Home Blog Page 29

Especialistas apontam problemas no atendimento às pessoas gestantes nas periferias

0

De acordo com a pesquisa Assistência Pré-Natal no Brasil e Acesso ao Parto Nas Maternidades do SUS, da Fiocruz em parceria com o Ministério da Saúde, as principais barreiras que impedem a realização ou geram o início tardio do pré-natal estão ligadas à dificuldade de agendamento das consultas; dificuldades no acesso ao transporte; horário de atendimento e conflitos com os profissionais da área. Além de questões pessoais, como: não saber ou não querer a gravidez; desconhecer a importância do pré-natal; problemas financeiros e falta de apoio para comparecer ao serviço.

Questões como território e raça também são marcadores fundamentais nessa desigualdade. Dados da pesquisa Desigualdades raciais na saúde: cuidados pré-natais e mortalidade materna no Brasil de 2014 a 2020, mostram que a ausência da assistência pré-natal acarreta, entre outras coisas, a mortalidade materna, onde se constatou que entre 2014 a 2019, houve aproximadamente 8 mortes maternas a mais de pessoas negras do que de pessoas brancas para cada 100 mil nascidos vivos. 

“Nas periferias a gente acredita que a assistência pré-natal é muito precária, uma vez que a demanda de profissionais é muito grande para a quantidade de atendidos, e as coisas acontecem sem o conhecimento da população, que não tem informação para cobrar e fazer valer as políticas públicas, assim como é preconizado pela rede cegonha”, afirma Nathalya Camargo, que é obstetriz, especialista em saúde coletiva e líder da equipe de assistência ao parto e nascimento Maoni Gestar e Nascer.

Para Nathalya, apesar das deficiências do sistema público, é ele que oferece o melhor serviço de pré-natal para as pessoas gestantes, pois embora os convênios forneçam uma gama mais diversificada de exames, ela observa que boa parte deles são solicitados de forma desnecessária, ao contrário do SUS, que é obrigado a solicitar uma série de exames básicos referenciados por evidências científicas. 

No Brasil, enquanto 76,1% das mulheres brancas realizaram um número adequado de consultas pré-natais em 2014, apenas 59,8% das mulheres negras acessaram esses cuidados, de acordo com dados da pesquisa Desigualdades raciais na saúde: cuidados pré-natais e mortalidade materna no Brasil de 2014 a 2020.

Moradora do bairro Jardim Maracá, localizado no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, professora de escola pública e doula há mais de 10 anos, Aline Gonçalves explica que as intervenções dos planos de saúde começam a partir do momento em que a gestação é descoberta. Segundo ela, o número excessivo de ultrassons solicitados no sistema privado, muitos voltados para agradar os responsáveis, mas dissociado de uma prática baseada em evidências científicas. 

Porém, ela pontua a importância de ter acesso a um número maior de consultas em gestações de risco que precisam de um acompanhamento mais próximo. “Quando é uma gestação de alto risco, é benéfica essa questão da constância de exames. Muitas vezes quando você tem um convênio isso te favorece, porque há muitos laboratórios em que você pode fazer exames muito tarde ou aos sábados e domingos, e a gente não tem essa possibilidade no SUS.”.

Em contrapartida, Aline Gonçalves aponta que existe uma negligência quando se trata de exames para aferir diabetes e hipertensão entre gestantes, especialmente em gestantes negras. Complicações a partir dessas doenças estão no primeiro lugar entre as principais causas de mortalidade materna no Brasil.

“Isso acontece tanto no SUS, quanto na rede privada, não é investigado como deveria. A gente conversa com [pessoas] que não tiveram hipertensão ou diabete gestacional diagnosticada, porque o médico está desatualizado e não acompanha os documentos do serviço que regula o seu próprio trabalho”.

Aline Gonçalves, doula. 

Diferenças no atendimento com objetivo comercial

A pesquisa A assistência ao pré-natal na rede privada: uma leitura sobre desmedicalização aponta que o “atendimento pré-natal desenvolvido na rede privada se encontra centrado na valorização da avaliação de exames laboratoriais, marcado por solicitações e prescrições em excesso, relacionando cada vez mais a gestação a um fenômeno não fisiológico, além de valorizar procedimentos em saúde que possibilitem faturamento”. 

A doula e mãe de duas crianças, Sabrina Costa, residente no bairro Parque do Lago, localizado no distrito do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, conta que teve uma experiência diferente com a rede privada de saúde, na qual ela analisa como sendo mais eficiente e acolhedora do que o SUS, em que aponta falta de afeto e de conexão entre os profissionais de saúde e as pessoas gestantes.

“No SUS dificilmente a gestante vai ser acolhida e ser afetada de maneira positiva. Quanto mais filhos essa [pessoa] tem, menos valorizada é. Vai sofrer violência obstétrica verbal desde o início. ‘Engravidou de novo?’, ‘Nossa, mas tantos filhos’, ‘Devia ter se cuidado’, ‘Não fez planejamento familiar?’, são frases que ouvem”, afirma Sabrina Costa.

“No convênio, tem ali um um endeusamento, uma romantização, é acolhida, mesmo que tenha o interesse por trás de ter ali a cesárea financiada, mas vai receber um mimo, vai escolher o horário que vai parir, o médico vai estar disponível e vai tratar super bem. Vai tentar ganhar a confiança [da pessoa], para que ela fique com ele até o final. Então para uma [pessoa] gestante cheia de dúvidas, hormônios e questões a serem trabalhadas, vai se sentir mais acolhida e respeitada no convênio”, coloca Sabrina.

Acesso à informação contra violências pré e pós-parto

Enfermeira, consultora de amamentação e laserterapeuta, Bárbara Moura afirma que “a educação perinatal é fundamental [para] receber as orientações baseadas em evidências”, mas que por outro lado, “no SUS as consultas na maioria das vezes são muito rápidas e com isso fica difícil ter a maioria das orientações que [vão] precisar futuramente ou na própria gestação.”. 

Com a ausência de informações, a pessoa gestante fica vulnerável e exposta a quaisquer erros que os médicos ou enfermeiros vierem a cometer no processo, mesmo no SUS, que é um programa fundamental e referência no acesso à saúde, principalmente para a população periférica.

