aconteciam”.

Analisa a psicóloga.

Para Nathalia, o aumento da carga de trabalho foi significativo, mas ela conseguiu enxergar aspectos positivos, como a economia do tempo gasto para ir até o serviço, ficar parada no trânsito e se arriscar pela contaminação. Além de acompanhar o crescimento da filha e aumentar os laços entre as duas.

Atualmente, a Analista anseia em não voltar para o escritório: “Mãe se habitua a tudo, se habitua ao momento, passa um tempinho que a gente fica com dor de cabeça e estressada, mas uma hora a gente se habitua aquilo”, afirma.

O lado b do home office 

Essa é uma situação presente também na vida de Nathalia Jacob, 22, que também mora no Bela Vista, região de Osasco. Ela trabalha com atendimento em telemarketing, é mãe da Eloah de 3 anos e não quer voltar ao presencial pela praticidade; o que não anula as dificuldades para conciliar o emprego com a maternidade.

Com as creches ainda fechadas, Nathalia Jacob precisa trabalhar e dar atenção para a filha ao mesmo tempo. (Foto: Monique Caroline)

Ela mora junto com o companheiro, Leonardo Pignatari, 23. Ele possui 3 empregos: trabalha como motoboy autônomo em uma doceria de tarde, à noite faz entregas para uma lanchonete de cachorro-quente e faz bicos consertando computadores e videogames.

Por conta da rotina do companheiro impactada pela tripla jornada de trabalho, todos os cuidados com a filha e tarefas domésticas permanecem com ela e foram transformados com o home office: “É uma bagunça. É difícil para a Eloah entender que eu tive que trazer o meu trabalho para dentro de casa”, conta ela.

Foto: Monique Caroline

Para Thaiz Leão, mãe de Vicente de 8 anos, co-fundadora do projeto “Segura a Curva das Mães” e do Instituto Casa Mãe que visam mapear mulheres em vulnerabilidade social e custear gastos com a alimentação e necessidades básicas, é justamente por ter que dar conta de tudo, que o conceito de maternidade solo não se limita apenas às mães que não estão dentro de um relacionamento, ela se expande para todas.

“A maternidade é solo e a gente vive num espectro de maior ou menor cuidado, maior ou menor apoio” 

relata a especialista. Para ela, até quando existe a presença de um companheiro, não necessariamente esse espectro se altera para uma relação de maior apoio e cuidado.

Os motivos para essa relação não se alterar, são amplos. Geralmente ligados ao mercado de trabalho como no caso de Nathalia, ou por questões estruturais que envolvem o “papel” da mulher e do homem na sociedade. “Se cobra da mulher se responsabilizar por ele também”, expõe Thaiz.

Um levantamento feito pelo IBGE em 2019, aponta que as mulheres gastam em média quase 11 horas a mais por semana que os homens em tarefas domésticas.

Dados de 2021 endossam as desigualdades sociais relatando que mulheres ricas (que pertencem ao grupo equivalente a 20% da população brasileira de maior renda) gastam em média 18 horas por semana cuidando de outras pessoas ou realizando afazeres domésticos.

Enquanto isso, as mulheres que estão entre os 20% de menor rendimento, dedicam 24 horas semanais a essas mesmas atividades.

A estratégia de Nathalia para otimizar o tempo, é preparar o almoço enquanto conversa com o cliente. (Foto: Monique Caroline)

Outro impacto que a atendente teve, foi psicológico. Trazer o trabalho para casa trouxe também mais frustrações. “Antes você saia da empresa e deixava os seus problemas lá. Agora, como você deixa? O estresse que eu ficava eu acabava descontando no Leonardo, não tendo paciência com a Eloah”, relata.

Impactos psicológicos 

Problemas psicológicos para lidar com essas transformações foram recorrentes na adaptação de Thamires Rodrigues, 20 anos, professora de inglês e moradora do bairro Jardim Roberto, em Osasco. Mesmo sem filhos, ela desenvolveu Síndrome de Burnout, um distúrbio ligado à exaustão pelo excesso de trabalho.

“Eu trabalhava de segunda a segunda e quando eu não estava trabalhando, eu estava pensando em trabalho”

relembra Thamires, que precisou fazer tratamento terapêutico para enfrentar o problema.

Por conta da síndrome, ela acreditava que o home office seria impossível. Agora, enxerga uma possibilidade maior de rendimento e vantagens ao levar em consideração o tempo gasto no transporte e o alcance de pessoas. “Parece muito mais prático, tanto para minha rotina quanto para os meus alunos”, diz.

Com a pandemia, Thamires saiu da escola de inglês que trabalhava e começou a dar aulas por conta própria. (Foto: arquivo pessoal/ Thamires Rodrigues)

Assim que conseguiu lidar melhor com o problema, os abismos que separam a realidade de Thamires com Nathalia Tittz e Nathalia Jacob, ficaram mais transparentes: sem ter que cuidar de outra pessoa, todo o tempo livre que sobra do serviço, é para cuidar integralmente de si.

