Moradores sem CEP investem 6 mil reais para asfaltar favela na zona sul de SP

Cansados de esperar por promessas de políticos, moradores da Favela da Muriçoca, que existe há 29 anos, criam associação que arrecada recursos para implantar melhorias de acessibilidade para mais de 70 famílias.
Edição:
Ronaldo Matos

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Na terceira semana de junho, aconteceu o último mutirão de moradores para asfaltar a Favela da Muriçoca, localizada na zona sul de São Paulo. A ação trouxe melhorias para a principal via de acesso dos moradores ao ponto de ônibus, posto de saúde, escolas e comércios. O evento comunitário representa uma luta de 29 anos para o poder público urbanizar a favela que não tem CEP e conta com mais de 70 famílias.

O movimento comunitário para asfaltar a favela é fruto da iniciativa do pedreiro Reinaldo Torquato, 34, morador da Favela da Muriçoca há 26 anos. Ele mobilizou um grupo de 20 amigos e familiares em novembro de 2022, para criar a Associação de Amigos – Rua das Crianças e realizar três vaquinhas que compraram cimento, areia e pedra, para asfaltar mais de 150 metros da Rua das Crianças, localizada na Favela das Muriçoca.

“Sempre foi complicado morar aqui, a gente não tem acesso a nada, passagem de carro aqui só acontece porque a gente [moradores] joga entulho, barro ou terra”

Reinaldo Torquato, 34, morador

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“Para ir ao ponto de ônibus mais próximo, precisamos passar por vielas, um campo de futebol sem iluminação e com esgoto. Em época de chuva a gente precisa colocar sacola no pé, pra não chegar no ponto todo sujo”, descreve o pedreiro que mora na Favela da Muriçoca desde 1997.

Um levantamento da Associação de Amigos – Rua das Crianças, aponta que mais de 70 famílias convivem diariamente com a falta de acessibilidade, no qual as ruas além de não serem asfaltadas, possuem esgoto à céu aberto e um grande número de buracos, acarretando dificuldades na moradia, e gerando exaustão para as famílias que residem na região.

O mutirão de moradores deu origem a uma vaquinha que arrecadou mais de 6 mil reais. (Foto: Arquivo Pessoal)

O poder público municipal

A Favela da Muriçoca está sob jurisdição da Subprefeitura de M’Boi Mirim. Em 2022, o orçamento do órgão executor de serviços públicos municipais foi de 54 milhões. Em 2023, o investimento caiu para 35,8 milhões, ou seja, 19 milhões a menos para aplicar em melhorias de serviços públicos no território que tem umas das maiores populações da cidade.

O distrito do Jardim Ângela, onde está localizada a Favela da Muriçoca, tem mais de 290 mil habitantes, segundo o último Censo do IBGE, publicado em 2010, destes montante populacional, 60% se autodeclaram negros.

A reportagem procurou a gestão da Subprefeitura de M´Boi Mirim, que nos respondeu com a seguinte nota oficial: “A Secretaria Municipal das Subprefeituras, por meio da Subprefeitura M’Boi Mirim, informa que a região da comunidade “Muriçoca” se trata de uma área de manancial ocupada irregularmente desde 1996. A administração regional realiza periodicamente serviços de nivelamento e correção de irregularidades nas ruas e vias regularizadas da região.”

A partir deste contexto explicado pela Secretaria Municipal das Subprefeituras, nós procuramos a Secretaria Executiva do Programa Mananciais, para entender quais medidas o órgão público está tomando para mitigar os efeitos da falta de CEP e de asfaltamento de ruas da favela da Muriçoca.

Fomos informados que “a Favela Muriçoca faz parte do perímetro de obras denominado Chácara Flórida. Neste perímetro de quase 700 mil metros quadrados existe um projeto de urbanização em execução. As obras de urbanização do bairro iniciaram em agosto de 2022 e tem previsão de finalização para junho de 2024. Essas obras envolvem redes de água, esgoto e drenagem, construção de estação elevatória e coletores de esgotos, canalização de córrego, construção de viário e vielas, escadarias e calçadas, implantação de estruturas cicloviárias e contenção de áreas de risco”, informa a Secretaria Executiva do Programa Mananciais.

Segundo Juliana Avanci, advogada especializada em casos de violação do direito à moradia, a região onde se encontra a Favela da Muriçoca é uma área com a função social de regulação fundiária. “Essa área tá gravada no zoneamento como uma Zona Especial de Interesse Social, ( ZEIS 1) – ou seja, ela é destinada para regulação fundiária e permanência dos moradores”, explica.

Enquanto os moradores da Favela Muriçoca não sentem o avanço das obras apontadas pela Prefeitura de São Paulo, o cotidiano do território só muda se os moradores se unirem para promover melhorias emergenciais na região.