“[Pessoas] negras, principalmente as que não tem um acompanhante, correm maior risco de sofrer violência obstétrica por meio de procedimentos desnecessários, porque estão numa situação muito vulnerável e não tem quem consiga olhar para aquela situação e entender que aquilo não é certo.”

Bárbara Moura, enfermeira, consultora de amamentação e laserterapeuta.

Mãe de duas crianças e moradora do bairro Leme, em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, Thainá de Lana fez seus dois pré-natais no SUS, sendo a primeira gestação enquanto mãe solo. Nesse caso, se não fosse a participação de sua mãe, que trabalha na área de saúde, ela acredita que seria submetida a procedimentos sem o seu consentimento.

“Como minha mãe trabalha na rede de saúde, ela foi falando as coisas que eu podia e não podia fazer. Ela que me acompanhou no nascimento da Alice, então todo medicamento que eles iam colocar na minha veia, ela perguntava ‘isso daí é pra que?’, porque a gente praticamente nasce de novo”, compartilha Thainá. 

Ela conta que presenciou situações de violência obstétrica ao seu lado, especialmente durante o segundo parto. “[O médico] xingava, olhava para cara das outras mãezinhas que tinha acabado de parir como se nada tivesse acontecido e voltava, xingava e gritava ‘vai, força, força, força’”.

Para ela, a solução para este problema começa com a inserção da educação perinatal no pré-natal do SUS, como uma ferramenta de combate à violência obstétrica. Além disso, estender o atendimento dos Agentes Comunitários de Saúde, que não atendem no município de Taboão da Serra e são um importante instrumento de educação e de comunicação entre as UBSs e as gestantes. 

De acordo com Nathalya Camargo, existem estratégias de proteção que podem auxiliar, como: educação perinatal, participação em grupos de gestantes oferecido pelo SUS e também por convênios, e a construção do plano de parto – documento assinado tanto pela família, quanto pelo médico, em que a pessoa gestante descreve exatamente o que deseja ou não durante seu parto. 

Apesar de existirem políticas públicas voltadas para a segurança da pessoa gestante, nem sempre elas são seguidas pelos profissionais de saúde, explica Nathalya Camargo. Ela relembra o caso da adolescente de Santa Catarina impedida de realizar um aborto legal e também a recente decisão do Senado que acabou com a exigência de autorização do cônjugue para realização de laqueadura.

“A gente compreende que a política pública se faz um pouco mais presente no SUS do que no privado, porém a gente não pode esquecer que a justiça social, a forma com que as pessoas conduzem as suas vidas, pensam, articulam, se constroem e reproduzem, também perpetua as desigualdades no serviço de saúde”, finaliza a obstetriz.

Coletivo Coletores celebra 15 anos com exposição em museu no Distrito Federal

0

Coletivo Coletores apresenta obras sobre as resistências dos povos originários, negros e periféricos na exposição “Signos de Resistência, Bordas da Memória”

Marcando seus 15 anos de existência, o Coletivo Coletores ocupa o Museu Nacional da República de Brasília, no Distrito Federal, com a primeira exposição de arte digital e multimídia da instituição. A mostra “Signos de Resistência, Bordas da Memória”, com lançamento em 13 de julho, reúne uma seleção de mais de 250 obras, dentre elas 50 obras inéditas e trabalhos emblemáticos que marcam a trajetória do coletivo.

Mulheres Insurgentes 2022 Fotografia a partir de intervenção urbana digital com vídeo mapping a igreja do Rosário dos homens pretos da Penha. Foto: Coletivo Coletores

A exposição lança um olhar à história e às contradições da construção do Brasil e busca recontar a história do país a partir de suas memórias apagadas e de suas contradições hegemônicas. A proposta dos artistas é questionar e rememorar as imagens que representam historicamente as lutas e resistências. Para ampliar a circulação dessas histórias e ícones, o Coletivo apresenta intervenções urbanas digitais, fotografias, videomappings, animações, pichações e instalações multimídia.

RESISTA! 1.0 – São Mateus, 2014. Foto: Coletivo Coletores

Videomapping nas periferias

O Coletivo Coletores nasceu em 2008, em São Mateus, na zona leste de São Paulo, e é formado pelos artistas Toni Baptiste e Flávio Camargo que dialogam sobre memórias de resistências que compõem contextos urbanos e sociais. A iniciativa tem como proposta pensar as cidades como meio e suporte para suas ações, utilizando diferentes linguagens visuais e tecnológicas. 

Em sua pesquisa poética, o Coletivo Coletores realiza ações que buscam evidenciar a história e as estratégias de resistência das coletividades e movimentos culturais insurgentes, além de colaborar com espaços, coletivos e movimentos sociais periféricos ou historicamente marginalizados. 

Além de ocupar espaços públicos nas regiões centrais, o Coletivo Coletores desenvolve suas ações nas periferias da cidade. Suas ações durante a pandemia de covid-19 tiveram grande impacto na disseminação de informação e conscientização. 

O Coletivo já participou de diferentes projetos e exposições ligados à arte, tecnologia e cidades em instituições, como: MAM SP, Itaú Cultural, Museu das Favelas, Museu da Língua Portuguesa, FILE SP, FONLAD Portugal, Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, Instituto Moreira Salles, Rede Sesc, Red Bull Station, CCSP, British Council, Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Dakar, além de ser indicado ao MVF Awards 2021 e contemplado com o prêmio ProAC por histórico em artes visuais 2021 e receberam o Prêmio PIPA 2022.

Serviço

Exposição “Signos de Resistência, Bordas da Memória”
Local: Museu Nacional da República | Setor Cultural Sul, Lote 2, próximo à Rodovia do Plano Piloto – Brasília/DF.
Abertura: 13 de julho de 2023, às 19h
Período expositivo: 14 de julho a 10 de setembro de 2023.
Horário: Terça a domingo de 9h às 18h30. Fechado às segundas.
Entrada Gratuita | Livre

Cursinhos Populares Periféricos ocupam Brasília

Sob a liderança da Uneafro Brasil, cursinhos populares periféricos ocuparam Brasília para reivindicar do Ministro da Educação políticas educacionais que diminuam as desigualdades raciais.