As realidades relatadas pelas moradoras estão presentes também nas pesquisas do Google. Segundo dados da plataforma Google Trends, houve uma ascensão de procura pela palavra “autocuidado” em julho de 2020. Pela primeira vez em cinco anos, o termo teve um pico de 90 pontos. Isso demonstra que por conta do isolamento social, as pessoas procuraram se informar sobre o assunto. Após mais de um ano da pandemia, em julho de 2021, a palavra ainda varia com picos de 90 pontos.

Ao fazermos um recorte para o estado de São Paulo, as pesquisas e assuntos relacionados mostram que essas pessoas também procuraram se informar sobre: cuidados pessoais, saúde, educação à distância e até cursos sobre autocuidado.

Fazer um chá, sentar e esperar ele ficar pronto com calma, é algo possível dentro da rotina de Thamires. Para ela, autocuidado não está relacionado à estética, está ligado a desacelerar e quando possível, aproveitar algum momento fora de casa, já que atualmente, o lar remete ao trabalho.

A realidade das mães é um pouco diferente. Para Nathalia Tittz, infelizmente esse autocuidado não é possível. Sair é bem complicado e se divertir em casa também, por conta do cansaço.

Para Nathalia Jacob, sair sozinha com os amigos é raro desde o nascimento da Eloah e realizar alguma tarefa cotidiana com calma é difícil. Para elas, fazer algo para si de forma desacelerada como lavar o cabelo ou assistir uma série, é no momento que as filhas dormem.

Danielle Braga, psicóloga e integrante do PerifAnálise, conta que para algumas mulheres foi possível trazer o trabalho para dentro de casa, pois já era cotidiano de certas realidades.

“Para as mulheres periféricas, não tem uma grande divisão ser mãe, trabalhadora e doméstica. Está tudo num balaio só, nas costas delas”

comenta a psicóloga.

Ela diz que o home office já era uma cultura histórica na vida das mães moradoras de periferia, mas não com esse termo, pois a própria palavra estrangeira se torna excludente. A psicóloga exemplifica essa realidade ao relembrar a trajetória das costureiras, por exemplo. Que adotaram essa profissão para poder ficar em casa, cuidar dos filhos e dar conta de tudo.

O gigante infame

0

Quando as violências simbólicas continuam sendo absorvidas, como acreditar na justiça?

Estátua do Borba Gato em São Paulo – Foto: Revolução Periférica

Eu quando pequena não compreendia a importância ou fato de termos estátuas, assim como estranhava o nome das escolas que faziam parte de um grupo de pessoas desconhecidas que davam nome a coisas, eu não conhecia o significado de dar nome de pessoas a objetos inanimados, nem que isso representava uma homenagem, nós só naturalizamos.

Eu não sei como foi na vida de vocês, mas demorei muito para saber quem era Dona Zulmira Cavalheiros Faustino, que nomeia a escola estadual da qual fui estudante secundarista, que ela foi uma liderança da Vila Prel, que lutou no movimento brasileiro de educação, foi muito atuante na luta social nesse bairro.

Qual o sentido de fazer essas homenagens se nem o Estado, nem esses locais que levam os homenageados como nomes, nos educam, como população, sobre a importância dessas pessoas? Qual o sentido dessas homenagens vazias? Quem nós realmente queremos lembrar e quem são as figuras que nos são relembradas constantemente?

Assim foi com todos os pontos históricos da Zona Sul, como a Casa Amarela, a história de Santo Amaro e o Gigante Borba Gato, ponto de referência da região e a imagem mais alta que já havia visto na vida. Quando pesquisei a respeito, fiquei triste pela existência da representação, de forma tão gigantesca, de um Tenente Capitão do Mato.

Em 2008, com diversos artistas, ativistas sociais e lideranças periféricas da ponte pra cá, realizamos o Julgamento do Borba Gato. Lembro que foi estranho, mas era preciso, como se fosse nossa obrigação dizer que aquele gigante era um criminoso que representava toda violência do Estado.

Depois de 13 anos de sua condenação, que o Gigante cumpriu em regime aberto, no dia 23 de julho de 2021, sua sentença foi realizada, fogo nós fascistas!

Não posso dizer que não fiquei emocionada, depois de tanto terror que vivemos nessa pandemia, tanta falta de perspectiva para o que vamos enfrentar nas eleições que se aproximam, queimar a representação da militarização da vida e genocidio indigena, me traz um pouco de esperança.

Aqui se apresenta uma metáfora: não derrubamos uma estátua, como derrubaremos o totem bolsonarista? Não é exagero, a vida é simbólica.

Dias difíceis para mudar o mundo, quando a pedra vale mais que vida

O Estado não relativiza o fogo em nossos corpos, em nossos lideres, em nossa ancestralidade, em nossa religiosidade, em nossas casas, em nossas florestas. Talvez geramos todos os dias milhares de capitães do mato, em função de ainda considerarmos o nosso algoz.

Nossos verdadeiros gigantes não estão em estátuas pela cidade, em números possíveis de mudar o rumo da nossa história, muita gente ainda acredita em descobrimentos, libertações, em bons algozes navegando para nosso desenvolvimento em torno de modernidades transformadoras.