“A gente cansou de ir na Prefeitura, cansou de tanta promessa. Então por isso a gente resolveu fazer tudo sozinho. Já vieram representantes de deputados locais aqui fazer perguntas, propor reuniões, mas estamos calejados, eles sabem o que acontece aqui, mas nunca fizeram nada. Todo dia a gente pensa em se mudar, em vender, mas sabemos que ninguém vai valorizar”, desabafa Reinaldo.

 “A gente só evita degradação ambiental nessas áreas de manancial com regularização fundiária e com implantação de obras de infraestrutura urbana”

Segundo Juliana Avanci, advogada especializada em direito à moradia

Para Avanci, o fato dos moradores realizarem o mutirão para aprimorar a acessibilidade nas ruas da Favela Muriçoca não representa algum risco de tentativa de retirada das moradias do território, pois eles têm um histórico de desenvolvimento de vínculos comunitários e de implantação de melhorias no territórios há mais de duas décadas e esse um dado importante, para provar que essas pessoas não estão li irregularmente, mas sim que elas não tem acesso a políticas públicas que garantem o direito à moradia.

Foram realizados três mutirões na Rua das Crianças, para asfaltar mais de 200 metros. (Foto: Flavia Santos)

Cidadania postal

Com a pandemia de Coronavírus e o agravamento das desigualdades sociais, o número de favelas na cidade de São Paulo saltou de 1.728 para 1747, ou seja, quase 50 novas favelas surgiram entre 2019 e 2023 no município, segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB). Esse cenário reforça o aumento de moradias sem o Código de Endereçamento Postal (CEP).

Devido à falta de CEP, uma série de serviços públicos não chegam na Favela da Muriçoca, com isso, os moradores se sentem afastados e esquecidos. Antes do mutirão para asfaltar a Rua das Crianças, uma perua escolar não entrava na favela, o carro do Correio que entrega o programa Leve Leite da Prefeitura de São Paulo também não entrava na favela, onde moram famílias contempladas por essa política pública.

Outra desigualdade causada pela falta de asfalto na rua é o comprometimento da mobilidade e do direito de ir e vir dos moradores. As pessoas que residem no local e que possuem algum tipo de deficiência física são as mais afetadas. A auxiliar de serviços gerais, Graziela Santos, 38, morou durante 6 anos na favela da Muriçoca, mas devido a diversos problemas de circulação pelo território, ela se mudou recentemente e foi morar no Jardim Apura, no distrito da Pedreira, zona sul de São Paulo.

“Eu sou uma pessoa obesa. Imagina como era difícil levar meu filho na escola. Eu vivia caindo e me machucando nos buracos, não tinha como pegar a perua porque elas não entram na rua. Por isso, precisei sair da minha casa própria e ir para o aluguel, esse processo da mudança foi muito difícil”

Graziela Santos, moradora

Foi por conta de todos esses conflitos que até hoje continuam impactando de mais de 70 famílias que continuam morando na Favela da Muriçoca, que Reinaldo, juntamente com amigos e familiares, resolveu criar a Associação de Amigos – Rua das Crianças. “A gente queria pelo menos o básico: iluminação pública, saneamento básico, perua escolar para as crianças, é humilhante! Criamos essa Associação no final do ano passado [2022], não é uma coisa grandiosa, mas é o que a gente consegue fazer no momento”, explica.

Mensalmente, os moradores que são membros da Associação de Amigos – Rua das Criança contribuem com o valor de R$50,00, para gerar melhorias no território, uma delas foi asfaltar as ruas da favela, que são muito esburacadas, característica que é considerada de forma coletiva pelos moradores como um dos problemas mais urgentes para quem vive na região e precisa ter acesso a outros pontos do bairro e da cidade.

Carolina Freitas, 32, pesquisadora da USP e do Centro de Estudos Periféricos da UNIFESP afirma que, para moradores periféricos que não possuem CEP, o problema não é só não receber correspondência em casa ou não ter asfalto na rua. Ela destaca a ausência de políticas habitacionais básicas que é uma responsabilidade do poder público prevista em lei.

“As pessoas têm inúmeros prejuízos, que vão além de não conseguir qualquer encomenda do correio, também existe um problema crônico na cidade de São Paulo de desemprego estrutural. E esse desemprego estrutural está associado às pessoas que não conseguem comprovar onde moram, pois isso é um dos primeiros requisitos para concorrer a qualquer vaga de trabalho”, comenta a pesquisadora, apontando outros impactos gerados pelo abandono do poder público em relação a investimentos em territórios periféricos como a Favela da Muriçoca.

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