Cursinhos populares periféricos ocuparam Brasília para reivindicar do Ministro da Educação políticas educacionais que diminuam as desigualdades raciais vigentes na educação brasileira e a ampliação de políticas de acesso e permanência do negro no ensino superior.

Essa mobilização faz parte da 1ª Jornada pela Igualdade Racial na Educação, que aconteceu entre os dias 28 e 30 de junho, em Brasília, mobilizada pela Uneafro Brasil, movimento social que há 15 anos vem organizando cursinhos populares e formação política em dezenas de periferias de São Paulo e Rio de Janeiro, transformando a vida de centenas de jovens. 

Os cursinhos populares participaram de reuniões com os ministros Camilo Santana (Educação), Marina Silva (Meio Ambiente), Anielle Franco (Igualdade Racial), Wellington Dias (Desenvolvimento Social) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais), em que apresentaram uma série de demandas ao governo.

Dentre as pautas, reivindicaram o reconhecimento oficial dos cursinhos populares pelo Ministério da Educação. Atualmente, os cursinhos pré-vestibulares, populares e mesmo os privados, não são reconhecidos como um trabalho de educação, mas sim como um serviço. Dessa forma, eles não conseguem acessar editais e apoios destinados à educação, como passe livre para estudantes. 

Esses cursinhos populares são o meio de muitos jovens negros periféricos alcançarem o ensino superior, portanto, precisam não só de reconhecimento, mas também de apoio do Estado, sobretudo em um momento em que a evasão de jovens negros no ensino médio só cresce e, com o Novo Ensino Médio, a preparação para o vestibular se tornou ainda mais desigual. 

Rede Ubuntu participou do Encontro com Estudantes promovido pela UNEAFRO Brasil. Foto: Luis Fortes/MEC

Além de questões e desafios dos cursinhos, os movimentos reivindicaram a ampliação e permanências das políticas de cotas raciais, um programa de educação contra o racismo ambiental, um observatório da aplicação da Lei 10.639/03, que prevê o ensino de história e cultura afro-brasileira, a redução da taxa de juros pelo Banco Central, entre outras pautas. 

Essa foi a primeira vez que um Ministro da Educação recebeu cursinhos populares oficialmente, se mostrando sensível às demandas apresentadas. 

Diretamente da zona sul de São Paulo, a Rede Ubuntu fez parte dessas reivindicações junto à Uneafro.

Essa mobilização foi histórica e mostrou a força desses movimentos de educação popular na luta por questões que interessam a vida do povo negro e periférico. Historicamente, essa tem sido a luta dos movimentos negros, que desde sempre pautam a educação como direito de todos!

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Educadora compartilha como a adoção homoparental impacta famílias LGBTQIAPN+

0

No sexto e último episódio da primeira temporada do Desenrola Aí, entrevistamos Thaís Oliversi, artista, educadora e pessoa bissexual, para entender a partir da sua vivência familiar, como o direito a adoção e gestão impacta famílias LGBTQIAPN+ ao promover experiências de maternidade e paternidade. 

Desde março de 2015, a adoção para casais LGBTQIAPN+ é reconhecida legalmente no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como adoção homoparental. Diante da lei, pessoas lgbt, têm o direito de adotar uma criança e constituir suas famílias, seja por meio da adoção ou gestação.

“As pessoas conservadoras entendem que a gente não pode criar filhos. Na verdade, elas não estão preocupadas se as crianças estão comendo, se essas crianças estão tendo educação digna, não é isso que é importante para elas. Elas usam isso, como uma máscara […] elas estão preocupadas com a nossa continuidade. Por isso, eu falo para pessoas lgbts: nós somos capazes de criar crianças”

Thaís Oliversi, artista e educadora

Até o final de junho de 2023, os dados apresentados pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) registraram no Brasil o número de 32.107 crianças acolhidas, além de 4.422 crianças disponíveis para adoção e 34.598  pessoas na fila de espera para adotar uma criança. Os números são relativos, conforme o avanço das adoções, busca ativa e reintegrações dessas crianças ao seu núcleo familiar.

Esse é o sexto e último episódio da primeira temporada do Desenrola Aí. Na primeira temporada, trouxemos especialistas e dados que mostram como é desafiador as garantias de direito à vida da população LGBTQIAPN+ no Brasil. Acompanhe esse e outros episódios do Desenrola Aí no nosso canal de YouTube.

Sobre o Desenrola Aí 

​O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. 

Nessa primeira temporada vamos abordar sobre os direitos, à vida e a luta da população LGBTQIAPN+ nas periferias. O Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

Projeto revitaliza escadão e junto com moradores cria um parque no Jardim São Luís

0

O espaço que agora possui grafites, horta comunitária e brinquedos, foi revitalizado a partir de desenhos feitos pelas crianças do território.

O cotidiano dos moradores do bairro Jardim Novo Santo Amaro, no distrito do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, se tornou mais divertido nos últimos dois anos. Isso porque o projeto Circo de Québra tem atuado no escadão localizado na Viela Matriz, que passou a ser um espaço de convivência no território com brinquedos, grafites e horta comunitária para todos que transitam pelo local. 

A iniciativa começou em agosto de 2021, quando integrantes do projeto decidiram revitalizar a escadaria, mas sem realizar mudanças estruturais. O pontapé dessa proposta foi ouvir os moradores da região sobre o que eles desejariam ter no local, especialmente as crianças, que já tinham o costume de realizar brincadeiras naquele ambiente. 

“Em um primeiro momento foi feita uma pesquisa de campo em que a partir da observação e até mesmo demonstrações, as crianças do bairro apresentaram um pouco das dinâmicas, brincadeiras e percursos que realizavam”, compartilha Wandré Gouvêia, fundador do projeto. 

Wandré conta que realizaram uma dinâmica em que moradores de todas as idades contribuíram. “[Eles] poderiam criar e imaginar como poderia ser um parquinho naquele espaço, sendo convidados a desenhar seus parques dos sonhos. Deu-se então uma chuva de ideias em que todos os tipos de brinquedos e brincadeiras surgiriam”, explica o fundador do projeto. 