É importante lembrar que ele não é gigante pela própria natureza, mas porque existe um grupo no Brasil que sustenta esse tipo de ideologia do que um Tenente General, Capitão do Mato representa, exploração do povo, domínio imperialista.

Ainda existe uma faísca de respeito ao sinhozinho bondoso, ao sinhozinho sorrindo, ao sinhozinho permissivo, ele faz parte da história, contudo, nossos ancestrais também e onde estão os monumentos de repudio a escravidão no Brasil? Quando seremos ressarcidos?

Os poderosos como Borba Gato, sempre são perdoados, e nosso povo segue encarcerado, ainda existe uma fagulha de compreensão ao malvado chicote. Queremos uma democracia plena, porém, não julgamos como errado um conjunto de símbolos coloniais e imperiais que impelem em nosso legado a injustiça.

Quando as violências simbólicas continuam sendo absorvidas, como acreditar na justiça? O genocio indigena não é repudiado ao ponto da retirada de todos os símbolos que o consagraram, o que significa, de fato, esse repúdio? Não repudiamos a política escravocrata ao ponto de retirar seus executores de seus eternos palanques de pedra, o que de fato significa a luta anti-racista, anti-facista?

Foi-se os anéis, mas ficaram os dedos e esses dedos cutucam nosso imaginário todos os dias com a possibilidade de perdoar o trajeto histórico que vivemos, – que é imperdoável -, e que lentamente se levanta contra nós nesse momento.

Dinheiro para tirar o povo da miséria na pandemia, o Estado e seus mandatários não tem, mas para retificar o símbolo da sua origem, sempre haverá.

Nunca negamos a existência do nosso passado colonial, ele está cravado na criação de um país em divisões, como castas sociais que geraram o monopólio do poder político, o qual conferiu a esses estamentos senhoriais, como Borba Gato, a possibilidade de controlar a máquina do Estado e com isso nossas vidas.

Como dizia Florestan Fernandes, uma sociedade que tolhe as pressões de baixo para cima, não está somente na infância. É uma sociedade de classes que só funciona como tal para os “mais iguais”, ou seja, para as classes altas e médias.

FLOR DA SÉ

Eu vi uma flor na Sé.

Pois bem, era um dia de semana comum,

nós sozinhos na Sé, no centro, uma flor.

Enquanto isso, pessoas que pela sua classe social

desistiram da moralidade

e da tão sistemática cidadania.

Na Sé o barulho é ensurdecedor,

por isso é ignorado

e o que não se ouve, não se sente.

E lá junto a um lugar literário,

onde talvez nasceu no Brasil

o galego português,

uma casa, uma marquesa,

um amor

um amante.

Quem foi D. Pedro I?

E quem sou eu?

Eu vi uma flor na Sé

responda-me quem puder.

A sé

Asé

Até tu, São Paulo

Que só te explicam a pobreza,

e dão teu nome a politicagem soberba.

Até tu amiga que me abraça

com braços fortes,

E me faz gigante, mas não pela própria natureza,

e sim por punhos de nordestinos,

que transformam essa,

a quem deram o nome de pátria.

Sei ser cidadã e sei ser eu mesma.

Não me pergunte o que eu prefiro ser.

Anabela Gonçalves, 1997

Casa Poética realiza circuito de debates sobre cultura jovem

0

Em parceria com diversas bibliotecas municipais, a programação gratuita é diversa e reúne cerca de 30 artistas e articuladores culturais convidados de diversas linguagens em debates virtuais. 

 Com curadoria de Rodrigo Ciríaco, produção executiva de Mônica Alves, o evento traz 10 mesas de debates com intervenções artísticas, em diferentes linguagens: cinema, cultura Geek e quadrinhos, arte e direitos indígenas; comunicação e jornalismo, saraus e slams, cultura lgbtqia+, funk, educação e hip-hop. E conta com nomes de destaques nestas áreas como BIA DOXUM, Dj Sophia, Chavoso da USP, Jéssica Queiroz, Luiza Romão, Ariane Freire, Samela Awiá, Ana Julia Travia, Matriarcak, Kandú Puri, Midria, Vinicius Sousa entre muitas outras pessoas convidadas.

Os encontros são virtuais, gratuitos e acontecem entre os dias 09 e 14 de agosto, com transmissão na página do poeta Rodrigo Ciríaco na  programação das Bibliotecas Municipais.

Programação completa 

09/08, 14h – Cinema: Produção e Diversidade
Biblioteca Milton Santos
Participantes: Ana Julia Travia, Jéssica Queiroz, Jéssica Campos
Mediação: Rodrigo Ciríaco

10/08, 11h – Cultura Geek e Periferia
Biblioteca Raimundo de Menezes
Participantes: Sâmela Hidalgo, Jonatas Varella e Ruthe Campos
Mediação: Rodrigo Ciríaco

10/08, 14h – Jornalismo, Comunicação e Ativismo
Biblioteca Rubens Borba de Moraes
Participantes: Ariane Freire, Stephanie Catarino e Midria
Mediação: Jennyfer Nascimento

11/08, 11h – Cultura do Slam: Arte, Rua e Poesia
Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda
Participantes: Luiza Romão, Matriarca e Jatobá
Mediação: Mônica Alves

11/08, 14h – Arte, Ativismo e Direitos Indígenas
Biblioteca Pref. Vicente de Carvalho
Participantes: Samela Awiá, Kandu Puri e Djuena Tikuna
Mediação: Rodrigo Ciríaco

12/08, 11h – Cultura Lgbtqia+ e Quebrada
Biblioteca Paulo Guimarães
Participantes: Peu Morais, Vinicius Sousa e Estefani Moura
Mediação: Jennyfer Nascimento

12/08, 14h – Cultura do Funk e Favela
Biblioteca Vinicius de Moraes
Participantes:Thiago Torres, Fernanda Sousa e Matriarca
Mediação: Rodrigo Ciríaco

13/08, 11h – Saraus e Produção Cultural
Biblioteca Sylvia Orthof
Participantes: Potyra Paz, Gabriel Kinder e Pedro Lucas
Mediação: Mônica Alves

13/08,14h – Cultura, Educação e Direitos Sociais
Biblioteca Álvaro Guerra
Participantes: Igor Chico, Stephanie Felício e Rafael Antunes
Mediação: Rodrigo Ciríaco

14/08, 11h – Cultura Hiphop
Biblioteca Pedro Nava
Participantes:Bia Doxum, Dj Sophia e Kandu Puri
Mediação: Rodrigo Ciríaco


Curso forma jovens para transformar a quebrada com tecnologias sustentáveis

0

Teve jovem que conseguiu emprego após fazer curso com professor pardal da quebrada e outros alunos que quebraram a barreira social sobre o desenvolvimento de soluções tecnológicas.

Creditos: Barbara Borda

O curso Seja Sustentável 4.0 começou com uma experiência de metodologia de ensino à distância para aproximar jovens das periferias da zona norte de tecnologias open source e do universo das energias renováveis. Um dos objetivos é preparar os alunos para desenvolver produtos e serviços empresariais e de impacto social que possam ser úteis para aplicar no cotidiano do bairro onde moram ou fora dele.

Nesta edição do curso online, o educador e inventor Fábio Miranda destaca algumas soluções tecnológicas desenvolvidas pelos alunos que poderiam ser aplicadas em diversos contextos sociais das periferias e favelas, resolvendo problemas que o poder público ainda se nega ou tem dificuldade para sanar.

Em um auditório de uma empresa parceira do curso, foi proposto para os alunos que eles se organizassem em grupos e fizesse um projeto reunindo tudo o que eles tinham aprendido no decorrer da formação.

“Teve um grupo que criou um sistema que trazia hortas verticais, e outro criou um sistema de iluminação, era um protótipo de uma árvore solar e ela tinha um banco de bateria que você conseguia carregar o celular ali na hora, e ela tinha um sistema de medição de temperatura ambiente e umidade do ar que você conseguia ver pelo aplicativo no celular, tudo isso feito por eles, a gente mostrou o caminho, mais a ideia foi eles que pensaram, eles elaboraram tudo”, conta Miranda, com um sorrido orgulhoso dos seus alunos do Seja Sustentável 4.0.

Entre esses alunos, o educador destaca um que lhe chamou atenção. “Tem um jovem que se chama Ryan, é um jovem que ele tinha um poder de liderança muito grande com a turma, na época ele tinha dificuldade para e ir ao curso porque ele morava longe, e não tinha dinheiro de condução, mas como eles usam essa camisa laranja do PAC, ele sempre conseguia pegar carona, e às vezes ele chegava muito cansado, mas sempre determinado, eu acho que é isso, tem que levar essa possibilidade pros jovens e ativar esse potencial deles”, relembra.

Após a apresentação dos projetos de conclusão do curso, o mesmo jovem relatado pelo educador veio até ele para agradecer os ensinamentos. “Depois ele entrou em contato comigo e falou: ‘eu saí empregado de lá, fui contratado naquele dia da apresentação, para trabalhar em uma empresa, o cara me contratou lá, só por te visto minha apresentação e a forma que eu falava, ele gostou muito e queria que eu fosse para a empresa dele”, revela Miranda.

 “Comecei a gostar da tecnologia, quero me relacionar mais “

Créditos: Barbara Borda

Outra jovem participante do curso é Ana Rodrigues,16, moradora de Pirituba. Nessa edição, ela conta que a cada conteúdo das aulas novas possibilidades de atuação profissional surgiam na sua cabeça, pois tudo era novo e interessante. “Eu não tinha nenhuma noção sobre gestão empresarial, juros, tecnologia também, muito menos noção de como mexer no Excel e Power Point, durante esse tempo eu consegui aprender bastante, pois pra mim foi tudo novo”, enfatiza.

Ela também faz questão de abordar alguns aprendizados que possibilitaram construir soluções tecnológicas focadas em sustentabilidade. “A gente mexeu com tecnologias de Arduino, placa solar, mexemos na prática com energia totalmente sustentável para criar um poste que liga através da energia solar, aí quando ficasse de noite ele ia perceber que fica escuro para iluminar a rua”, conta Ana, toda empolgada com as novas possiblidades de pensar e produzir energia limpa no seu bairro.