A partir das criações dos moradores, nasceu o “Parque de Québra”, nome pelo qual o espaço ficou conhecido, localizado na Rua Cristovão Aires, Jardim Novo Santo Amaro. O novo ambiente convida quem transita por lá a brincar e a preservar o local, como explica Gouvêia. 

“O Parque de Québra surge a partir de uma proposta de criar um ambiente acolhedor, em que as famílias possam estar integradas com a ideia do brincar e cuidar.” 

Wandré Gouvêia, fundador do projeto.

O processo de ressignificação da escadaria da Viela Matriz, no Jardim São Luís, nasceu em 2016, quando o Circo de Québra estabeleceu como objetivo criar naquele local um palco artístico. As apresentações culturais, oficinas e, especialmente, espetáculos circenses, transformaram o que antes era um ambiente de passagem em uma referência cultural para os moradores da região. 

Mesmo com o foco de atuação na escadaria da Viela Matriz, o projeto Circo de Quebrá já realizou intervenções culturais em outros bairros periféricos de São Paulo. As ações ocorrem sempre na rua, possibilitando com que o evento seja contemplado pelos moradores sem precisar sair de casa. A iniciativa já realizou mais de 50 eventos, envolvendo cerca de 300 artistas e alcançando mais de duas mil pessoas. 

Moradores sem CEP investem 6 mil reais para asfaltar favela na zona sul de SP

0

Na terceira semana de junho, aconteceu o último mutirão de moradores para asfaltar a Favela da Muriçoca, localizada na zona sul de São Paulo. A ação trouxe melhorias para a principal via de acesso dos moradores ao ponto de ônibus, posto de saúde, escolas e comércios. O evento comunitário representa uma luta de 29 anos para o poder público urbanizar a favela que não tem CEP e conta com mais de 70 famílias.

O movimento comunitário para asfaltar a favela é fruto da iniciativa do pedreiro Reinaldo Torquato, 34, morador da Favela da Muriçoca há 26 anos. Ele mobilizou um grupo de 20 amigos e familiares em novembro de 2022, para criar a Associação de Amigos – Rua das Crianças e realizar três vaquinhas que compraram cimento, areia e pedra, para asfaltar mais de 150 metros da Rua das Crianças, localizada na Favela das Muriçoca.

“Sempre foi complicado morar aqui, a gente não tem acesso a nada, passagem de carro aqui só acontece porque a gente [moradores] joga entulho, barro ou terra”

Reinaldo Torquato, 34, morador

“Para ir ao ponto de ônibus mais próximo, precisamos passar por vielas, um campo de futebol sem iluminação e com esgoto. Em época de chuva a gente precisa colocar sacola no pé, pra não chegar no ponto todo sujo”, descreve o pedreiro que mora na Favela da Muriçoca desde 1997.

Um levantamento da Associação de Amigos – Rua das Crianças, aponta que mais de 70 famílias convivem diariamente com a falta de acessibilidade, no qual as ruas além de não serem asfaltadas, possuem esgoto à céu aberto e um grande número de buracos, acarretando dificuldades na moradia, e gerando exaustão para as famílias que residem na região.

O mutirão de moradores deu origem a uma vaquinha que arrecadou mais de 6 mil reais. (Foto: Arquivo Pessoal)

O poder público municipal

A Favela da Muriçoca está sob jurisdição da Subprefeitura de M’Boi Mirim. Em 2022, o orçamento do órgão executor de serviços públicos municipais foi de 54 milhões. Em 2023, o investimento caiu para 35,8 milhões, ou seja, 19 milhões a menos para aplicar em melhorias de serviços públicos no território que tem umas das maiores populações da cidade.

O distrito do Jardim Ângela, onde está localizada a Favela da Muriçoca, tem mais de 290 mil habitantes, segundo o último Censo do IBGE, publicado em 2010, destes montante populacional, 60% se autodeclaram negros.

A reportagem procurou a gestão da Subprefeitura de M´Boi Mirim, que nos respondeu com a seguinte nota oficial: “A Secretaria Municipal das Subprefeituras, por meio da Subprefeitura M’Boi Mirim, informa que a região da comunidade “Muriçoca” se trata de uma área de manancial ocupada irregularmente desde 1996. A administração regional realiza periodicamente serviços de nivelamento e correção de irregularidades nas ruas e vias regularizadas da região.”

A partir deste contexto explicado pela Secretaria Municipal das Subprefeituras, nós procuramos a Secretaria Executiva do Programa Mananciais, para entender quais medidas o órgão público está tomando para mitigar os efeitos da falta de CEP e de asfaltamento de ruas da favela da Muriçoca.

Fomos informados que “a Favela Muriçoca faz parte do perímetro de obras denominado Chácara Flórida. Neste perímetro de quase 700 mil metros quadrados existe um projeto de urbanização em execução. As obras de urbanização do bairro iniciaram em agosto de 2022 e tem previsão de finalização para junho de 2024. Essas obras envolvem redes de água, esgoto e drenagem, construção de estação elevatória e coletores de esgotos, canalização de córrego, construção de viário e vielas, escadarias e calçadas, implantação de estruturas cicloviárias e contenção de áreas de risco”, informa a Secretaria Executiva do Programa Mananciais.

Segundo Juliana Avanci, advogada especializada em casos de violação do direito à moradia, a região onde se encontra a Favela da Muriçoca é uma área com a função social de regulação fundiária. “Essa área tá gravada no zoneamento como uma Zona Especial de Interesse Social, ( ZEIS 1) – ou seja, ela é destinada para regulação fundiária e permanência dos moradores”, explica.

Enquanto os moradores da Favela Muriçoca não sentem o avanço das obras apontadas pela Prefeitura de São Paulo, o cotidiano do território só muda se os moradores se unirem para promover melhorias emergenciais na região.

“A gente cansou de ir na Prefeitura, cansou de tanta promessa. Então por isso a gente resolveu fazer tudo sozinho. Já vieram representantes de deputados locais aqui fazer perguntas, propor reuniões, mas estamos calejados, eles sabem o que acontece aqui, mas nunca fizeram nada. Todo dia a gente pensa em se mudar, em vender, mas sabemos que ninguém vai valorizar”, desabafa Reinaldo.

 “A gente só evita degradação ambiental nessas áreas de manancial com regularização fundiária e com implantação de obras de infraestrutura urbana”

Segundo Juliana Avanci, advogada especializada em direito à moradia

Para Avanci, o fato dos moradores realizarem o mutirão para aprimorar a acessibilidade nas ruas da Favela Muriçoca não representa algum risco de tentativa de retirada das moradias do território, pois eles têm um histórico de desenvolvimento de vínculos comunitários e de implantação de melhorias no territórios há mais de duas décadas e esse um dado importante, para provar que essas pessoas não estão li irregularmente, mas sim que elas não tem acesso a políticas públicas que garantem o direito à moradia.

Foram realizados três mutirões na Rua das Crianças, para asfaltar mais de 200 metros. (Foto: Flavia Santos)

Cidadania postal

Com a pandemia de Coronavírus e o agravamento das desigualdades sociais, o número de favelas na cidade de São Paulo saltou de 1.728 para 1747, ou seja, quase 50 novas favelas surgiram entre 2019 e 2023 no município, segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB). Esse cenário reforça o aumento de moradias sem o Código de Endereçamento Postal (CEP).

Devido à falta de CEP, uma série de serviços públicos não chegam na Favela da Muriçoca, com isso, os moradores se sentem afastados e esquecidos. Antes do mutirão para asfaltar a Rua das Crianças, uma perua escolar não entrava na favela, o carro do Correio que entrega o programa Leve Leite da Prefeitura de São Paulo também não entrava na favela, onde moram famílias contempladas por essa política pública.

Outra desigualdade causada pela falta de asfalto na rua é o comprometimento da mobilidade e do direito de ir e vir dos moradores. As pessoas que residem no local e que possuem algum tipo de deficiência física são as mais afetadas. A auxiliar de serviços gerais, Graziela Santos, 38, morou durante 6 anos na favela da Muriçoca, mas devido a diversos problemas de circulação pelo território, ela se mudou recentemente e foi morar no Jardim Apura, no distrito da Pedreira, zona sul de São Paulo.

“Eu sou uma pessoa obesa. Imagina como era difícil levar meu filho na escola. Eu vivia caindo e me machucando nos buracos, não tinha como pegar a perua porque elas não entram na rua. Por isso, precisei sair da minha casa própria e ir para o aluguel, esse processo da mudança foi muito difícil”

Graziela Santos, moradora

Foi por conta de todos esses conflitos que até hoje continuam impactando de mais de 70 famílias que continuam morando na Favela da Muriçoca, que Reinaldo, juntamente com amigos e familiares, resolveu criar a Associação de Amigos – Rua das Crianças. “A gente queria pelo menos o básico: iluminação pública, saneamento básico, perua escolar para as crianças, é humilhante! Criamos essa Associação no final do ano passado [2022], não é uma coisa grandiosa, mas é o que a gente consegue fazer no momento”, explica.

Mensalmente, os moradores que são membros da Associação de Amigos – Rua das Criança contribuem com o valor de R$50,00, para gerar melhorias no território, uma delas foi asfaltar as ruas da favela, que são muito esburacadas, característica que é considerada de forma coletiva pelos moradores como um dos problemas mais urgentes para quem vive na região e precisa ter acesso a outros pontos do bairro e da cidade.

Carolina Freitas, 32, pesquisadora da USP e do Centro de Estudos Periféricos da UNIFESP afirma que, para moradores periféricos que não possuem CEP, o problema não é só não receber correspondência em casa ou não ter asfalto na rua. Ela destaca a ausência de políticas habitacionais básicas que é uma responsabilidade do poder público prevista em lei.

“As pessoas têm inúmeros prejuízos, que vão além de não conseguir qualquer encomenda do correio, também existe um problema crônico na cidade de São Paulo de desemprego estrutural. E esse desemprego estrutural está associado às pessoas que não conseguem comprovar onde moram, pois isso é um dos primeiros requisitos para concorrer a qualquer vaga de trabalho”, comenta a pesquisadora, apontando outros impactos gerados pelo abandono do poder público em relação a investimentos em territórios periféricos como a Favela da Muriçoca.

Incompetência armada: vocabulário da violência

0

Esse conceito se refere a capacidade do homem de dizer que não sabe fazer bem uma coisa para que nós façamos por eles.

Eu gosto muito da reunião de mulheres. Nesses encontros conseguimos elaborar melhor nossos papéis sociais e reconhecer as mazelas que são estruturas que elaboram o jeito de ser da nossa vida. 

Na maioria das vezes isso envolve nossos momentos de lazer, assim como alguns espaços de encontro que organizações sociais têm promovido. 

Um debate interessante que tem ocorrido nos Estados Unidos, entre mulheres, que acho importante que a gente conheça, é o conceito de incompetência armada, traduzido do inglês, weaponized incompetence

Esse conceito se refere a capacidade do homem de dizer que não sabe fazer bem uma coisa para que nós façamos por eles. É importante destacar que isso é um fingimento, uma estratégia de não fazer, de não se comprometer. 

Sabe aqueles argumentos, “sua comida é bem melhor”, “ninguém faz como você”?, se refere a falácias, em sua maioria de homens, que são uma estratégia de negar os afazeres e responsabilidades diárias, exaltando nossa capacidade de realização. 

Essa estratégia não se dá somente na fala, mas na realização das tarefas de forma inadequada para que a gente sinta, que só nós somos capazes de realizar tal feito e que isso é uma habilidade feminina e não humana, que qualquer ser humano com um pouco de vontade poderia fazer.

“Você pode varrer a sala?” 

Você, mulher, pode pedir ao seu parceiro, a seu amigo que divide as contas, ao seu pai. Ele varre, porém, há coisas ainda jogadas pela sala, talvez até no chão, onde ele varreu em volta, talvez copos sujos em cima da mesa de centro, e obviamente, ele não passou pano. 

Quando você pergunta depois sobre o estado da sala de estar ele se defende, “você não me pediu pra arrumar as coisas jogadas, recolher os copos ou passar pano”. Jogando a culpa em você, quando você se defende, falando que uma tarefa envolve muitas outras, ele pode pedir desculpas ou ele pode continuar se defendendo dizendo que você precisa ser mais clara no que você quer. 