A descoberta dos processos de automação foi outro momento marcante para a jovem moradora de Pirituba.

“A gente mexeu na horta vertical, no caso ela fica automatizada quando a própria plantação percebe que o solo está seco, aí o sistema começa a liberar água para ir regando a terra, aí ele percebe que tá molhado e para de irrigar”, descreve ela, apontando que a experiência mudou sua visão sobre produzir sua própria alimentação.

Após a participação no curso, Ana já revê seus conceitos em relação a tecnologia e diz que se sente mais próxima do processo de produção de tecnológica, algo que antes era visto com muita distância. “Comecei a gostar da tecnologia e quero me relacionar mais, eu aprendi bastante coisa que eu não sabia e minha relação hoje em dia tá boa”, afirma.

 Repensando o ensino remoto

Créditos: Fabio miranda

Durante a pandemia, a realização de aulas e cursos à distância se tornaram uma plataforma de interação para manter alunos conectados com a produção de conhecimento. Em meio a esse cenário, muitos educadores encontraram diversos obstáculos para desenvolver métodos intuitivos e inclusivos de ensino remoto. Mas há outras experiências que acumulam uma série de impactos positivos no público.

Uma dessas iniciativas é o curso Seja Sustentável 4.0, formação técnica criada pelo inventor e educador Fábio Miranda, também conhecido como ‘Professor Pardal da Quebrada’. No primeiro semestre de 2021, ele desenvolveu uma metodologia de ensino remoto, usando open sources e energias renováveis, para impactar a imaginação e a criatividade da juventude periférica com uma série de novos aprendizados voltados ao desenvolvimento de tecnologias de impacto território criadas à base de materiais sustentáveis.

Mas antes do curso acontecer, o professor Pardal relembra que foi necessário testar método de ensino remoto para entender como o processo pedagógico seria colocado em prática, a fim de suprir os gargalos de acesso à internet presente no cotidiano dos moradores das periferias e favelas. 

“A gente montou os kits e mandamos para dez pessoas. As pessoas receberam esse kit em casa via motoboy, então a gente deu um jeito de chegar nas pessoas. Foi fantástico desenvolver tecnologia mesmo a distância”, conta Mirando, afirmando que aí foi o projeto piloto para testar novas formas de ensino a distância, num curso que atendeu jovens de todo o Estado de São Paulo

Após algumas experiências que deram certo e errado nessa fase de testes do curso Seja Sustentável 4.0, o inventor relata que se adaptou ao ensino remoto e principalmente a falta de internet de alguns alunos.

“No começo foi um pouco difícil, mas eu já tinha ganhado experiência na dinâmica desse curso totalmente online, alguns alunos tinham acesso à internet em casa, mas outros não”, revela o educador, apontando que contou com a parceria do Projeto Amigos das Crianças (PAC), uma organização social da Zona Norte de São Paulo que incentiva jovens e adolescentes a ter contato com novas tecnologias por meio da alfabetização digital.

Ele reforça que todos os jovens que precisaram ir à sede do PAC para acessar a internet seguiram todos os protocolos de segurança, usando máscaras, passando álcool em gel e respeitando o distanciamento social para assistir e interagir com as aulas.

O curso contou com dois módulos: o primeiro foi composto por conteúdos teóricos e seguiu a proposta de ser totalmente online; e o segundo módulo teve encontros presenciais onde os alunos tiveram a oportunidade de colocar em práticas conhecimento técnicos para desenvolver experimentos tecnológicos.

Na fase presencial, Miranda conta que o cuidado foi redobrado para impedir aglomeração e prevenir contágios de covid-19 entre a turma de alunos. “Pode ver na foto todos os jovens com máscara, turma reduzida e usando álcool em gel. Além disso, todos os materiais chegavam antes da aula e a gente higienizava tudo”, relata.

A primeira turma do Seja Sustentável 4.0 online encerrou o curso em junho de 2021. Com o sucesso do curso, já está previsto novas turmas para participar da imersão no universo das tecnologias sustentáveis e das energias renováveis.

Um dos pontos fortes do curso é o processo pedagógico que permite identificar a afinidade dos alunos com o processo de desenvolvimento de soluções tecnológicas baseadas nas necessidades do seu cotidiano.

“Dentro do processo do curso eu apresento pra eles todas as possibilidades de tecnologias existentes referentes às tecnologias sociais e as energias renováveis, é um trabalho bem aberto que me permite identificar quais são os alunos interessados no campo da programação, que gosta de mexer com open source e a cultura maker, então eu vou identificando isso, e vou mostrando quais são as possibilidades que a gente tem de trabalhar com essas tecnologias”, explica.

Mirada relata que em meio a esse processo, um dos momentos marcantes no curso é o encontro presencial para utilização de ferramentas para montagem de estruturas de PVC e madeira. “A aula que eles gostam mais é sobre o uso prático das ferramentas, eu levo furadeira, martelo e serra, tudo isso para ministrar uma aula sobre como usar essas ferramentas, respeitando segurança, uso de proteção da forma correta, qual tipo de broca eu uso para furar uma madeira, aí é interessante perceber como eles vão furando tudo em qualquer lugar, você pode ver até as meninas aí com a furadeira furando uma parede”, conta o inventor.

Ao observar a reação dos alunos em contato com as ferramentas, Miranda destaca a potência dessas experiências para despertas nos jovens habilidades e interesses que eles ainda não reconheceram para seus futuros. “Durante o processo, eles falam: ‘nossa eu sempre tive vontade de mexer em uma furadeira, mas eu nunca tive oportunidade’. Então a ideia desse curso é despertar esse potencial que eles têm, que muitas vezes é falta de oportunidade”, finaliza.

“O que tá acontecendo é a fome”: moradoras protestam por políticas públicas no Butantã

0

Um grupo de mulheres que são lideranças comunitárias ocuparam a frente da Subprefeitura do Butantã junto a moradores de 22 territórios da zona oeste de São Paulo, para dialogar com representantes do poder público sobre o acesso às políticas públicas que vem sendo negadas às famílias da região.

 

Lideranças comunitárias saíram as ruas do Butantã para reivindicar seus direitos. (Foto: Vitória Guilhermina)

Na última sexta-feira (30), lideranças comunitárias de 22 territórios de periferias e favelas localizadas no distrito do Butantã, zona oeste de São Paulo, ocuparam a parte de baixo da ponte do Peri Peri, ao lado da Rodovia Raposo Tavares e caminharam em protesto na direção da Subprefeitura do Butantã, com o objetivo de dialogar com o subprefeito sobre políticas públicas que foram encerradas ou estão ameaçadas pela prefeitura de São Paulo.

Uma carta elaborada pelos moradores e líderes comunitários contendo seis eixos de discussão, entre eles: Segurança Alimentar; Emprego, Trabalho e Renda; Assistência Social; Moradia Digna; Saúde; e Zeladoria na Periferia foi entregue ao subprefeito do Butantã.

“Comida no prato é direito, por um teto debaixo da cabeça, pela volta do auxílio emergencial e pelo não fechamento dos Centros das Crianças e Adolescentes – CCAs”, foram alguns dos gritos ecoados pelos moradores organizados para reivindicar melhores condições de vida e acesso a direitos sociais.

“O que tá acontecendo é a fome” 

“O que tá acontecendo é a fome, é por isso que a gente está aqui hoje lutando. A prefeitura esqueceu as comunidades e esse tempo todinho de pandemia a gente vem sofrendo e sofrendo cada vez mais”, conta Claudete Cordeiro, 48, moradora e a liderança comunitária do Jardim D´Abril.

Ela é uma das articuladoras da manifestação e comentou sobre suas motivações para organização do ato. “A gente vem conseguindo ajuda dos movimentos sociais, das ONG´s, mas tem um momento que não tem mais de onde tirar ajuda, até os movimentos secam, e hoje viemos cobrar a prefeitura que tem que dar esse apoio para gente.”

A líder comunitária complementa que a luta dos moradores das periferias e favelas do Butantã está apenas começando. “A ideia é fazer esse diálogo e ser ouvido, a gente tá aqui para lutar, para ser visto, para não morrer, não deixar os nosso morrer”, relata ela. 

A ato foi protagonizado por mulheres que são lideranças comunitárias em 22 territórios periféricos da zona oeste de São Paulo. (Foto: Vitória Guilhermina)

O principal objetivo de Cordeiro é construir o diálogo com representantes do poder público para apresentar a carta produzida a muitas mãos pelos moradores, e para isso, ela e outras lideranças comunitárias já estão organizando a próxima manifestação na porta da prefeitura no centro de São Paulo.

“Eles vão ter que ouvir a gente, estamos levando nossa carta de reivindicações e queremos ser ouvidos, e lutando também contra os desmontes que vem acontecendo nos CCAs”, reforça ela. 

“Nós temos 1380 famílias mapeadas e nós queremos atendimento, queremos o mínimo de direitos”

Ana Cláudia Severino, moradora do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo.

Moradores de favelas do Rio Pequeno também marcaram presença no ato, uma delas é Ana Cláudia Severino, liderança comunitária que participou da manifestação motivada pelas batalhas por direitos sociais que a Favela do Camarazal, onde ela mora tem enfrentado desde o início dos anos 2000, data na qual, ela recorda que ocorreu a última visita do poder público na região.

“O último atendimento do poder público foi em 2000, e de lá pra cá, não teve mais atendimento, e só cresceu o número de famílias que estão em estado de miséria”, afirma. Segundo Severino, citando que o estado das moradias na Favela do Camarazal é um dos principais problemas que precisam de atenção do poder público.

Ela conta que lá acontece de tudo, de incêndios a enchente e a Subprefeitura do Butantã nada faz a respeito. “A subprefeitura chega lá e mapeia a comunidade e as família, dá auto de interdição, mas não faz nada, não saí da estaca zero, bem dizer eles enxugam gelo né, fazem vista grossa e mais nada, e são muitas as famílias, nós temos 1380 famílias mapeadas e nós queremos atendimento, queremos o mínimo de direito.”