É importante ressaltar que algumas pessoas, alguns homens, irão aprender com seus erros, mas a grande maioria continuará os repetindo, de novo, e mais uma vez, assim como a discussão que segue a tarefa mal feita, até que você, mulher, sinta que é mais fácil você mesma varrer a sala, e lavar a louça, e cozinhar, e lavar a roupa, enquanto ele pode ficar sentado no sofá, porque ele é muito incompetente para realizar tarefas domésticas.

Porém, a incompetência armada não está só relacionada a ação de delegar às mulheres tarefas, mas também tem um impacto nas decisões emocionais, pois é à nós dada a responsabilidade pela manutenção afetiva das relações. 

Quem nunca ouviu falar em um término: “você é maravilhosa, o problema sou eu”. Uma forma de usar essa exaltação de quem somos como arma para justificar sua falta de envolvimento ou melhor, aprofundamento nos reais motivos do término das relações. 

Nós, mulheres, atualmente somos mais autônomas com a entrada forte dos nossos corpos nas universidades e no mercado de trabalho. Estamos mais preparadas, lendo feminismo negro e fazendo terapia, participando de ações culturais e sendo reconhecidas por nossos trabalhos acadêmicos e culturais, tomando espaços no mercado que antes só homens eram reconhecidos. 

Mas como isso tem alimentado o crescimento da “incompetência armada”, como essa sensação que somos mais maduras nas relações, que somos donas do nosso destino tem na verdade no pano de fundo essa estratégia masculina de delegar a mulheres espaços sociais e de trabalho como estratégia de exploração das nossas condições físicas e mentais.

Você já se perguntou se aquele boy realmente precisa de terapia, ou se na verdade, suas questões emocionais são estratégias para não se envolver de fato? Ou se a incapacidade do seu companheiro de trocar uma fralda, fazer almoço e levar as crianças na creche antes do trabalho é de fato uma estratégia de se negar a colaborar? Pois se você consegue realizar essa ação humana, outros também poderiam realizar, pois sexo não performa essa capacidade. 

Do chefe, ao companheiro romântico, quantas estratégias de “incompetência armada” vivemos atualmente?

O resultado da incompetência armada é nossa sobrecarga, a normalização de tarefas ligadas ao gênero, posso apontar também que isso promove uma grande confusão sentimental que coloca mais um problema relacional que supostamente nós teremos que resolver, diagnosticar se estamos vivendo com um companheiro, um chefe, um companheiro de trabalho ou um amigo que se promove com bondoso trabalho a partir da incompetência armada. 

Na maioria das vezes esse tema tem sido abordado no âmbito da heterossexualidade e seus desdobramentos, porém, podemos empregar este termo a qualquer relação que reproduz de alguma forma o Modus operandi da heteronormatividade. 

Sim, manas, parece só um novo nome, mas na verdade nomear um ato é a forma de se afastar da ação e prover uma análise mais consciente. Assim como outros termos que têm surgido, este consiste na reflexão de um conjunto de atitudes que oprimem as mulheres no seu dia a dia. 

Gaslighting

Forma de manipulação/mentira para uma mulher sobre uma coisa que ela sabe que é verdade, até ela duvidar de si mesma e acreditar na mentira do homem. 

Mansplaining

É usado para determinar quando um homem explica uma coisa para mulher que ela já sabe, como por exemplo, tentar explicar algo de sua própria profissão quando ele mesmo não é, ou explicar algo sobre a vivência feminina, quando o ser humano em questão é um homem.

Manspreading

Quando os homens ocupam mais lugar do que eles precisam, por exemplo as pernas extremamente abertas em transporte público que pegam dois acentos. 

Bropriating

É tão comum no mundo acadêmico o Bropriating, um homem se apropriando de uma fala feminina, ou de uma ideia feminina e levando todo o crédito.

Stealthing

É uma violência sexual que consiste em retirar o preservativo sem o consentimento da outra pessoa, um crime segundo o artigo 215 do Código Penal.

Body Shaming

Ridicularizar o corpo de alguém de forma verbal e psicológica.

Vejam manas que o papel do nome é compreender que essas ações não são naturais da masculinidade, mas violências contra nossas vidas e que precisamos reconhecer essas ações como violências.

Quem nunca passou pelo menos por um desses constrangimentos violentos? 


Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Documentário preserva memória do artista Daniel Marques e debate saúde mental nas periferias

0

O documentário “Diga o que quiser! eu vou ser feliz à beça!”, dirigido pelo cineasta negro Renato Cândido, foi lançado no mês de maio de 2023 e está em circulação por diversos cinemas brasileiros, como o Circuito SPCine. O longa metragem mostra o legado cultural e a preservação da memória de Daniel Marques, artista que se suicidou, em 2017, com 26 anos, e problematiza o cuidado com a saúde mental da população negra e periférica.

Renato explica que o artista fazia parte de uma geração de artistas do começo do século 21 que carregava a importância do legado e memória para ampliação da arte nas periferias.

“Daniel viveu isso, e sua geração passou a acessar políticas públicas, como o programa VAI [Valorização de Iniciativas Culturais]. Na mesma época teve a semana de arte da periferia. Sérgio Vaz dizia que era a primavera artística da quebrada, em 2007”, afirma o cineasta negro.

Confira o trailer do longa metragem.

Daniel era morador do Itaim Paulista, bairro do extremo leste de São Paulo. Do candomblé, filho de Oxóssi, ele expressava toda sua ancestralidade na arte que produzia como escritor, músico, ativista social e articulador cultural.

Querido e respeitado nos variados ambientes que frequentava, o artista serviu de exemplo e referência para a periferia, sendo um dos fundadores do coletivo literário ‘O que dizem os umbigos”, sarau que nasceu em 2009 e marcou época do surgimento de encontros de literatura periférica, sobretudo na zona leste da capital, por fazer debates importantes sobre negritude e panafricanismo, questões LGBTQIA+, sempre com o artista muito participativo.