Durante o ato, um grupo de lideranças apresentou ao subprefeito do Butantã uma carta com seis eixos de políticas públicas que precisam ser colocadas em prática pelo poder público. (Foto: Vitória Guilhermina)

 A trajetória da moradora na luta por direito começou após a casa onde morava com sua família ser atingida por um incêndio. A partir deste momento, ela decidiu agir em prol de outros moradores que sentem o descaso do poder público.

Ela conta que já ocorreram três incêndios dentro da favela Camarazal. “Eu sou uma das famílias que foi prejudica pelo incêndio em 2016, fiquei com oito filhos na rua, e muitas famílias hoje perderam os barracos em enchente, os barracos estão caindo”, descreve a moradora.

Um dos direitos sociais que ela visa pautar em diálogo com o poder público é o auxílio aluguel, que começou a ser pago em 2017 para 21 famílias do território, mas foi cortado no ano seguinte, em 2018.

“No mesmo ano eu fui com as famílias para a defensoria pública lá na rua Boa Vista, atenderam a gente, e logo depois cortaram de novo, muitas famílias estão voltando para a terra natal, muitas conseguiram ir para casa de parentes, mas muitos seguem lutando e se ajudando, porque nosso governo é uma vergonha.”

O ato denunciou o fechamento de dois Centros para Crianças e Adolescentes (CCA) que poderá deixar 300 crianças e adolescentes sem atendimento. (Foto: Vitória Guilhermina)

O ato foi protagonizado pela coragem de mulheres que enxergam na organização popular e no diálogo com o poder público uma forma de reduzir os problemas sociais que afetam as famílias da região.

A moradora da Cohab Raposo Tavares, Milena Alves Nascimento, 27, é outra liderança comunitária que levou para a Subprefeitura do Butantã as suas pautas com propostas de melhorias para os serviços públicos, que não tem agradado os moradores.

“Somos esquecidos por esta em uma região onde tem muitos bairros ricos, por estar na mesma região que Pinheiros, mas estamos aqui para mostrar a realidade das nossas comunidades da Raposo Tavares, das Cohabs, das favelas, viemos para a luta para que eles nos ouçam e de uma atenção”, explica Nascimento.

Ela denuncia que as famílias que possuem crianças e adolescentes atendidos por dois Centros para Crianças e Adolescentes (CCA) na região não sabem como irão fazer, pois as unidades serão fechadas sem um diálogo prévio com moradores da comunidade.

“Nós temos muitas crianças vulneráveis nas ruas, e agora estamos perdendo dois CCAs, que é o CCA Gracinha e o Clarice, e isso causa um impacto, né? O impacto de ter mais crianças na rua e expostas a criminalização. A gente entende que quando a criança está na escola, ela tá tendo um direito à educação, e com as perdas desses espaços vamos ter mais crianças nas ruas”, comenta.

Ao entender a gravidade da situação das famílias que perderão esses serviços públicos, a conselheira do CMDCA (Conselho Municipal da Criança e Adolescente) Roberta Seto, 37, moradora do Jardim Monte Kemel, marcou presença no ato representando o CCA Gracinha, que está ameaçado de ser fechado.

Ela explicou para a nossa reportagem os motivos que estão por trás desse processo de retirada de direitos dos moradores. “A prefeitura junto com a Associação Pela Família vai fechar dois centros de convivência e fortalecimento de vínculos. A Prefeitura alega que os dois imóveis não são acessíveis e a Associação afirma não ter recurso, apesar de ter recurso para fazer as obras de acessibilidade”, denuncia Roberta.

Ela destaca que o possível fechamento destes serviços vai gerar um grande impacto nas famílias que são usuárias. “Essa indisposição para o diálogo entre a Prefeitura e a organização vai colocar 300 crianças e adolescentes na rua sem atendimento. São famílias de alta vulnerabilidade que perderam suas casas e seus empregos durante a pandemia e ninguém está olhando para isso,” finaliza a conselheira.

Um convite ao afeto: às vezes é bom poder se afetar

0

Este texto é um pouco diferente dos demais da coluna, ele irá falar sobre afetos, sobre a importância da construção afetiva.

Agnes junto com alunos e coordenadores da Ubuntu. Foto: Adimildo Martinho

Ao falar de afeto, o que vem em sua mente? Um abraço, talvez um beijo, alguém que você ama… afeto pode ser tudo isso, mas também ganha outros significados, afeto às vezes não é somente o contato físico, mas o falar, o se importar, o olhar para o outro e compreendê-lo.

No primeiro ano da universidade tive contato com Henri Wallon, um teórico importante e que coloca a afetividade como algo essencial para o desenvolvimento da criança. Naquele momento eu começo a concordar e a relembrar muitas coisas que vivi na escola, mas também a criar uma identidade sobre o que eu pensaria mais tarde a cerca da educação e o que me levaria a escrever esse breve texto.

De forma extremamente simplista usei Henri Wallon, mas o fato é que hoje a pauta dos afetos possíveis, da construção de identidade com afetos, entre outras, se tornaram mais comuns, e é fato, somos seres sociais e vivendo em sociedade criamos laços todos os dias, ao longo do tempo e da vida em meio a tanta desigualdade e problemáticas, tantos sustos, dores e tantas coisas que precisamos reprimir para seguir em frente perdemos nosso olhar afetivo para os ‘outros’, mas ser afetado não é ruim.

Afetar-se do outro, dos acontecimentos e das vivências não é negativo, mesmo que isso passe por sentimentos como raiva e tristeza, isso faz parte da construção das nossas relações e nos ensina sobre como poderíamos melhorar, mudar formas de falar, mudar gestos e demonstrar afetos de novas formas.

É fato que criar afetos possíveis dentro de alguns contextos é quase como correr na contramão da realidade, mas é um dos caminhos e podemos ousar tentar!

O afeto auxilia no nosso processo de autoestima, de construção do olhar e de desenvolvimento, negar isso é também perder momentos importantes e valiosos. 

Hoje, a produtividade é o motor das nossas vidas (estou escrevendo este texto me culpando por não ter feito mais coisas hoje, mas são minhas férias), essa vontade desesperadora de bater metas como se nossas vidas fossem corporações retira também a possibilidade (maravilhosa) de vivenciar afetos e de poder tocar o outro.

Afinal, dentro desse contexto precisamos ser egoístas de forma negativa, precisamos ser ambiciosos e viver dentro de constantes sustos sociais.

Mas por que falar e ter afeto é importante? 

Eu sempre digo uma frase que parece de efeito, mas faz parte da minha crença na vida e nas pessoas que é: a vida só é boa, porque existem pessoas comigo, sem as pessoas não existe beleza em viver.

Essa frase rodeia minha trajetória inteira, principalmente após a Rede Ubuntu-Educação Popular onde existe a valorização da coletividade e isso me renderia momentos inesquecíveis, que realmente não daria para descrever, a possibilidade da troca e de ser eu mesma em coletivo me ajudou e me fez acreditar que era possível.

Na Escola Comum eu sou salva em um dos piores momentos da minha vida, é lá que eu encontro jovens brilhantes, professores brilhantes e um ano que era um sonho, pensar política e juventude, pensar em construções partindo das juventudes de periferia seria algo único, minha maior marca foi quando a maravilhosa antropóloga Rosana Pinheiro-Machado escreveu uma dedicatória iniciada com “minha brilhante”, após isso eu li essa dedicatória muitas vezes, eu acreditava e o culpado disso era o afeto. 

Turma piloto da Escola Comum

Já na universidade eu encontro muitas angústias e assim começo a fincar meu real pensamento sobre educação e é fazendo isso que chego até a Dra. Maria Carla Corrochano, professora na UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos, e a pessoa que irá me auxiliar a traçar meu caminho mais recente, foi pesquisando com a Carla que aprendi e reafirmei crenças sobre o afeto, sobre a identidade, sobre a valorização das pessoas.

Sempre confiei ser possível fazer ciência, pesquisa e universidade acessível, que fosse acolhedora e que trabalhasse nossos afetos, afinal, pesquisar também relembra nossas dores, também passa por pessoas, também reafirma duras realidades. Ao realizar pesquisas que envolviam várias pessoas e que tinham uma ideia coletiva revejo afetos possíveis, e se fazem através da fala.

Poder falar, poder se expressar, ser ouvido, ser respeitado, criar hipóteses e ver que não estão corretas e passar pelo processo de questionamento me possibilitou relembrar e valorizar os afetos, eu não saberia dizer se estaria aqui hoje mais focada em educação se não tivesse acessado essas pessoas.

Não precisamos só relembrar que necessitamos de trocas, mas aprendermos a sermos abertos a elas, isso não precisa envolver afeto romântico, nem nada que talvez possa incomodar algumas pessoas por inúmeros motivos, mas ainda estamos nessa sociedade, ainda podemos olhar ao nosso redor e enxergar nossas realidades, o que mudou? O outro é menor que eu? Eu preciso ensinar algo para alguém? Quantas pessoas moram no meu bairro? Eu entendo essas territorialidades?

O afeto influencia no nosso desenvolvimento cognitivo e nos auxilia na construção dos laços, se afetar também é se permitir construir, é poder repassar isso para nossas crianças e jovens, é poder demonstrar ainda mais do espírito Ubuntu de coletividade que mora na periferia, uma herança ancestral africana e que pode ser o caminho para muitas das mudanças que buscamos.

Neste texto agradeço a todos que foram fontes de afeto e acolhimento para minha história, em especial agradeço a Rede Ubuntu – Educação Popular onde eu fui abraçada desde o primeiro dia em que pus meus pés lá.

Os afetos podem ser possíveis e dentro de contextos periféricos onde convivemos diversas vezes com variadas violências (inclusive do Estado que deveria nos amparar), precisamos construir e reconstruir nossas heranças ancestrais e laços de coletividade. Lutar só é possível em coletivo. Não se faz política sem as pessoas.

Ubuntu: a humanidade é o coração da unidade. Ubuntu, para nós, para os nossos e para todos os que virão depois de nós!