“Vejo o Dani nesse momento da encruzilhada da história. Além de ser brilhante e muito inteligente nas análises políticas que fazia, ele era muito aguerrido em relação as questões LGBTs”

Renato Candido, cineasta
Parte do filme foi produzido durante a pandemia de Covid-19. (Reprodução: Arquivo Pessoal)

O longa entrevista diversos artistas entre músicos, poetas e escritores que evidenciam Daniel como sua referência cultural e política, detalhando o papel dele para incentivar atividades culturais nas quebradas, locais historicamente negligenciados em relação à arte.

Bissexual, Daniel vivia na pele apreensões emocionais e a dificuldade de falar sobre seus problemas pessoais, características da masculinidade negra. Semelhante a grande maioria das pessoas nas periferias de São Paulo, o artista atravessava dificuldades financeiras, sem acesso digno à saúde e moradia, por exemplo.

“Vejo o drama de muitos homens negros ai. Mesmo o Dani sendo uma pessoa bisexual, existe um entrelaçamento entre condição de vida e afeto para um homem negro. Isso é muito complicado em relação à saúde mental”, aponta Renato.

“Vejo o drama de muitos homens negros ai. Mesmo o Dani sendo uma pessoa bisexual, existe um entrelaçamento entre condição de vida e afeto para um homem negro. Isso é muito complicado em relação à saúde mental”

Renato Candido, diretor do filme

A pressão para manter condições básicas de cidadania transformou a vida de Daniel, sua poesia, numa prosa sem palavras a capela. Daniel se suicidou em 2017, mas deixou seu legado nas artes que produzia.

O filme evidencia que as pessoas que Daniel influenciou carregam suas memórias e as eternizam da mesma maneira que ele encarava a vida. Com arte e poesia.

O cinesta negro Renato Candido idealizou o filme logo após o falecimento de Daniel Marques. (Reprodução Arquivo Pessoal)

A produção do documentário

Renato Cândido, mestre em cinema e audiovisual, atuante no cinema desde 2002 e professor da área, encarou diversas dificuldades enquanto homem negro para concretizar a produção do documentário, além do agravante da pandemia de covid-19.

A ideia de elaborar o filme surgiu assim que Renato recebeu a notícia do falecimento do Daniel. Daí começaram os primeiros corres para viabilizar a produção.

O diretor explica que enfrentou obstáculos financeiros para conseguir articular o documentário. “Batalhei para caramba pro VAI. Tentei em 2018 e 2019, daí conseguimos no ano seguinte, mas com muita lua”.

O programa VAI, política pública de fomento à cultura produzida por coletivos culturais das periferias de São Paulo, disponibilizou R$ 80 mil, quantia essa, segundo Renato, impossibilitou a realização de diversas ideias e técnicas de produção. Além das entrevistas captadas no longa, muito mais pessoas expressariam suas artes e performances em memória ao Daniel caso o investimento fosse maior, por exemplo.

“Isso mostra o quanto histórias negras ainda têm muita dificuldade de conseguir editais maiores. Imagina ter um orçamento de 300 mil, o tanto de coisas que poderíamos fazer mais da hora. É difícil romper com as travas do racismo”, ressalta Renato.

Em razão do baixo orçamento, e por respeitar o distanciamento social da época, o documentário trouxe mais entrevistas do que performances artísticas. Isso contribuiu, também, para as pessoas elaborarem o luto.

Com uma equipe majoritariamente negra, a produção fez imagens na praça Vila Mara e no Parque Itaim, ambas quebradas na zona leste. Também rolou filmagem na praça Daniel Marques, espaço que ganhou seu nome como homenagem.

“Os filmes que eu faço emocionam. Esse é um longa que emociona a galera. Ainda que eu queria que tivesse mil pessoas assistindo, as poucas pessoas que assistiram saíram impactadas com o filme”, completa Renato.

O trabalho foi concluído em setembro de 2022. Antes do lançado em maio de 2023, Renato conta que houve algumas exibições no Centro Cultural da Juventude, no Itaim Paulista. O filme está disponível no Circuito SPcine, em São Paulo.

 

Saúde na quebrada: iniciativas culturais pautam o HIV e atuam na saúde pública #11

0

Colamos na Vila Cisper, zona leste de São Paulo, para trocar uma ideia com o Ezio Rosa, sobre o trabalho da BixaNagô, coletiva LGBTQIAPN+ que pauta HIV com recortes de raça, classe e território.

A partir desse olhar de saúde e políticas públicas, conversamos com a Marcia Marci, produtora sociocultural e idealizadora da coletiva Travas da Sul, que fala sobre como iniciativas periféricas são multilinguagens, atuando no campo cultural e também com saúde pública, como na pauta da Aids e HIV.  

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube

Ficha técnica:
Roteiro, apresentação e entrevistas – Evelyn Vilhena
Distribuição – Samara da Silva e Thais Siqueira
Produção audiovisual – Pedro Oliveira 
Identidade visual – Flávia Lopes
Vinheta e edição – Jonnas Rosa

“Tem discriminação principalmente se for uma doula preta”, doulas refletem sobre a regularização da profissão

0

Sem regulamentação, o trabalho de Doulas ainda se caracteriza como uma atividade informal e com poucas garantias, principalmente para profissionais de regiões periféricas. 

A doulagem é um trabalho de cuidado com a pessoa gestante antes, durante e depois do parto, oferecendo suporte e acompanhamento nesse processo de gestar. Em 2022, aconteceu a audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados sobre a aprovação do Projeto de Lei 3946/21, que busca regulamentar a profissão de doula no país.

Doula é uma assistente de parto, que não necessariamente possui formação em ciências da saúde. Seu trabalho é realizar um acompanhamento para o cuidado e bem estar da pessoa gestante durante o período da gestação, ao longo do parto e até os primeiros meses pós parto.

Isabela Lima, 31, atua como benzedeira, artesã e doula. Nascida em São Vicente, baixada santista, atualmente mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo. Ela conta como, por ainda não ser regulamentado, o trabalho de doula apresenta dificuldades, como falta de piso salarial e remuneração fixa.

“A doula que administra essa parte financeira de quanto cobrar, como e se vai. Tem muitas doulas que fazem esse trabalho de forma social para pessoas em vulnerabilidade, assim como eu. Acredito que esse projeto sendo aprovado vamos realizar nosso trabalho de forma mais segura e efetiva, sem que precise bater de frente com as instituições de saúde”, afirma a doula Isabela Lima, que também é mãe do Gabriel de 6 anos e do Bento de 3 anos.

A profissional aponta que além da discriminação por ser uma profissão considerada informal e não existir uma regulamentação, também enfrenta discriminação racial dentro das unidades de saúde.

“[Estamos] ali para auxiliar, não para atrapalhar como muitas vezes escutamos [da] assistência médica. Nós não somos vistas com bons olhos, temos que lidar com discriminação, principalmente se for uma doula preta. Além de lidar com a rejeição do corpo médico, ainda precisei lidar com a discriminação racial.” 

Isabela Lima, mora no bairro Parque Bristol, distrito do Sacomã, zona sul de São Paulo, é benzedeira, artesã e doula.

A doula conta que antes mesmo de estudar e iniciar a sua atuação profissional na doulagem, já fazia um trabalho de apoio emocional com pessoas gestantes a sua volta e buscou esses estudos a partir da sua primeira gestação, período que tinha medo de sofrer violência obstétrica ou passar por alguma negligência médica. “Hoje eu me encontro como parteria tradicional, tentando fazer um resgaste de saberes ancestrais que foram tirados do nosso imaginário”, afirma. 

Isabela pontua que a doulagem é uma das funções que compõem uma equipe de assistência para pessoas gestantes. “Trabalhando justamente nesse lugar de bem estar. [Doula] traz esses saberes em relação aos cuidados com a saúde do responsável do bebê e do bebê, mas é diferente da parte técnica da assistência médica, da assistência de enfermagem. [Doula] não faz nenhum procedimento técnico de enfermagem como ausculta, exame de toque, não realizamos nada disso”, coloca.

“Enquanto pessoa preta [e] periférica atuo na quebrada, como forma de enfrentamento do medo que senti na minha gestação de sofrer alguma violência ou ser negligenciada, já que sabemos que os corpos pretos são os mais violentados. Também proporcionar a ideia de uma qualidade de vida e bem viver para as pessoas da quebrada que não tem acesso ao sistema de saúde que ferramentalize o bem viver.”

 Isabela Lima, é benzedeira, artesã e doula.

Isabela atua de forma autônoma, mas também faz parte da Associação Doula Solidária, uma iniciativa que facilita o contato da pessoa gestante com doulas de vários locais, como uma forma de democratizar e entender esse trabalho como um direito de saúde e assistência.

Regulamentação para garantia de direitos

“Desde que houve flexibilização da pandemia, os únicos hospitais do SUS que têm permitido entrada de doula é o hospital de Parelheiros e o Amparo Maternal que recentemente recebeu uma pressão da ADOSP – Associação de Doulas do Estado de São Paulo, para que pudéssemos voltar a atuar, pois também vínhamos enfrentando dificuldades”, coloca Hanny Rodrigues, 29, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo. Para a profissional, a regulamentação afeta diretamente as doulas que são moradoras e atuam nas periferias. 

“A galera que pode pagar por um hospital ou tem convênio, seja ele particular ou pela empresa, já consegue acessar nosso serviço sem maiores problemas, porque a maioria dos hospitais particulares permite o nosso acesso sem grandes dificuldades. É uma escolha política barrar a gente nos hospitais públicos.

Hanny Rodrigues, doula e moradora de Pirituba, região noroeste da cidade de São Paulo.

A doula conta que iniciou o trabalho de doulagem por influência da irmã, logo depois foi estudar e em 2018 começou a atender na área. Ela é membro da ADOSP (Associação de Doulas SP) e aponta que atualmente existe um acordo informal de uma contribuição de R$ 1.900 para um acompanhamento de encontros pré-natal, partos e pós-partos. A doula enfatiza que é apenas um acordo ético e que na prática as doulas recebem muito menos. 

“Não basta realizar um curso preparatório de doulas, embora hoje existam muitas formações disponíveis no mercado, tanto de forma presencial, quanto online. Não só sobre o parto em si, mas sobre a importância real da doula. Avaliar qual é a sua disponibilidade de tempo para dedicar à sua gestante e também a sua saúde mental”, compartilha Hanny.

Articulação em rede

A busca pela regulamentação do trabalho das doulas tem sido articulada por diversos movimentos, entre eles a Fenadoulas Brasil, organização que reúne associações de doulas do Brasil e busca articular o campo de defesa da atenção multidisciplinar com inserção de doulas nesse cuidado, além de apoiar entidades filiadas que atuam para fortalecer o protagonismo da pessoa no ciclo gravídico puerperal, a partir do acesso a informações de qualidade e atendimento humanizado, respeitoso e digno.

Morgana Eneile é doula, pesquisadora, presidenta da Fenadoulas Brasil, e pontua que não existe uma restrição para se tornar doula, mas uma orientação para pessoas que tenham o ensino médio completo e seja maior de idade. Além de uma formação de doula que atualmente é feita através de cursos livres, privados ou públicos, coordenados por profissionais que atuam com doulagem.

“A prática da profissão já está organizada formalmente na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), mas ainda há diferentes leituras que tendem a ser mais uniformizadas a partir da aprovação de uma legislação nacional que possibilite a compreensão geral do universo de trabalho”, pontua a pesquisadora em referência a importância de regulamentar a profissão.

Para Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo), é extremamente importante que aconteça a regulamentação para que possam ser reconhecidas como profissionais. “Doula é profissão há muitos anos. [É] importante esse reconhecimento como profissional até mesmo no campo financeiro. Outro ponto importante é ter coerência e coesão principalmente na base das formações”, afirma. 

“Através da regulamentação, além de equalizar minimamente as formações, considerando os critérios necessários para formação de qualidade [e] reconhecimento das profissionais, nos permite acesso aos locais onde as pessoas gestantes estão parindo seus filhos. Com a regulamentação, as Doulas têm livre acesso aos hospitais – sejam eles públicos e/ou privados rede suplementar.”

Kau Marua, doula representante da Adosp (Associação das Doulas de São Paulo)

“A presença da doula no cenário de parto é uma ferramenta extremamente importante para o cuidado das parturientes, inclusive em relação à proteção contra a violência obstétrica”, pontua Kau Marua.